A Mitologia Primitiva
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A Mitologia Primitiva - Lucien Lévy-bruhl
Original: La Mythologie Primitive. Paris: 1935.
Tradução de: Souza Campos, E. L. de
© 2018 desta tradução: Teodoro Editor - Niterói, Rio de Janeiro, Brasil.
A mitologia primitiva
Lucien Lévy-Bruhl
Introdução
I
Características próprias aos mitos primitivos.
Índice
Para evitar ser criticado por não ter feito o que eu não pretendi fazer e para prevenir, se possível, mal-entendidos quase impossíveis de dissipar, uma vez produzidos, tentarei definir sem ambigüidade o objetivo da presente obra. Ela se propõe a estudar, em um certo número de espécimes escolhidos, os mitos de sociedades ditas primitivas (principalmente na Austrália e na Nova Guiné), não do ponto de vista da história das religiões e nem da sociologia tomada stricto sensu, mas somente em sua relação com a natureza e a orientação constante da mentalidade própria aos primitivos
. Talvez esta pesquisa ajude a compreender melhor as características essenciais desses mitos e suas funções na vida social dessas tribos.
Assim concebido, o trabalho não podia ser concebido de forma plana. Não seria possível assegurar previamente se nossa noção de mito, com tudo o que ela implica, também vale para as sociedades primitivas? Já nas obras precedentes, uma precaução semelhante havia se imposto. Eu tive que começar a pesquisar o que, nessas mentes, corresponde mais ou menos exatamente ao que chamamos causa
, alma
, sobrenatural
etc. Questões prejudiciais que era necessário elucidar primeiramente, já que eu não admiti implicitamente, como se faz geralmente, que os primitivos
concebem essas noções como nós e as expressam com termos que cobrem os nossos. Da mesma forma, eu não poderia tomar aqui como acordado e como óbvio, que nossa ideia de mito é também aquela que possuem os australianos e os papuanos. Na falta de uma pesquisa preliminar sobre este ponto, confusões seriam inevitáveis e as conclusões de um estudo sobre os mitos dos primitivos seriam, no mínimo, arriscadas.
Não que eu feche os olhos para as razões evidentes que fizeram ser designados pelos mesmos termos os mitos primitivos e aqueles que as literaturas e as artes da antiguidade nos tornaram familiares. Eu admiro, como Andrew Lang, a perspicácia de Fontenelle, que soube separar seus traços comuns e ressaltar neles as semelhanças impressionantes em muitos pontos. Suas observações penetrantes e suas sugestões sobre este assunto merecem ser levadas em conta.
Basta, portanto, ter reconhecido este parentesco, para estarmos autorizados a admitir, sem outro exame, que o que é verdadeiro para os mitos clássicos vale também para os mitos dos primitivos? É possível, quando comparamos uns aos outros, não levar em conta a distância que separa os povos da antiguidade clássica de sociedades tais como as tribos da Austrália e da Nova Guiné? Nas civilizações mediterrâneas, da época em que possuímos os mitos, as religiões já estavam há muito tempo estabelecidas e desenvolvidas, com suas hierarquias de deuses e semideuses, seus cultos organizados, seus templos e seus sacerdotes. Por outro lado, os mitos tinham acabado por pertencer, nelas, quase tanto à poesia e às artes plásticas, quanto à religião. Nada se semelhante a isto acontece nas sociedades australianas e papuanas, que vamos tratar. Nelas, não encontramos divindades hierarquizadas, nem corpos de crenças propriamente religiosos, nem castas sacerdotais, nem templos, nem altares. Em presença de diferenças tão consideráveis, seria prudente tomar como acordado que o que chamamos pela mesma palavra mito, nelas é sentido e compreendido da mesma maneira?
O que sabemos da mitologia clássica e de seu papel nas civilizações antigas nos é, portanto, de pouca utilidade e corremos o risco deste conhecimento nos induzir a erros, quando se trata dos mitos e de suas funções nas sociedades ditas primitivas. Até que ponto as ideias correntes com relação aos mitos se aplicam legitimamente a estas últimas? Não sabemos nada sobre isto. Será, portanto, sábio, no momento de empreender este estudo, fazer abstração, deliberadamente, de toda noção preconcebida. Procederemos, com relação aos mitos primitivos, como se nos encontrássemos em presença de dados ainda não classificados e nem analisados e os olharemos, se possível, com olhos novos
. Nós os consideraremos em seu meio e somente do ponto de vista de seu meio. Mais tarde, uma vez terminado este trabalho, será útil compará-los a mitos menos primitivos. O emprego do método comparativo será então mais fecundo.
Por fim, se consideramos como típicos mitos primitivos
, os mitos da Austrália e da Nova Guiné, é porque o estudo deles é facilitado pela abundância e a boa qualidade dos documentos. Não nos proibimos, de forma alguma, como se verá, de dar um lugar aos mitos de outras sociedades inferiores
. Nossa escolha não implica também que, em nosso pensamento, as sociedades australianas e papuanas sejam as mais primitivas
ou as mais arcaicas
que existem no presente.
II
Sua natureza fragmentária, descoordenada e, às vezes, contraditória.
Índice
Os mitos primitivos
que dispomos são, em geral, incompletos e fragmentados. Um pequeno número somente de pessoas, em uma tribo, possui um conhecimento extenso deles. Este saber é privilégio dos homens idosos, que, após terem passado pelos estágios sucessivos de iniciação, se casaram e tiveram filhos. Cada um deles conhece um número mais ou menos grande desses mitos. Mas, geralmente, ele não sabe seu começo e nem seu fim. Ou então, partes importantes lhe faltam. É raro que, de um só informante, se possa obter um mito inteiro.
Além disso, os mitos de uma dada tribo, salvo exceção, dificilmente formam um conjunto. Frequentemente se observou que eles permanecem exteriores e, por assim dizer, indiferentes uns aos outros. A mitologia de uma tribo pode ser de uma riqueza inesgotável, sem que nada pareça coordená-la. O Sr. Landtman encontrou esta característica bem marcada na mitologia dos Papuas da ilha Kiwai¹. Não é o que esperávamos. No entanto, nossa surpresa provém, sem dúvida, do fato de que existem em nossa mente, a despeito de nossa vontade, especulações anteriores sobre a mitologia. Nos séculos XVIII e XIX se procurava nela __ e naturalmente se encontrava __ um esforço deliberado para dar conta da origem das coisas, análogo, sob uma forma mais antiga, ao das teologias e das metafísicas. De fato, essa filosofia do mito somente tratava das mitologias contemporâneas de religiões já desenvolvidas ou de doutrinas metafísicas de cujas influências elas traíam. Postos em presença de mitos como os da Austrália e da Nova Guiné, esses teóricos não puderam desconhecer a falta de coordenação.
Este traço não é particular às mitologias australianas e papuanas. Ele foi assinalado também em outras sociedades, cuja civilização se coloca quase no mesmo grau da escala. Para só citar um exemplo, nas ilhas Andaman,
uma característica das lendas que é preciso destacar é sua natureza não sistemática. O mesmo informante pode dar, em diversas ocasiões, duas versões inteiramente diferentes de um fato, como a origem do fogo ou os inícios da espécie humana. Pelo que parece, os andamanes olham cada pequena história como independente e não comparam conscientemente uma com a outra. Daí, eles parecem não ter absolutamente nenhuma consciência do que é uma flagrante contradição aos olhos de quem estuda essas lendas.²
Com efeito, como cada mito não leva em conta os outros que existem, é inevitável que se produza contradições entre eles. Por mais chocante que nos pareça, os nativos, de forma alguma, se perturbam com isso. Eles não prestam nenhuma atenção a isso e esta indiferença, constatada pelo Sr. Radcliffe-Brown nas ilhas Andaman, também é vista constantemente em outros lugares. Por exemplo, na Nova Guiné holandesa, é extremamente difícil se transportar para a maneira de pensar dos nativos e, aliás, o Marind se contradiz muito em seus mitos
³. Na ilha Dobu (Nova Guiné inglesa),
se compararmos umas com as outras a lendas de todas as descendências totêmicas de Dobu, obtemos um sistema extremamente ilógico. No entanto, jamais um dobuense se deu ao trabalho de compará-las umas com as outras. Ninguém, portanto, jamais percebeu que o sistema, considerado em seu conjunto, é contraditório.⁴
Um pouco mais além, o Dr. Fortune acrescenta:
A bem dizer, o dobuense, quando explica a criação, pouco se preocupa com a lógica. Ele não observa que uma lenda contradiz outra. Jamais um dobuense tentou fazer um conjunto das diversas lendas que contém a explicação das origens... Em uma delas, A é anterior a B, mesmo que em outra B seja anterior a A.
Contradições do mesmo tipo aparecem na mitologia dos Esquimós. O que é muito mais raro, encontra-se entre eles pessoas capazes de tomar consciência delas, quando se chama sua atenção para isto. Acontece até mesmo de uma delas tentar justificar esta atitude mental que nos choca. Rasmussen, que viveu algum tempo na tribo dos Igluliks e que gozava de sua confiança, relata uma conversa que teve sobre isto com Orulo, mulher do xamã Aua, seu amigo.
Nós Esquimós não nos ocupamos em tentar resolver todos os enigmas. Nós repetimos as histórias de antigamente como nos contaram, com as mesmas expressões que nos lembramos. E, se parece haver uma falta de consistência no conjunto da história, há muitos outros acontecimentos incompreensíveis que nosso pensamento não abarca...
E, então, após um momento de reflexão, ela acrescenta o que segue, que mostra, de uma maneira impressionante, o pouco caso que os Esquimós fazem da coerência lógica em sua mitologia.
Você fala do petrel das tempestades que captura focas antes de ter existido. Mas, suponhamos que conseguíssemos resolver este problema, ficariam muitos outros que não podemos explicar. Você pode me dizer onde a mãe dos caribus conseguiu as calças feitas com pele de caribu, antes que ela tivesse colocado os caribus no mundo? Você sempre quer que essas coisas sobrenaturais sejam inteligíveis. Mas nós, nós não nos preocupamos com isto. Não compreendemos e nem por isto ficamos menos satisfeitos.⁵
Este tipo de credo quia absurdum⁶ esquimó testemunha a fé robusta que eles têm em seus mitos e a pouca exigência lógica que eles impõem às suas mentes neste domínio.
III
As razões para sua falta de coesão lógica.
Índice
Não é somente em suas mitologias que os primitivos se mostram insensíveis às contradições que julgaríamos flagrantes. Como eu já tive oportunidade de demonstrar em outro lugar __ em particular, com relação à participação
__ essa indiferença é um dos traços por onde seus hábitos mentais contrastam mais visivelmente com os nossos. Sem dúvida que a estrutura fundamental da mente humana é a mesma em todo lugar. Quando os primitivos têm o sentimento vivo e nítido de uma contradição, ela não os choca menos do que nós. Eles a rejeitam com a mesma energia. Mas, uma das características distintivas de sua mentalidade consiste precisamente nisto: geralmente, o que, para nós, é contraditório, não lhes parece assim e os deixa indiferentes. Eles parecem então se acomodar à contradição e, neste sentido, ser pré-lógicos
. Esta atitude está ligada estreitamente, por um lado, à orientação mística de sua mente, que não atribui grande importância às condições, sejam físicas, sejam lógicas e de possibilidade das coisas e, por outro lado, às suas tendências pouco conceituais. O primitivo forma, sem dúvida, conceitos; como eles passariam totalmente sem eles? Mas esses conceitos, menos numerosos que os nossos, não são sistematizados como eles. Por consequência, sua linguagem não permite passar sem dificuldade de um dado conceito a outro de generalidade menor compreendido nele ou de generalidade superior que o compreende. Esses primitivos não dispõem, portanto, do admirável material lógico e lingüístico que torna fácil e rápido, para nós, um grande número de operações mentais. A inteligência do Canaque pouco classificou os dados da experiência sensível; ela não constituiu generalizações; (árvore, animal, mar, mordida, não existem segundo o conceito que nós temos deles)
⁷, escreve o Sr. Leenhardt.
Um estudo especial sobre este assunto foi recentemente feito entre os Cherokees. Seu autor observou, entre as crianças dessa grande tribo do sudoeste da América do Norte, uma extrema vivacidade de inteligência e entre seus curandeiros, ou seja, no que se pode chamar de sua elite intelectual, um saber extenso e rico. Mas a medalha tem seu reverso.
Todo seu conhecimento está longe de ser codificado. Eu frequentemente me dei a tarefa de tentar saber até que ponto este saber estava sistematizado, ou, como diríamos, racionalmente organizado. Esta pesquisa sempre levou a resultados muito desfavoráveis, embora interessantes.
Um curandeiro como Og, universalmente reconhecido por ser aquele que mais sabia
, quando se lhe pedia para fazer a lista de todas as diferentes doenças que ele conhecia, dando-lhe cinco dias para refletir nisto, era incapaz de encontrar mais do que trinta e oito delas, mais ou menos diferentes.
Outro, a quem foi pedido para enumerar, sem preparação, aquelas que ele conhecia, não pôde ultrapassar uma dúzia, apesar do fato de que os dois deviam certamente conhecer mais de cem, pois uma compilação feita por mim oralmente... revelou que ao redor de duzentas e trinta doenças lhes eram conhecidas.
As mesmas observações valem para seus conhecimentos em botânica e se aplicariam também ao seu saber em religião e em mitologia.
Realizando uma experiência semelhante com outro curandeiro, desta vez sobre religião, a vida futura, os espíritos que ele invocava em suas fórmulas, eu não consegui, com este método, lhe fazer dizer mais do que cinco por cento do que ele sabia sobre estes assuntos. Por fim, através de questionamento indireto e disfarçado, eu tirei dele tudo o que ele conhecia e era uma massa de conhecimento considerável.
Apesar da soma importante de sua erudição e da superioridade, em certos casos, de sua inteligência, esses velhos senhores não parecem muito mais metódicos do que seus compatriotas leigos... De fato, dos numerosos curandeiros que eu conheci, Og foi o único que eu posso dizer que tinha uma certa perspectiva de seu saber e que não foi incapaz irremediavelmente de ligar, entre eles, dois elementos provenientes de dois ramos diferentes de sua erudição
.⁸
O mesmo autor também observou que
os Cherokees possuem palavras para conceitos como ervas
em geral ou que se relacionam com certas famílias definidas de plantas (famílias
entendidas aqui do ponto de vista do Cherokee). Por exemplo: aquelas que crescem nas montanhas
, aquelas que estão sempre verdes
, aquelas que crescem perto do rio
etc. Mas eles raramente fazem uso disto e, comumente, eles empregam os nomes particulares de cada espécie de planta.⁹
Estas poucas observações jogam um pouco de luz sobre os processos habituais desse pensamento muito menos conceitual do que o nosso. A soma do saber, ou, segundo a expressão muito justa do Sr. Olbrechts, da erudição, pode se elevar mais alto. Mas, por não ser digerida, ela permanece inorgânica e, por assim dizer, em desordem. A inteligência não reparte o que adquire em quadros logicamente ordenados. Por isso, ela não dispõe livremente do que possui. A cada nova ocasião, ela se refere ao que aprendeu em outras circunstâncias particulares; as relações pouco gerais entre casos mais ou menos diferentes lhe escapam. Os conhecimentos não se hierarquizam em conceitos subordinados uns aos outros. Eles permanecem simplesmente justapostos, sem ordem. Eles formam como que montes ou pilhas. Por sua vez, este acúmulo de dados isolados embora próximos, não favorece a formação de conceitos. O hábito enraizado, portanto, é usá-los como são. Por consequência, qualquer que seja o vigor e a vivacidade nativos de sua mente, o progresso lógico do pensamento, entre os nativos, fica rapidamente interrompido, por que lhe falta o instrumento indispensável. O campo fica assim, totalmente livre para as pré-ligações místicas. As contradições têm menos chances de serem sentidas, descobertas e rejeitadas.
Se esses hábitos mentais são observados ainda hoje entre os Cherokees, que, há várias gerações vivem em relações constantes com os brancos e que receberam deles, com a escrita, muitas outras aquisições, com mais fortes razões eles dominam nos primitivos como os australianos e os papuanos. No entanto, como eu já tive oportunidade de explicar, representações que não tomaram a forma de conceitos regulares não são, necessariamente, desprovidas de generalidade¹⁰. Um elemento emocional comum pode suprir, de alguma maneira, a generalização lógica. É o que acontece, com efeito, para as representações míticas, que, em geral, dizem respeito à categoria afetiva do sobrenatural. Desta forma, se estabelece e se faz sentir entre elas um tipo de parentesco que mascara a falta de coordenação e impede, ao mesmo tempo, que as contradições sejam percebidas.
IV
As funções vitais dos mitos e segredos.
Índice
As tribos da Austrália e da Nova Guiné que vamos estudar alguns mitos não conhecem deuses e deusas e nem divindades de ordem inferior; enfim, nada que pareça um panteão. Seus mitos não têm que contar a genealogia, as aventuras, os atributos de personagens divinos. Nem por isso eles deixam de cumprir funções vitais e essenciais, como o Dr. Malinowski demonstrou, com tanta clareza e força, tomando como exemplo os mitos dos melanésios das ilhas Trobriand, cuja mentalidade ele tão bem descreveu e analisou¹¹. Veremos que eles constituem, propriamente falando, o tesouro mais precioso da tribo. Eles estão no coração do que ela reverencia como sagrado.
Os mais importantes só são conhecidos pelos anciões
, cujos segredos eles guardam zelosamente. Eles só os comunicam quando necessário e somente àqueles poucos que estão devidamente qualificados para recebê-los.
Tão grande é seu respeito por esses segredos que eles não deixam jamais transparecer à autoridade
branca a menor suspeita sobre esse grande mundo do pensamento dos nativos e do que faz a força de todas as coisas que os brancos ignoram perfeitamente. Os velhos guardiões desses conhecimentos secretos se reúnem na aldeia, mudos como esfinges e decidem em que medida eles podem, sem perigo, confiar o saber de seus pais à jovem geração e em que momento preciso a comunicação dos segredos poderia ser feita da forma mais eficaz. Se as circunstâncias jamais se mostram propícias, os segredos desaparecem então com os velhos. Mesmo que estes não morram sem dor, pois eles sabem que os antigos mitos e as antigas cerimônias vão cair no esquecimento, o que condena a tribo á extinção, eles não exultam menos em morrer, porque eles guardaram fielmente o depósito a eles confiado.¹²
A bem dizer, a ideia de usá-los de outra forma não lhes viria à mente. Divulgados, esses mitos seriam profanados. Eles perderiam seu caráter sagrado e, ao mesmo tempo, sua virtude mística. Se esta deixa de agir, a tribo não pode continuar a viver. O Sr. Elkin expôs claramente a razão disto.
A própria vida da natureza e, por consequência, também a da espécie humana, depende das cerimônias e dos lugares sagrados. A filosofia totêmica dos nativos une o ser humano e a natureza em um todo vivo, que é simbolizado e mantido pelo complexo dos mitos, das cerimônias e dos lugares sagrados. Se os mitos não são conservados com quem tem autoridade para isto, se as cerimônias não são celebradas, se os lugares sagrados não são mantidos como santuários dos espíritos, então o laço vital é rompido, o ser humano e a natureza são separados e nem um nem outro têm mais qualquer garantia que assegure a continuação de sua existência.¹³
Veremos, mais à frente, a importância dos lugares sagrados aos olhos desses australianos e desses papuanos e que mitos e cerimônias não passam de aspectos diferentes de uma mesma realidade mística. Da mesma forma que a tribo não pode sobreviver sem que as cerimônias sejam celebradas, ela certamente também está condenada se seus mitos, profanados, perdem sua força. Os anciões, se for preciso, os levarão, portanto, com eles para o túmulo.
Entre os Marind-Anims (Nova Guiné holandesa), o mito é, propriamente falando, o fundamento, tanto de todas as grandes festas, onde aparecem atores mascarados representando os Demas, quanto dos cultos secretos
¹⁴. Em outra passagem, o Sr. Wirz, que fez dos mitos o eixo central de seu estudo sobre os Marind-Anims, diz formalmente que, sem eles, ele jamais teria compreendido a mentalidade e as instituições desta tribo.
Podemos ter a maior intimidade com os Marinds, dominar sua língua, ter vivido com eles e, mesmo assim, o Dema-wiel e o culto Majo nem por isso ficarão menos ininteligíveis se não tivermos a chave deles. Esta chave é a mitologia que a fornece. Em todo momento, mesmo na vida cotidiana do Marind, choca-se a cada passo com os mitos dos Demas, dos ancestrais dos quais tudo vem, tudo depende e tudo produziram: a magia, as fórmulas mágicas, os velhos costumes, as festas, as danças, os cantos, as cerimônias de fecundidade e os cultos secretos. Tudo repousa sobre a mitologia e sobre os Demas.¹⁵
Sendo este o lugar ocupado pelos mitos na vida, tanto profana quanto mística, dos Marind-Anims, eles não podem ser mantidos zelosamente secretos, como aqueles mencionados há pouco pelo Sr. Elkin. Pode ser, no entanto, que uma parte deles, os mais sagrados, permaneçam escondidos aos não-iniciados. Ou pode ser que as mulheres e os não-iniciados só conheçam a letra, enquanto que o sentido profundo e a virtude mística que fazem sua eficácia só sejam revelados aos homens qualificados para serem instruídos neles, para conservá-los e transmiti-los e, por fim, para celebrar as cerimônias secretas que ligadas a eles. Da mesma forma, entre os Karadjeris, tribo do noroeste da Austrália, os mitos são de dois tipos: aqueles que são conhecidos pelos dois sexos e aqueles que só são conhecidos pelos homens. Estes últimos... têm, sobretudo, relação com a cosmologia e com as cerimônias de iniciação
¹⁶.
Como era de se esperar, os costumes sobre este ponto diferem de tribo para tribo. No entanto, há muitas constantes, cujas razões o Sr. Strehlow explicou bem recentemente,
Os mitos de uma tribo são, por assim dizer, propriedade pessoal de um pequeno grupo. Os traços gerais de um mito podem ser __ e, geralmente, o são, com efeito __ conhecidos de uma ponta a outra de uma vasta região. Mas os detalhes mais íntimos da história e os traços tradicionais das decorações próprias a cada cerimônia, só são conhecidos por um pequeno número de anciões. Desta forma, o mito contado acima é propriedade do pequeno número (hoje em dia) de homens pertencentes às subseções Ngala-Mbitjana que habitavam outrora as proximidades de Ankota. Quando o ancestral se reencarnou na pessoa do homem que morreu recentemente em Alice Springs, a lenda, os desenhos de decoração e todos os churinga se tornaram sua propriedade exclusiva. Enquanto ele viveu, ninguém mais, exceto seu pai, seu avô e o irmão de seu pai, podia contar essa história a um estrangeiro
... Ninguém está autorizado a celebrar nenhuma das cerimônias pertencentes a este homem, a não ser que ele esteja presente e supervisione todas as operações. Após sua morte, os homens Ngala-Mbitjana de Ankota (ou os grupos próximos, se o de Ankota deixar de existir) voltam a ser proprietários
do mito e os churinga são novamente confiados à sua guarda.
Isto torna muito difícil recolher os mitos extensos, onde são contadas as peregrinações dos ancestrais através de vastas regiões. Por exemplo, todos os Arandas, cujos centros totêmicos estão situados bem perto do caminho seguido pelo grupo de ancestrais tjilpa (gato selvagem) que atravessou o monte Conway, conhecem os diversos lugares sagrados tjilpa neste percurso; pelo menos os mais importantes. Mas os ‘detalhes’ do que aconteceu lá __ e somente eles nos permitem ver o sentido real dessa tradição __ são todos mantidos em segredo pelos pequenos grupos (subseções) que moram ao longo desse caminho. Por consequência, para obter uma narrativa fiel dessa tradição, é preciso interrogar os antigos chefes desses grupos, um após o outro. Processo que exige muito tempo e esforço.¹⁷
Na Nova Guiné, de acordo com o Sr. Landtman,
os nativos de Kiwai possuem um tesouro quase inesgotável de mitos e lendas, onde se mostra a maravilhosa imaginação que eles possuem... Do ponto de vista do europeu, a maior parte desses contos contém a narrativa de eventos que aconteceram __ ou supostamente aconteceram __ e que os ouvintes, por consequência, deverão tomar como verdadeiros, enquanto outros se apresentam como puros contos de imaginação, sem outro objetivo além de divertir aqueles que os ouvem. Do ponto de vista do nativo, esta distinção não existe. Aos seus olhos, todos os seres lendários são reais e as narrativas de suas façanhas idem. Quase todos os contos são das tradições do que realmente aconteceu. Este é até mesmo o caso daqueles onde se vê animais se comportando como humanos, pois, antigamente, os animais falavam. Em um pequeno número de casos somente, meus informantes me assinalaram algumas narrativas como inventadas expressamente para divertir as pessoas.¹⁸
Keysser diz também que os Kais só conhecem lendas; nada de contos, nada de fábulas. As narrativas que consideramos como fabulosas são, para eles, lendas como as outras
¹⁹. Pelo contrário, entre os Arandas (Aruntas), segundo relato de Strehlow,
As lendas só são comunicadas aos membros da comunidade que foram admitidos como homens e estes acreditam nelas, enquanto que os contos são contados também para as mulheres e as crianças, seja para evitar que eles saibam os segredos dos homens, seja para amedrontá-los com os maus espíritos que os assombram. Outros contos, por fim, servem para diverti-los.²⁰
Deixemos de lado esses contos, relativamente pouco numerosos, que, na opinião unânime dos observadores são destinados a fazer ir. Quanto aos outros, é visível que o Sr. Landtman e Keysser, por um lado e Strehlow, por outro, não os olham sob o mesmo ângulo. O Sr. Landtman só se ocupou com o folclore, que publicou um material muito abundante. Ele quer simplesmente demonstrar que os Papuas de Kiwai não parecem ter o sentido do impossível e nada os impede de tomar como reais os eventos mais inverossímeis. Mas ele não pensa em atribuir a esses contos folclóricos a função vital que os mitos, de acordo com os Srs. Wirz e Elkin, preenchem na vida das tribos estudadas por eles. A mesma observação vale para Keysser, que não distingue também os contos dos mitos, cuja recitação tem uma eficácia mágica. Quanto a Strehlow, ele não se propôs demonstrar qual crença os Arandas e os Loritjas atribuem aos contos folclóricos. Ele tem sobretudo em vista a distinção entre eles e os mitos que, nestas tribos, como naquelas estudadas pelo Sr. Elkin, são geralmente secretos e sagrados e de uma importância vital para a sociedade. Em Dobu, as lendas que compõem o ritual indispensável à cultura do inhame, são de propriedade exclusiva das famílias. Cada uma tem as suas e ela as mantém rigorosamente secretas²¹.
Nas ilhas Trobriand, o Dr. Malinowski precisou claramente as distinções necessárias.
O folclore dos nativos, ou seja, a tradição oral, o pano de fundo dos contos, das lendas e os textos transmitidos pelas gerações precedentes, são compostos das seguintes categorias:
Em primeiro lugar, o que os nativos chamam libogwo (dizeres de antigamente), mas que nós chamaríamos de tradições; 2o) kukwanabu, contos de fadas destinados a divertir em certos momentos do ano e que relatam acontecimentos considerados como imaginários; 3o) wosi, os diversos cantos e vinavina, os refrões populares, que são cantados ao mesmo tempo em que se brinca ou em circunstâncias especiais; por fim (last, but not least), megwa ou yopa, as fórmulas mágicas. Todas estas categorias são estritamente distintas umas das outras pelo nome, função, papel social e por certas características formais.
Os libogwo, que se acredita serem verídicas, consistem, em parte, de narrativas históricas, como as ações dos antigos chefes, as façanhas no Koya, histórias de naufrágios etc.; outra parte compreende uma categoria que os nativos chamam de lili’u, os mitos, narrativas que são objeto de uma fé profunda, de um grande respeito e que exercem uma influência ativa sobre seu comportamento e sobre a vida da tribo. Os nativos distinguem nitidamente entre o mito e o relato histórico, mas esta distinção é difícil de formular e só pode ser expressa de uma maneira um pouco forçada. De fato, ela não se realiza abstratamente para o nativo... Quando se conta uma história, qualquer nativo, mesmo um menino, poderá dizer se é um dos lili’u de sua tribo ou não. Para os outros contos, ou seja, as narrativas históricas, eles não têm um nome especial, mas dirão que isso se passa entre humanos como nós
. Assim, a tradição que transmite o fundo desses contos os relaciona com a etiqueta de lili’u e a definição de um lili’u é, que é uma história transmitida com esta etiqueta. E mesmo esta definição está contida nos próprios fatos, sem ser explicitamente especificada pelos nativos.²²
Por fim, nas ilhas Trobriand, os mitos se separam nitidamente dos contos e das lendas. Eles não são segredos, eles são respeitados e se guia por eles. Enfim, os seres e os acontecimentos mencionados por eles pertencem a um passado que não é um período histórico.
V
O mito e o sonho. O sentido de altjira, ungud, bugari etc.. Os dois sentidos de dema.
Índice
Uma observação do Sr. Elkin permite penetrar um pouco mais na ideia que os australianos fazem de seus mitos sagrados e secretos, fundamento atribuído pela tradição a tudo o que é vital para eles, na natureza que os rodeia, bem como em suas tradições. Diz ele:
Eles os designam por um termo __ altjira (entre os Arandas), dzugur (entre os Aluridjas), bugari (entre os Karadjeris), lalau (entre os Ungarinyins) __ que tem um grande número de sentidos, os quais, no entanto, se referem todos à época, passada há muito tempo, em que os heróis civilizadores e os ancestrais estabeleceram a civilização da tribo, instituíram suas cerimônias e suas leis...
Este termo significa também sonho
ou sonhar
²³. Mas, para os nativos, isso não quer dizer que se trate de alguma coisa puramente imaginária; pelo contrário, esta palavra designa uma realidade espiritual. O que uma pessoa sonha também é sua parte dos mitos secretos, das cerimônias secretas, das tradições históricas relativas à antiga ou eterna época do sonho.²⁴
M. e R. Piddington dizem a mesma coisa:
Os Karadjeris têm uma mitologia muito desenvolvida, ou seja, narrativas que contam o que fizeram, em um passado distante, personagens aparentados, em sua maior parte, a animais, pássaros, peixes etc. Este período recebe o nome de bugari, que quer dizer sonho
.²⁵
Estes termos, enumerados pelo Sr. Elkin, que significam ao mesmo tempo período mítico
ou que pertence a este período e sonho
, podemos comparar com ungud. Esta palavra, de acordo com o próprio Sr. Elkin, tem tantos sentidos, aparentemente diversos, quanto as precedentes. Como aquelas, esta se relaciona essencialmente com o período mítico e não é sem relação com sonho
.
Se um mesmo termo, em diversas tribos do centro e do noroeste da Austrália, designa