Perfume de sangue
De Flávio Ramos
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Perfume de sangue - Flávio Ramos
A quem morrer sabe, a morte. Nem é morte nem é mal
Alvarenga Peixoto em Sonho poético
•
Para meu pai, guerreiro, Altivo Assis Pereira, que viajou nas asas que Deus lhe deu
, no Dia de São Jorge, e que me ensinou que a vida não é uma ilusão de um romance, mas um desafio de conquistas que se resume a fazer o bem e colher o bem.
Agradeço à minha mãe, Ana Maria Ramos de Assis Pereira, bibliotecária, que me punia pelas travessuras me colocando de castigo com a obrigação de ler livros.
"Por falar ao Amor o entendimento,
ou sobrar-lhe crueldade, a minha pena
não se iguala à razão que me condena
ao gênero mais duro de tormento.
Mas sendo o Amor um deus, conhecimento
de tudo tem, e assim, verdade plena,
cruel não pode ser. Quem, pois, ordena
a dor atroz que sinto e em vão lamento?"
Miguel de Cervantes em Dom Quixote de la Mancha
PREFÁCIO
Como nos alertava o grande Guimarães Rosa as Minas são muitas
. Diversas também são as histórias desse nosso lugar e das personagens que participaram do cotidiano das Gerais.
Em um texto generoso e poético, Flávio Ramos convida o leitor a se deleitar em um romance onde os elementos ficcionais são atravessados pela História. Repleto de passagens poéticas e inspiradoras, a obra se debruça sobre dilemas cotidianos e atemporais. Os amores impossíveis, a rivalidade entre os donos do poder e os limites da liberdade estão presentes a cada virada de página. Conhecer as trajetórias de Joaquina Bernarda e Maria Tangará leva os interlocutores a uma constante reflexão acerca de toda complexidade da vida humana.
Bernarda, desde cedo tem os olhares voltados sobre si. Com o passar dos anos, a posição de privilégio e a ascensão social permitem que a menina de olhar meigo se transforme em uma mulher poderosa e decidida. Já Tangará, que jamais renunciou às suas raízes, após a vivência de um abandono amoroso tenta tomar sobre sua vida a postura de dona do seu destino e do seu corpo. No desenvolvimento da narrativa, as histórias das personagens se cruzam e fica claro ao leitor que a rivalidade feminina entre essas duas mulheres reflete mais suas semelhanças, do que suas diferenças.
A maior parte do romance se desenrola na Pitangui setecentista, cidade mineira próspera onde a riqueza advinda do minério reluzente de brilho dourado mantinha as extravagâncias da elite local. A prosperidade daquela sociedade, assim como acontecia no restante da colônia, era sustentada pelo trabalho forçado dos escravos, alocados na base da pirâmide social. Sob duros castigos e com pouquíssimo reconhecimento, a mão-de-obra dos africanos e seus descendentes esteve sempre coberta de sangue. Muita dor e sofrimento também recaiu sobre todas etnias indígenas originárias desta terra.
Em Perfume de Sangue, a dinâmica da convivência entre colonizadores, indígenas e africanos é o pano de fundo de um romance fugaz, porém intenso, entre Maria Tangará e uma das personagens mais controvérsias da história do Brasil: Joaquim José da Silva Xavier, nosso Tiradentes.
Tiradentes ficou conhecido por sua participação na conspiração de Vila Rica, a famosa Inconfidência Mineira. Depois de sua morte, apesar dos flagelos do corpo, que padeceu no cumprimento da pena, à sua memória não coube esquartejamento. Ainda que historiadores alertem hoje para o fato do alferes ter sido usado como bode expiatório do movimento emancipatório, é sabido que ali se encontrava uma notável figura defensora da liberdade. Sua imagem libertina foi elevada a mártir pelos republicanos, seu patriotismo foi celebrado por militares e sua rebeldia usada como símbolo por movimentos da esquerda.
Por ter sido considerado um traidor da Coroa, Tiradentes foi condenado, enforcado e esquartejado. A sentença determinou ainda que as partes do corpo fossem expostas em praça pública. Assim foi feito. Um grande mistério, todavia, cerca o acontecimento. A cabeça de Tiradentes foi roubada do alto da estaca onde fora colocada e seu paradeiro desconhecido ainda intriga os historiadores. Em Perfume de Sangue uma solução fictícia é dada ao enigma. Amor e vingança são elementos dessa saga.
Mas não só à Tangará o destino havia reservado um grande encontro. Devido à prosperidade de suas terras, Joaquina Bernarda consegue grande reconhecimento da Corte e é convidada a dividir um jantar com o então Imperador d. Pedro I. O encontro, que jamais aconteceu em vida real, é narrado tão esmiuçadamente, que por vezes nos esquecemos que esta é uma obra ficcional. A propósito, a pesquisa histórica realizada pelo autor, é de encher os olhos. São muito os dados oferecidos ao longo do livro, o que torna a experiência de leitura ainda mais instigante.
As descrições detalhadas do lugar e de suas paisagens, ora urbana, ora bucólica, nos levam a uma viagem no tempo e no espaço. Por diversos momentos, o leitor parece ser transportado e é possível sentir o clima do cenário de um Brasil ainda colonial. Até aquele momento visto como um outro Portugal
, já se ouviam por aqui diferentes vozes, libertárias que, em distintos volumes, clamavam seus espaços. Mulheres, intelectuais, esquecidos do ouro e escravos, cada um deles com sua estratégia, ansiavam quebrar as correntes que os aprisionavam.
Morte, sonho pela liberdade e paixões, do corpo e da alma, dão a tônica da bela obra de Flávio Ramos. Ao fim, somos conduzidos a examinar o peso das escolhas pessoais no desenrolar do que muitos costumam chamar de destino. Após essa leitura, fico com a impressão de que de fatos escrevemos nossa história através de nossas opções e juízos. Assim como acontece com Joaquina Bernarda e Maria Tangará, o sentido de nossas vidas é dado no decorrer de nossa caminhada. Se escolhemos o que plantaremos, à colheita não cabe escolha.
Boa leitura!
Camila Braga
Historiadora e educadora, mestre em história social da cultura e pós-graduada em ciência política. Foi pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade e atua nas áreas de teoria da história e formação da cultura política no Brasil.
NOTA DO AUTOR
A personagem Joaquina de Pompéu sempre encantou-me pela força de sua presença na história da região centro-oeste de Minas Gerais. Eu sabia que, em Pitangui, onde Joaquina viveu, havia também a presença histórica de outra personagem feminina, Maria Tangará, a quem o destino não projetou tanta repercussão.
Tangará, sangue indígena herdado de sua avó, foi tão ou mais influente que a própria Joaquina de Pompéu, apesar da história moderna ter rendido maior destaque a Joaquina. Ao iniciar minha pesquisa, descobri que Pitangui teve não duas, mas três mulheres influentes, ricas e poderosas que marcaram os acontecimentos da região, sendo que a terceira foi Rita Maria de São José Cordeiro. No entanto, a narrativa deste livro concentra seu enredo nos encontros e desencontros de Joaquina e Tangará. Minas, teu nome é mulher.
Elaborei um enredo que alinhava situações conhecidas da vida real dessas personagens femininas com uma história ficcional que inclui também uma personalidade marcante de Minas Gerais, contemporânea daquelas mulheres, que foi Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, nascido em São João del-Rei. Para que essas vidas se entrelaçassem, criei a passagem ficcional de Tiradentes por Pitangui numa época que ele realmente era um mascate. Tiradentes percorria várias regiões de Minas comercializando todo tipo de produto depois de ficar órfão dos pais e antes de se tornar alferes.
A ficção romanceada, que acontece no século 18, me permitiu contar um pouco da história desses personagens que participaram da gênese da política libertária de Minas Gerais. O romance inclui outros tantos personagens reais e ficcionais que dão o suporte para que o enredo seja atraente e surpreendente.
O que motiva Tiradentes, na minha imaginação, a passar por Pitangui, é a sua vontade de conhecer o personagem ficcional, Onofre Mendes, ortodontista experiente e famoso em Minas Gerais, com quem ele tinha o objetivo de se aperfeiçoar na arte do tratamento dentário.
Em Pitangui, o então mascate Tiradentes, que no futuro se tornaria alferes, conhece Maria Tangará com quem tem, nesta ficção, um rápido e tórrido romance mas que provocará uma série de fatos que se ligam num condão do tempo de vida, morte e além da morte.
A região de Pitangui sempre foi estratégica para Joaquim da Silva Xavier, e este é um fato real. No planejamento para rechaçar eventuais contra-ataques dos portugueses, caso a criação de um país republicano desse certo, com um provável sucesso da insurreição mineira, é fato real que Tiradentes previu reforçar uma resistência armada em Pitangui. Assim, os nativos mineiros revoltosos, impediriam uma possível entrada dos soldados portugueses que teriam facilidade para atacar a conjuração mineira vindos de São Paulo e utilizando a Picada de Goiás. Muitos fatos reais da Inconfidência se entrelaçam neste romance, permitindo, de uma forma lúdica, que o leitor passeie pela história das Minas dos Inconfidentes.
A passagem ficcional de Tiradentes por Pitangui, em 1765, me deu o elo para justificar a lenda que se conta em Minas que sua cabeça, roubada do alto do mastro onde estava exposta em Vila Rica, foi enterrada no atual município de Quartel Geral. Aproveitei essa lenda como pano de fundo para inserir situações e personagens que criam elos, evidentemente ficcionais, até justificar o sepultamento dos restos mortais de Tiradentes no centro-oeste mineiro.
A história deste livro conta com personagens periféricos que servem de apoio fundamental para que o desenlace dos fatos aconteçam dentro de uma lógica espaço/tempo. As personagens periféricas se unem a Tiradentes, Joaquina de Pompéu e Maria Tangará trafegando, assim, pelas várias histórias reais e ficcionais que dão ao livro um enredo que seja agradável. O romance instiga o leitor a pesquisar mais para descobrir o que é real e o que é ficcional, o que é lenda e o que é processo de criação do autor.
Dentre as personagens periféricas destacam-se: o Camarista (Vereador) Pedro Morandi, Padre Flora e o Sargento Aurélio que vão fazer o resgate da cabeça de Tiradentes espetada no alto de um mastro, em Vila Rica. Dona Hipólita Jacinta Teixeira de Melo, personagem real, que oficialmente é a única mulher citada como Inconfidente nos Autos da Devassa, contribui ficcionalmente para um novo encontro entre Tiradentes e Maria Tangará, em sua fazenda, em Prados, permitindo que os fatos desencadeiem uma surpreendente disputa pelos restos mortais do alferes.
Alguns personagens da história moderna aparecem em determinadas passagens deste enredo e são citados como forma de homenagem do autor.
A parte final da nossa história ressalta a figura de Dom Pedro I, o Príncipe Regente, que se encontra, também ficcionalmente, com Joaquina Bernarda, em Vila Rica o que me permite apresentar a história da participação verdadeira de Padre Belchior no momento da declaração da independência do Brasil, às margens do ribeirão Ipiranga.
No dia 07 de setembro de 1822, Padre Belchior estava ao lado de Dom Pedro I. No fato real reproduzido no livro, foi padre Belchior quem aconselhou o imperador Dom Pedro I a tomar a decisão pela Declaração de Independência do Brasil. O padre se mudou para Pitangui após este acontecimento histórico e deixou o relato dos fatos registrados numa carta, inclusive, com a frase verdadeira dita por Dom Pedro I no Brado do Ipiranga.
O romance histórico Perfume de Sangue
também ressalta o envolvimento de Maria Tangará com a magia negra. Relatos em registros de historiadores mineiros revelam essa preferência de Tangará pelo mundo do mistério aterrador. Neste enredo, Tangará também se envolve nesses procedimentos espirituais que a fazem se descobrir em uma vida que, de alguma forma, ajuda a explicar o porquê de sua personalidade indomável no século 18 e que apresentou características pessoais marcantes.
A história neste livro é contada entre 1763 e 1838 e revela acontecimentos incríveis que atrairão a atenção do leitor. A vida e a morte se encontram a todo instante. O romance termina com um surpreendente fato que mostra que a vida é feita de entrelaces que tecem a renda do destino e se resume no fato de que os atos geram consequências para o bem e para o mal e que só cabe a nós escolhermos o caminho a seguir.
Existe um personagem periférico que merece um destaque. Ele é uma peça importante na interligação da história da Inconfidência Mineira com Pitangui. Refiro-me a Domingos Xavier, irmão mais velho de Tiradentes.
Domingos ordenou-se sacedorte em 1765. Depois de passar por várias cidades e paróquias, em 1765 – e este é um fato – ele é enviado para Pitangui onde exerce seu sacerdócio. Em nossa história, Padre Domingos Xavier terá uma participação decisiva no desenlace dos fatos que culminam no resgate da cabeça de Tiradentes em Vila Rica. O fato é que há mais coisas entre Pitangui e os personagens da Inconfidência Mineira do que pode imaginar nossa vã filosofia
.
O autor
A CHEGADA DA ORQUESTRA
O dia amanheceu com uma neblina cerrada. Os telhados das casas, com lodo escuro, somem na brancura acinzentada e desbotada da névoa. A primeira impressão de um grupo de músicos, chegando à Vila de Nossa Senhora da Piedade do Pitangui, com os primeiros raios de luz, era a de que o ar gelado ocupava cada espaço de seus pulmões como uma massa compacta.
Os instrumentos musicais, amarrados nos animais, os obrigavam a andarem em compasso lento e preguiçoso. O violoncelo parecia um caixão amarrado no lombo de uma das mulas da comitiva a carregar um corpo inerte. O ritmo da chegada dos músicos até aparentava uma fila fúnebre em direção à casa de Maria Felisberta Alvarenga Silva, mais conhecida como Maria Tangará, que os contratara para animar a festa que aconteceria naquela mesma noite. Conseguiram chegar a tempo, apesar dos percalços da viagem entre Pitangui e São João del-Rei, de onde vinham os músicos.
A vila do Pitangui, naquela manhã de maio do século XVIII, ano da graça de 1770, era acordada com a música dos gorjeios dos pássaros que sacodem suas penas fazendo medo no frio. Os seis músicos estavam ali como testemunhas que chegavam naquela porta do sertão onde o sonho vira pesadelo ou o sofrimento vira um sonho dourado dependendo da sorte nas minas de extração do ouro.
Era a primeira vez que um grupo de músicos vindos da região do rio das Mortes, se apresentaria nas terras rebeldes empapadas de sangue da sétima vila do ouro da jovem capitania das Minas Gerais, desmembrada de São Paulo em 1720.
Entre um rio e uma serra que se entrelaçam às roças com criações de animais nas cercanias, o povoado do Pitangui tinha ganhado forma com os casarios ao longo de ruas que, na medida que sobem, se estreitam serpenteando até o alto onde, à noite, a lua passeia beijando, com sua luz delicada, a encosta da colina que com ela se enamora.
Pitangui somava milhares de vivas almas, das quais, cerca de mil e quinhentas, eram de escravos. Almas penadas, a Vila também as tinha, devido à rudeza e sanguinolência daquele agreste selvagem. Aquela cidade era uma janela entre o etéreo e o real onde os vivos andavam pelos passeios cruzando com os não vivos como se estivessem todos na mesma dimensão e se vendo. As almas desenganadas não queriam sair dali, como se presas estivessem no limbo.
Erguida com adobe, pau-a-pique, taipa de pilão, pedra, cal e paredes recobertas com argamassa, invariavelmente branca, as casas foram construídas com a massa do barro, acomodando intenso comércio. Deus criou o homem do barro e o homem criou as cidades com a mesma terra molhada com que fora divinamente moldado.
Aqueles que chegavam a Pitangui, pelo lado mais alto da colina, ao apreciar a vista, se sentiam como os anjos voando por cima das casas, boa parte nas cores branco, azul ou amarelo. Os telhados, altos como chapéus quadrados sobre as casas, tingiam de um marrom alaranjado o verde dos campos.
As portas retangulares, compridas, ocupam boa parte das paredes das moradias que parecem desproporcionais em relação aos seus próprios tamanhos. Surpreendentemente, propiciam um contraste harmônico característico do estilo colonial português.
A arquitetura dos sobrados e casas, num mesmo alinhamento e juntinhas umas nas outras, é embelezada pelas janelas de madeira em forma de tabuleiro quadriculado com vidro que formam um mosaico recortado numa elegância singela. Os mais ricos se diferenciam morando em sobrados espaçosos, com dois ou três andares, geralmente nas cores azul ou verde, porque usavam tintas trazidas da Europa.
Um cheiro de azedo e doce, naquela manhã, misturava os opostos no terrão de Deus banhado pelo rio Pará e marcado pelas disputas entre duas mulheres ricas e influentes que viviam na Vila de Pitangui.
Toc. Tac. Toc. Tac. Toc. Tac. – soava, como em ritmo militar, o trote das mulas que levavam os músicos subindo pelas ruas recobertas com pedras retangulares que brilhavam como verniz umedecidas pela neblina orvalhada.
O violinista, Carmélio de Assis, que também era o maestro da pequena orquestra, seguia à frente. Homem de