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Mikaia
Mikaia
Mikaia
E-book196 páginas3 horas

Mikaia

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Sobre este e-book

Mikaia foi vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2022 na categoria Romance.
 
Mikaia, romance de estreia de Taiane Santi Martins e vencedor do Prêmio Sesc de Literatura de 2022, narra, através da busca de Mikaia, uma dançarina de balé que sofre uma amnésia repentina, a história de três gerações de mulheres que viveram e fugiram da guerra civil moçambicana. Narrado por múltiplas vozes, o livro joga com as diferentes maneiras de se lidar com um passado traumático, pois, enquanto Mikaia quer lembrar, sua irmã, Simi, quer esquecer e sua avó, Shaira, decide silenciar. O desenrolar da trama se dá no embate entre as tentativas de Mikaia em recuperar um passado que lhe foi roubado, os retalhos de memória que lhe voltam confusos, e a resistência de Simi em renunciar a uma infância inventada e cultivada por vinte anos às custas do esquecimento.
O livro transita por temas como o corpo, a dança e a violência contra a mulher, a guerra, a construção da memória e a identidade cultural, além de discutir o olhar do Brasil sobre a cultura moçambicana, já que Mikaia vive o dilema de se sentir brasileira ao mesmo tempo que precisa reaprender o que significa ser moçambicana. Nesse sentido, assim como a personagem central transita entre identidades e pertencimentos, deslocando-se entre os oceanos Índico e Atlântico, a construção de linguagem do romance também transita entre as variantes do português brasileiro e moçambicano – e sua língua materna, o emakhuwa, torna-se elemento central nesse movimento de resgate.
No texto de orelha, Luciany Aparecida e Itamar Vieira Junior escrevem:
"Ao trazer como protagonistas mulheres negras que desejamos amar e escutar, o romance recria na dimensão literária histórias que nos foram tiradas por tempos de brutal invisibilidade. Se à primeira leitura Mikaia parece apresentar uma história sobre silenciamentos, ao final se entende que este é um romance de fala e, portanto, uma história que deve ser ouvida. Que possamos parar e escutar Mikaia, sentir com o corpo e o coração seus movimentos de esperança."
IdiomaPortuguês
EditoraRecord
Data de lançamento31 de out. de 2022
ISBN9786555876307
Mikaia

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    Mikaia - Taiane Santi Martins

    Mikaia. Taiane Santi Martins. Vencedor do prêmio Sesc de literatura 2022, romance. Record.Taiane Santi Martins. Mikaia.

    1ª edição

    Editora Record. Rio de Janeiro, São Paulo.

    2022

    CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

    SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    M347m

    Martins, Taiane Santi

    Mikaia [recurso eletrônico] / Taiane Santi Martins. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Record, 2022.

    recurso digital

    Formato: epub

    Requisitos do sistema: adobe digital editions

    Modo de acesso: world wide web

    ISBN 978-65-5587-630-7 (recurso eletrônico)

    1. Romance brasileiro. 2. Livros eletrônicos. I. Título.

    22-80270

    CDD: 869.3

    CDU: 82-93(81)

    Gabriela Faray Ferreira Lopes – Bibliotecária – CRB-7/6643

    Copyright © Taiane Santi Martins, 2022

    Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito.

    Texto revisado segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.

    Direitos exclusivos desta edição reservados pela

    EDITORA RECORD LTDA.

    Rua Argentina, 171 – Rio de Janeiro, RJ – 20921-380 – Tel.: (21) 2585-2000.

    Produzido no Brasil

    Cópia não autorizada é crime. Respeite o direito autora. ABDR Associação brasileira de direitos reprográficos. Editora filiada.

    ISBN 978-65-5587-630-7

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    Atendimento e venda direta ao leitor:

    sac@record.com.br

    para Vika Martins

    para Helena Karimo e Mamy em nome de todas as mulheres que me acolheram na Ilha de Moçambique

    Sumário

    Khuneetthu

    Oliyala

    Wupuwela

    N’nakala?

    On’hipiti

    Glossário

    Agradecimentos

    Khuneetthu

    Antes do aniversário de doze anos, existe o vazio. Depois, o bolo de chocolate, o cheiro de vela apagada, as vozes das crianças soando umas por cima das outras. Talvez houvesse uma música, mas nenhum rosto conhecido e, em segundos, não há mais nada. Procuro pela origem da imagem, não encontro. Eu deveria me lembrar do meu nome, mas não me lembro.

    — Mikaia — uma mulher chama olhando em minha direção.

    Olho para o meu corpo como se perguntasse: sou eu? Eu estou vestindo um collant marrom meio sem corte, em cima de uma meia-calça da mesma cor, e o que parece ser uma sapatilha nos pés. Não uma sapatilha de ponta, eu sei que reconheceria uma, mesmo com pouca luz. Eu me sinto como se estivesse nua, já que toda a composição tem mais ou menos o mesmo tom da minha pele. Olho ao redor e o que vejo são algumas pessoas aleatórias, transitando de um lado a outro por uma coxia, um espaço pequeno e mal iluminado. A mulher chama mais uma vez e só então me dou conta de que, de fato, é a mim que ela está chamando. Eu sei disso não por reconhecimento do nome, nem pela forma como a palavra soa em meus ouvidos, mas pelo jeito que ela me olha.

    Eu me aproximo, um pouco titubeante, esperando que não seja um engano, que não exista outra mulher atrás de mim cujo nome seja Mikaia e que seja ela e não eu que está sendo chamada.

    — É sua vez — a mulher me fala num tom de voz de alguém que já chamou muito antes de ter sido atendida. Eu me pergunto a que ela possa estar se referindo e fico parada com aqueles olhos cravados em mim. Um homem se aproxima pela minha direita, segura a minha mão e me conduz por uma passagem até a entrada de um palco.

    — É nervosismo de estreia — ele diz se dirigindo à mulher e aos olhos da mulher que, em nenhum momento, deixaram de estar cravados no meu corpo rijo.

    Nós caminhamos de mãos dadas até o centro do palco. Ele segura meu rosto com as duas mãos, me olha nos olhos, depois beija minha testa. Eu me concentro em manter o ritmo de minha respiração. Ele sussurra um merda no meu ouvido e de alguma maneira eu sei que aquela é a palavra mais doce que ele poderia me dizer naquele momento. Ele beija meus lábios de leve, talvez eu devesse retribuir o beijo, mas não retribuo. Ele não se importa, pressiona um pouco mais as mãos contra meu rosto antes de me soltar e se afasta. Como eu não me movo, ele me mostra uma marcação ao seu lado. Eu caminho até o pequeno xis riscado no chão. Estamos sob uma luz azulada e de frente para uma cortina vermelha que esconde o horizonte da mesma maneira que alguma coisa em minha mente esconde de mim a noção de saber quem sou. Penso em dizer que aquilo tudo é um engano, que eu não deveria estar ali e que não faço a menor ideia de quem seja aquele homem ao meu lado, mas todo meu corpo me diz que o porvir escondido atrás daquela cortina é mais fácil de encarar do que a ideia do vazio que a cada minuto se espalha mais por minha mente.

    Ouço um piano em três acordes que de imediato me fazem pensar no momento em que a chuva cessa logo depois de um temporal. A cortina vermelha sobe, mas a iluminação não me deixa ver o que está em minha frente. De alguma maneira eu sinto a energia de uma plateia emergir da escuridão e, quando me dou conta, todo o peso de meu corpo está sobre minha perna direita. Giro o rosto e vejo o homem ao meu lado seguir o mesmo movimento coreografado que sinto meu corpo fazer sem que eu tenha lhe dado comando algum. O mais assustador nisso tudo é não encontrar em meu interior sequer resquício de medo, como se tudo em mim fosse feito da falta e na falta a única coisa que resta é responder a qualquer conforto que os toques do piano me proporcionam. Eu fecho os olhos e espero que os movimentos se transfiram das ondas musicais para os meus ouvidos, minha corrente sanguínea e, então, minha musculatura. Um balanço entre onda e gesto que não nasce de mim, mas passa por mim e se transmuta em dança.

    Sou uma coisa quebrada, um filhote de andorinha mirrado que busca pelo ninho no apoio de uma mão estendida. Eu estico o braço num bater de asa e encontro aquela mão. Ele segue seu próprio movimento e, quando sinto que está pronto para me receber, deito a cabeça sobre o meu braço e deixo que ele sustente o peso de um corpo de pássaro. A chuva destruiu o ninho que me amparava e tudo o que restou foram aqueles dois corpos desjeitosos aprendendo a se encaixar. Ele me ensina os movimentos para alçar voo e no processo de aprendizagem o trajeto da queda é certo. Eu abro o peito, jogo meu pescoço para trás e me deixo virar em ponte. Não uma ponte firme, estruturada, mas uma construção desabada cujo único destino é encontrar o chão. Mais uma vez ele me resgata e me carrega como se me mostrasse que asas são feitas para voar. Eu ensaio o salto de liberdade, mas me falta coragem para deixar o ninho e, então, me jogo em suas costas. Sou sua sombra, sua bagagem. Nós entrelaçamos as pernas e ele segue na direção do futuro. Eu vou de costas, como o anjo, sustentada pelos seus ombros e com o olhar preso no passado. Ele me joga para o futuro, mas num movimento rápido eu giro meu tronco e volto a cair num espacato. Com o pé, ele lança o meu braço para o alto e me chama a reagir, me levanta pela mão e dessa vez eu aprendo o peso do caminhar e a extensão das asas. Ele me coloca sobre sua coxa direita, me segura pelo quadril e com o olhar me aponta o horizonte. Eu me abro para o voo. Agora nós podemos nos mover num mesmo compasso e pela primeira vez nos olhamos de frente. Ele me ergue sobre sua cabeça, me sustenta me segurando pela perna e o tronco, me gira e por fim me pousa ao seu lado. Voltamos ao movimento inicial, agora como duas partes de um mesmo organismo que se reconstruiu depois da tormenta. Eu jogo meu pescoço para trás e mais uma vez me deixo virar em ponte. Não mais uma ponte ruída, agora sou morada. Ele passa por baixo de minha coluna em arco e se abriga em mim. As luzes se apagam, a música cessa, ouço os aplausos.

    Posso não saber meu nome, mas tenho uma certeza na qual me agarrar: sou uma bailarina.

    — Em nenhum dos ensaios você se entregou tanto quanto hoje. Vou te dizer, quando vi sua cara antes de entrar no palco pensei que não se lembraria da coreografia — o homem me diz assim que as cortinas se fecham.

    — Eu não lembrei — ele me olha, questionador, e eu acrescento: —, pensei na chuva e em pássaros que não sabem voar.

    — Não me venha com essa, você fez cara feia todas as vezes que Sílvia nos disse para fazer essa analogia.

    — Eu não sei quem é Sílvia.

    — A coreógrafa que vai ficar emocionada quando eu contar que você pensou nas breguices dela enquanto dançava — ele ri e dá uma leve revirada nos olhos, como quem compartilha uma piada interna, ao falar a palavra breguices. Depois se aproxima, coloca o braço em cima dos meus ombros e me puxa para perto como se quisesse me beijar. Eu tensiono o pescoço, viro o rosto e me desenlaço da tentativa de abraço.

    — Cê tá esquisita, o que houve? Não me diga que é apenas nervosismo pela estreia. Foi um sucesso.

    — Não, eu. Eu só não quero que me toque, por favor.

    — O que foi que eu fiz?

    — Nada. É que.

    — Nós vamos ter uma crise agora?

    — Não, eu — de novo olhos cravados em mim —, eu — se eu falar o que houve tudo será mais real e talvez mais definitivo —, eu — não tenho outra escolha —, eu também não sei quem você é.

    Ele não tem tempo para me responder, somos cercados por pessoas nos aplaudindo e nos abraçando e comemorando o sucesso da apresentação. Ele agradece cada elogio sem deixar que eu saia de seu campo de visão. Eu também agradeço e finjo conhecer cada uma das pessoas que me dizem como eu estava maravilhosa, como a coreografia foi feita para ser interpretada por mim, como eu estava concentrada no palco e tantas outras observações tão sem sentido quanto o rosto desconhecido de seus donos.

    A mulher que mais cedo, na insistência, me deu um nome se aproxima trazendo com ela um ramalhete de girassóis.

    — Normalmente eu teria comprado rosas, mas você é a única bailarina que prefere flores desengonçadas — ela me entrega as flores e um sorriso. A educação me diria para retribuir o sorriso, mas não retribuo. Não me lembro da preferência por nenhuma espécie, mas acredito no que ela diz.

    Ouço o homem chamar pelo nome que deve ser meu, mas não atendo ao chamado. Ainda não aprendi a atender, ainda não aprendi que tal nome me pertence. Preciso que a mulher atraia minha atenção.

    — Taú está te chamando.

    — Quem?

    — Ora, seu namorado.

    Eu olho para meu companheiro de dança. Ele age mesmo como se fosse meu namorado, ele me olha como se fosse meu namorado, ele está confuso como um namorado que escuta de sua parceira que ela não sabe quem ele é. Procuro por algum tipo de sentimento dentro de mim. Não encontro. Procuro por algum reconhecimento. Não encontro.

    — A gente precisa conversar — ele me diz ao se aproximar, e a única coisa que passa pela minha cabeça é que, de fato, aquela é uma típica frase que um namorado usaria. Deixamos os cumprimentos para trás e ele pede para que Sílvia venha conosco, então eu ligo os pontos e entendo que a mulher com os girassóis é a coreógrafa.

    — Você tá brincando com a gente, não tá? — eu não respondo. Ele não está com cara de quem acha que eu estou brincando. — Mikaia, por favor, fala alguma coisa — Sílvia olha de mim para Taú sem entender.

    Pela primeira vez, desde a chegada do vazio, eu sinto vontade de chorar. Pela primeira vez, desde a completa falta de referenciais, eu não sei o que fazer.

    — Eu não posso.

    — O quê? Você não pode o quê?

    — O que tá acontecendo? — Sílvia pergunta.

    — Qual é o meu nome?

    — Taú.

    — Como você sabe?

    — Ela me disse — eu aponto para Sílvia.

    — Qual o seu nome?

    — Eu.

    — Qual o seu nome? — ele repete com a voz mais estridente.

    — Eu não sei — desvio o olhar.

    — O que você sabe sobre você?

    Eu não quero responder. Eu não posso responder. Eu não posso dar mais força para o vazio. Eu não posso permitir que ele se transforme em algo concreto. Então me lembro das únicas certezas que possuo.

    — Sou uma bailarina e gosto de girassóis.

    — Eu vou ligar para sua irmã.

    No hospital descubro que vou fazer trinta anos em fevereiro, danço desde os doze, nunca tive uma lesão grave, não quebrei nenhum osso. Não sofri nenhuma queda, nem bati a cabeça nas horas que antecederam a apresentação. Até onde Taú sabe, não possuo nenhum histórico familiar de doenças genéticas, cognitivas ou degenerativas. Eu diria que tenho uma saúde exemplar para uma desmemoriada.

    Descubro que tenho um relacionamento estável com Taú há mais de quatro anos, mas não, não somos casados. Descubro que fui criada por uma avó e que tenho uma irmã mais velha e que ela está vindo para o hospital e já ligou três vezes desde que Taú lhe contou o que aconteceu. Ou o que não aconteceu, porque até agora não parece haver nenhum indício no meu histórico médico familiar

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