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Crianças trans
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E-book273 páginas4 horas

Crianças trans

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Sobre este e-book

Crianças trans, vocês existem? A pergunta é, a meu ver, retórica. Sofia persegue a infância com um refinamento e uma sagacidade ímpares nesta publicação. A linguagem, como sempre, coloca-se de maneira capciosa quando nos referimos ao que não foi posto, a princípio, como "natural" a partir do olhar cisgênero. A autora empreende um trabalho fantástico, utilizando-se de uma auto-história que se entremeia com a cultura virtual contemporânea e a literatura científica, para nos falar de algo fulcral aos estudos sobre infância, ou sendo mais direta, sobre como funcionam os dispositivos sociais de afirmação de determinadas identidades, em detrimento de outras, hierarquizadas como "normais", "boas", "bonitas". Neste livro, com a sua inteligência própria, humor afiado e desenvoltura intelectual, Sofia nos presenteia com uma problematização sensível e didática do senso comum, abrindo os olhos para uma perspectiva mais complexa desse projeto que estamos produzindo: humanidade. Não um que fecha os olhos para a nossa diversidade, mas, isso sim, um que explora nossas possibilidades para além dos nomes, nosologias e apagamentos. Profa. Dra. Jaqueline Gomes de Jesus (IFRJ) Sobre a autora Sofia Favero é ativista, psicóloga e doutoranda em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS. Faz parte da Associação e Movimento Sergipano de Transexuais e Travestis e do Núcleo de Pesquisa em Gênero e Sexualidade (NUPSEX). Em seu tempo livre, gosta de jogar videogame com suas duas sobrinhas, Helena e Lara.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento12 de jul. de 2023
ISBN9786586481907
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    Pré-visualização do livro

    Crianças trans - Sofia Favero

    Sumário

    [1. Entrando em cena]

    [2. Notas para as travestis intelectuais]

    [3. Entre o nímio e o viperino: uma desaquengrafia]

    [4. A tecnopolítica na assistência]

    [5. Um palco]

    [6. Crianças trans, propriedades científicas]

    [7. Ritos finais]

    [Referências]

    PENSAMENTO TRANS UNIVERSALIZANDO A PARCIALIDADE CIS-CENTRADA

    1.pngCréditos

    Foto – 01 (acervo pessoal)

    À Jeane, minha mãe,

    por ter me ouvido.

    Apresentação

    pequena sofia,

    Sofia me convidou para apresentar Crianças Trans: infâncias Possíveis, seu primeiro livro. Desculpe se lhe parece indiscreto, mas ela me mostrou algumas das correspondências que trocou com você. É que acompanhei seu percurso de estudos, dando dicas aqui e acolá, e foi necessário esse compartilhamento para que chegássemos a sua dissertação de mestrado, que agora tem a forma desta obra. Sei bem que você já aceitou um convite inusitado, tanto quanto desafiador, de protagonizar aquela escrita e que, agora, Sofia lhe pede mais uma vez para subir ao palco. É que você se saiu muito bem, pequena. Sob o cuidado atento e segurando firme a mão de Sofia, abriram caminhos para debates importantes sobre um campo de análises tão pouco explorado: aquele que articula infâncias, expressões de gênero e regulações biomédicas. E isso foi feito destrinchando a produção da infância trans em narrativas biomédicas, nos ativismos trans e travestis, em documentos nacionais e internacionais na esfera jurídica e da saúde. Sofia, através de você, das estórias que protagonizaram juntas, e de um trabalho de campo de fôlego, amparada por uma base teórica diversa (dos Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia aos Feminismos Pós-estruturalistas, atravessados pelo forte diálogo com autoras trans), possibilita deslocar vozes unívocas e realidades únicas sobre gênero e infância.

    Você deve estar confusa a essa altura, e minha conversa até aqui talvez não lhe faça sentido, mas há algo que posso adiantar: essa Sofia é babado, viu? Nas páginas que seguem, ela não se deixa capturar pelas análises fáceis ou supostamente óbvias. Demonstra como política e ciência são indissociáveis, ainda que suas articulações sejam heterogêneas, a depender do campo de práticas analisadas, das peças em jogo e dos atores envolvidos. Dos ativismos médicos, como chama, aos complexos embates das militâncias trans e travestis, Sofia nos convida a uma caminhada que não aceita dicotomias tidas como evidentes. Brinca com a certeza dos diagnósticos médicos com a mesma ironia e seriedade com que convida a psicologia e o ativismo ao desconforto de balançar portos seguros, ao mesmo tempo em que desafia alguns enquadramentos rígidos da cis-ciência, a começar pela aposta metodológica que sustenta, a desaquengrafia, e pela forma como conduz sua narrativa.

    pequena sofia, acho que já posso me despedir. Para mim resulta uma alegria imensa ter lhe conhecido um pouco e ter aprendido com você. Que bom que você e eu aceitamos o convite de Sofia e que agora podemos assisti-la, pesquisadora atenta, escritora sensível, autora de um livro tão essencial para o campo de produção de conhecimento sobre infâncias trans. Espero que mais e mais pessoas se somem a nós.

    Paula Sandrine Machado (UFRGS)

    Prefácio

    A oportunidade de fazer o prefácio deste trabalho tão oportuno me encanta, e é assim que agradeço tanto pelo espaço deste prefácio quanto pela participação na defesa da dissertação que dá origem ao livro. Às professoras doutoras Paula Sandrine Machado e Rafaela Vasconcelos Freitas, agradeço pela confiança e cocriação do trabalho da querida Sofia Favero Ricardo.

    Crianças trans: infâncias possíveis é uma obra situada em um contexto sociocultural, tanto brasileiro quanto internacional, no qual há uma significativa ampliação do debate sobre identidades e expressões de gênero na infância, principalmente a partir de trajetórias públicas de crianças que, não raro, são apresentadas como ‘crianças trans’. Em documentários, programas de TV, livros e séries; a partir de opiniões de especialistas e ativistas de toda ordem, transitando da tutela psiquiátrica à ‘epidemia histérica transexual’ à defesa dos direitos humanos; dentre opiniões de fundamentalistas religiosos e as das sociedades em geral, tratar desse tema evoca uma série de contradições, tensionamentos e desafios, e acredito que é nisso que está a pertinência dessa obra, ao se apresentar e posicionar em um debate tão atual e controverso.

    Ao nos sugerir uma atenção cuidadosa às formas de produção da infância trans desde diferentes narrativas, entre as ciências da saúde, os ativismos e a sociedade onde se inserem, a autora compartilha preocupações para que não entendamos ‘criança trans’ como um dado óbvio, esgotado e evidente. Dessa suspensão de certezas, Sofia Favero evidencia as dimensões políticas envolvidas no conceito de infância e na produção de sistemas de verdade sobre sexo e gênero, de maneira que argumentos vão sendo apresentados para se desconfiar, quando não se indignar, com as limitações dos paradigmas patologizantes ou de estigmas cisheteronormativos que violentam e precarizam as mais diversas pessoas.

    E assim, entre a carta à pequena Sofia e os caminhos reflexivos da autora Sofia, vamos sendo conduzides entre o autocuidado com a própria infância e o cuidado teórico-político com a complexidade e amplitude de referenciais para que se garantam a autonomia, liberdade e criatividade para existências que estão surgindo e por surgir, e podem achar os binômios rosa-azul/mamãe-papai meio… cafonas. Se atentamos às últimas palavras do ator Flávio Migliaccio, infelizmente falecido dias antes da escrita dessas minhas palavras, cuidar das crianças de hoje envolve, de maneira muito especial, questionar as produções de gênero em sociedades e culturas que as podem violentar subjetivamente; lembrando sempre que, se a cafonice foi levada a níveis extremos e caricatos em tempos de máfia bolsonariana, ela não é exclusiva a ela.

    Assim, para que a cafonice alheia não violente (mais ainda) as infâncias de presentes e futuros, é preciso repensar e trabalhar criticamente os intrometimentos biomédicos e o cuidado em saúde mental com comprometimento e estratégia intelectuais, físicas e espirituais. Por outro lado, parece-nos importante estarmos atentes às armadilhas em reproduzirmos paradigmas biomédicos, enquanto pessoas profissionais, ativistas e pesquisadoras, especialmente quando o acesso a direitos pareça estar condicionado à defesa desses paradigmas. E nisso, o trabalho de Sofia Favero é uma contribuição inquestionável, mesmo se considerarmos os limites que as relações de poder cistêmicas colocam diante de uma recém-mestra em psicologia social e institucional. E assim, diante de tais relações de poder e de tal potência, quero brevemente ressaltar dois aspectos presentes no trabalho que me convidaram a reflexões em diferentes níveis, e que me pareceram centrais para pensarmos as identidades e expressões de gênero nas infâncias, assim como para compreendermos as contribuições científicas realizadas pela autora.

    O primeiro deles é o caráter transdisciplinar da sustentação teórico-política do trabalho de Sofia Favero. Parece-me que essa característica lhe permite reconhecer, celebrar e reunir diferentes perspectivas (trávicas, trans+feministas, de movimentos sociais LGBTIs, da psicologia, por exemplo) que têm trajetórias de questionamentos e contraposições em relação às autoridades médicas e de saúde (seja na academia ou na clínica), estas historicamente legitimadas para definir quem seriam as pessoas trans e intersexo ‘de verdade’, bem como qual seria o enquadramento da concepção de saúde para elas.

    Evocar essa história multifacetada convida à solidariedade de lutas contra regimes de verdade violentos, e à percepção de que o tema identidades e expressões de gênero não é uma mera ‘novidade’ ou tema ‘exótico’ de compêndios médicos e produções farmacopornográficas, mas uma parte constitutiva de trajetórias de lutas sociais diversas que se entrelaçam. Nesse sentido, a seriedade e afeto com que a autora analisa as contradições e paradoxos desses questionamentos e contraposições à saúde deve interessar a pessoas profissionais, ativistas e pesquisadoras envolvidas no tema identidades e expressões de gênero que desejem realizar contribuições para a melhoria das condições de vida de todas as pessoas – sejam elas trans, travestis, não binárias, ou não.

    Por sua vez, o segundo aspecto a se destacar no trabalho, parece-me, são seus caminhos metodológicos. A desaquengrafia de Sofia Favero se alimenta da complexidade teórico-política transdisciplinar para iniciar uma dissertação com uma (auto)conversa, para falar com as parceiras trans e travestis sobre teoria e prática, e se apropriar e dialogar com campos teóricos vários – entre a teoria-ator-rede, o objeto híbrido e as redes sociotécnicas de Bruno Latour, as filosofias feministas de Judith Butler sobre gênero e precariedade, e a composição dos diagnósticos médico-psiquiátricos, entre vários outros.

    E, nesse processo, a chamada cosmologia cisnormativa de tratar, investigar, diferenciar é apequenada tanto em sua falta de complexidade e criatividade epistêmica (além do eventual corporativismo disciplinar), quanto pelo envolvimento limitado com as consequências socioculturais normativas sobre as infâncias: a desaquengrafia, aqui, pode-se perceber como ryca em saberes e afetos, e profundamente comprometida com outros presentes e futuros.

    Feitas essas considerações, reforço o convite à pessoa leitora para dialogar com este importante trabalho, que se desafiou a uma contribuição em diversos níveis para o tema identidades e expressões de gênero na infância. Minha percepção é de que crianças de passados, presentes e futuros se beneficiarão fortemente dos diálogos propostos pela autora, caso pessoas profissionais, pesquisadoras e gentes desestabilizem suas maneiras de conceber as infâncias, e se comprometam a ser parte de mais amplas desestabilizações de cistemas violentos e normativos.

    Viviane Vergueiro (UFBA)

    A

    gradecimentos

    Você tem em mãos a versão comercial da minha dissertação de mestrado, defendida em janeiro de 2020. Algumas coisas foram retiradas daqui, outras optei por deixar, mesmo que parecessem mais acadêmicas e menos literárias, como é o caso de manter os agradecimentos. Assim, sinto-me na obrigação de lhe dizer que minha formação acadêmica só foi possível a partir do constante apoio que recebi da minha família, e das oportunidades que tanto minha mãe quanto minhas irmãs lutaram para que eu tivesse. A elas, agradeço imensamente. Tive professores e professoras que foram fundamentais durante a graduação: Aline Belém, Franscisco Diemerson, Dalmare Anderson e Fernanda Hermínia me fizeram acreditar que outros destinos eram possíveis a uma travesti nordestina. Sou grata por terem apostado em mim.

    A Paula Sandrine Machado, minha orientadora do mestrado. Tive a oportunidade de ouvi-la dizer que certa vez já apontaram a altura de sua voz. Eu gosto de pensar que foi justamente a dimensão de sua fala que fez com que eu me interessasse em escutá-la cada vez mais. Obrigada pela confiança, pelo acolhimento, pelos desafios e pela parceria. Não teria aprendido tanto se não fosse a sua zoada feminista capaz de transformar tantos obstáculos em ruídos. A Rafaela Vasconcelos Freitas, minha coorientadora do mestrado. Por ter embarcado nessa jornada conosco, eu te agradeço. Obrigada por ter se juntado. Desde que nos conhecemos, percebi que era uma pesquisadora a quem eu devia prestar atenção, mas ter convivido contigo me mostrou ainda mais a sua disciplina. Obrigada por me fazer, ainda que em condição de estrangeira, encontrar um lar.

    Ao João Gabriel, por ter sido, desde o início, um alicerce para mim. Estava lá me ouvindo treinar para a entrevista de seleção da pós-graduação, esperando eu sair da prova para perguntar como havia sido a experiência, lendo meus textos fragmentados e até mesmo me emprestando livros – cujas datas de devolução nunca respeitei. Você foi incrível. Obrigada por ter sido tão generoso comigo. Ao Paulo Bevilacqua, querido amigo, por ter me dado de presente as ilustrações deste trabalho. Sou uma admiradora dos seus traços desde 2014, quando nos conhecemos.

    Aos amigos que fiz na pós-graduação: Amanda Schiavon e Uelquer Guedes, meus psicólogos preferidos. Aos amigos que a vida me trouxe: Wesley Andrade e Emilly Fernandes, que foram um sopro de coragem e vida (respectivamente). Agradeço também pelas contribuições de Analice Palombini, Claudia Fonseca, Fernanda Ribeiro, Jaqueline de Jesus e Marco Prado, que estiveram nas etapas qualificatórias e tanto engrandeceram este trabalho. Não menos importante, agradeço à CAPES pela bolsa que possibilitou a pesquisa, bem como às alianças e parcerias que construí no NUPSEX e no PPGPSI,

    Muito obrigada!

    [1. Entrando em cena]

    Pequena Sofia,

    Liguei o computador e vim ligeiramente digitar as seguintes palavras, como se elas fossem capazes de amenizar os anos de atraso. Não sei bem como está, mas acredito que se virou muitíssimo bem sem mim. Sei que gosta de pensar que é independente – e não, não se assuste por eu saber disso, é que somos mais próximas do que imagina. Por sinal, nos chamamos da mesma forma. Sofia era um nome pouco utilizado em minha época. Hoje em dia, você verá, existem milhares e milhares delas. Quem sabe fosse prudente cogitar um nome mais original enquanto há tempo... Você ainda está me lendo? Desculpe, não quis soar debochada, estou apenas reconhecendo que gosta de ser diferente das outras pessoas.

    Tenho alguns anos a mais do que você, mas, fora a faixa etária, poderia lhe dizer que temos mais coisas em comum do que imagina. E aqui estou eu me apressando, é um péssimo costume. Enfim, gostaria de lhe dizer que fiz o que dei conta de fazer, que embora esse não seja um email de desculpas, é a forma que encontrei de dizer que me importo contigo – e que preciso de sua ajuda. Poderia ter lhe escrito uma carta, tal como fez Latour (2016), ao escrever seis cartas a uma aluna, em Cogitamus, mas penso que você nunca foi uma criança de ler cartas, e sim de mensagens virtuais. Por isso, mesmo após todos esses anos, venho te fazer um convite. Posso compartilhá-lo contigo? Não é um vírus, pode abrir, ou você já abriu? Estou realmente sendo ultrapassada pela tecnologia. De qualquer forma, ouvi falar sobre uma peça de teatro, para a qual gostaria de te levar ao meu lado. Não é para assistirmos. Você ficaria no palco, e eu estaria logo adiante. Mas não se assuste, veja isso como uma oportunidade de ser a atriz que sempre quis ser, apesar de não estarmos falando do tipo de atriz que convencionalmente atuaria em uma peça. Falo da possibilidade de se tornar condutora de uma rede.

    Essa, contudo, é conversa pra outra hora. No momento, detenho-me a te explicar melhor o que faço em minha vida profissional. Talvez assim você se sinta em condições adequadas para aceitar ou recusar o meu convite. Sobre a peça em si ainda não sei dizer muita coisa, pois ela acontece na prática. Não tenho como prever os acoplamentos e articulações que veremos se formar em torno da sua personagem. Tenho apenas algumas pistas. Quem, em sã consciência, aceitaria um convite desses? Ainda assim, não te chamaria para entrar no palco caso eu não tivesse certeza de que estaria segura. Acredite, por ser uma memória, está bem segura dentro dessas páginas. Nenhum mal te atingirá. De todo modo, gostaria que viesse porque quer vir, não porque uma pesquisadora insistiu para que viesse.

    O único alerta que te dou é que algumas das coisas que eu disser nessa mensagem poderão ser spoilers de sua própria vida no futuro. Portanto, você tem duas escolhas: continuar lendo o que nos tornamos ou parar por aqui. Vai decidir continuar mesmo? Tudo bem então. Lá se foi sua chance de manter alguma esperança. Penso em começar a história a partir dos eventos mais próximos de sua época. Fica bom pra você? Ainda não sabe, mas tive contato com meu primeiro psicólogo aos 15 anos de idade. Na época, fui a mando de minha mãe. Não entendia bem o que estava fazendo ali. E tal psicólogo, dentre as milhares de questões que poderia me perguntar, sempre voltava a falar sobre relacionamentos. Semana após semana, me perturbava sobre os meninos, queria saber se eu estava namorando, se estava interessada em algum rapaz da minha turma, como estava meu coração. Minhas respostas eram todas negativas: se nessa etapa da vida era difícil arrumar algum boy, garota, as coisas só pioram depois.

    A princípio, acreditava que ele me perguntava aquilo por curiosidade da minha mãe, e que tudo aquilo seria dito a ela assim que eu saísse da consulta. Hoje, entendo que talvez ele estivesse sustentado em um pressuposto de que a transexualidade é – por definição – heterossexual, e que minha transição se dava em razão disso. Sim, eu sou trans. Esqueci completamente de lhe avisar. Mais adiante prometo explicar melhor. Posso voltar à minha história? Com minha segunda psicóloga foi diferente. Aos 18 anos, busquei seu contato, dessa vez voluntariamente. E me recordo dela perguntando o que é ser mulher? com certa frequência. Às vezes pensava junto com ela. Buscava respostas que não estivessem circunscritas no corpo. Às vezes me irritava, pedia que ela que me respondesse. Ao final do processo, não tinha mais respostas. Nunca uma pergunta havia me permitido alcançar tantos ganhos terapêuticos. Hoje, novamente, talvez eu finalmente assumisse a ela: descobri que não sei o que é ser mulher, ser Sofia já me dá muito trabalho.

    Em 2013, paralelo a esse processo terapêutico, iniciei o curso de psicologia, muito incentivada pelos resultados que vinha notando junto à profissional que me atendia. Demorei alguns períodos até entender o meu lugar dentro da psicologia, e então passei a ver gênero e sexualidade em grande parte das disciplinas. Não que elas se dedicassem exatamente a isso, mas minha atenção sempre se voltava para essas esferas. Já em 2014, passei a me envolver com ativismos trans em Sergipe, estado em que fomos registradas. Foi nesse mesmo ano que entrei na Associação e Movimento Sergipano de Transexuais e Travestis (AMOSERTRANS), tendo passado a ocupar o cargo de vice-presidenta dois anos mais tarde.

    Como integrante da AMOSERTRANS, no começo 2015, demos início a um curso pré-vestibular gratuito destinado a travestis e pessoas trans em Aracaju (SE), voltado à aprovação no Exame Nacional de Ensino Médio (ENEM). Conjuntamente, começamos a desenvolver a primeira edição da Semana da Visibilidade Trans, em parceria com a Universidade Federal de Sergipe (UFS), evento que se dedicava a pensar em parceria com a academia questões como cidadania e direitos humanos. Ademais, não me relacionava apenas presencialmente com outras pessoas trans, mas também em campos virtuais, onde estabeleci redes e conexões com ativismos LGBTs ao redor do país. Não te disse que você era uma garota digital? Eu também sou.

    Mais tarde, em 2016, fui convidada para integrar a Comissão Científica (CCAT) do Ambulatório de Cuidado Integral à Saúde da Pessoa Trans (UFS), que fica localizado no interior do estado, na cidade de Lagarto. Entendia que esse convite havia sido realizado em decorrência da minha aproximação com a academia, mas também devido à minha atuação enquanto militante trans em Sergipe, uma vez que os projetos submetidos ao campo lidariam diretamente com usuários e usuárias trans ou travestis. Foi assim que passei a estar mais atenta às disputas epistemológicas que se instauravam a partir desse lugar ambíguo de pesquisadora/pesquisada.

    Permaneci articulando ativismo e universidade até 2018, quando defendi o meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) na faculdade em que estudava. A única travesti que estava matriculada de toda a instituição e a primeira a se formar na psicologia. Muito afetada por uma leitura humanista, passei a pensar questões trans através da fenomenologia. E assim defendi o meu TCC, que discutia uma possibilidade de repensar a clínica voltada a travestis e pessoas trans por meio do método fenomenológico, tanto por sua capacidade reveladora dos fenômenos sociais quanto por sua postura crítica e contrária à nosologia psiquiátrica.

    Ao final desse processo, recebi a notícia da minha aprovação no mestrado em Psicologia Social e Institucional na UFRGS, e me despedi de dois campos que havia construído em minha cidade natal: clínica e ativismo. Campos, esses, que curiosamente fui resgatar durante o segundo semestre da pós-graduação, quando pensamos em articular infância com as narrativas técnicas (clínicas, em outras palavras) e ativistas na produção de uma infância trans. O que era

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