Ivy Wufnick e o Sacrifício do Chamado
De Luana McCain
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Ivy Wufnick e o Sacrifício do Chamado - Luana McCain
Ivy Wufnick e o Sacrifício do
Chamado
Editora Appris Ltda.
1.ª Edição - Copyright© 2022 da autora
Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.
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Elaborado por: Josefina A. S. Guedes
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Curitiba/PR – CEP: 80810-002
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Printed in Brazil
Impresso no Brasil
Luana McCain
Ivy Wufnick e o Sacrifício do
Chamado
Dedico este livro a todos os zumbis que merecem pagar meia-entrada em eventos.
Sumário
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29
CAPÍTULO 30
CAPÍTULO 31
CAPÍTULO 32
CAPÍTULO 33
CAPÍTULO 34
CAPÍTULO 35
CAPÍTULO 36
CAPÍTULO 37
CAPÍTULO 38
CAPÍTULO 39
CAPÍTULO 40
CAPÍTULO 41
CAPÍTULO 42
CAPÍTULO 43
1
Naquela manhã, fiz minhas entregas seguindo o compasso da música Dancing Queen
, no meu walkman. Eu conheci essa música quando peguei Sara cantando na sala enquanto aspirava o sofá — não que eu menosprezasse o conhecimento musical dela, eu só não esperava que ela fosse me dizer: Ivy, você precisa ouvir essa música. Tá fazendo o maior sucesso entre os adolescentes.
Só se forem com os adolescentes do século passado, Sara.
Eram 6h20 quando eu entrei na minha última rua do dia. A minha própria rua. Enquanto a vizinhança ainda dormia, Sara estava espantando com a mangueira os malditos pássaros, que estavam sobre o telhado se amontoando. E sempre surgiam ao amanhecer. Esses malditos urubus eram uma ameaça para nós, mesmo que usássemos formol. Eles costumavam sentir nossa presença e já até nos atacaram, mas para nossa sorte nunca havia ninguém por perto. Itchicock, itchicock...
Parei em frente à minha casa e joguei um jornal próximo da porta.
— Precisa de ajuda?
— Não, querida.
— Então tá.
Tive uma pequena impressão de que a senhora Irma, da casa da frente, aquela humana fofoqueira que persiste em inventar histórias sobre a gente — não que a maior parte delas não fosse verdade, e isso feria o ego de Sara, que sempre queria passar a imagem positiva da nossa família —, estava nos espiando. Olhei para lá e peguei o exato momento em que a cortina da sala se mexeu.
Os gêmeos dos Olivetto, que moravam no fim da rua, não perdiam uma quando me viam: atiravam bolinhas molhadas de papel. Na maioria das vezes, acabavam grudando numa parte do meu corpo, mas, como uma humana normal que eu era obrigada a ser, ignorava as tentativas frustradas desses humanos de me irritar.
Exatamente naquele dia, estava fazendo dois meses que nos mudamos para este fim de mundo. Era mais uma cidadezinha de interior que morávamos. Eu me chamo Ivy Wufnick. Mas, pelas costas, os humanos me chamavam de outros nomes. Sou o tipo de pessoa que é alvo dessas brincadeirinhas, que não tenho vontade nenhuma de descrever. Minha vida, se posso chamar de vida, é como uma tragédia de Shakespeare — por isso que não me surpreendo quando me pego desejando que todo mundo morra no final. Não sou do tipo amigável. É por isso que Sara sempre reclama: Menina, se enturme mais. Precisa manter o contato humano. E um monte de blá-blá-blá, que só quem é filho, ainda mais adolescente, sabe. Como se os adultos pudessem nos entender.
Minhas manhãs eram muito corridas: às 5h15 tinha que estar no prédio do jornal. Eu era a entregadora de jornais, o alvo móvel dos cães da vizinhança. O jornal estava passando por problemas financeiros. Não precisava ser um especialista em economia para ver que em breve ele fecharia as portas. Ele era muito ruim, e, além disso, quase ninguém nesta cidade gastaria uma moeda sequer para ler notícias ultrapassadas. A situação deles era tão ruim que eu tinha que trazer a minha própria bicicleta. Com a grana que eu recebia do jornal, mal dava para pegar uma seminova. Eu era a única entregadora que se dobrava para entregar os jornais para uma cidadezinha inteira. Enquanto isso, o concorrente exibia seus vários entregadores e até lhes dava uma folga semanal! Tudo isso para uma cidadezinha
.
Acontecia o seguinte: o dinheiro que eu recebia entregava para os meus pais e não sabia qual destino eles davam para ele. O que um zumbi como eu faria com um pedaço de papel? O máximo que eu poderia fazer era enrolar a nota e enfiar no buraquinho que eu tinha na testa, e imitar um unicórnio. Essa era outra questão. Eu não faço a mínima ideia do porquê eu tinha um buraco no meio da testa. E, como resposta para esse questionamento, Sara lançou:
— É sua marca de nascença de zumbi.
Quem diabos teria um buraco no meio da testa como marca de nascença
? Conta outra.
Eu tinha que fazer tudo rápido, não apenas para entregar as notícias antes que a cidade acordasse, mas também porque às 7h em ponto precisava estar na escola. Ser pontual não era uma das minhas qualidades — não era raro levar longos sermões pelos meus atrasos. Para passar os vinte minutos pedalando do jornal até a escola, sempre colocava o fone no ouvido e lia mais um capítulo do livro O Médico e o Monstro. Ficava muito ansiosa para saber qual era o mistério que ligava o tímido Dr. Jekyll ao maligno Mr. Hyde. Sei que você deve achar essa proeza impossível de se realizar, mas para a Ivy aqui, não. Refiro-me a ler enquanto pedalo.
À tarde, eu costumava ficar com todo o trabalho de ajudar Sara com a casa, enquanto os garotos não faziam nada; uma vez por semana fazia um trabalho comunitário em um asilo. E foi ideia da Sara, com o pretexto de que ajudar os humanos vai me tornar um também. Que saco!
Estava parada em frente à porta de entrada do colégio — Opa! Cheguei no horário — pensando em como não cruzar com os humanos, principalmente com o Oliver. Ele não era como os outros humanos. Pelo menos, ele me falava um e aí
.
Aumentei os passos, antes que a porta fosse fechada na minha cara, e passei voando pelo corredor, até entrar na sala de aula. Como sempre, sentei na última carteira. Apoiei o cotovelo na mesa, meti o dedo no buraquinho e girava-o como se estivesse enterrando um dedo na areia. Eu usava uma franja para escondê-lo. Alguns humanos não paravam de olhar para mim e cochichar também. Mastigava repetidamente um chiclete para esconder a necessidade de me alimentar, como minha natureza manda. Estava falhando em enganar meus instintos com esses chicletes artificiais.
Saí da sala com um desejo enorme de atacar a cabeça de um humano. Não era fácil sufocar essa fome selvagem. Não tinha outra saída além dessa situação torturante em que me via confinada. Fui correndo ao banheiro porque eu já sentia a comida do intervalo saindo de lá. De qualquer jeito, tudo que ingerimos após meia hora saía da mesma forma que entrou. É por isso que precisávamos sempre estar perto de um banheiro. Por fim, aliviei-me e parei diante do espelho.
Quanto mais eu me encarava, mais eu me sentia possuída por alguma coisa — ou, na verdade, por um nada, pela ausência de qualquer coisa. Sei lá. Mas uma coisa era certa: meu instinto dizia que eu não devia temer. A minha verdadeira identidade não deveria ter nada a temer, e eu deveria abraçá-la; danem-se as consequências. Que venham os cérebros fresquinhos!
O ar do corredor que entrou quando a porta foi aberta não foi registrado pela minha pele, mas com ele veio uma humana. Ela me olhou e soltou um gritinho antes de se meter em uma das divisórias do banheiro.
— Você promete que não vai rir?
— Falou comigo?
— Por favor!
Não posso prometer nadinha.
Ela pôs a cabeça para fora.
— Vai me deixar aqui?
Eu estava com a mão na maçaneta.
— Não é da minha natureza ajudar humanos — e saí.
O sinal da última aula tocou. Decidi retornar ao banheiro. Queria ver se minha espinha cresceu. Nada a ver com a humana. Nem um pouquinho.
— Não estou nem aí para você, mas por educação vou ouvir o que tem a me dizer. Seja breve.
— Você voltou! Espera... Como sabia que eu ainda estava aqui?
— O que você quer?
A humana gaguejou ao falar.
— Me arruma um absorvente?
— Um… o quê?!
— Absorvente… Eu não posso sair assim!
— Eu não sei como arrumar essa coisa!
— Você não anda com um de reserva?
— Por que eu andaria?
— Você é menina! Não me diga que você ainda não…
— Agora me explica para que serve esse treco.
— Serve unicamente para — ela abriu a porta um tanto ruborizada e ficou de costas para mim; apontou para seu bundão e lá tinha uma mancha vermelha — que isso não aconteça.
Eu me agachei, encostei o dedo na mancha e fiquei me perguntando o que esse tal de absorvente tinha a ver com ela.
— Sabe, todos os meses, nós, garotas, ficamos ensopadas
.
— Ensopadas?
— Acho que você nem deve saber por que ainda não virou mocinha.
É o quê? Tudo o que eu imaginava saber sobre os humanos estava indo túmulo abaixo.
— Não vou poder te ajudar — eu parei os passos porque ela segurou no meu braço.
Ela não devia ter feito isso. Dei um giro na humana, colocando-a de cara na pia e pondo a sua mão sobre sua coluna.
— Uau, você manja de artes marciais!
Senti meu espírito se elevar, se eu realmente tivesse um. RÁ!
— Me chamo Carolina — ela me estendeu uma de suas mãos, mas ao perceber que eu não pretendia tocá-la, ficou sem jeito.
Essa garota era mais baixa que eu, cheinha dos lados, com sarda no rosto, cabelo ruivo cacheado e usava óculos quadrado que tomava quase seu rosto inteiro. Havia outro detalhezinho que não passou despercebido por mim: a manga esquerda estava vazia.
— Me arrume algo para usar sobre a mancha.
Tirei minha camiseta e dei para ela. Logo, a humana estava medindo-se da cintura para baixo no espelho.
— Serviu!
A humana me enviou um olhar interrogativo ao notar que…
— Esta camiseta que você me deu era a mesma que você tava usando...
— E daí?
— Mas você tá…
2
— ... nua! — disse o diretor.
— Relaxa. Tô vestida.
— Um top não é adequado para uma moça andar por aí, ainda mais em um ambiente respeitável, como nossa escola.
— A mãe já está aqui — disse a inspetora atrás de mim.
— Peça para entrar.
Sara entrou.
— Pode se sentar, por favor.
Sara sentou-se do meu lado.
— Peço desculpas.
— Senhora Wufnick, eu sugiro que vá atrás de um psicólogo.
— O que insinua?
— Não é normal que ela tenha esses acessos de nudismo em público. Isso é atentado ao pudor.
Sara e eu nos olhamos e somente ela se voltou para o humano.
— É a primeira ocorrência dela. Não poderia ser mais brando?
— Primeira? Ela já foi advertida outras vezes. Como quando mordeu a inspetora quando ela tentou pôr a camiseta na sua filha na aula de Educação Física. Ou quando ela ficou cheirando
a cabeça dos colegas.
— Como assim?
— Segundo sua filha, ela queria verificar a qualidade dos seus cérebros
.
Sara abafou uma risada.
— Sem falar nos atrasos, em não fazer a lição. E suas notas não estão nada boas.
— Sério?
Sara me enviou o olhar típico de mãe humana. Tô ferrada.
— Sabe — Sara viu o nome do diretor cravado numa placa sobre a mesa —, Senhor Asteroide, ela está na fase da adolescência
. Tadinha. Está tão confusa. O senhor mais que ninguém deve saber como é.
O diretor ergueu uma sobrancelha.
— Tudo bem. Espero que estejamos conversados — ele olhou diretamente para mim.
E o pior foi que Sara me fez pôr uma camiseta qualquer diante do diretor, e sua cara, essa merecia ser arrancada fora! Assim que saímos da diretoria, topamos com a humana que me meteu nessa, no corredor, próxima da porta. Enquanto andávamos, ela dizia:
— E aí? Levou suspensão? Foi mal por ter te metido nessa.
— Como assim? — disse Sara.
— É só ignorá-la.
— Olá — disse Sara, brecando os passos.
Aff. O que eu disse sobre ignorá-la?
A humana abriu um sorrisão.
— Me chamo Carolina — ela estendeu sua única mão e Sara devolveu o toque. A humana era tão babaca que nem reparou na gelidez do corpo da Sara. — Prazer em conhecer, senhora.
— Que garota mais simpática!
Não dá trela, Sara!
— Obrigada, mãe da Ivy.
— Eu não disse meu nome pra você.
— Foi a inspetora que me falou.
— Meu nome é...
— Sara. Agora que as duas já se conhecem, que tal — olhei para Sara — irmos pra casa?
— O que ela quis dizer com foi mal por ter te metido nessa
?
Eu apressei os passos e Sara tentava me acompanhar. Deixei a humana para trás.
— Ficar suspensa por um dia! O que deu em você?
— Relaxa, Sara. É só uma suspensão. Prometo que você nem me verá em casa.
— Ivy, seu pai e eu estamos cansados de falar que você deve se vestir como um humano, e se comportar como um!
— Ok.
— Até que não seria uma má ideia visitar um psicólogo.
— Nem a pau.
Assim que passamos pela porta de saída,