Lesbiandade
De Dedê Fatumma
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Lesbiandade - Dedê Fatumma
É moleque-macho…
; Vai dar pra ruim…
; Vai, Sapatão…
. Assim eu era chamada no auge da infância e adolescência e, como dizia minha avó: o espinho quando tem que furar, já traz a ponta
. Eu furei!
Minha corporeidade desaguava como um rio e arrebentava as margens dos discursos cisnormativos de gênero por não apresentar a disciplina da expressão de gênero esperada para uma menina. Em conexão com a autora Jaqueline Gomes de Jesus (2012), considero que os discursos violentos eram endereçados ao meu corpo por este não fixar uma expressão de gênero
em concordância com o comportamento feminino
. Era a roupa que eu vestia e a forma de estar no mundo que desenhavam uma rota de fuga, ao contrário da maioria das garotas, que se conformaram com uma educação que nos ensina a nos comportar de certas maneiras, a agir e a ter uma determinada aparência, de acordo com o seu sexo biológico
(JESUS, 2012, p. 5).
As linguagens que vociferavam contra mim carregadas de ameaças, constrangimentos, olhares de repulsa, por não performar uma feminilidade hegemônica, tanto na infância quanto na adolescência, fizeram com que eu assumisse ainda mais um lugar de desobediência. Ainda que minha identidade de gênero estivesse conectada com o gênero do meu nascimento, sendo eu uma pessoa cisgênera, isso não era suficiente: exigia-se um modelo de feminilidade, cor de roupa e performance que se inserissem nesse padrão. Eu sabia exatamente quem eu era, sabia dos meus desejos, anseios e afetos, e o que eu sentia por outras meninas; assim, passei a perceber que o meu movimento no mundo produzia sentidos e ações que iam contra as normas dicotômicas de gênero relacionadas à sexualidade.
Ao acessar a memória da infância e da adolescência, percebo que assumi uma posição avessa aos papéis de gênero estabelecidos para as meninas. Desde aquele momento, eu já expressava uma desordem nas normas frente ao pensamento cisheterossexual enraizado na minha família e na minha comunidade.
Importa rememorar a trajetória da minha infância sem a pretensão de repousar nela, mas de refletir como essa experiência foi fundamental para a construção da minha identidade, que é múltipla e cambiante
(HALL, 2006). Nessa memória, consigo identificar a repulsa aos papéis de gênero oferecidos na infância. Eu observava os diferentes tratos entre mim e meus irmãos, e silenciar a isso era negar a minha própria existência.
A socióloga nigeriana Oyèrónké Oyewùmí (2019) apresenta análises críticas de gênero na constituição de família projetada pelo Ocidente, visão que constrói privilégios para os homens e enclausura as mulheres em espaços de subalternidades, produzindo diferenças desde a infância. A autora afirma que, na experiência africana, a categoria gênero é inexistente, ao passo que, na construção das famílias Iorubás, as relações sociais apresentam-se a partir da senioridade
— ou seja, a idade cronológica
que é fundante nas relações em vez do gênero. Para Oyewùmí (2019, p. 177) "a palavra ‘egbon’ refere-se ao irmão ou à irmã mais velho(a), e ‘aburo’ ao irmão ou à irmã mais novo(a). O princípio da senioridade é dinâmico e fluido, não é rígido nem estático".
Diferentemente da experiência das famílias Iorubás, elucidada por Oyewùmí (2019), foi na minha infância que percebi as hierarquias de gênero sendo construídas socialmente como uma obrigação, disfarçadas de brincadeiras, moldando as nossas trajetórias entre irmãos, confabulando o projeto opressor das relações de gênero e que por muitas vezes interditando a expressão completa de minha subjetividade.
Oyewùmí (2019, p. 175) enfatiza que, na concepção ocidental, a categoria gênero é o princípio organizacional fundamental da família, e as distinções de gênero são as primeiras fontes da hierarquia e da opressão dentro da família nuclear
. Esse modelo colonial e burguês de família, lamentavelmente, se infiltrou na constituição das relações das famílias negras em diáspora brasileira.
Nos estudos sobre famílias e relações de gênero no Brasil, as autoras Goldani (2000; 2005) e Macêdo (2001) observam que questões como as transformações demográficas, sociais e econômicas, oriundas do advento da industrialização do capitalismo moderno, influenciaram nas transformações dos modelos de famílias que continuam em recorrente ressignificação, longe de se expressarem de maneira estática.
Na saga da infância, na tentativa de subverter as relações assimétricas entre mim e meus irmãos, eu desobedecia a lógica de brincar de bonecas em prol de brincadeiras mais emocionantes, fato encarado por meu pai como rebeldia
. Trago na memória a construção de uma casa de madeira que, segundo mainha, aos risos, era um barraco
. A casa foi feita em um terreno baldio em frente à minha residência, e ainda recordo as cenas em que entrava no mato sozinha em busca de folhas de bananeira e palhas de coqueiro para fazer o telhado. Eu tinha entre nove e dez anos de idade e era dentro dessa casinha que eu podia respirar, em companhia da minha solidão.
O que isso significava? Hoje eu acredito que era um caminho possível para escapar das desigualdades de gênero e seus mecanismos de opressão presentes no interior de minha família. Os efeitos subjetivos dessa desobediência, de assumir essa tal rebeldia
cunhada por meu pai, era o vento soprando liberdade dentro de mim.
Por que carrego essa memória tão vívida em mim? O que me impulsionava a sair de casa? Que sentimento era esse a ponto de me levar a aventurar e a desbravar outros caminhos? Entre minhas amigas de infância, eu era a única que recusava a camisa de força
da hierarquização de gênero. Chimamanda Ngozi Adichie (2017, p. 26) aborda que se não empregarmos a camisa de força do gênero nas crianças pequenas, daremos a elas espaços para alcançar todo o seu potencial
.
Essa indisciplina se manifestou potencialmente com a arte, o tambor deu ritmo aos meus passos. Dancei com meu corpo para me esquivar da naturalização e da romantização conferida a esses papéis que me custaram divergências familiares terríveis. Eu seguia com o tambor entre minhas pernas, fazendo minha festa, tocando sozinha as músicas dos blocos afros Olodum e Ilê Aiyê a fim de desafiar o mundo, e com o tambor exaltei a minha beleza negra e enfrentei os obstáculos materializados pelo racismo. Lorde (2020), em seu poema Daomé
¹⁰, diz que foi carregando dois tambores em [sua] cabeça
que aprendeu a falar o idioma necessário para afiar as lâminas da [sua] língua
.
Através do tambor, diminuí os efeitos negativos e vexatórios causados pela música Fricote
, de Luiz Caldas, que diz nega do cabelo duro que não gosta de pentear
. Eu só tinha cinco anos, era, uma criança negra, de cabelo crespo, alvejada em sua subjetividade pelo racismo recreativo, termo cunhado por Moreira (2019)¹¹. Imagina a dor? Imagina ser uma criança negra em uma sociedade que é forjada pela ditadura da estética branca dita como universal e dominante?
O tambor me conectava com outras produções de sentidos, conseguia me desviar da imposição dos papéis de gênero, que é íntima do patriarcado e operava fortemente no comportamento de minha família. Eu observava o medo do meu pai em ver sua filha, que, segundo ele, gostava de fazer as coisas de menino
. O despertar da sexualidade na minha infância e adolescência foi tomado como um lugar de desconforto pela minha família. Sobre esse efeito em torno da sexualidade, Louro (2000, p. 17) explica que ela, tendo em vista a mentalidade cisheteronormativa:
[…] deverá ser adiada para mais tarde, para depois da escola, para a vida adulta. É preciso manter a ‘inocência’ e a ‘pureza’ das crianças (e, se possível, dos adolescentes), ainda que isso implique no silenciamento e na negação da curiosidade e dos saberes infantis e juvenis sobre as identidades, as fantasias e as práticas sexuais. Aqueles e aquelas que se atrevem a expressar, de forma mais evidente, sua sexualidade são alvo imediato de redobrada vigilância, ficam ‘marcados’ como figuras que se desviam do esperado .
Queria apenas ser livre feito o vento, sem a interferência dos adultos enviesados pelas normas de gênero. Na infância, enquanto as meninas estavam sendo presenteadas
, leia-se: ensinadas
a se familiarizar com o universo doméstico — como brincar de boneca, cozinhar — e a assumir identidades emocionalmente frágeis, eu só queria seguir meus desejos, tocar o meu tambor e alcançar a liberdade oferecida aos meus irmãos.
A desobediência à expressão de gênero fortaleceu a minha subjetividade enquanto criança. A recusa de exercer os padrões normativos foi importante para que eu não normalizasse violências e silenciasse diante delas, evitando seguir o modelo das mulheres de minha família, que foram ensinadas a servir e a dedicar toda sua experiência de vida aos homens.
Ainda hoje, fico angustiada e triste ao ver essas mulheres sendo sufocadas pela cultura patriarcal, emaranhada no machismo de seus companheiros, pais e irmãos, eles que, na infância, também foram vítimas desta mesma cultura. O patriarcado é um monstro que assusta a subjetividade de todas as crianças.
Apego-me à reflexão de bell hooks (2020, p. 91):
A criança ferida dentro de muitos homens é um menino que, da primeira vez que falou suas verdades, foi silenciado pelo sadismo paterno, por um mundo patriarcal que não queria que ele reivindicasse seus reais sentimentos. A criança ferida dentro de muitas mulheres é uma menina que foi ensinada desde os primórdios da infância que deveria se tornar outra coisa que não ela mesma e negar seus verdadeiros sentimentos, para atrair e agradar os outros.
Nós somos ensinadas que a subserviência é o nosso destino. Venho de uma família enraizada na religião católica e evangélica, que se recusou a aceitar o caminho ancestral, colocando as religiões de matriz africana como manifestações do demônio
. Eu me recusei a dizer amém
às religiões eurocêntricas, que emergem como um cistema de poder e contribuem com a naturalização das desigualdades de gênero, rezando suas ideologias de forma a controlar e a aniquilar, sem piedade, a nossa existência.
Existir fora desses padrões me custou marcas provocadas por narrativas vexatórias. Não à toa, muitas vezes fui para a mata buscar folhas de bananeira e palhas de coqueiro para meu telhado. Meu barraco
era o meu refúgio, meu gozo, molhando o desejo em busca da liberdade. Na época, eu não tinha acesso a qualquer teoria, eu só seguia meus sentimentos. A sensação de não pertencimento às doutrinas religiosas e aos papéis de gênero na infância e adolescência rendeu o título de moleque-macho e ovelha rebelde da família — meu pai vivia dizendo que ia cortar minha asa e a borracha do meu badogue
, por causa da minha ousadia. Mal sabia ele que ninguém jamais poderia cortar o vento que soprava liberdade em meus pulmões. Assinei um contrato com o Tempo, de pertencer a mim e crescer genuinamente amando as