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Conflito, Identidade e Territorialização: Estado e Comunidades Remanescentes de Quilombos do Vale do Ribeira de Iguape - SP
Conflito, Identidade e Territorialização: Estado e Comunidades Remanescentes de Quilombos do Vale do Ribeira de Iguape - SP
Conflito, Identidade e Territorialização: Estado e Comunidades Remanescentes de Quilombos do Vale do Ribeira de Iguape - SP
E-book580 páginas7 horas

Conflito, Identidade e Territorialização: Estado e Comunidades Remanescentes de Quilombos do Vale do Ribeira de Iguape - SP

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Sobre este e-book

Reavivar a identidade de remanescentes de quilombos e sua ancestralidade, amparados pelo Artigo 68 da Constituição de 1988, foi a oportunidade encontrada pelas comunidades rurais negras do Vale do Ribeira para contrapor aos conflitos territoriais que emergiram na região após os anos de 1950. O direito constitucional conquistado pela luta do movimento negro, em defesa da propriedade das terras quilombolas no Brasil, trouxe para essas comunidades rurais uma garantia dos seus direitos étnicos e culturais. Dessa luta emergiu o processo de reavivamento da memória coletiva, e com a valorização das tradições culturais aflorou a resiliência ao modo de vida tradicional, entrelaçados ao meio em que vivem. As territorialidades construídas pelos remanescentes de quilombos se firmaram pela resistência às pressões externas sofridas em torno de seus territórios. Esse livro tem o propósito de contar a história de ocupação das comunidades de quilombos no Vale do Ribeira, uma vez que foi nessa região que iniciou a luta do movimento quilombola no Estado de São Paulo, pelos conflitos que afloraram com mais força nas décadas de 1980-90 pelas ameaças da construção da Hidrelétrica Tijuco Alto, no Rio Ribeira de Iguape, pela criação de Unidades de Conservação sob parte de seus territórios. Esses conflitos territoriais deram impulso para cobrarem do Estado o cumprimento do ADCT 68 da CF em defesa de seus direitos como cidadãos e implementação de políticas públicas a essa população negra rural.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento21 de fev. de 2022
ISBN9786525222837
Conflito, Identidade e Territorialização: Estado e Comunidades Remanescentes de Quilombos do Vale do Ribeira de Iguape - SP

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    Conflito, Identidade e Territorialização - Rose Leine Bertaco Giacomini

    PARTE I

    "Só existe saber na invenção na reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente que os homens fazem

    no mundo, com o mundo e com os outros".

    Paulo Freire

    1. A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA E AS TERRAS DE QUILOMBOS

    A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

    Os direitos dos quilombos sobre seus territórios foram discutidos pela legislação brasileira na Constituição Federal de 1988. Através de muitas lutas, sustentadas pelos movimentos sociais em apoio às comunidades negras no Brasil, foram aprovados os Artigos 215¹⁴ e 216¹⁵ da Constituição Federal Brasileira e, nos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, o Artigo 68¹⁶. Essa nova legislação ampliou a possibilidade de tratarmos da posse territorial dedicada à manutenção dos grupos sociais, em sua diversidade de formas culturais. O referido Artigo 68 reconheceu o direito que as comunidades remanescentes de quilombos têm às terras que ocupam, assim como a obrigação do Estado em legalizar as suas posses. A redação do referido artigo deixa evidente sua intenção de reparação histórica e de reconhecimento de valores simbólicos voltados ao restrito universo dos remanescentes daqueles que foram ícones da resistência e escravidão. Foram criados também os artigos 215 e 216, dedicados à proteção da Cultura Negra, que determinam o tombamento dos documentos e sítios relativos a antigos quilombos. Desse modo, revela-se a conversão dessas normas voltadas à reparação do passado em instrumentos de construção do futuro.

    O movimento social ligado às comunidades negras se apropriou dessa legislação para defender essa população que, em sua maioria, se encontrava acuada por conflitos fundiários com grileiros, empreendimentos hidrelétricos, legislação ambiental, etc.

    Os movimentos negros no Brasil até então só haviam assumido o termo quilombo como uma espécie de acervo simbólico para suas lutas urbanas, sem aprofundar a análise sobre sua histórica e dedicar maior atenção ao mundo rural. Como para o Estado brasileiro a questão negra sempre foi isolada como uma questão cultural, esvaziada de seus significados políticos, isso fez com que as comunidades rurais negras fossem inicialmente apoiadas por entidades dos movimentos sociais ligados às lutas indigenistas. Ocorreu, assim, a transmissão de uma experiência histórica de luta por territórios étnicos das comunidades indígenas para as comunidades negras.

    Desse modo, as comunidades negras rurais se uniram, investiram nos novos direitos adquiridos e potencializaram a luta pela terra, por meio dos direitos de organização política em busca da cidadania.

    AS PRIMEIRAS TENTATIVAS DE IMPLANTAÇÃO DO ARTIGO 68 DO ADCT

    As primeiras tentativas de aplicação do Artigo 68 do ADCT esbarraram na ausência de uma legislação infraconstitucional que o regulamentasse. Isso significa dizer que os operadores da justiça, ao se depararem com demandas de aplicação do artigo, podem argumentar que ele diz o que deve ser feito. Mas, que ainda é necessária uma lei que diga como fazer e como deve ser feito. Apesar dos argumentos daqueles que defendem a autoaplicabilidade do artigo, grande parte da discussão em torno do tema passou pelo debate sobre dois Projetos de Lei que objetivavam regulamentar o citado artigo constitucional.

    Tais discussões, na prática, giram em torno de dois problemas fundamentais. Um deles refere-se à necessidade de definir a qual órgão do Executivo caberia a responsabilidade (e os recursos) sobre o tema, já que, a partir de 1988, tanto a Fundação Cultural Palmares (FCP) quanto o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) passaram a responder paralelamente às demandas baseadas no Artigo 68 do ADCT. O outro problema seria o de como definir quais os critérios¹⁷ de identificação deveriam prevalecer no reconhecimento oficial de uma comunidade como remanescente de quilombo. Na verdade, muitos se opuseram até mesmo a ideia de que deveriam existir critérios de identificação e de que seria necessário recorrer a qualquer especialista (antropólogo, historiador, ou arqueólogo – este último sendo solicitado, em geral, a produzir laudos¹⁸ que constatassem tal identificação) para reconhecer que uma comunidade é remanescente de quilombo. Desse ponto de vista, a autoatribuição do rótulo seria suficiente.

    Mas, como vimos, o conceito não é evidente e, por isso, o reconhecimento de uma comunidade e de seus direitos territoriais pode abrir espaço a contestações judiciais por parte daqueles que se sintam prejudicados – e estes não são poucos. Nesse caso, é necessária a prática de produzir laudos antropológicos ou etno-históricos que deem sustentação às demandas dessas comunidades, traduzindo-as em uma linguagem compatível com a interpretação jurídica. Segundo Arrutti (2001, p.14),

    [...] os laudos não devem ser vistos como uma usurpação do direito das comunidades dizerem o que elas mesmas são, na medida em que antropólogos e etnohistoriadores não devem ter a pretensão de descobrir uma verdade que esteja fora dessas comunidades – por trás, por baixo, acima ou de qualquer outro lugar absoluto.

    Notadamente, o trabalho desses profissionais é pôr em diálogo aquela linguagem oral, memorial organizada segundo critérios específicos, que podem, muitas vezes, não coincidir com os da nossa sociedade, que apresenta uma linguagem própria à compreensão letrada e histórico cronológica. Tal diálogo pode permitir que a primeira ganhe em inteligibilidade e a segunda em sensibilidade, fazendo-se menos etnocêntrica.

    Através desse trabalho, ou seja, da produção dos laudos, Arrutti (2001) enfatiza que a categoria remanescentes de quilombo se destacou em sua função e apresentação dos conteúdos baseados nos seguintes pontos:

    • A identificação e o registro das formas pelas quais a comunidade se vê, ou seja, como uma unidade social e culturalmente diferenciada do conjunto que a cerca.

    • A identificação e a documentação das formas de uso comum ou tradicional da terra, que permitem falar em um território apropriado.

    • A identificação e a documentação das formas de manejo ecológico que apontam para o uso relativamente equilibrado que essas comunidades fazem dos recursos naturais disponíveis.

    • A identificação e a documentação de formas históricas de trabalho que caracterizam uma relativa autonomia social do grupo, isto é, formas de organização da sua subsistência e das suas trocas sociais e econômicas que tenham se mantido livres da subordinação ao poder dos fazendeiros e outros senhores de escravos.

    • A identificação e a documentação das formas de conflito enfrentadas pelo grupo contra as constantes tentativas de avanço sobre o seu território, que só tenderam a se acirrar, com o passar dos anos. Em destaque está a importância do registro dos conflitos, pois, na medida em que este indica a perpetuação de uma forma de resistência histórica, também aponta para as próprias razões que sustentam a demanda por reconhecimento.

    Nota-se que o conceito de remanescentes de quilombo foi alargado com relação à aplicação histórica do conceito de quilombo, de forma a contemplar um campo mais amplo e diversificado das chamadas comunidades rurais negras, no qual se incluem as comunidades que tiveram origem de fato nos antigos quilombos (em sentido histórico), mas também aquelas que resultaram da compra de terras por negros libertos ou forros; da doação de terras pelos antigos senhores, que contemplaram seus escravos em seus testamentos; da posse pacífica de terras abandonadas pelos proprietários, em épocas de graves crises econômicas; da ocupação e administração de terras doadas aos santos padroeiros dos povoados etc., ou seja, uma diversidade de modalidades de uso comum da terra que se apresenta nas regiões de colonização agrária e extrativa e que Almeida (1988) reuniu sob tipos de territorialidades apresentadas como Terras de Preto, Terras de Santo, Terras dos Índios, Terras de Heranças e Terras Soltas ou Abertas. O capítulo II analisará detalhadamente o processo de ressemantização do conceito de quilombo.

    A POLÊMICA CRIADA EM TORNO ARTIGO 68

    Abriremos uma reflexão em torno da regulamentação do artigo 68, visto que, desde 1992 houve as primeiras tentativas do Ministério Público em aplicar o referido artigo na comunidade do rio das Rãs (BA), quando ficou claro que a interpretação sobre a autoaplicabilidade do citado dispositivo constitucional, que dispensaria uma legislação complementar, encontrou pouco apoio junto aos operadores da justiça menos abertos aos direitos coletivos e menos sensíveis às causas sociais. Dois Projetos de Lei foram apresentados, em 1995, pela senadora Mariana Silva (PT-RJ) e pelo deputado estadual Alcides Modesto (PT-BA) e, a partir desse momento, passou-se a discutir o melhor formato para tal regulamentação do direito de propriedade das comunidades remanescentes de quilombos e do procedimento de titulação. Através de discussões entre organizações da sociedade civil, representantes do governo, do movimento negro e do MPF foi sendo criado um lento consenso e foi sendo produzido um texto que representou as posições sociais que marcaram as atuais comunidades negras rurais, interessadas no reconhecimento oficial, que, nesse período, segundo estimativa da Articulação Nacional de Remanescentes de Quilombos, estava em torno de 3 mil em todo o país.

    No ano de 2000, quando o debate já demonstrava uma definição consensual do texto de regulamentação do artigo constitucional, o Governo Federal tomou a dianteira emitindo uma Medida Provisória que regulamentava administrativamente o processo de identificação e reconhecimento das comunidades de quilombos. Desconhecendo todo o debate em curso, o texto da Medida Provisória revelava as intenções do governo com relação ao tema e a mobilização social gerada em torno dele. Essa Medida Provisória estabelece ao menos três limitações importantes, na aplicação do artigo 68. Primeira, a Fundação Palmares (FCP) é indicada como o único órgão responsável pelo tema, colocando em risco processos já iniciados por outras agências governamentais, como o INCRA e institutos estaduais, como o ITESP, em São Paulo. Apesar de a atuação desses órgãos ser complementar entre si, a lógica da concorrência institucional parece ter prevalecido, com a definição do tema como monopólio da FCP. Segunda, estabelecia um prazo máximo para o encaminhamento das demandas (outubro de 2001), depois do que elas dependeriam da votação da lei especial. Terceira, restringia os critérios de reconhecimento (como a autoatribuição e a etnicidade), de sorte que "a comunidade remanescente de quilombos deve estar ocupando suas terras desde pelo menos 13 de maio de 1888, data da abolição da escravatura, até a data de promulgação da Constituição de 1988. Segundo Arruti (2001), além de ser considerada inconstitucional pelo MPF, já que limita a aplicação de um artigo constitucional que não estabelecia qualquer limite cronológico, nem tampouco determinava que existisse coincidência entre a ocupação originária e a atual, essa terceira restrição contraria todo o avanço conceitual estabelecido pela sociedade, com base em alegações de inconstitucionalidade.

    Até meados do ano de 2000, a atuação da FCP se restringiu ao reconhecimento oficial dessas comunidades, por meio de Portarias que aprovassem os laudos antropológicos e os memoriais descritivos de suas respectivas áreas. O INCRA havia iniciado processos de regulamentação dos domínios tradicionais e criado um programa especial para o desenvolvimento de projetos agrícolas e extrativistas, em algumas comunidades do Norte-Nordeste; o governo Fernando Henrique Cardoso continuava na tentativa de controlar a expansão da temática, uma vez que todos os indícios reconheciam o surgimento de um novo movimento social rural de luta pela terra, que levou à confirmação dessa tendência, ao definir a FCP como órgão do Ministério da Cultura responsável pela temática. No entanto, todas essas restrições foram publicamente consideradas inconstitucionais, do ponto de vista técnico pelo MPF, por limitarem a aplicação de um artigo constitucional que não estabeleceria qualquer limite cronológico, nem tão pouco determinava que existisse coincidência entre a ocupação originária e a atual. Além disso, o terceiro ponto contrariava todo o avanço conceitual estabelecido pela sociedade civil sobre o tema.

    Em 2001, quando o Projeto de Lei da senadora Marina Silva já estava quase aprovado pelo Senado, o governo federal emitiu um Decreto (3.912 de 10.09.2001) que finalmente fixava uma regulamentação administrativa para o processo de identificação e reconhecimento das comunidades remanescentes de quilombos, ignorando os debates em curso e confirmando a interpretação restritiva da matéria, ao recuar em relação às posturas e ações anteriores, da própria FCP.

    A Casa Civil teve a função de apresentar a interpretação e justificativa oficial e formalista da postura governamental: em primeiro lugar, só poderiam ser oficialmente reconhecidas como beneficiárias do direito constitucional as comunidades que comprovassem estar na posse pacífica exercida sempre com a intenção de dono de suas terras, ao longo dos cem anos, entre 1888 e 1988; em acréscimo, em decorrência dessa exigência, considera-se que as terras de remanescentes de quilombos não podem ser desapropriadas, ou seja, pressupõe-se que as terras de quilombos, por definição, são terras sem qualquer outro pretendente legal, bastando apenas o título emitido pelo Governo Federal. Neste caso, havia quase três mil comunidades indicadas e trinta já reconhecidas, todavia, menos de dez conseguiram validar seus títulos de domínio das suas terras dessa forma de condução do processo. Assim, denota-se que, como sabemos, o fim da escravidão não trouxe consigo o fim da violência racial, nem o fim dos processos de expropriação fundiária, nem o fim da luta de resistência à expropriação das terras. De fato, uma comunidade negra que não tem o título de domínio das terras que ocupa é alvo da grilagem. É impossível essas comunidades terem percorrido cem anos sem sofrerem ameaças e passarem por conflitos e perdas de territórios, impostos pela expansão do capitalismo no campo. Nesse sentido, esse pragmatismo instrumentaliza a decisão política de não gastar dinheiro dos cofres públicos na desapropriação das terras para a regularização dessas comunidades. Dessa forma, a interpretação sobre a impossibilidade de desapropriação tem a finalidade de proteger a União contra as ações de responsabilidade que começaram a serem movidas contra ela, pelo não cumprimento das disposições constitucionais.

    E, finalmente, em 2002, o Projeto de Lei que vinha sendo discutido desde 1995 acabava de cumprir o seu périplo pelos trâmites internos à Câmara dos Deputados e ao Senado, chegando a sua forma final, produto do consenso possível entre um grande grupo de interlocutores, entre os quais a FCP (representante do governo que nunca se fez presente).

    Avançou em três planos; o primeiro, ao reconhecer o direito de autorreconhecimento dos grupos, formalizando a possibilidade de o artigo contemplar as terras de preto e as comunidades negras rurais, reconhecia o direito desses grupos sobre os territórios de ocupação tradicional e não apenas sobre as terras ocupadas. Dessa maneira, foram contemplados os espaços que fazem parte de seus usos, costumes e tradições que possuem os recursos ambientais necessários à sua manutenção e as reminiscências históricas que permitem manter a memória do grupo. Segundo avanços nos procedimentos administrativos, ao garantir o direito de as comunidades indicarem representantes para participarem do processo de reconhecimento e regularização fundiária, ao promover a possibilidade de desapropriação, nos casos em que os territórios quilombolas incidam sobre áreas que possuam títulos de propriedade de não-quilombolas e, finalmente, ao ampliar a possibilidade de a titulação se efetuar ou em nome de entidade representativa da comunidade ou em regime de condomínio. Terceiro, na definição da relação do Estado com a questão, ao ampliar aos órgãos da administração estadual e a outros órgãos da esfera federal, incluindo o MPF, a possibilidade de abrir processo oficial e de emitir declaração de reconhecimento daquelas comunidades, como, também, ao comprometer os diversos órgãos afins à questão, com a preservação da memória e do meio ambiente necessário à continuidade cultural dos grupos, prevendo as condições necessárias ao cumprimento dessa obrigação e garantindo a possibilidade de orçamento especial, linhas de crédito e convênios entre os diferentes órgãos do Estado, responsáveis pela preservação cultural e ambiental e pelo desenvolvimento de infraestrutura necessária ao desenvolvimento das comunidades.

    No dia 13 de maio, um despacho presidencial vetou o Projeto de Lei na íntegra, restituindo a precedência do decreto 3.912 de 2001¹⁹. O veto, baseado em pareceres do Ministério da Justiça e do Ministério da Cultura, repetiu e ampliou os argumentos do parecer da Casa Civil, consolidando uma interpretação oficial sobre o destino do artigo 68, que representa um risco de esvaziamento, assim como uma ameaça às mínimas conquistas acumuladas, reafirmando a necessidade das datas (1888 e 1988) da posse pacífica e continuada e negando os avanços propostos no texto do Projeto de Lei, abrindo espaço para riscos muito reais, como, por exemplo, as situações em que os conflitos de interesses envolvem os confrontantes das terras quilombolas bem informados, como as grandes empresas e os grandes proprietários. É preciso discutir dois desses recuos: inicialmente, o veto presidencial assume posição reacionária, do ponto de vista jurídico mais amplo, pois considera o direito estabelecido na CF, que diz respeito aos indivíduos remanescentes de comunidades de quilombos e não das próprias comunidades. Ou seja, não se trata de um direito coletivo. Além disso, é relevante o fato de sustentar a posição de impedir a atuação do MPF junto à temática, justamente porque esse órgão, dentro do Estado, tem sido o mais independente e com o diálogo aberto com a sociedade civil organizada, com o papel de defesa dos interesses coletivos, numa época em que o governo do Estado era totalmente estranho a eles.

    A tese da possibilidade ou não da desapropriação da terra quilombola foi uma solução prática para o governo, que não estava disposto a assumir, isto é, a tese da impossibilidade de desapropriação encontrou respaldo na leitura jurídica do próprio MPF por ser, na sua formulação técnica ou conceitual, uma posição considerada progressiva que se sustenta na autoaplicabilidade do artigo 68. Ou seja, ao reconhecer as terras como de remanescentes de quilombos, o Estado reconhece a existência de um direito que antecede qualquer outro direito historicamente instituído sobre as terras em questão, porque o artigo 68 se atribui a uma eficácia declaratória (trata-se de um reconhecimento) e não de uma eficácia constitutiva. Juridicamente, quando se trata de uma eficácia constitutiva, o direito em causa é constituído pela lei e, por isso, só passa a ter eficácia após a sua publicação oficial. No entanto, quando se trata de uma eficácia declaratória, o direito é considerado preexistente à própria lei, que apenas reconhece a sua existência, de fato é anterior. Por conseguinte, nota-se porque se tem entendido que esta seja uma interpretação progressiva, visto que, assim, o direito dos quilombolas é aproximado ao direito originário das populações indígenas, fazendo com que essas constantes analogias entre as duas temáticas retornem ao centro dos debates. Desse modo, teoricamente, o processo de regularização daquelas comunidades estaria livre dos entraves estabelecidos por condicionantes extralegais, como a disponibilidade de verbas para as desapropriações.

    Contudo, o fato é que a realidade é diferente da teoria; na verdade, o que se vê é a incapacidade do Estado em fazer valer essa tese, quando se trata de oponentes capazes de se impor territorialmente. O Estado se atribui à capacidade de declarar direitos, mas não tem os meios de fazer com que eles se realizem. Como observamos, a passagem da questão do âmbito de uma política cultural – concebida de forma tradicional, patrimonial e muito próxima da noção de folclore – para o âmbito de um movimento calcado no discurso étnico e em uma política fundiária, veio romper com a forma pela qual o Estado brasileiro até então concebeu o tratamento dado à população negra – à afinidade eletiva com a cultura.

    No governo de Fernando Henrique Cardoso, ocorreram novas mudanças na legislação quilombola. Criou-se o decreto 4.887 de 2003²⁰, considerado um retrocesso ao aprovar os novos procedimentos para a demarcação das terras quilombolas e instituir o direito ao princípio do contraditório²¹. Ou seja, legaliza a investida contra as terras quilombolas, a fim de reduzir os limites das mesmas e impedir a demarcação das áreas que não estejam ocupadas há quase 200 anos.

    No Estado de São Paulo, o governo paulista assumiu a atribuição para a regularização fundiária das terras quilombolas (identificação, reconhecimento, demarcação e a titulação) e segue a legislação estadual vigente²², sob a direção do artigo 68, do decreto 4.887/2003²³ e da IN 49/2008²⁴. As comunidades de quilombos reconhecidas, em sua maioria, estão situadas em terras consideradas devolutas²⁵, estaduais por isso há possibilidades de desapropriações, porque o Estado possui um aparato de leis instituídas para fins de regularização das terras devolutas estaduais²⁶.

    Deve ser ressaltado que o reconhecimento oficial das comunidades remanescentes de quilombo apenas legitima o direito étnico à posse do território, sendo necessária a demarcação das terras e desobstrução de terceiros(posseiros) que estejam nas áreas a serem tituladas por meio de desapropriações. Nesse caso, depende da situação dominial das terras (particular ou devoluta), conforme os critérios da legislação específica. Se forem terras devolutas, o Estado de São Paulo e, se forem particulares, o INCRA, órgão federal, desempenha tal função. Somente após a desafetação das áreas ocupadas por terceiros que o Estado poderá efetuar a titulação²⁷ definitiva do território²⁸, para a comunidade, que já foi reconhecido oficialmente.

    A CRIAÇÃO DA LEGISLAÇÃO ESTADUAL

    A questão quilombola em São Paulo só se torna visível para o governo paulista após a Constituição de 1988, quando é garantido às Comunidades Remanescentes de Quilombos o direito definitivo ao título de propriedade coletiva de suas terras. O governo paulista foi pressionado pelos movimentos sociais, envolvidos na defesa dessa população negra, a elaborar uma legislação estadual que regulamentasse o Artigo 68.

    Desse modo, posteriormente à Constituição Federal, ou seja, quase 10 anos depois, em 1996, o Estado reúne um grupo de especialistas, incorporando diversas áreas de estudo, para discutir essa questão. Esse grupo propôs medidas para a implantação do Artigo 68 do ADCT no Estado, para o que foram necessárias a criação de leis específicas e algumas regulamentações que viabilizassem juridicamente o trabalho.

    Vamos descrever como se deu o andamento desse processo, na área legislativa, quando o governo estadual editou em primeira instância o Decreto 40.723/96, nomeando um Grupo de Trabalho para estudar esse problema. O segundo procedimento adotado foi a publicação, em 1997, do Decreto 41.774, implantando o Programa de Cooperação Técnica e Ação Conjunta envolvendo várias Secretarias de Estado e Organizações Não Governamentais, a fim de atuarem nas áreas de quilombos, definindo as competências e instituindo o Grupo Gestor²⁹. Este encaminhou o Projeto de lei adequando a legislação fundiária paulista às especificidades dos Remanescentes de Comunidades de Quilombos, para possibilitar a efetivação dos trâmites iniciais à questão dos quilombolas. O Instituto de Terras do Estado de São Paulo (ITESP) passou a ter a competência para identificação e regularização fundiária das áreas ocupadas por remanescentes de quilombos (identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação), associadas a um efetivo programa de apoio ao desenvolvimento socioeconômico dessas comunidades, com o objetivo de acrescentar a qualidade de vida, respeitando suas tradições culturais.

    No mesmo ano, foi criada a Lei 9.757/97, que, em seu Art. 3°, regulamentado pelo Decreto 42.839/98, dá legitimidade às posses das comunidades de quilombos em terras públicas estaduais, definindo os critérios de territorialidade, fixando-se os critérios jurídicos para a demarcação das terras ocupadas pelos quilombolas. Segundo esse Decreto³⁰, os remanescentes de comunidades de quilombos serão identificados a partir de critérios de autoidentificação e dados histórico-sociais, escritos e/ou orais, por meio de Relatório Técnico-Científico (RTC).

    Outros decretos foram necessários nesse período para tornar possível a regularização fundiária das terras dos quilombos no Estado: Decreto 43.651/98, que exclui as áreas reconhecidas como remanescentes de quilombos do perímetro da área de Proteção Ambiental da Serra do Mar no Vale do Ribeira, e o Decreto 44.293/99, que retífica os limites das comunidades de quilombos reconhecidas pelo governo paulista, situadas nos municípios de Iporanga e Eldorado: Ivaporunduva, São Pedro, Pedro Cubas, Pilões e Maria Rosa. E, em 2008, promulga-se a Lei 12.810, que institui o Mosaico de Unidades de Conservação do Jacupiranga, beneficiando as comunidades inseridas no Parque com o mesmo nome e em seu entorno.

    No âmbito federal, no ano de 2001, publica-se o Decreto 3.912, dando abertura à identificação, reconhecimento e titulação das comunidades de quilombos em nível federal, ao passo que, em 2003, foi promulgado o Decreto Federal 4.887, regulamentando o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes de comunidades de quilombos de que trata o Art. 68 da

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