Da substância dos sonhos e outras periferias
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Sobre este e-book
Dos lugares incomuns às incomuns disrupções da tessitura do real. Do olhar mínimo à grande angular. Do amor pelas coisas à saudade do que ainda está presente.
Esta antologia é um espelho: diante do leitor, ele se desfaz e se remonta. São contos de partida, mas também são formas de chegada. Pelas lentes dos olhos vidrados, o contar – este rio minguado que nos habita – germina o impacto do outro.
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Da substância dos sonhos e outras periferias - Tiago Novaes
Esta antologia é resultado do trabalho dos autores na oficina online do canal Escrita Criativa, do escritor e professor de criação literária Tiago Novaes. Para acompanhar as novidades, lançamentos, entrevistas e dicas de escrita e leitura do canal Escrita Criativa, inscreva-se no canal!
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Introdução
Tiago Novaes
––––––––
Dos lugares incomuns às incomuns disrupções da tessitura do real. Do olhar mínimo à grande angular. Do amor pelas coisas à saudade do que ainda está presente.
Esta antologia é um espelho: diante do leitor, ele se desfaz e se remonta. São contos de partida, mas também são formas de chegada. Pelas lentes dos olhos vidrados, o contar – este rio minguado que nos habita – germina o impacto do outro.
Mais imprecisa que a vida são os cinco passos antes de temer a morte e rezar
Mariana Mello
Cinco pasos até la cocina. cusiiine. cinque passi. un. deux. Troois. Quatre. Cinc! Cin-co Pas-sos. Todas as tardes que rolei pela cama, à beira, ajustei os pés no chão, e quase num impulso, vamos?, desisti, me desfazer no lençol com os olhos pesados, grito, alguém traz água para mim, é pior discutir. A imperfeição desse teto. De manhã, as linhas da persiana. Seria bom se fosse um céu com nuvens se movendo. Almoçar em algum lugar barato, uma fatia de torta para colocar uma velinha em cima e cantar parabéns. Trinta e oito anos. Aquele sorriso estranho. Não me peça para falar nada, por favor.
Liguei para Alex. Sei que me disse isso olhando para baixo: Flavitcha, desisti há muito tempo de não ficar deprimido no meu aniversário. Aliás, estou cada vez mais convencido de que a melhor forma de passar o dia 15 de abril é ficar trancado no quarto, ouvindo Joy Division, ou Radiohead, com os piores pensamentos possíveis. Tipo um pot-pourri, uma retrospectiva? Gosto de me sentir obscuro. O brilho dessa gente toda aí me incomoda. Pelo menos uma vez por ano me dou ao luxo de ficar na sombra.
Mamãe disse que viria aqui em casa de tarde, mãe, você nunca entende nada, né?
, terminamos de costas, magoadas. Ninguém diz nada a ninguém. O que machuca ao osso não se toca. Mamãe disse que sacou dinheiro da poupança, porque sempre erra no presente e preferiu, dessa vez, me dar em espécie. Talvez fique em casa para receber o dinheiro. Preciso comprar um livro que custa duzentos reais, fora o frete. Odeio aquele ar indiferente. Não queria forçar um sorriso, nem parecer triste demais para não correr o risco de me dissolver diante dela e ter de dar uma porção de explicações. O aniversário é a pior data do ano para existir.
Também não vou atender o celular. Quem eu quero que ligue, não liga, e essa constatação massacra minha alma todas as vezes que atendo o telefone. Ai, aquele menino do escritório, aquele estagiário fresco de cabelo cacheado até o ombro, de costas largas, ai, ele é como o verão. Não o verão do Rio de Janeiro, que deixa a gente suado e com raiva, mas um verão que deixa a gente suado depois em êxtase, porque traz a vida. A vida é a ligação de um estagiário vinte anos mais jovem que te chama para fazer um programa que não tem absolutamente nada a ver contigo, como ir à praia e assisti-lo surfar, tomar um açaí com granola e banana. Na minha imaginação, falo alguma coisa inteligente e acabamos nos desfazendo atrás de uma pedra.
Mas e se eu morresse hoje? Muita gente morre no dia do aniversário. Há estatísticas. Tenho problemas cardíacos. Me sinto doente, febril, um leve desconforto intestinal. Tenho certeza de que sofro de uma doença rara, mas como não é fatal, vou levando a situação até o dia em que cair na rua, ser internada às pressas e um médico, finalmente, me der ouvidos. Não sou hipocondríaca. Talvez eu queira viver. É possível desejar o que não se deseja. Alô, Alex, sou eu de novo. / Que foi, criatura?/ Então, se morre de prolapso?/ Não./ Na história da medicina há registro de alguém que tenha sobrevivido a uma doença rara não diagnosticada?/ Não sei./ Não sei? Você tinha de dizer que sim!/ Flavinha, o maior risco de morte hoje seria você se jogar pela janela, morrer de infarto ou do próprio choque no chão./ Que horror!/ Para de palhaçada e liga a TV! Vai que está passando A lagoa azul e você se imagina com o estagiário, hein? A melhor companhia de uma mulher solteira que diz odiar os homens é a imaginação./ Idiota!/
Odiar os homens? Psicanálise machista. A querela do falo
. O estagiário não vai ligar. Preciso descobrir que doença rara tenho. Não quero morrer sozinha ou amargurada. A querela do falo
? Mas tudo isso é culpa minha. Plantei minha desgraça, me afastei da igreja, dos mandamentos! A mente longe da fé atormenta-se como no Inferno! Quando entrei na faculdade, jurei de pé junto que excluiria da minha vida tudo que cheirasse à autoajuda, mas preciso abrir uma exceção para a Bíblia. Desculpe, Senhor, venho me abstendo do espírito motivacional que tomou conta da nossa literatura, até da poesia, mas prometo poupar seu livro sagrado. Preciso voltar a ter pensamentos saudáveis, desejar a felicidade, corrigir implacavelmente qualquer inclinação para a melancolia e a raiva. Sentirei saudades de Joy Division. Ah, meu Deus, como dói o caminho da retidão! Pobre Sylvia Plath, Fernando Pessoa, ah, Robert Musil, que tanto me ensinou sobre a complexidade de uma existência analítica e sua inevitável flexibilidade moral! Não, preciso ser forte, ter freios, desapegar do que me entristece. A simplicidade do pensamento conduz à paz interior. Paz. Paix. Pace. Se a vida é um ensaio para a morte, a mortificação do desejo é a verdadeira liberdade pela qual o indivíduo anseia.
Barba feita
Oscar Maldonado
O velho imigrante espanhol foi o primeiro barman do Hotel Gaivota, título exagerado para alguém que acabou a vida cuidando das filhas, a louca e a prostituta que se matou. Chamava-se Damião Montenegro.
Clarisse tinha treze anos quando a conheci. Amava ostentar a barriguinha malhada de menina magra. Um dia exigiu que escrevesse algo em seu caderno. Damião gargalhou ao perceber o meu embaraço, a filha era uma criança, mas agia como se não fosse. Entregou-me o caderno e ordenou que escrevesse.
Vou escrever o quê?
Qualquer coisa
, disse a garota. Olhei o caderno, tinha várias mensagens e citações ousadas que os garotos escreviam para declarar amor por ela.
Não sei o que escrever.
Escreva qualquer coisa, poxa, todo o mundo sabe escrever
, insistiu.
Damião se matava de tanto rir; a mocinha, nessa altura, com a cumplicidade do pai, sentou-se sobre a minha perna.
Está bem
, respondi e a empurrei com cuidado, o pretexto era amparar o caderno sobre a perna.
Não é tão difícil
, disse, vitoriosa, e ajeitou a blusa. Escrevi para desviar o olhar dos pontos insipientes em seu peito.
O cochicho de duas mulheres me devolveu à realidade. Estou perante o corpo de Clarisse, comprido como todo corpo morto, amarelado e frio. Tinha se tornado uma bela mulher, entrara para a Marinha, dormia com os seus superiores por dinheiro, não que precisasse. Fazia por vingança. É o que suponho, quem sabe para desculpá-la sem saber bem do quê.
"A coitada se