A desconsideração da personalidade jurídica e os sócios não gestores da sociedade limitada: atualizado de acordo com a Lei da Liberdade Econômica e Lei do Ambiente de Negócios
De Fabio Ferraz
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A desconsideração da personalidade jurídica e os sócios não gestores da sociedade limitada - Fabio Ferraz
1. SOCIEDADE LIMITADA E A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
1.1. HISTÓRIA DA SOCIEDADE LIMITADA NO BRASIL E SUAS PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS
Quando a primeira sociedade limitada foi criada na Alemanha, vigia no Brasil o Código Comercial de 1850, que possuía, além da sociedade anônima, a figura da sociedade em comandita simples, uma sociedade contratual na qual os sócios comanditários (que são meramente investidores) não respondiam subsidiariamente pelas obrigações sociais, o que já representava uma modalidade de investir no meio empresarial (distintamente da sociedade anônima) sem afetar o patrimônio pessoal. No entanto, a sociedade limitada só foi introduzida no país pelo Decreto nº 3.708/1919, sendo denominada sociedade por quotas de responsabilidade limitada.
Alguns autores criticaram o modelo apresentado pelo legislador brasileiro, como foi o caso de Sylvio Marcondes⁸, para quem o instituto foi criado por comodismo e às pressas, o que impediu a elaboração de uma lei própria e completa, tal como fizeram Alemanha, Portugal, entre outros países, gerando intensos debates entre os estudiosos do direito.
Posteriormente, com o advento do Código Civil de 2002, a modalidade societária passou a ser denominada simplesmente sociedade limitada
, sendo regida pelos artigos 1.052 a 1.087, aplicando-se, subsidiariamente, as normas estampadas para a sociedade simples (art. 1.053).
Atualmente, como já mencionado, é fato notório que esse tipo societário representa a esmagadora maioria dos registros de sociedade no Brasil⁹, apesar de também haver muitas firmas individuais abertas¹⁰. Desse modo, trata-se de uma modalidade societária que ocupa posição de destaque na vida econômica do país.
A sociedade limitada é classificada no ordenamento jurídico brasileiro como uma sociedade contratual, por ser regida por um contrato social, diferentemente da sociedade anônima, que é institucional/estatutária e se norteia pelo estatuto social. A sociedade limitada combina as vantagens da sociedade de capitais e da sociedade de pessoas (físicas e/ou jurídicas), sendo considerada por muitos uma sociedade híbrida, por possuir características tanto da sociedade de pessoas quanto daquela de capitais¹¹. Prova disso é a imprescindibilidade de constar o valor do capital em seu contrato social, expresso em moeda corrente e podendo compreender qualquer espécie de bens suscetíveis de avaliação pecuniária (art. 997, inciso III, do Código Civil), sendo essa a contribuição financeira dos sócios à sociedade, sem a qual não há como ingressar no quadro societário. Além do aporte em valores, o pretendente a sócio precisa ser aceito pelos demais sócios.
Há exigências para a constituição da sociedade limitada, como a necessidade de constar no contrato social o nome empresarial na forma de razão social (firma) ou denominação, que deve obrigatoriamente conter a palavra limitada
ao final, por extenso ou abreviadamente, nos termos do quanto disciplinado pelo art. 1.158 do Código Civil¹².
O art. 997, inciso IV, do Código Civil ainda esclarece que o contrato social deve mencionar a quota de cada sócio no capital social e o modo de realizá-la
, de forma que fica estabelecida a obrigação do sócio que ainda não integralizou no ato de abertura da sociedade a sua parte do capital social e evidencia qual sócio eventualmente já integralizou devidamente suas quotas.
Vale tecer que, conforme preceitua o art. 1.055 do Código Civil, as quotas sociais são definidas com liberdade pelo contrato social em seu número, valor, igualdade ou desigualdade. Nos termos do art. 1.056 do mesmo diploma legal, cada quota é indivisível em relação à sociedade, o que retira a validade de qualquer ajuste em sentido contrário, admitindo-se o condomínio (§1º do art. 1.056), a cessão (art. 1.057), o penhor (art. 1.431) e a penhora de lucros relativos às quotas (art. 1.026).
Assim, a sociedade limitada é uma modalidade muito utilizada no meio empresarial brasileiro, seja por ser menos complexa em sua estrutura, seja por reclamar menos burocracia (como a de publicar periodicamente balanços e a obrigatoriedade de realizar assembleias das sociedades anônimas), seja, principalmente, pelo fato de o país ter uma grande leva de pequenos e médios empresários, que se adaptam melhor a esse tipo societário.
1.2. A RESPONSABILIDADE DO ADMINISTRADOR DA SOCIEDADE LIMITADA
O administrador da sociedade limitada pode ser sócio ou não sócio e tem papel crucial na condução das atividades empresariais. Contudo, nem sempre foi assim. Enquanto vigia o Decreto nº 3.708/1919, o regente da vontade social deveria ser necessariamente um sócio, já que esse documento se referia ao gerente como um dos sócios da sociedade, do que se pode concluir que só existiam sócios-gerentes e que, consoante o art. 302, item 3, do Código Comercial então vigente, eles deveriam ser especificamente indicados no contrato social, pois, do contrário, ficava subentendido que todos o eram. Com a vinda do Código Civil de 2002, o Decreto nº 3.708/1919 perdeu sua finalidade e, apesar da discussão sobre ele ter sido ou não revogado, na prática, ele acabou por ser suprimido pela nova regulamentação da sociedade limitada, prevista no Código Civil.
É no próprio Codex Civil que se admite a nomeação de administradores estranhos ao quadro social, conforme se depreende do art. 1.061, o que pode promover a profissionalização do cargo, exigindo-se um quórum mínimo de aprovação para a nomeação de tais estranhos – qual seja, a unanimidade (enquanto o capital não estiver integralizado em sua totalidade) ou dois terços do capital social (quando ele estiver devidamente integralizado) – e quórum mínimo de metade do capital social para destituição (art. 1.063, § 1º, do Código Civil)¹³.
Dessa forma, ao administrador da sociedade são aplicados os direitos e deveres descritos nos artigos 1.011 e seguintes do Código Civil, sendo adotadas supletivamente as regras da Lei das Sociedades por Ações, devendo tal gestor social, no entanto, sempre seguir a forma e limites definidos no contrato social, pois o uso da razão social ou denominação lhe será privativo; ele será o condutor das atividades negociais da sociedade e concretizará as finalidades contratualmente previstas.
A título de exemplo, o art. 1.016 do Código Civil disciplina que [o]s administradores respondem solidariamente perante a sociedade e os terceiros prejudicados, por culpa no desempenho de suas funções
.¹⁴ A importância dessa regra reside no fato de que a gerência é um órgão da sociedade que executa as decisões desta, compreendendo a gestão das operações empresariais. A vontade da sociedade nada mais é do que aquilo que seu gestor manifesta, ou seja, o seu administrador detém uma grande responsabilidade e por ela deve responder em caso de falta.
Assim, resta claro que a má administração pode trazer prejuízos à sociedade e a terceiros, de modo que a sociedade tem legitimidade e interesse para ajuizar ação contra o administrador, denominada ação social uti universi, enquanto os sócios, mesmo que prejudicados, não detêm a mesma legitimidade e interesse, porque o ato gerador do prejuízo afeta a sociedade como um todo¹⁵.
Os administradores devem, portanto, agir com a lealdade e a diligência de um bom homem de negócios¹⁶. Caso não ajustem suas condutas nesse sentido, estarão sujeitos à responsabilização por danos e prejuízos que resultarem de suas ações ou omissões¹⁷.
Inclusive, não há vedação expressa na lei quanto à nomeação de pessoas jurídicas como administradores da sociedade limitada, mas a doutrina diverge sobre esse assunto. Fazzio Junior¹⁸ entende ser possível essa nomeação, pois a lei não constituiu qualquer obstáculo legal para as pessoas jurídicas serem designadas como responsáveis pela administração da sociedade limitada. Lucena¹⁹, por outro lado, opina desfavoravelmente. De qualquer modo, é certo que não é recomendável nomear pessoa (jurídica ou natural) cujo histórico seja incompatível com um cargo de tamanha confiança.
É importante salientar, ainda, que a apuração de prejuízo em um exercício social não constitui responsabilidade passível de ser acionada contra o administrador, que apenas poderia ser responsabilizado, de acordo com Modesto Carvalhosa²⁰, se descumprisse seus deveres legais ou se infringisse o contrato social, independentemente de ocorrência de prejuízos ao término do exercício social. Na França, por exemplo, ocorre situação semelhante, conforme explica Paul Didier: "La violation des limites légales est sanctionnée par la responsabilité de l’acte irrégulier. La violation des limites statutaires n’est sanctionnée que par la responsabilité civile du mandataire social, s’il y a préjudice pour la société, mais non par la nullité de l’acte"²¹.
Portanto, havendo violação dos limites legais ou contratuais, deverão ser apurados os prejuízos e responsabilidades, especialmente para verificar se o administrador estava ou não autorizado pelos sócios ou parte deles, uma vez que havendo autorização não há vinculação pessoal do gestor²². É exatamente o que ocorre no ordenamento jurídico espanhol, em que os sócios não podem exigir responsabilização do administrador societário se este agiu de forma autorizada e causou prejuízos à sociedade, pois "[n]o seria muy lógico, portanto, exigirles responsabilidad [...] por llevar a cabo un acto o acuerdo dañoso para la sociedad que se derive de una instrucción impartida por la propia Junta general [...]"²³.
Portanto, a responsabilidade do administrador nomeado pelo contrato social de uma sociedade limitada é gerir cuidadosamente a sociedade de acordo com a finalidade e com as atividades previstas no contrato social, agindo pela sociedade no que for necessário para a realização das atividades empresariais, sem exceder os limites impostos pelo contrato social ou pela legislação. Caso infrinja qualquer regra ou norma previamente estabelecida por esses instrumentos, causando danos à sociedade ou a terceiros, poderá ser responsabilizado pessoalmente, desde que evidenciada sua culpa ou sua atuação em desacordo com os deveres de diligência e de lealdade.
1.3. A RESPONSABILIDADE DOS SÓCIOS DA SOCIEDADE LIMITADA
É sabido que, na sociedade limitada, os sócios têm a responsabilidade de integralizar o valor de suas respectivas quotas e respondem, solidariamente, pela integralização do capital social²⁴. Essa é a máxima preceituada no art. 1.052 do Código Civil. Nesse sentido, o patrimônio pessoal do sócio não responde pelas dívidas advindas da sociedade limitada, exceto se a totalidade do capital social desta ainda não estiver devidamente integralizada. Há, portanto, uma clara separação de patrimônio da sociedade e do sócio, estampada no art. 49-A do Código Civil, de modo que o sócio tem a garantia legal da limitação da sua responsabilidade ao valor subscrito e integralizado²⁵.
A sociedade limitada é, portanto, uma pessoa jurídica, a quem o ordenamento jurídico conferiu existência e responsabilidade patrimonial própria. Bem por isso, o sócio é obrigado a integralizar suas quotas nos termos do contrato social ou quando convocado para tanto, conforme previsão dos artigos 1.055 a 1.059 do Código Civil, chamando maior atenção a redação do art. 1.058²⁶ que disciplina a possibilidade de exclusão do sócio que se omitir desse dever.
Note-se que a obrigação do sócio em integralizar na sociedade o valor de suas quotas pode se tornar questão decisiva para sua manutenção no quadro societário ou exclusão dele. Essa é a maior obrigação de qualquer sócio perante a sociedade, pois, se descumpri-la, poderá ser expulso do quadro societário. Até porque o limite da responsabilidade de qualquer sócio de sociedade limitada é o montante que faltar para a integralização do capital social.
Outra responsabilidade bastante importante é a inerente às deliberações sociais que vinculam os sócios pessoalmente como responsáveis. As deliberações sociais tomadas em sintonia com a lei e com o pacto social vinculam todos os sócios, ainda que ausentes ou dissidentes, conforme preceitua o § 5º do art. 1.072 do Código Civil. Por outro lado, as decisões que infringirem o contrato ou a lei tornarão ilimitada a responsabilidade dos que as aprovaram, conforme disciplina o art. 1.080 do Código Civil: As deliberações infringentes do contrato ou da lei tornam ilimitada a responsabilidade dos que expressamente as aprovaram
²⁷. Por isso, para evitar ser responsabilizado futuramente, o sócio que não concordar com uma deliberação social deve pleitear sempre o registro de seu voto contrário em ata, o que poderá o excluir de responsabilidade, bem como lhe dar importante documento para se voltar contra os outros com o intuito de ressarcir eventuais prejuízos sofridos²⁸.
Desse modo, os sócios se responsabilizam por atos ilegais praticados e por aqueles que ultrapassem o contido no contrato social, desde que sejam coniventes com tais atos; além disso, na qualidade de sócios administradores, respondem por seus atos quando agirem com culpa. Em todos esses casos, aplica-se a responsabilidade subsidiária (primeiro o patrimônio da sociedade é afetado e depois, se for o caso, o patrimônio pessoal desses sócios) ²⁹. Contudo, há exceções previstas no próprio Código Civil, como a desconsideração da personalidade jurídica (art. 50), a distribuição fictícia de lucros em situação de prejuízo (art. 1.059), as deliberações infringentes ao capital social (art. 1.080) e a supervalorização de bens para formação de capital social (art. 1.055, § 1º), entre outras.
Assim, restam evidenciadas as principais responsabilidades dos sócios das sociedades limitadas, com destaque especial para a necessidade de integralização de suas quotas, sob pena de responderem solidariamente até a integralização total do capital social.
Há quem entenda que há responsabilidade dos sócios pelos atos praticados pela má administração, ainda que eles não sejam os administradores. Na opinião de Lorens³⁰, quem escolhe mal o administrador deve se responsabilizar pelos atos do escolhido. Trata-se de culpa in eligendo, na qual a responsabilidade pela má designação do administrador, que contraria o preceito contratual, toca de perto o designante, que poderá experimentar uma ilimitação como reflexo do alcance da medida de seu raio de abrangência³¹. Ademais, também há quem defenda que os sócios têm dever de vigília sobre os atos do gestor societário, pois, do contrário, agem com culpa in vigilando, tornando-se coniventes com os atos não fiscalizados³². São teorias que, pouco a pouco, perderam forças em vista da evolução da forma de empresariar no país, onde atualmente é comum uma pessoa investir em várias empresas, figurando como sócio não administrador, fomentando os negócios, gerando renda e aperfeiçoando a ideia de função social da empresa. No entanto, são teorias importantes para as sociedades empresárias, especialmente para as sociedades limitadas, por haver, neste tipo, maior proximidade do sócio não administrador com a gestão societária.
1.4. A PERSONALIDADE JURÍDICA DAS SOCIEDADES EMPRESÁRIAS
O ordenamento jurídico brasileiro reconhece as sociedades empresárias como pessoas jurídicas. É exatamente o que determina o inciso II do art. 44 do Código Civil. O art. 45 do mesmo diploma é claro ao apontar que se inicia a existência das pessoas jurídicas com a inscrição do seu ato constitutivo no respectivo registro.
Dessa forma, diferentemente das pessoas naturais, as sociedades empresárias apenas adquirem o status de pessoa (no caso, jurídica) e, portanto, passam a gozar de personalidade jurídica, quando registradas devidamente na junta comercial competente de sua respectiva região, conforme disciplina o art. 985 do Código Civil³³.
Contudo, nem todas as sociedades possuem personalidade jurídica, de modo que não se pode atestar que essa é uma característica de todos os tipos societários. Por exemplo, a sociedade em comum (arts. 986 a 990 do Código Civil) e a sociedade em conta de participação (arts. 991 a 996 do Código Civil) não gozam de personalidade jurídica própria. São, portanto, entes sem personificação, não podendo se falar em autonomia patrimonial, apesar de serem dotados de capacidade processual³⁴. Para as demais sociedades empresárias, a personalidade jurídica é uma característica marcante.
O fato é que a personalidade jurídica, embora seja abstrata, não é uma ficção, e sim uma investidura que o ordenamento jurídico defere a certos entes, de modo que a sociedade empresária passa a ser merecedora da personalidade jurídica quando de seu registro. Dessa forma, a maioria das sociedades empresárias regularmente constituídas são personificadas e, por isso, são entes distintos das pessoas de seus respectivos sócios. Por conseguinte, se a sociedade se endividar, seus credores poderão contar somente com o patrimônio da própria sociedade, e não com o de seus sócios³⁵.
Em obra específica sobre o tema, Fábio Ulhoa Coelho³⁶ afirma que a principal consequência da personalidade jurídica é exatamente a autonomia patrimonial conferida ao ente coletivo, separando os patrimônios da sociedade e de seus sócios.
Resta fácil, assim, entender que a personalidade jurídica de uma sociedade empresária é exatamente o que a permite ser distinta de seus sócios, ou seja, é a capacidade de ser titular de obrigações e direitos diferentes daqueles de seus sócios.
1.5. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
Com a personalidade jurídica adquirida, as sociedades empresárias passam a ser consideradas sociedades personificadas e, como consequência, passam a conter nome, nacionalidade, domicílio, capacidade contratual, capacidade processual (postulatória), autonomia patrimonial e existência distinta de seus sócios.
As sociedades personificadas são a chave do sucesso da atividade empresarial, sendo o meio mais comum do exercício das atividades econômicas, uma vez que o particular pode empreender qualquer atividade econômica lícita com limitação de prejuízos pessoais³⁷. Portanto, pode o homem explorar direta ou indiretamente³⁸ determinada atividade negocial por meio de sua sociedade empresária e, caso essa não seja bem-sucedida, seu patrimônio particular continuará resguardado, ressalvadas as exceções que serão adiante exploradas.
Contudo, é de se considerar que a personalização da sociedade nem sempre está diretamente ligada à limitação da responsabilidade dos seus sócios, uma vez que existem sociedades personalizadas em que sócios respondem ilimitadamente pelas obrigações sociais, como a sociedade empresária em nome coletivo.
Há que se ponderar que as obrigações e dívidas originadas pelas sociedades empresárias são, em regra, de responsabilidade unicamente destas, e não de seus sócios. Dependendo da modalidade empresarial escolhida, caso a sociedade não honre suas dívidas e obrigações, estas poderão ser automaticamente direcionadas a seus sócios. Por isso, as modalidades empresariais mais comuns são aquelas que têm responsabilidade totalmente limitada, como a sociedade limitada e as sociedades anônimas. Nelas, a personalização garante à sociedade empresária a titularidade das obrigações da pessoa jurídica (direitos e deveres assumidos), a titularidade processual e a titularidade patrimonial. Há, com isso, uma perfeita distinção entre a sociedade e seus sócios ou único titular. Ocorre que a existência da personalidade jurídica das sociedades empresárias de responsabilidade limitada acabou dando ensejo, em alguns casos, às práticas de abuso e fraude.
Tullio Ascarelli, há muito, se aprofundou nos estudos das regras e princípios que visam, por exemplo, responsabilizar os verdadeiros infratores pelos atos ilícitos praticados em nome da sociedade controlada (por concentrações de ações), explicando ser necessária a utilização pelo intérprete de referidas normas de direito para reparar os ilícitos averiguados no caso concreto³⁹.
Desse modo, a doutrina inicialmente criou a teoria da desconsideração da personalidade jurídica para descaracterizar o princípio da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas. Tal teoria surgiu com a finalidade de garantir que as sociedades não fossem utilizadas por seus sócios de maneira indevida, como para a prática de atos ilícitos, abusos de direito e ocultação por trás do manto da personalidade jurídica⁴⁰.
Esse é exatamente o entendimento do precursor do assunto, Rolf Serick⁴¹, para quem, em caso de constatação de abuso da personalidade jurídica, o juiz pode, visando evitar a manutenção do ilícito cometido, afastar a separação jurídica existente entre a sociedade e seus sócios.
De início, no Brasil, a então teoria foi positivada por meio da legislação consumerista, no art. 28 do Código de Defesa do Consumidor⁴², sendo seguida pelo art. 8º da Lei nº 8.884/1994⁴³ (que trata da prevenção de e repressão às infrações contra a ordem econômica) e art. 4º da Lei nº 9.605/1998⁴⁴ (que regula os crimes ambientais), que igualmente preveem a possibilidade de se desconsiderar a personalidade jurídica da pessoa jurídica.
Após isso, a legislação de direito civil, com o advento do Código Civil de 2002, passou a reger sobre a matéria, ao dispor o seguinte, em seu art. 50:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.⁴⁵
Após essa disposição⁴⁶, em caso de qualquer tipo de