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Enquanto Paris dormia
Enquanto Paris dormia
Enquanto Paris dormia
E-book542 páginas14 horas

Enquanto Paris dormia

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Sobre este e-book

Neste romance sensível e potente, sucesso de vendas no mundo, uma mulher deve tomar a decisão mais difícil de sua vida nesta história de resistência e de fé durante um dos momentos mais tristes do século XX.
Santa Cruz, 1953. Jean-Luc foge de seu passado. A cicatriz em seu rosto foi um tributo mínimo face ter sobrevivido os horrores da ocupação nazista na França. Sua vida com a família na Califórnia finalmente é o que ele sonhou – até que o passado bate à porta.
Paris, 1944. Uma jovem judia tem seu passado estraçalhado e seu futuro ameaçado em um piscar de olhos. Em desespero após ser forçada para dentro de um trem em direção a Auschwitz, ela confia seu bem mais precioso a um completo estranho. Só lhe resta a esperança.
Em uma plataforma mal iluminada, dois destinos se entrelaçam, e as escolhas futuras dessas personagens podem mudar o futuro de maneiras inimagináveis.
Contada por diferentes perspectivas, Enquanto Paris dormia é uma história sobre amor incondicional, sobre resiliência e sobre manter a coragem mesmo quando tudo parece perdido.
IdiomaPortuguês
EditoraPlaneta
Data de lançamento24 de fev. de 2023
ISBN9788542220773
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    Pré-visualização do livro

    Enquanto Paris dormia - Ruth Druart

    Santa Cruz, 24 de junho de 1953

    JEAN-LUC

    JEAN-LUC LEVA A NAVALHA AO ROSTO, OBSERVANDO O PRÓPRIO REFLEXO NO ESPELHO do banheiro. Por uma fração de segundo, não se reconhece. Faz uma pausa, com a navalha a meio caminho, e encara-se, perguntando-se o que está havendo. Há agora nele algo de americano. Está ali, em seu saudável bronzeado, nos dentes brancos, e em mais alguma coisa que não consegue identificar com precisão. Será a maneira confiante com que ergue o queixo? Ou o sorriso? Seja o que for, isso o agrada. Ser americano é bom.

    Volta ao quarto com uma toalha ao redor da cintura. Uma forma escura lá fora prende sua atenção. Pela janela, vê um Chrysler preto subir a rua a passo de tartaruga e parar junto ao carvalho em frente da casa. Estranho. Quem poderá ser, às sete da manhã? Olha para o carro, distraído, e então o cheiro amanteigado dos crepes quentes vindo lá de baixo o chama para o café da manhã.

    Entra na cozinha, beija Charlotte na face e despenteia os cabelos do filho numa forma de saudação matinal. Olha pela janela e vê que o carro ainda está lá. Um homem alto e esguio sai do lugar do motorista, estica o pescoço e olha ao redor – como um pelicano, pensa Jean-Luc. Do outro lado aparece um homem grande e corpulento. Ambos se dirigem à casa.

    A campainha da porta corta a manhã como uma faca. Charlotte ergue os olhos.

    — Eu vou — diz Jean-Luc, já a caminho. Tira a corrente do encaixe e abre a porta.

    — Senhor Bow-Champ? — diz o homem-pelicano, sem sorrir.

    Jean-Luc olha para ele, observa o terno azul-escuro, a camisa branca e a gravata lisa, a expressão arrogante dos olhos. Geralmente deixa passar o fato de as pessoas pronunciarem de forma errada o seu nome, mas esta manhã alguma coisa fere seu orgulho. Talvez seja o homem que está de pé diante dele, em sua porta.

    — Beauchamp — corrige. — É francês.

    — Eu sei que é francês, mas estamos nos Estados Unidos. — O homem-pelicano semicerra, quase imperceptivelmente, os olhos enquanto avança um sapato preto lustroso pela entrada da porta. Espreita por cima do ombro de Jean-Luc, e então o seu pescoço estala quando vira a cabeça para um lado, olhando para a garagem onde o novo Nash 600 da família está estacionado. Seu lábio superior se curva em um sorrisinho de lado.

    — Sou o senhor Jackson e este é o senhor Bradley. Senhor Bow-Champ, gostaríamos de lhe fazer umas perguntas.

    — A respeito de quê? — Jean-Luc acrescenta inflexão para mostrar a sua surpresa, mas a voz soa falsa aos seus ouvidos: uma oitava acima.

    Os sons abafados do café da manhã chegam até ali vindos da cozinha: pratos sendo empilhados, o riso curto do filho. Esses ruídos familiares ecoam à sua volta como um sonho distante. Fecha os olhos, tentando agarrar as extremidades que vão desaparecendo. O grasnar de uma gaivota chama-o de volta ao presente. Seu coração bate depressa contra as costelas, como uma ave aprisionada.

    O homem grande e corpulento, Bradley, inclina-se para a frente e baixa a voz.

    — Há seis semanas, o senhor foi levado para o County Hospital em consequência de um acidente de carro?

    Ele estica o pescoço, como se esperasse conseguir informações sobre a vida dentro daquela casa.

    — Sim. — Os batimentos de Jean-Luc são cada vez mais rápidos. — Fui atropelado por um carro que dobrou a esquina muito depressa. — Faz uma pausa, inspira. — Perdi os sentidos.

    O nome do médico, Wiesmann, surge em sua mente. Fez-lhe uma série de perguntas enquanto ele ainda recuperava a consciência, meio zonzo: Há quanto tempo está nos Estados Unidos? Onde arranjou essa cicatriz no rosto? Você nasceu só com o polegar e mais um dedo na mão esquerda?.

    Bradley tosse.

    — Senhor Bow-Champ, gostaria que nos acompanhasse até a prefeitura.

    — Mas por quê?

    A voz saiu como um grasnido.

    Os dois homens estavam à sua frente como uma barreira, as mãos atrás das costas, os peitos projetados para a frente.

    — Pensamos que seria melhor discutir esse assunto na prefeitura em vez de aqui na sua porta, diante dos seus vizinhos.

    A ameaça velada aperta o nó formado em seu estômago.

    — Mas o que eu fiz?

    Bradley aperta os lábios.

    — Trata-se apenas de um inquérito preliminar. Podíamos pedir a ajuda da polícia, mas nesta fase inicial preferimos… preferimos esclarecer bem os fatos. Tenho certeza de que compreende.

    Não, não compreendo, ele quer gritar. Não sei do que estão falando.

    Em vez disso, murmura:

    — Preciso de dez minutos.

    Fecha a porta na cara deles e volta à cozinha.

    Charlotte está colocando um crepe no prato.

    — Era o correio? — ela pergunta, sem erguer os olhos.

    — Não.

    Ela se volta, uma pequena ruga surge em sua testa, os olhos castanhos o questionam.

    — Dois investigadores… Querem que eu vá com eles para responder a umas perguntas.

    — A respeito do acidente?

    Ele balança a cabeça.

    — Não sei. Não sei o que querem. Não quiseram dizer.

    — Não quiseram dizer? Mas eles têm de dizer. Não podem exigir que vá com eles se não explicarem o motivo.

    A cor se esvaiu de seu rosto.

    — Não se preocupe, Charlotte. Acho que é melhor fazer o que eles dizem. Esclarecer o que for. São só umas perguntas.

    O filho parou de mastigar e está olhando para eles, de testa franzida.

    — Tenho certeza de que não vou demorar. — A voz soou falsa, como se outra pessoa tivesse dito aquelas palavras de conforto. — Você se importa de ligar para o escritório? Diga que vou chegar atrasado. — Volta-se para o filho. — Tenha um bom dia na escola.

    Tudo ficou em silêncio, como a calmaria antes da tempestade. Jean-Luc gira sobre os calcanhares e sai da cozinha. Precisa agir como se tudo aquilo fosse normal. É uma mera formalidade. O que eles podem querer?

    Dez minutos. Não quer que voltem a tocar a campainha, de modo que se apressa em direção ao quarto, abre a gaveta do guarda-roupa, olha para as gravatas enroladas como serpentes. Escolhe uma azul com bolinhas cinzentas. A aparência é importante numa situação como esta. Tira o casaco do cabide e torna a descer a escada.

    Charlotte o espera na porta da cozinha, com a mão sobre a boca. Ele a toca, beija seus lábios frios e a encara. Então se vira.

    — Tchau, filho — grita para a cozinha.

    — Tchau, papai. Até logo.

    See you later, alligator.

    Sua voz falha, erra a nota mais uma vez.

    Ele sente os olhos de Charlotte em suas costas enquanto abre a porta da rua e segue os dois homens até o Chrysler preto. Inspira fundo, forçando o ar até o fundo do abdômen. Lembra-se da tempestade que caiu durante a noite; sente a terra espessa de água que começa a evaporar. Em breve o ar estará úmido e quente.

    Ninguém fala enquanto passam em frente às residências, com grandes gramados que se estendem até a calçada, e pela papelaria, a padaria, a sorveteria. Em frente àquela vida que ele aprendeu a amar.

    Santa Cruz, 24 de junho de 1953

    CHARLOTTE

    ESTOU OLHANDO PELA JANELA DA COZINHA, APESAR DE O CARRO PRETO TER DESA-parecido há vários minutos. O tempo parece ter congelado. Não quero que volte a avançar.

    — Mamãe, estou sentindo cheiro de queimado.

    Merde! — Pego a frigideira que está no fogão e atiro o crepe esturricado na pia. A fumaça faz meus olhos lacrimejarem. — Vou fazer outro pra você.

    — Não, obrigado, mamãe, estou satisfeito.

    Sam pula do banco e sai da cozinha correndo.

    Enquanto olho ao redor, os restos do café da manhã interrompido me enchem de pânico. Mas tenho de me recompor. Subo a escada devagar, entro no banheiro. Jogo água fria no rosto, visto o mesmo vestido que usei ontem e torno a descer.

    A caminho da escola, Sam saltita a meu lado.

    — Mamãe, o que acha que aqueles homens vão perguntar ao papai?

    — Não sei, Sam.

    — O que pode ser, mamãe?

    — Não sei.

    — Talvez seja sobre um assalto.

    — O quê?

    — Ou um assassinato!

    — Sam, fica quietinho.

    No mesmo instante, ele para de pular e começa a arrastar os pés. Sinto uma pontada de culpa, mas tenho coisas mais importantes com que me preocupar.

    Quando chegamos ao portão da escola, as outras mães já estão voltando para casa.

    — Olá, Charlie! Está atrasada hoje. Vai aparecer para o café mais tarde? — pergunta Marge, do meio do grupo.

    — Claro — minto.

    Depois de deixar Sam, fico perto do portão para dar tempo às outras de seguirem em frente. Quando vejo que já se afastaram o suficiente, volto para casa devagar, a solidão ameaçando me engolir. Estou meio tentada a me juntar a elas para o café, mas sei que não vou conseguir me impedir de deixar escapar alguma coisa. É possível que ninguém tenha visto o carro que veio buscar Jean-Luc esta manhã, mas se alguém viu, teria de ter uma história preparada. Elas iam querer saber todos os detalhes. Sim, é melhor evitar qualquer contato.

    Em casa, vou de cômodo em cômodo, começo a sacudir as almofadas do sofá, lavo a louça do café da manhã, rearrumo as revistas na mesa de centro. Digo a mim mesma que não vale a pena me preocupar, que não vai ajudar ninguém; afinal, só o levaram para lhe fazer umas perguntas. Devia me dedicar a alguma coisa prática, para manter a mente ocupada. Podia aparar a grama, poupar esse trabalho a Jean-Luc.

    Calço os sapatos de jardinagem e arrasto o cortador de grama para fora da garagem. Vi Jean-Luc puxar a corda na lateral para fazê-lo funcionar, então faço o mesmo. Não acontece nada. Volto a puxar; lá dentro alguma coisa engasga, mas morre em seguida. Agora puxo com mais força e mais rápido. De repente, começa a zumbir e a se afastar, me puxando com ele. Fede a gasolina, mas eu até gosto do cheiro.

    O ritmo é tranquilo, e fico desapontada pelo trabalho acabar muito depressa. Guardo o cortador de grama na garagem e volto para casa.

    Talvez a sala esteja precisando de uma limpeza. Tiro o aspirador de pó debaixo da escada e lembro-me de que o usei ontem. Derrotada, deixo-me cair no chão, ainda segurando o grosso tubo do aspirador.

    O passado retorna. Jean-Luc nunca me deixa falar a respeito. De maneira pragmática, disse que o deixasse para trás, onde é o seu lugar. Como se fosse assim tão simples. Tentei, tentei de verdade, mas não posso controlar os meus sonhos quando estou dormindo, e é então que vejo a minha mãe, o meu pai. A minha casa. Esses sonhos me deixam com uma saudade da minha família que lança uma longa sombra sobre mim. Tenho estado em contato com eles; escrevi-lhes quando nos instalamos aqui e encontramos um lugar para viver. Mamãe respondeu; uma carta curta, seca, dizendo que o papai não estava pronto para me ver. Tinha ainda umas coisas a perdoar.

    Volto à cozinha e olho pela janela, desejando que Jean-Luc volte logo. Livre do interrogatório, de suspeitas infundadas. Mas há só a rua deserta.

    O som distante do motor de um carro deixa minha pulsação acelerada. Inclinando-me para a frente, quase tocando o nariz na janela, espreito para fora. Por favor, Deus, que seja ele. O coração se afunda em meu peito quando vejo um familiar capô azul virar a esquina: é Marge, do outro lado da rua. Vejo-a se debater com as sacolas de compras enquanto os dois gêmeos correm atrás um do outro em volta do carro. Ela olha na minha direção. Recuo apressada para a proteção das cortinas de renda. Segredos e mentiras. O que é que alguém sabe de verdade a respeito da vida dos vizinhos?

    Hoje não tenho vontade de me encontrar com quem quer que seja. Se alguém viu o carro preto, a essa hora todas as mães já sabem. Posso imaginá-las tecendo hipóteses, excitadas. Não, preciso sair daqui, ficar longe. Podia fazer compras em outra cidade, onde não esbarre com ninguém; um lugar espaçoso e anônimo, como um desses grandes supermercados.

    Pego minha bolsa, tiro as chaves do gancho junto à porta da frente e entro no carro antes que alguém possa me ver. Dirijo ao longo da estrada costeira, com o vento balançando meus cabelos. Adoro dirigir em alta velocidade; me dá uma sensação de liberdade e independência. Posso fingir ser quem eu quiser.

    Depois de meia hora, vejo a placa indicando uma Lucky Store. Viro à esquerda na estrada e sigo as indicações até ver um estacionamento lotado de vans. Há uma lanchonete e um carrossel. Sam adoraria isso; talvez possamos trazê-lo para cá num sábado, passar um dia. Em geral, evito esses grandes supermercados. Prefiro o comércio local, onde posso pedir ao dono da mercearia as maçãs mais frescas, ou ao açougueiro a carne menos gorda. Arranjam sempre tempo para escolher os melhores produtos para mim, por verem que sei apreciá-los.

    Não me sinto à vontade nesse enorme supermercado, com as suas intermináveis filas de produtos habilmente expostos. Donas de casa de saias longas, saltos altos e cabelos ondulados empurram grandes carrinhos abarrotados de embalagens plásticas e latas. Isso me enche de nostalgia, de saudades de casa, de Paris.

    Frango, digo a mim mesma o que vou cozinhar essa noite: frango com limão. O prato preferido do Jean-Luc.

    Duas embalagens de peito de frango, uma caixa de leite e quatro limões estão perdidos no fundo do carrinho quando chego ao caixa. Sinto-me envergonhada, mas não consegui me concentrar no que mais íamos precisar para a semana.

    A caixa do supermercado me lança um olhar estranho.

    — Precisa de ajuda para empacotar os produtos?

    Ela está sendo sarcástica? Balanço a cabeça.

    — Não, obrigada. Acho que consigo sozinha.

    Meu estômago ronca enquanto ponho o solitário saco de papel pardo no porta-malas. Não tomei o café da manhã. Talvez devesse comer um hambúrguer, mas só de pensar fico com o estômago embrulhado. Dirijo até em casa, rezando para que Jean-Luc já tenha voltado.

    Estaciono o carro e corro para a porta da frente. Está trancada. Ele não pode estar em casa. Por que pensei que estaria? Teria ido direto para o escritório, de qualquer modo. Sei que estaria preocupado por estar atrasado.

    São três da tarde. Tenho de ir buscar Sam na escola daqui a meia hora. Talvez hoje seja melhor chegar mais tarde do que mais cedo. Mais cedo significa que vou ter de conversar com as outras mães. Ele poderia vir para casa sozinho – há várias crianças que fazem isso –, mas eu adoro ir buscá-lo; é o meu momento preferido do dia. Quando eu era menina, em Paris, todas as mães iam buscar os filhos, preparadas com uma baguete recheada de tabletes de chocolate amargo. É como se fosse uma tradição familiar estar ali à espera dele no fim do dia. Mas hoje, pela primeira vez, vou chegar cinco minutos atrasada. O que me deixa com vinte e cinco minutos para matar.

    Coloco o frango na geladeira e lavo as mãos, esfrego as unhas com a velha escova de dentes que está no parapeito da janela. A voz do meu pai ecoa em minha cabeça. Unhas limpas são sinal de alguém que sabe cuidar de si, dizia sempre que me apanhava com as unhas sujas. Como os sapatos, acrescentava com frequência. Pode-se saber muito a respeito de uma pessoa olhando para suas unhas e seus sapatos.

    Não nos Estados Unidos, eu lhe diria agora, se o visse. Nos Estados Unidos olham para os cabelos e os dentes.

    Quando coloco a escova de dentes no lugar, espio pela janela, tentando não alimentar grandes esperanças. A rua continua deserta. O meu estômago volta a protestar. Sinto-me um pouco zonza. Devia comer alguma coisa doce. Tiro a lata da prateleira de cima do armário, embrulho um biscoito em papel-alumínio para Sam e quebro ao meio outro para mim. Dou uma pequena mordida, com receio de que me provoque dor de estômago, mas eu me sinto melhor, então como também a outra metade.

    Faltam vinte minutos. Vou até o quarto, no andar superior, e sento-me diante da penteadeira. Tiro a escova de cabelos de cerdas naturais da gaveta de cima e escovo o cabelo até ficar brilhante. O espelho me diz que ainda sou atraente: nem uma ruga, nem um cabelo grisalho, nem pele flácida debaixo do queixo. No exterior, tudo está em ordem. É meu coração que se sente como se tivesse cem anos.

    Levanto-me e aliso a colcha, feita pelos amish da Pensilvânia; centenas de pequenos hexágonos perfeitos costurados uns aos outros à mão. Nossas primeiras férias juntos. Sam tinha acabado de aprender a andar, mas os seus passos eram ainda muito trôpegos e ele caía com frequência. Lembro-me de andar à sua frente, pronta para pegá-lo.

    Faltam agora dez minutos. Desço mais uma vez até o térreo e perambulo pelos cômodos. Por fim, abro a porta da rua. A luz ofuscante do sol bate em meu rosto e volto para buscar o chapéu. Enquanto desço o caminho do jardim, eu me pergunto, não pela primeira vez, por que os americanos gostam de deixar os seus jardins abertos, sem sebes ou muros de tijolos. Qualquer pessoa pode entrar, chegar até a casa e espreitar pelas janelas. É tão diferente dos jardins franceses, sempre cercados por altos muros ou densas sebes para desencorajar os visitantes que não foram convidados.

    Jean-Luc adora a receptividade daqui. Diz que o que aconteceu na França nunca poderia ter acontecido nos Estados Unidos, porque as pessoas são todas francas umas com as outras; ninguém denunciaria um vizinho para depois ir se esconder atrás da porta enquanto ele era levado. Não gosto quando ele diz essas coisas, idealizando seu novo país. Não consigo parar de pensar que é uma deslealdade para com a França. Anos de fome, medo, privação – essas coisas podem transformar uma pessoa boa numa pessoa má.

    — Charlie! — Marge me chama do jardim em frente, interrompendo os meus pensamentos. — Onde você estava? Fomos tomar café na casa de Jenny. Pensamos que ia aparecer.

    — Desculpa. — O coração tem um descompasso, e eu tapo a boca com as costas da mão para esconder a mentira. — Precisava comprar uma coisa, então fui à Lucky Store.

    — O quê? Foi tão longe? Pensei que detestasse aqueles grandes centros comerciais. Podia ter falado. Eu iria com você.

    — Desculpa não ter ido ao café.

    — Não se preocupe. Vamos nos reunir na casa da Jo na sexta-feira. Escuta, preciso pedir um favor. Você se importa de pegar o Jimmy na escola? Tenho de levar Noah ao médico. Está com febre e não consigo baixá-la.

    — Claro que não.

    Tento sorrir, mas sinto-me uma traidora com essas vizinhas, que conheço há anos.

    — Obrigada, Charlie — diz ela, e dá um grande sorriso.

    A caminho da escola, recordo como os vizinhos nos fizeram sentir bem-vindos logo no dia em que chegamos a Santa Cruz, há nove anos. Passada uma semana, tínhamos sido convidados não para um aperitivo, mas para um churrasco. A maneira como todos se reuniram para a ocasião me deixou emocionada, com suas vozes altas e alegres proclamando como estavam felizes por conhecerem a nova família. Mal passamos pelo portão, alguém colocou uma grande caneca de cerveja na mão de Jean-Luc e um copo de vinho branco na minha. Sam foi mimado por todo mundo, e arranjaram um lugar à sombra debaixo de uma árvore para ele se sentar em sua manta de bebê, rodeado por brinquedos coloridos. Parecia não haver uma estrutura formal em tudo aquilo, pelo menos que eu visse. Era desorganizado, solto, e logo que um pedaço de carne ficava pronto, os convidados se aglomeravam ao redor da grelha. Fiquei grata quando um homem me ofereceu um prato já com comida. Cada um se sentava onde queria, puxando cadeiras de madeira para se juntar aos grupos.

    Era tudo tão diferente de Paris. Nas raras ocasiões em que recebiam convidados, meus pais planejavam os lugares para o jantar. Os convidados esperavam pacientes e silenciosos que meu pai lhes indicasse onde se sentariam. E ninguém tinha direito a uma bebida enquanto todos não tivessem chegado. Mamãe se queixava muitas vezes de fulano ou sicrano estar atrasado e obrigar todos a esperarem uma hora pela primeira bebida. Bem, a guerra tinha acabado com aqueles jantares, de qualquer forma.

    Aqui, parecia não haver regras. As mulheres conversavam livremente comigo, espalhando o som de suas risadas; os homens brincavam, diziam que o meu sotaque era muito sexy. Eu estava encantada, e Jean-Luc ainda mais. Apaixonou-se pelos Estados Unidos logo no primeiro dia. Se alguma vez teve saudades de casa, nunca falava disso. Para ele, era tudo maravilhoso e formidável: a abundância de comida, a simpatia das pessoas, a facilidade com que era possível comprar fosse o que fosse. Este é o sonho americano, estava sempre me dizendo. Temos de aprender a falar inglês com perfeição. Vai ser mais fácil para Samuel, será a sua primeira língua; ele poderá nos ajudar.

    Não tardou para que Samuel passasse a ser Sam; Jean-Luc, John; e eu, Charlie. Tínhamos sido americanizados. Jean-Luc dizia que isso significava que tínhamos sido aceitos e que, como agradecimento pelas calorosas boas-vindas que nos foram dispensadas, devíamos evitar falar francês. Dizia que falarmos francês daria a impressão de que não queríamos nos misturar. Por isso só falávamos inglês, mesmo entre nós. Eu compreendia o ponto de vista dele, claro, embora me partisse o coração não poder cantar para Sam as canções de ninar que a minha mãe costumava cantar para mim. Isso me distanciava ainda mais da minha família, da minha cultura, e alterava a nossa maneira de se comunicar, a nossa maneira de ser. Continuava a amar Jean-Luc com todo o meu coração, mas era diferente. Ele já não me sussurrava ao ouvido mon coeur, mon ange, mon trésor. Agora era darling, honey ou, pior ainda, baby.

    O sinal soa do outro lado do parquinho deserto e interrompe os meus pensamentos. As crianças passam agitadas pela porta, como um enxame de abelhas zumbindo de um lado para o outro à procura das mães. Sam é fácil de reconhecer, com os seus cabelos escuros e brilhantes no meio do mar de cabeças louras. A pele cor de azeitona e as feições delicadas traem sua origem diferente. Uma vizinha me disse certa vez que aqueles longos cílios eram um desperdício num rapaz. Como se a beleza pudesse ser um desperdício em quem quer que fosse. Que ideia estranha.

    Sam olha para mim e me dá um sorriso meio torto, igual ao de Jean-Luc. Está bem crescido agora, aos nove anos, para sair da escola correndo como costumava fazer, e termina a conversa com os amigos antes de se aproximar de mim, com um ar descontraído.

    Beijo-o nas duas bochechas, bem consciente de quanto isso o deixa envergonhado, mas não consigo evitar. Seja como for, um pouco de embaraço de vez em quando ajuda a formar o caráter.

    — Vá dizer a Jimmy que venha com a gente — digo a ele.

    — Legal! — Afasta-se correndo, mas de repente para, se vira e dá um passo em minha direção. — O papai já voltou?

    — Ainda não.

    Sem mais uma palavra, vai procurar Jimmy.

    Quando reaparecem, tiro da bolsa o biscoito de chocolate e o quebro ao meio. Jimmy devora a sua metade.

    — Há mais em casa — digo eu.

    — Que bom! — Jimmy corre à frente. — Anda, Sam!

    Mas Sam caminha ao meu lado.

    Jimmy continua correndo e desaparece do outro lado da esquina seguinte. Coloco a mão no ombro de Sam.

    — Não se preocupe, o papai não vai demorar a voltar para casa.

    — Mas o que aqueles homens queriam?

    — Falaremos mais tarde sobre isso, Sam.

    — Buu!

    É Jimmy, que aparece de repente.

    Meu coração pula, e eu grito…

    Jimmy ri descontrolado.

    — Desculpe — consegue dizer em meio às gargalhadas.

    Quando meu batimento cardíaco volta ao normal, finjo rir também, libertando a tensão do momento.

    Jimmy agarra o braço de Sam, e correm à frente.

    Quando chegamos em casa, coloco a lata de biscoitos na mesa da cozinha, diante dos meninos.

    — Podem comer à vontade.

    Jimmy olha para mim com olhos arregalados e sorri de orelha a orelha.

    — Uau, obrigado.

    Vê-los comer os biscoitos, saboreando uma coisa que fiz, me traz algum conforto.

    — São os melhores que eu comi até hoje, mamãe.

    Os cantos da boca de Sam estão cheios de migalhas. Jimmy balança a cabeça concordando, a boca cheia demais para dizer uma palavra.

    — Quer que eu faça alguns para a sua turma? — ofereço.

    — Não, obrigado. Só para nós — diz Sam, olhando para mim com olhos escuros e ciumentos.

    Quero estender os braços e apertá-lo contra o peito, dizer a ele que não precisa se preocupar. Que o meu amor por ele é mais profundo do que o oceano, e que vai durar para sempre. Em vez disso, começo a preparar o jantar. Ralo a casca dos limões, espremo-os e acrescento o suco à casca ralada. Corto os peitos de frango antes de mergulhá-los no molho. Não estou seguindo uma receita; é como a mamãe costumava fazer frango com limão para o almoço de domingo, antes da guerra.

    Santa Cruz, 24 de junho de 1953

    JEAN-LUC

    ELES PARAM EM FRENTE DA PREFEITURA. JACKSON DESLIGA O MOTOR E CONTINUA SENtado por um minuto, observando Jean-Luc pelo retrovisor. Então os dois homens descem do veículo e esperam que Jean-Luc faça o mesmo. Mas ele não tem pressa, está tentado a aguardar que um dos dois lhe abra a porta. Colocaria toda a situação sob uma nova perspectiva. Os detalhes contam. De repente, Bradley bate na janela com os dedos. O som é ríspido, gelando a boca do estômago. Mas por que está com tanto medo? É completamente irracional; não fez nada de errado. Inclina-se para a frente, puxa a maçaneta da porta e sai para o sol da manhã.

    Sobem os degraus em silêncio, entram pelas grandes portas duplas. Ainda é cedo, talvez seja por isso que não há ninguém por perto. Descem um lance de escada, percorrem um corredor mal iluminado e entram numa sala sem janelas. Bradley aciona um interruptor e uma lâmpada fluorescente zumbe e pisca no teto antes de encher a sala com uma luz branca intensa. Uma mesa com tampo de fórmica e três cadeiras de plástico com pernas metálicas constituem os únicos móveis ali.

    — É capaz de isso demorar algum tempo. — Jackson tira um maço de cigarros amassado do bolso do paletó e bate com ele no tampo da mesa. — Sente-se.

    Oferece o maço aberto a Bradley. Ambos acendem os cigarros, observando Jean-Luc.

    Jean-Luc senta-se, cruza os braços, volta a descruzá-los, tenta sorrir. Quer que aqueles homens compreendam que vai colaborar de boa vontade, que está disposto a dizer-lhes o que querem saber.

    Os dois homens continuam de pé, os rostos rígidos. A pele gordurosa de Bradley brilha sob a luz fluorescente do teto, que destaca as marcas deixadas pela varíola. Ele traga com força, enche os pulmões, e então exala devagar, deixando uma nuvem de fumaça a pairar por instantes no meio da sala.

    — Senhor Bow-Champ, onde arranjou essa cicatriz que tem no rosto? É muito característica.

    Jean-Luc lembra a si mesmo que, em situações como aquela, o aconselhável é não provocar, seja o que for. A passividade é a melhor resposta; não deve parecer tão defensivo. Não contrarie. Mantenha-se calmo. Ele sente uma gota de suor deslizar por suas costelas.

    — Foi durante a guerra — murmura.

    Bradley olha para Jackson, franzindo as sobrancelhas.

    — Onde? — pergunta Jackson.

    Jean-Luc hesita, perguntando-se se pode contar a história que tem usado até agora, aquela em que foi atingido por um estilhaço quando uma bomba caiu sobre Paris. O instinto lhe diz que não vai ajudá-lo dessa vez.

    Bradley inclina-se para a frente, olhando-o fixamente nos olhos.

    — O que fez durante a guerra?

    Jean-Luc o encara.

    — Trabalhava em Bobigny… a estação ferroviária.

    Bradley ergue uma espessa sobrancelha.

    — Drancy?

    Jean-Luc confirma com um aceno de cabeça.

    — O campo de concentração de Drancy?

    Volta a assentir. Tem a sensação de ter sido encurralado, forçado a concordar com os fatos. Mas os fatos não contam a história completa.

    — De onde milhares de judeus foram enviados para a morte em Auschwitz?

    — Eu só trabalhava nos trilhos.

    Ele mantém o contato visual, não quer ser o primeiro a desviar o olhar.

    — Para manter os trens funcionando com eficiência.

    — Estava fazendo apenas o meu trabalho.

    O rosto de Bradley torna-se mais brilhante e mais vermelho.

    — Apenas fazendo o seu trabalho? A velha desculpa. Estava lá, não estava? Ajudou e apoiou.

    — Não!

    — Drancy era um campo de transição, não era? E você ajudava-os a transferir os judeus para Auschwitz.

    — Não! Queria impedi-los! Até tentei sabotar a linha. Acabei no hospital por causa disso.

    — Mesmo? — O tom de Bradley foi irônico.

    — É verdade. Eu juro.

    Paris, 6 de março de 1944

    JEAN-LUC

    DEPOIS DE QUATRO ANOS, A OCUPAÇÃO TINHA-SE TORNADO UM MODO DE VIDA. ALGUNS tinham se adaptado melhor do que outros, mas Jean-Luc continuava a acordar todas as manhãs com o coração apertado. Naquela manhã, levantou-se da cama sem vontade para se apresentar ao serviço na estação de Saint-Lazare, mas o chefe não lhe entregou o saco de ferramentas como costumava fazer. Em vez disso, olhou para ele com uma expressão dura.

    — Hoje você tem de ir trabalhar em Bobigny.

    — Bobigny? — repetiu Jean-Luc.

    — Sim. — O chefe continuou a encará-lo. Ambos sabiam o que Bobigny representava.

    — Mas pensei que estivesse fechada.

    — Está fechada para trens de passageiros, mas aberta para outros usos.

    O chefe fez uma pausa, deixando as palavras se dispersarem.

    — Perto do campo de transição de Drancy?

    A voz saiu-lhe num grasnido, enquanto seu coração batia mais rápido e ele procurava uma maneira de se livrar daquilo.

    — Sim. Os trilhos precisam de trabalho de manutenção. Temos ordens para enviar seis homens. — Fez uma nova pausa. — Não arrume confusão quando estiver lá. Agora são os boches¹ que mandam. Evite que eles vejam a sua mão.

    Jean-Luc trabalhava para a companhia ferroviária nacional, a SNCF,² desde que saíra da escola seis anos antes, aos quinze. Mas, como todo o resto, as ferrovias pertenciam agora aos alemães. Ele desviou o olhar e enfiou a mão deformada no bolso. Quase nunca pensava nela; ter nascido com apenas o polegar na mão esquerda e mais um dedo nunca o detivera nem o impedira de fazer qualquer coisa.

    — Eles não gostam desse tipo de coisas. — Os olhos do chefe se suavizaram. — Você trabalha tão bem quanto qualquer outro, melhor até, mas os boches gostam de tudo… Bem, você sabe. Não quer que te enviem para um dos campos de trabalho deles.

    Jean-Luc tirou a mão do bolso e agarrou-a com a saudável, sentindo-se de repente constrangido.

    Seu pai tinha sido um bom amigo do supervisor, e esse contato o ajudara a conseguir o seu primeiro emprego, apesar da deficiência. Tivera de trabalhar mais do que todos os outros para provar o seu valor, mas os colegas e superiores não demoraram muito a perceber que aquela deformidade em nada prejudicava a sua destreza manual, que era capaz de segurar qualquer coisa entre o polegar e o outro dedo da mão esquerda, como uma pinça, e usar a mão boa para fazer o trabalho.

    — Tenho… tenho mesmo de ir? — perguntou, e voltou a colocar as mãos nos bolsos.

    O chefe limitou-se a franzir uma sobrancelha, e então deu meia-volta e se afastou. Jean-Luc não teve outro remédio senão segui-lo até o caminhão militar que o esperava. Apertaram as mãos um do outro com força antes de ele subir na traseira. Cinco outros homens já estavam lá; acenou-lhes com a cabeça, mas não falou nada.

    Enquanto percorriam as ruas desertas, os homens olharam ao redor, avaliando uns aos outros com expressões sombrias. Jean-Luc calculou que nenhum estava muito entusiasmado com a perspectiva de trabalhar tão perto do infame campo. Milhares de judeus, alguns comunistas e membros da Resistência tinham sido enviados para lá. Ninguém sabia o que lhes acontecera depois disso, apesar de haver rumores. Sempre havia rumores.

    Durante o trajeto por Paris e depois, no caminho em direção a Drancy, cruzaram de vez em quando com outros veículos militares. Jean-Luc viu o motorista francês saudá-los de passagem. Un collabo!³ Conseguia distingui-los à distância. Era um jogo que gostava de jogar consigo mesmo – adivinhar quem estava colaborando e quem não estava. Ainda que por vezes a linha fosse pouco nítida. Tinha amigos que conseguiam coisas no mercado ilegal. Mas quem geria o mercado ilegal? Normalmente, só os boches e os collabos tinham acesso a certos bens. Era uma área cinzenta, e ele preferia só aceitar algo quando sabia ao certo sua procedência – um coelho ou um pombo abatidos por um amigo, ou legumes de alguém que tinha contato com uma fazenda.

    Uma lombada na estrada o fez voltar ao presente. Quando olhou para os outros homens, só encontrou expressões vazias. Os dias da camaradagem fácil e aberta estavam longe. Os tempos da conversa descontraída de um grupo de rapazes a caminho de um novo trabalho estavam bem distantes. Um silêncio sombrio era tudo o que restava.

    Silêncio. Era de certa maneira uma arma, e era a única que Jean-Luc tinha à sua disposição. Recusava-se a falar com os boches, mesmo quando eles pareciam amigáveis e lhe pediam delicadamente instruções. Limitava-se a ignorá-los. Outra coisa que fazia era pegar seu bilhete do metrô e dobrá-lo em forma de V antes de deixá-lo cair no chão de um dos túneis. V de vitória. Pequenos gestos de desafio que eram tudo o que lhe restava, mas que não mudavam nada. Sentia-se desesperado para fazer mais.

    Quando os boches passaram a controlar a SNCF, ele fora muito claro com os pais.

    — Não vou trabalhar para esses filhos da mãe. Vou me demitir — dissera-lhes poucas semanas depois do início da ocupação.

    — Não pode fazer isso. — O pai pousara a mão firme em seu ombro; um sinal de que aquilo que ia dizer não era passível de discussão. — Eles arranjarão uma maneira qualquer de castigá-lo. Podem enviar você para lutar em algum lugar. Pelo menos agora está em Paris, e estamos juntos. Vamos esperar para ver como as coisas vão ficar.

    Papa. Sempre que pensava nele, Jean-Luc sentia uma mistura de vergonha e saudade. Tinha feito o que o pai lhe pedira, trabalhara para os boches, mas nunca se conformara, o que o levara a ressentir-se contra o pai por tê-lo obrigado a ceder. E, de fato, fora como ele imaginara que seria: a delicada simpatia e o profissionalismo inicial dos boches transformaram-se pouco a pouco em desdém e superioridade. O que se poderia esperar? Tinha ficado chocado com a ignorância e ingenuidade daqueles que diziam que talvez os boches não fossem assim tão maus.

    Então, no verão de 1942, os alemães fizeram uma coisa que não deixou mais dúvidas na mente de ninguém. Começaram a mobilizar os franceses para o Service du Travail Obligatoire – trabalhos forçados na Alemanha. O papa tinha sido um dos primeiros. Recebera os papéis numa semana, e na seguinte tinha partido. Não houvera tempo nem palavras para Jean-Luc lhe dizer que se arrependia do seu mau humor, e que o amava e respeitava. Ele não fora criado com o tipo de linguagem que fala dessas coisas.

    Ao olhar pela

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