O Clube Mary Shelley
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Sobre este e-book
Ao ser convidada para uma festa pela única amiga que fez, acaba envolvida em uma pegadinha que dá errado, despertando contra ela a ira de Lux McCray, uma das garotas mais populares da Manchester. Mas a festa não é de todo ruim: os acontecimentos da noite atraem a atenção de Rachel para o Clube Mary Shelley, um grupo secreto de alunos aficionados por filmes de terror que tem como único objetivo despertar o medo real em seus alvos por meio do que chamam de Prova do Medo.
Determinada a fazer parte de algo, Rachel se joga de cabeça nas atividades do clube, mas, à medida que os "desafios" ficam mais complexos, a competição se torna acirrada e ganha vida própria. E, quando os membros do próprio clube se tornam o alvo, Rachel deve descobrir quem é o monstro que os assombra… Mesmo que isso signifique finalmente confrontar – e revelar – os segredos sombrios de seu passado.
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O Clube Mary Shelley - Goldy Moldavsky
1
Um ano depois
AO ABRIR A porta, vi Saundra com seu sorriso e suas roupas cintilantes.
– Vai já se vestir, Rachel, a gente vai pra uma festa.
Não fazia nem três semanas que eu conhecia a garota, o que não a impedira de aparecer sem avisar no meu apartamento, como se fôssemos amigas desde sempre.
– Não posso, desculpa. – Estava de pijama, prontíssima para relaxar com meu comfort movie preferido de todos os tempos, A noite dos mortos-vivos. E também tinha o fato de que odiava festas. – Minha mãe não me deixa sair em dia de aula.
Como uma aparição no espelho do banheiro, minha mãe surgiu atrás de mim.
– Domingo não é dia de aula, Jamonada, e você sabe.
Jamonada
era o apelido que minha avó me dera quando eu nasci, por eu ser um bebê gordinho. Eu até tentara recusar o mimo, mas pelo visto não aceitavam devolução, e minha mãe o adorava. Significa presunto
em espanhol; tipo, não tem outro significado fofinho, é a carne mesmo. E Saundra agora sabia. Bacana.
– Oi, senhora Chavez! – cumprimentou.
– Amanhã tem aula – resmunguei. – Então, por extensão, pode ser considerado dia de aula, sim.
– Mas você não teve aula hoje – rebateu minha mãe. – Eu diria que ainda não chegamos a um veredito.
Saundra concordou com um gesto de cabeça; já eu olhei para minha mãe como se ela não fosse a pessoa que tinha me criado por dezesseis anos. Demorei uns segundos para entender qual era a dela: minha própria mãe estava preocupada que eu fosse patética demais, solitária demais, com amigos de menos.
– Com certeza você quer que a sua filhinha acorde descansada e bem-disposta para a escola amanhã, não é, mãe? – Contraí a mandíbula, na tentativa de dar uma indireta.
Minha mãe abriu um sorriso cara de pau de quem finge que não percebeu nada.
– Você teve o fim de semana inteiro pra ficar descansada e bem-disposta, meu amor.
Estávamos em um impasse: eu queria curtir a noite com os mortos-vivos, minha mãe queria que eu curtisse a noite com os vivos de fato. Hora de usar a artilharia pesada.
– Saundra, diz pra minha mãe onde vai ser a festa.
Era uma jogada arriscada. Até onde eu sabia, Saundra bem poderia estar me chamando para uma reuniãozinha com o prefeito de Nova York na residência oficial – o que, considerando os círculos que ela frequentava, não era tão absurdo –, porém me agarrei à possibilidade de que o paradeiro da festa fosse mais reprovável.
Saundra hesitou, e eu a incentivei:
– Pode falar.
– Numa casa abandonada em Williamsburg.
Brilhando de triunfo, como um troféu que acabou de ser polido, girei e fitei minha mãe.
– Uma casa abandonada em Williamsburg. Ouviu, mãe?
Minha mãe e eu nos encaramos fixamente, numa disputa que só terminaria quando uma das duas cedesse.
– Divirta-se! – disse ela.
Meus planos frustrados pela minha própria mãe. Quando nos mudamos para Nova York, ela estabelecera apenas duas regras: 1) mantenha as notas boas e 2) faça amigos. A simples presença de Saundra deveria bastar para provar que eu tinha feito amigos. Tá, uma amiga. O importante é que eu havia sido bem-sucedida na impossível missão de fazer um amigo no penúltimo ano do Ensino Médio em uma escola nova. Para minha mãe, contudo, uma festa significava a possibilidade de mais amizades, o que, por sua vez, significava que eu seria arrastada para Williamsburg.
Troquei de roupa (apesar dos protestos de Saundra, me recusei a tirar a camiseta tie-dye do pijama, mas dei uma melhorada no visual com uma calça cargo e uma jaqueta), e saímos.
– Vamos a pé – sugeri.
Greenpoint ficava perto de Williamsburg, e o tempo estava agradável.
Saundra exalou o ar pelo nariz.
– E morrer assassinadas? Você perdeu o juízo?
– Aqui não é perigoso.
Em completo desdém por mim e pela distrital do Brooklyn, ela riu e sacou o celular.
– A-hã, claro.
O carro do aplicativo chegou em menos de três minutos.
No banco de trás, Saundra exibiu toda a sua capacidade multitarefa tirando selfies, atualizando as redes sociais e me informando sobre quem estaria na festa. Exatamente como em nosso ritual de almoço na escola, quando ela me contava as fofocas sobre aqueles rostos que eu mal reconhecia nos corredores da Manchester Prep.
Saundra decidira que nós duas seríamos amigas no instante em que pisei na aula de História do sr. Inzlo. Ela se inclinou para mim assim que me sentei e pediu um lápis emprestado – um pretexto esfarrapado, já que eu tinha notado o lápis no bolso aberto da sua mochila Herschel cor de lavanda.
A princípio, não entendi por que ela quis ser minha amiga, mas logo ficou claro que puxou conversa porque não suportava a ideia de existir em sua classe uma pessoa sobre quem não soubesse nada. O traço mais marcante de Saundra Clairmont, como eu descobriria depois, era a compulsão implacável por saber absolutamente tudo sobre absolutamente todos.
Assim, naquele dia, ofereci algumas migalhas sobre mim. Antes da Manchester, eu tinha estudado numa escola pública em Long Island, onde eu e minha mãe morávamos até a decisão de mudarmos para Nova York.
Diferentemente da maioria dos alunos, eu não estava ali por ser rica, nem por ter contatos, nem, rigorosamente falando, por ter bolsa de estudo. Só fui aceita porque minha mãe dava aulas de História Americana para os primeiros anos do Ensino Médio. Sim, podemos dizer que minha mãe era mestre em me mandar para onde eu não queria estar.
Mas agora, no caminho para Williamsburg, a falta de vontade de ir para a festa tinha dado lugar ao pavor: só de pensar em encontrar todas aquelas pessoas que iriam me ignorar solenemente, minha garganta secou. Pior ainda era saber que teria que fingir – fingir fazer parte daquele mundo, fingir ser igual a elas. Estava prestes a inventar um mal-estar quando paramos em frente ao local da festa. Saundra saltou do carro, e eu fui atrás.
Caminhamos até a casa abandonada, saída direto de um filme de terror do fim dos anos oitenta. Painéis de madeira desgastados e pichados cobriam as janelas, e na porta havia incontáveis adesivos com avisos cujas letras miúdas certamente advertiam para manter distância. A construção se esmagava entre um galpão fechado e um terreno baldio com uma placa de VENDE-SE presa no alambrado.
Um ponto brilhava, porém. Uma garota vestida toda de preto estava sentada na varanda, seu rosto fantasmagórico pairando sobre um livro. Os dedos cobriam o título, mas as letras pontudas do nome de Stephen King se revelavam na capa. Eu gostava dos filmes dele; talvez conseguisse puxar assunto com a menina. Talvez fosse meu tipo de festa, afinal de contas.
– E aí, Felicity! – disse Saundra.
Felicity levantou a cabeça e lançou um olhar fuzilante sob a franja curtinha. Não retribuiu o cumprimento.
– Então tá, né? Tchau. – Saundra entrelaçou um braço no meu e me conduziu pela escada. – Só a Felicity Chu mesmo pra trazer um livro pra uma festa.
A sala estava abarrotada de adolescentes rindo, se zoando e derramando bebida. A condição do interior não era muito melhor do que a da fachada. Parte do papel de parede estava mofada; parte, descascando. O piso era de linóleo pegajoso, a única iluminação vinha de refletores de obras e praticamente se podia sentir o cheiro de amianto. E ninguém estava nem aí.
Eu não sabia bem o que esperar de uma festa de mauricinhos, mas certamente não era aquilo. Havia certa ironia no fato de que, para se divertir, eles tinham trocado o conforto palaciano por uma casa caindo aos pedaços.
– Vou pegar uma bebida! – Saundra gritou mais alto do que a música.
– Vou com você.
No entanto, quando me virei, ela já tinha sido engolida pela multidão. Existe apenas uma coisa pior do que ir obrigada a uma festa: ficar sozinha nessa mesma festa. Eu não ia ser a boia solitária num mar de amigos; a solução era uma só: me esconder no banheiro.
Subir a escada foi como atravessar um portal. O som das garrafas e da música ruim foi sendo eclipsado pela escuridão úmida que se adensava a cada passo. Normalmente, bastava eu sair da multidão e encontrar um canto tranquilo para me livrar da ansiedade. Era uma maneira instantânea de me acalmar, como respirar dentro de um saco de papel. Não foi o caso.
Eu me detive no patamar para que meus olhos se acostumassem ao breu e as sombrias silhuetas se fizessem visíveis. Acionei o celular para iluminar um pouco o corredor e notei que a estampa do papel de parede era floral. Conforme avancei cautelosamente, porém, as pétalas desbotadas foram adquirindo a feição assustadora de rostos enrugados de bruxas.
Segurei a respiração quando deparei com uma porta entreaberta. Estava tão escuro do lado de dentro que era impossível saber o que havia no aposento, e de nada adiantou apontar o celular. Se tivesse alguém ali me observando, eu jamais saberia. O lugar começou a me dar nos nervos.
Devia ter dado meia-volta e me afastado, mas estava numa festa: queria me permitir ser despreocupada, normal, idiota, e não ficar desconfiando de cada sombra. Afastei o medo e empurrei a porta.
Era o banheiro. Sem observadores. Nem a luz nem a torneira funcionavam, mas era um canto tranquilo. Ergui o celular, abri o Instagram. Nada de bom vinha de visitar o perfil dele, mas não resisti. Sabia que ia me fazer mal e entornei o frasco de veneno mesmo assim.
Cliquei na foto dele e do melhor amigo, vestidos com o uniforme do time de futebol. Meu olhar percorreu as mechas de cabelo, os olhos quase fechados de tanta alegria. As covinhas! O sorriso largo e marcado era um soco no estômago. Abaixo do post havia centenas de comentários de amigos. Li cada um deles, repetidas vezes. Agora mesmo seria capaz de perder horas lendo-os novamente.
E então escutei uma voz. Embora fosse indistinguível de início, ela tinha uma cadência agressiva.
Definitivamente, eu não estava sozinha no andar de cima. Em silêncio, saí do banheiro e segui a voz até o aposento ao lado. Percebi que na verdade era uma conversa sufocada e obstinada entre duas pessoas. Uma discussão.
A porta se escancarou de repente, e mal tive tempo de sair do caminho de Bram Wilding, que passou como um furacão, a pele clara tingida de vermelho. Ele não me viu, mas, ao me virar, trombei em Lux McCray. Embora eu não conhecesse oficialmente nenhum dos dois, eles eram a realeza da escola, do tipo que você não precisa conhecer para saber tudo a respeito. Lux e Bram eram o casal mais poderoso da Manchester Prep.
Deixei cair o celular, que tombou no piso acarpetado e iluminou Lux – a luz sempre parecia ser atraída para ela –, ressaltando o rosto anguloso de modo a fazê-la parecer uma heroína na capa de um livro de V. C. Andrews. Seus olhos se arregalaram em surpresa, porém logo se estreitaram.
– Que porra é essa? Você estava espiando?
– Não…
– Não sei o que você acha que escutou…
– Não escutei nada.
Seu olhar foi dos meus sapatos, um slip on da Zappos, até o coque bagunçado de grossos cabelos castanhos, antes de se fixar em meu rosto. Talvez Lux estivesse se perguntando por que eu não tinha ido atrás de um tutorial de beleza para esconder aquele tanto de sarda.
Encarei-a de volta. Para Lux, minhas sardas deviam parecer sujeira em comparação com as dela, falsas. Eram obviamente falsas: perfeitamente redondas, espaçadas e pequenas, desenhadas com muito cuidado com o lápis de olho marrom. Deslizavam desde a ponte do nariz e então se espalhavam nas maçãs do rosto, numa linda constelação.
Senti seu perfume: Miss Dior, o preferido das desventuradas futuras esposas de políticos. Macia e firme, sua pele de pêssego reluzia sob as alças da blusinha da Brandy Melville, e os cabelos eram da cor de manteiga: a típica personagem loira e perfeitinha que morre nos primeiros minutos de um filme de terror.
O olhar de Lux se desviou para o meu celular, que ela então apanhou do chão e observou pelo tempo necessário para ver o post no Instagram e o nome de usuário.
– Que tal olhar por onde anda em vez de stalkear o Matthew Marshall?
Uma enorme bola de ansiedade se formou em meu peito e ameaçou se espalhar para o restante do corpo. Quando o medo me dominava, acontecia rápido assim: em um instante era tomada por uma inquietação, uma angústia, um formigamento desconfortável nos dedos das mãos e dos pés. Não era para ela saber o nome de Matthew. Nem ela nem ninguém. Avancei na direção dela para recuperar o celular, e Lux teve uma reação chocada e ofendida, como se o aparelho fosse dela. Consegui pegá-lo de suas mãos.
– Sua aberração – sussurrou antes de passar por mim e desaparecer no corredor escuro.
Um lembrete do que eu era. Anormal. Aberração. Uma realidade óbvia para todos, inclusive para Lux. Aquela festa tinha dado pra mim.
Comecei a andar em direção à escada para encontrar Saundra e ir embora; o breu inquietante e o estranho encontro com Lux iam no meu encalço como uma toalha presa no cós da calça. Não era para ninguém descobrir sobre Matthew. Eu sabia que não era uma boa ideia ir àquela festa. Eu sabia.
Minha mente foi invadida por pensamentos confusos, e a sensação era de estar descendo a escada muito rápido e ao mesmo tempo muito devagar. Abri caminho na multidão, mirando estritamente a porta da casa.
De repente, me achava no frescor da noite. Precisava colocar a cabeça no lugar, fazer qualquer coisa, menos pensar no que tinha acabado de acontecer. Alguma coisa estúpida. Irracional.
Meus olhos se fincaram na única pessoa do lado de fora. Caminhei até ele e toquei seu ombro. Nesses momentos, eu era capaz de agir como a personagem possuída de um filme de exorcismo, de perder totalmente o controle e me deixar ser dominada. O garoto mal teve tempo de virar antes que eu o puxasse pela camiseta até a minha boca.
Eu odiava a parte de mim que agia assim.
De maneira irracional, errada.
Mas funcionava. Assim que nossos lábios se tocaram, quaisquer pensamentos sobre Matthew Marshall ou sobre Lux ou sobre a sensação sufocante provocada pela casa foram varridos. Eu já não ligava para nada. Podia botar na conta da zoeira da festa, fingir que estava bêbada, agir desvairadamente, mandar qualquer moral para o inferno. Era assim que adolescentes normais se comportavam em festas normais, não era?
Conforme minha mente se esvaziava, os sentidos se aguçavam. O som de sua respiração, cortante ao inspirar pelo nariz, suave ao expirar; o cheiro algo amadeirado e cítrico do xampu. Até que essas sensações se esvaíram e sobraram apenas duas: o toque e o gosto de seus lábios.
Foi só quando nos separamos, ofegantes, que descobri quem eu tinha acabado de beijar.
Minha mente – serenamente vazia até um segundo atrás – foi tomada por um estrondoso e resignado merda
.
– Rachel? – gritou Saundra, que descia a escada.
Eu não sabia dizer se Bram Wilding tinha ficado horrorizado ou repugnado com a minha atitude, pois ele teve a cortesia de não expressar emoção nenhuma. Isso era bom. Bram, namorado-da-Lux-que-eu-tinha-acabado-de-atacar-porque-eu-era-uma-maníaca-bizarra-exatamente-como-Lux-me-acusara-de-ser, foi civilizado; se virou e se afastou antes que Saundra pudesse vê-lo.
– Quem era? – perguntou ela ao me alcançar.
– Ninguém.
Ela arqueou uma sobrancelha.
– Acabei de ver você conversando com alguém.
– Não era ninguém. Era um fantasma.
– Engraçado você falar isso – Saundra batia as pontas dos dedos umas contra as outras –, porque vai rolar uma sessão espírita!
2
SAUNDRA ME CONDUZIU pela casa com um braço firmemente entrelaçado no meu, para evitar qualquer tentativa de fuga.
– Por que a gente está fazendo isso? – perguntei.
– É uma sessão espírita – ela e eu falamos ao mesmo tempo, mas com entonações completamente opostas. – O que poderia acontecer de tão ruim? – perguntou Saundra.
– É evidente que você nunca viu A noite dos demônios.
Saundra se deteve, virou-se para mim, pousou as mãos nos meus ombros e me encarou com muita seriedade.
– Rachel, ninguém entende as suas referências.
Soltei um suspiro. Não podia contestar.
– Vai ser legal – disse ela. – E outra, é assim que você marca presença na Manchester. E é assim que conhece os alunos mais influentes. – Suas mãos deslizaram para apertar meus cotovelos. – É assim que você descobre a sua tribo.
Tudo o que precisava fazer para descobrir minha tribo era conjurar o espírito de uns mortos? Ora, quem diria! No chão da sala, um grupo de pessoas já formava um círculo. A festa tinha diminuído, estávamos em umas quinze pessoas, mais ou menos. Uma delas era Lux, infelizmente. Meu estômago deu um nó quando ela olhou para mim; já não tinha caído nas graças da menina, só me restava torcer para ela não descobrir que eu havia beijado seu namorado.
Os refletores tinham sido desligados, e a única luz vinha do centro da roda, onde um garoto acendia as grossas velas dispostas no chão. Com a atmosfera devidamente macabra graças à iluminação bruxuleante e com todos a postos, ele se levantou e disse:
– Acho bom não dar merda, porque a casa é do meu pai.
– Rodrigo, seu pai comprou este lugar pra demolir e construir um prédio de luxo – comentou alguém. – Vamos tocar o terror logo!
Ouvi algumas risadas, porém não entendi a graça. Uma menina levantou a mão; não parecia a mesma pessoa sem o uniforme da escola, mas a reconheci de imediato pelo braço assertivamente erguido nas aulas de Geociências. Exatamente como agora.
– Que tipo de sessão espírita vai ser?
– De vidas passadas – sugeriu Thayer Turner.
Ele era filho do procurador-geral do Estado, e, segundo Saundra me dissera, os Turner eram basicamente os Obama da vez. Admirados, amados, perfeitos em todos os sentidos. Mesmo agora, nessa festa, Thayer estava vestido de maneira impecável, com um blazer roxo que ficava ótimo contra sua pele marrom.
– Como é uma sessão de vidas passadas? – perguntou a Sabe-Tudo.
– Você olha no espelho e enxerga sua reencarnação passada – expliquei.
Thayer se virou para mim. Aliás, todos os presentes se viraram para mim. Acho que foi a maior sequência de palavras que eles me ouviram dizer desde que eu me infiltrara em seu colégio. A menção à sessão espírita em A noite dos demônios fora uma piada, mas agora, à visão daqueles rostos fantasmagoricamente iluminados, parecia ter sido uma profecia.
– Isso – falou silabicamente Thayer, examinando-me por mais tempo que o necessário. – O que a Garota Nova disse. Pra nossa sorte, vi um espelho no armário!
– O que você estava fazendo no armário? – perguntou uma voz.
Franzi o cenho para o garoto que perguntou. Havia certa ironia em seu tom, a qual não passou despercebida por Thayer, que estufou o peito a caminho do corredor e disse:
– Ha, ha, que engraçado, Devon.
Quando retornou à sala, Thayer trazia um espelho de corpo inteiro, que posicionou contra a lareira. O vidro estava turvado pelo desgaste do tempo. Todos se reacomodaram para se ver melhor no reflexo.
– Às vezes demora um pouco – comentou Thayer. – Tem que se concentrar.
Se fosse como no filme, um demônio ossudo surgiria a qualquer momento. Entretanto, tudo o que havia era um grupo de adolescentes entediados virando a cabeça para exibir seus melhores ângulos.
Obviamente eu sabia que não seríamos surpreendidos por um demônio, nem veríamos nossas encarnações passadas; mas ainda assim eu experimentava aquela conhecida sensação de arrepio na nuca. Não acreditava em vidas passadas, mas eu mesma tinha um passado. E se meu reflexo mostrasse aos outros meu verdadeiro eu?
– Não está acontecendo nada – reclamou a Sabe-Tudo.
– O que nos diz que você não tem uma vida passada – falou Thayer.
– Para combinar com sua vida sexual inexistente – zombou Devon, o babaca.
Novamente, pessoas riram, o que me fez indagar se o que estava vendo no espelho não era mesmo um grupo de demônios, afinal de contas.
– Acalmem-se, crianças – disse Thayer. – Que tal a gente parar de tentar ver nossas vidas passadas e invocar espíritos de verdade?
– Tipo nossos tataravôs? – alguém perguntou.
– Tipo as pessoas que moravam nesta casa – respondeu Thayer.
– Achei que ela fosse abandonada – provocou Devon.
– Alguém teve que morar nela pra poder abandoná-la, otário. – Thayer se inclinou para a frente e, embora tenha sido um gesto sutil, incitou todos a se calarem e a também se inclinarem. – Um casal morava aqui, Frank e Greta. Completamente hipsters… Queijo de castanha vegano, roupas horríveis, nesse nível. Tudo ia bem na Hipsterlândia até que Greta começou a escutar um zumbido.
– Zumbido? – perguntaram.
– O barulho que a mosca faz no seu ouvido, sabe? Acontecia só de vez em quando, como se um inseto às vezes ficasse preso na janela da cozinha e não conseguisse sair. Mas foi se tornando mais constante. Persistente. Greta notou que o barulho era mais alto quando Frank estava em casa. Sempre que os dois estavam juntos, ela escutava o zumbido. Perguntou pra ele se estava fazendo o barulho de propósito, e Frank respondeu que não tinha escutado nada fora do comum. Greta continuou escutando o som até que o zumbido se tornou insuportável. Ela não aguentou e implorou que ele parasse de fazer o barulho, mas Frank olhou bem nos olhos da mulher e disse que não tinha ideia do que ela estava falando.
"Greta não acreditou. O zumbido era perceptível demais. Não tinha como ele não ouvir. Em sua piração, Greta passou a acreditar não apenas que o marido estava mentindo sobre o barulho, mas que ele era o barulho. Ficou convencida de que a pele de Frank era na verdade um traje e que por baixo havia milhões de moscas zunindo e se preparando para pegá-la."
Houve quem (Devon) soltasse uma risadinha debochada, mas todos aguardaram atentamente a continuação da história. Eu também me inclinei para a frente, igualmente ávida para que Thayer continuasse.
– Frank tentou conversar com ela, claro, mas Greta não conseguia nem ficar perto dele por causa do zumbido. Às vezes, quando ele tomava o café da manhã, ela via uma mosca caminhando no lóbulo da orelha dele sem que o marido desse a mínima. E ela não conseguia pegar no sono à noite porque ele dormia de boca aberta, e, sempre que fechava os olhos, Greta imaginava as moscas saindo dali.
Thayer abriu a boca até o maxilar se esticar ao máximo. Nenhum enxame de moscas escapou, obviamente, mas ele manteve a pose enquanto nos fitava um a um. Saundra se contorceu desconfortavelmente ao meu lado. Quando a boca de Thayer se fechou com um estalo, alguns se sobressaltaram.
– Greta não suportou – continuou. – Um dia, ela simplesmente pegou o cutelo e o meteu no pescoço de Frank.
Saundra dramaticamente suprimiu um grito.
– Ela fez isso porque queria soltar as moscas, mas acabou matando Frank. Ao se dar conta de que não existia mosca nenhuma, Greta se matou. E a pior parte da história é que Frank e Greta eram – Thayer arregalou os olhos e reduziu a voz a um sussurro – republicanos de carteirinha.
Eu ri pelo nariz, mas fui a única. Ninguém mais viu graça.
– Tá, o final foi uma piada, mas o restante é totalmente verídico! – Thayer continuou: – Demorou uma semana para os cadáveres serem descobertos. Os vizinhos não paravam de ouvir um zumbido, que ficava cada vez mais alto, até que um deles finalmente decidiu chamar a polícia. Quando os policiais arrombaram a porta, o que encontraram? – Pausa dramática. – Moscas. Centenas de milhares, rastejando pela casa inteira… e pelos corpos.
– Você é muito mentiroso – falou uma garota, enquanto o garoto a seu lado estremecia, dando uns tapas na própria nuca.
– Tá, e agora a gente vai, tipo, tentar se comunicar com as pessoas que morreram aqui? – perguntou Lux. – A gente não precisa de um tabuleiro de Ouija ou algo assim?
Outra garota, Sienna Qualquer Coisa, pigarreou.
– Já participei de outras sessões espíritas, sei como fazer. – Teatralmente, ela empertigou a coluna e tomou a mão de cada uma das pessoas a seu lado.
Eu não sabia se devia ficar impressionada ou preocupada com o sessões
, no plural. Mas não tive muito tempo para pensar sobre isso, porque a garota ao lado agarrou a minha mão.
– E agora? – desafiou Thayer, divertindo-se. – O que a gente faz?
– A gente tem que se concentrar no nada, mas manter a mente e o espírito abertos para todas as possibilidades que o Universo tem a nos oferecer – explicou Sienna, tal qual um guru do YouTube. Ela ergueu o rosto para o lustre quebrado no centro do teto e inspirou o ar profundamente. – Greta, nos colocamos diante de você com os corações cheios de amor e preocupação. Sua morte foi prematura e, tipo, totalmente brutal e tal, uma merda mesmo. E a gente tá ligado que teve a pequena questão envolvendo o Frank, enfim, mas eu sou totalmente a favor de sempre dar o benefício da dúvida pra mulher, e sei que ele estava fazendo o zumbido pra mexer com a sua cabeça. Estamos aqui por você, amamos você. Se estiver escutando, nos dê um sinal.
Minha mente e meu espírito até estavam abertos, mas entre minhas sobrancelhas se formou um vinco profundo. O único fato que eu sabia sobre Greta é que ela era uma personagem cem por cento fictícia pertencente a uma história fictícia, entretanto esse detalhe parecia não importar para ninguém além de mim.
O restante da roda cerrou os olhos; os únicos sons agora provinham do esforço contido das pessoas para se manterem imóveis ou prenderem a respiração. Nenhum sinal de Greta. Ainda assim, aguardamos por um tempo que me pareceu exageradamente longo. Considerei sair de fininho, porém não queria ser acusada de quebrar o encanto. Certamente não era o tipo de atitude que Saundra tinha em mente quando me falara sobre encontrar minha tribo. Por sorte não precisei tomar atitude nenhuma, pois alguém se pronunciou:
– Gente, tá na cara que isso…
Foi interrompido por um baque vindo do teto, e todas as cabeças imediatamente se viraram na direção do barulho, alto e reverberante, a ponto de fazer retinir os cristais do lustre, como se estivéssemos numa varanda em meio à brisa do mar, e não dentro de uma casa abandonada em Williamsburg.
– Tem alguém lá em cima? – sussurrou uma voz.
– É a Greeeeetaaaaa – disse Thayer de um jeito bem macabro.
– Greta, é você? – perguntou Sienna. – Dê uma batida para sim e duas para não.
Todos aguçamos o ouvido para possíveis sons. Após alguns instantes, uma batida.
– Greta – continuou Sienna. – Você está bem?
Outra espera, outro baque. E então, para fazer o sorriso se apagar do rosto de Sienna, o baque derradeiro. Duas batidas.
– Ela não está bem – murmurou Saundra.
Sob um silêncio perturbador,