Travestis: Entre o espelho e a rua
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Sobre este e-book
O autor relata as histórias colhidas na pesquisa e mostra que o fantasma da Aids é apenas um dos muitos dramas vividos por esses personagens no cotidiano urbano. O livro traz ainda um levantamento da representação do travesti no cinema e em programas de televisão ao longo dos anos e um prefácio assinado pelo antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares, que destaca a importância da obra para a etnografia urbana e a literatura contemporânea brasileira. Além de discutir identidade e desejo entre este grupo social tão estigmatizado, Travestis – entre o espelho e a rua ainda tem o mérito de trazer à tona possibilidades de tolerância e de convivência.
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Travestis - Hélio R. S. Silva
... não cheguei nem perto do fundo da questão.
Aliás, não cheguei perto do fundo de nenhuma
questão sobre a qual tenha escrito...
– CLIFFORD GEERTZ
À memória de Helena de Troia.
Sumário
Prefácio
Introdução
I – O contexto
1. A pesquisa
2. O texto
3. O lugar da pesquisa
4. A Folha da Lapa
O mito de origem
A Idade de Ouro
Decadência
Luta pela recuperação
Breque: o que tudo isso pode significar
O mito de origem
A Idade de Ouro
Decadência
Luta pela recuperação
Breque: o que tudo isso pode significar
II – O Dia pela noite
Tarde
Os pelos
Natureza a contrapelo
Intolerância
O ninho dos preconceitos
O corpo e suas viagens
Na pensão de Darling
No apartamento de Darling
Passaporte
Ásia chocante
Nós de família
A morte de Maura
Guandu
Contexto e identificação
Fraternidades
Recife e seus algozes
Os objetos
Cena doméstica
Morte
No Museu Nacional
Os tempos mortos
Aids e outros assassinos
No Clube do Bolinha
Interpretações
Desabamento
Os pelos
Natureza a contrapelo
Intolerância
O ninho dos preconceitos
O corpo e suas viagens
Na pensão de Darling
No apartamento de Darling
Passaporte
Ásia chocante
Nós de família
A morte de Maura
Guandu
Contexto e identificação
Fraternidades
Recife e seus algozes
Os objetos
Cena doméstica
Morte
No Museu Nacional
Os tempos mortos
Aids e outros assassinos
No Clube do Bolinha
Interpretações
Desabamento
Noite
O começo da jornada
Frustrações
Ponto de encontro
Ânimos exaltados
Decadência
Direitos e deveres
Artimanhas de abordagem
Clientes e transeuntes
Insinuações de tragédia
Ordem tensa
O silêncio sepulta a morta
O rapaz que voltou a ser rapaz
Uma tentativa de assalto
Outono de Viena
A clientela
Quanto custa um gesto nobre
A amadora
Casas de espetáculo
Via Appia
Dublar
Toalete de Tigresa
Três bonecas de presente
Sal e açúcar
Reconhecimento
Trabalho e descanso
César assume
O começo da jornada
Frustrações
Ponto de encontro
Ânimos exaltados
Decadência
Direitos e deveres
Artimanhas de abordagem
Clientes e transeuntes
Insinuações de tragédia
Ordem tensa
O silêncio sepulta a morta
O rapaz que voltou a ser rapaz
Uma tentativa de assalto
Outono de Viena
A clientela
Quanto custa um gesto nobre
A amadora
Casas de espetáculo
Via Appia
Dublar
Toalete de Tigresa
Três bonecas de presente
Sal e açúcar
Reconhecimento
Trabalho e descanso
César assume
Manhã
Ar da manhã
Um casamento desfeito
A amante abandonada
Moradia
O travesti solitário
O travesti socializado
Projetos
A produção de si mesmo
As mentiras necessárias
Enganar
Nas cercanias do equilíbrio
Sacrifício e autenticidade
Eficácia simbólica
A morta e a morta
Ar da manhã
Um casamento desfeito
A amante abandonada
Moradia
O travesti solitário
O travesti socializado
Projetos
A produção de si mesmo
As mentiras necessárias
Enganar
Nas cercanias do equilíbrio
Sacrifício e autenticidade
Eficácia simbólica
A morta e a morta
III – Fim do campo
Ossos do ofício
IV – O Tema
1. O processo histórico
Espelhos
Papéis
O sentido do papel
Espelhos
Papéis
O sentido do papel
2. Feminismo
Rigidez dos papéis femininos tradicionais
Estilhaçamento dos papéis femininos
Rigidez dos papéis femininos tradicionais
Estilhaçamento dos papéis femininos
3. Contradições
Avanços e recuos
Transexualismo
Extravio
Avanços e recuos
Transexualismo
Extravio
Bibliografia
Créditos
O Autor
PREFÁCIO
Travestis, entre o espelho e a rua, que reúne, revistos e ampliados, dois livros notáveis de Hélio R. S. Silva, publicados há mais de dez anos –Travesti, a invenção do feminino e Certas cariocas –, reafirma e aprimora a qualidade original. Em uma palavra, esta reedição reformulada constitui um marco para a etnografia urbana e a literatura contemporâneas brasileiras.
Há muitas etnografias urbanas de excelente nível escritas em nosso país, repletas de observações detalhadas e acuradas, realizadas segundo métodos seguros e teorias consistentes. Elas renovam nossa percepção da realidade social e ampliam a compreensão dos fenômenos humanos. Algumas acrescentam a essas virtudes a qualidade do texto: são muito bem escritas.
Entre elas, raríssimas – se algumas – fazem da linguagem, enquanto repertório estético, matéria-prima e instrumento de construção do universo semântico, conceitual, reflexivo, descritivo, narrativo. Travestis, entre o espelho e a rua dá-se ao público leitor como experiência estética e peça etnográfica, simultaneamente. Mais: faz-se experimento etnográfico enquanto peça literária, pois a linguagem, aqui, não é ornamento ou adereço suplementar ao que diz o autor-antropólogo. O que diz, ele não poderia conceber e enunciar de outra maneira, em outras palavras, sem sacrificar a voltagem descritivo-reflexiva que logra gerar. Ele não poderia dizer em outra modulação verbal, com outra dicção narrativa.
A necessidade imperiosa da forma corresponde à radicalidade de sua participação na produção do sentido; à sua inseparabilidade do empreendimento conceitual-interpretativo, ou seja, do empreendimento etnográfico; à sua natureza intrinsecamente conceitual-interpretativa, isto é, à sua natureza intrinsecamente etnográfica. Impossível substituir a forma adotada, a menos que se renunciasse a manter a mesma carga reflexiva, comunicativa, hermenêutica, e a mesma acuidade perceptiva e crítico-desconstrutiva. É isso que caracteriza o literário: a necessidade da forma. Uma excelente etnografia poderia ser escrita de várias formas sem perder suas virtudes. O mesmo não vale para uma obra literária. Dar a uma obra literária outra forma é o mesmo que escrever outra obra, porque ela não se reduz ao sentido imediato que transmite. O literário não é apenas etnografia inventada ou narrativa ficcional. É universo rigoroso e pluridimensional, pontuado por ritmos, movimentos e significações que ecoam em sua arquitetura formal.
No caso de Travestis, entre o espelho e a rua, foi com esta mesma equação que identifica o literário – a indissociabilidade entre forma e conteúdo – que se estruturou a etnografia: observação criteriosa, metodicamente conduzida, cercada por interrogações que evocam a tradição da disciplina; mas também construção de linguagem, que internaliza, em seus movimentos, a lógica do objeto – o qual, simultaneamente, cumpre descrever como exterioridade empírica, objetiva, independente e registrável. Em poucas palavras: Travestis, o livro, mimetiza, dramatiza, metamorfoseia, reverbera, desnuda e dubla, em sua arquitetura e na coreografia dos signos que aciona, o movimento interno que caracteriza o fato social a descrever.
Por isso, aqui, não se trata do bem escrever. Trata-se de qualidade peculiar, à qual devemos um discurso de tipo particular, que figuraria entre as melhores realizações contemporâneas da prosa nacional, caso os relatos fossem publicados como contos ou crônicas, ou como novela em fragmentos, sem as referências que os inscrevem no contexto de uma pesquisa e de uma reflexão teórica específica. Contudo, o mais extraordinário, insisto, é o seguinte: pesquisa e reflexão, em Travestis, apenas se realizam, em sua plenitude, na e como linguagem-forma. Quer dizer: enquanto literatura. Esta é a novidade perturbadora.
Escrever – na acepção forte do verbo – é desaprender convenções e contrariar expectativas cristalizadas. E aí está a estranheza insistente da obra-prima: ela dá-se a sorver com gosto e se derrama, flui, mas nada é natural e não se a atravessa impunemente – ao lê-la, o centro de equilíbrio, nosso e do social, parece mover-se, suavemente, deslizando sob os pés. Para libertar o sentido – isto é, produzi-lo – e adensá-lo, o que há de vivo na história literária recomenda ao escritor a inscrição variada das palavras em múltiplas redes de conexões, inclusive e especialmente em domínios impertinentes à série dos significados que circulam na superfície. Mas esse jogo de linguagem nada tem de arbitrário, a posteriori, mesmo o tendo sido, a priori.
Desvelar a surpreendente evidência de possibilidades antes inconcebíveis corresponde a ampliar horizontes do humano, imprimindo novos impulsos à imaginação moral e à invenção política. Projetados retrospectivamente sobre a cena de que se descolaram (o objeto da descrição), em a descrevendo sob o prisma extremo da liberdade – ou seja, da estética ou, nesse caso, do literário –, esses horizontes rasgados autorizam o vislumbre de outra arquitetura, outras relações, outros movimentos. Autorizam percepções amputadas pela raiz do chão cultural que nos embriaga e entorpece: eis a liberdade a serviço do conhecimento. Entretanto, conceder a essa iluminação a nobreza do conhecimento e pô-lo a dialogar com disciplinas acadêmicas e seus credos legítimos, seus vocabulários e protocolos... eis o desafio.
As ciências humanas constituem patrimônio riquíssimo, mas iludem-se os que esperam estendê-lo apenas repetindo o que se sabe ou aplicando regras. Método e mapa, nesse caso, serviram à travessia já cumprida. Ao peregrino, para avançar, só resta desenhar sua própria estratégia e riscar sua trajetória na folha em branco. Seus traços se farão à imagem e semelhança do fenômeno-enigma que lhe compete identificar e interpretar. No fundo, a pergunta não é como chegar ao destino
– como se o objetivo da missão já estivesse delineado ou pudesse sê-lo antes de ser alcançado –, mas aonde se vai, aonde se quer chegar. Mapa e destino – método e objeto – são o mesmo problema.
Portanto, não basta confiar no cinto de utilidades do pesquisador, aquele presente que ele ganha dos avós na formatura escolar. A bússola enlouquece pouco depois que o neófito deixa o perímetro da universidade. Face ao turbilhão e à angústia em que mergulha o pesquisador, a tendência predominante é defensiva: por exemplo, adotar o tom blasé de que falava Simmel, e agarrar-se ao repertório da província intelectual em que iniciou sua jornada. O profissional recua e repete o que aprendeu, refazendo o percurso dos mestres, salpicando aqui e ali algum ingrediente original. A tendência é a estagnação. E o culto ao passado. A reverência ao instituído. A negligência ao desvio – independentemente de sua qualidade. A cobrança escolástica pelo pensamento domesticado, inseparável da forma domesticada. Itinerário profissional como neurose de repetição: todo poder ao establishment para conjurar a insegurança e a incerteza.
Poucas vezes nos lembramos de que competições e disputas acadêmicas são apenas cortina de fumaça a ocultar o óbvio: nosso pânico ante a precariedade dos fundamentos em que se sustentam nossas convicções.
O resultado é a linha de montagem à moda fabril: discurso truncado, calcado em citações, paranoico porque pretensioso e obcecado em não resvalar da frase justa, do sintagma translúcido, do clichê consagrado. Discurso inconsciente da inarredável pluralidade semântica que faz a linguagem vibrar. E do processo criativo que partejou a saga formidável das ciências humanas.
Mas há a prática livre e experimental dessas ciências humanas, abrindo espaços em instituições acadêmicas e institutos de pesquisa, passada através das gerações. Contribuições expressivas derivam dessa linhagem pluralista. Uma bibliografia notável já se acumula. Nela, deve figurar a obra de Hélio R. S. Silva, em destaque.
Aproximemo-nos de Travestis, entre o espelho e a rua, empreendimento cuja sofisticação, delicadeza e complexidade apenas se comparam ao prazer com que se oferece à fruição dos leitores. Deliciados, alguns se perguntarão – talvez o façam menos depois de lerem os primeiros parágrafos deste prefácio – se Travestis seria mesmo uma obra etnográfica, antropológica, catalogada nas bibliotecas sob a rubrica ciências sociais. Ou seria literatura, ainda que os personagens sejam reais e reais tenham sido suas histórias. Talvez jornalismo, ainda que à moda literária dos grandes autores do gênero, como Truman Capote, Michael Herr, John Hersey, Norman Mailer, Joseph Mitchell, Hannah Arendt (reportando o julgamento de Eichman), Graciliano Ramos (em suas memórias do cárcere), Ernest Hemingway (em seu relato da festa chamada Paris). Escritores, pensadores, jornalistas, esses autores cruzaram margens e borraram fronteiras. Se fosse assim, Hélio não estaria sozinho. Aliás, se o critério fosse apenas misturar os gêneros, Hélio integraria o panteão dos que ousaram experimentos híbridos e se tornaria personagem nada destoante na paisagem intelectual da pós-modernidade.
Mas não é bem assim. Rótulos não cabem aqui. Travestis, o que são, exatamente? Trânsito? Metamorfose? Uma construção minuciosa que se ergue, corpo e alma, em zigue-zague, driblando violência, preconceitos, antecipando-se, mimetizando o algoz, penetrando domínios, atravessando fendas obscuras entre dimensões, abrindo-se aos que passam – canais, vias –, aos que desejam passar, oferecendo cavidades, dobras e orifícios entre mundos, pelos quais se veem outras possibilidades de si mesmos, espelhos partidos na rua, ruína de identidades, farsa e tragédia, representação que se desnuda, catedrais góticas estilhaçadas em claustros da Lapa e cubículos de Copacabana, a suntuosidade kitsch dos paramentos nos shows, caprichos decadentes, dublagem, voz traiçoeira, aventuras rumorosas, trottoir vaporoso e exasperante, solidão, hipóteses cirúrgicas (cuja radicalidade o autor desmistifica), enxertos, silicone, hormônios, performances, e o trabalho incansável de dobrar e vencer, a contrapelo, poro a poro, o retorno da biologia.
O travesti – ao contrário do transexual, que capitula – calcula para si um centro, diz-nos Hélio, espichando-se até as extremidades do masculino e do feminino, e mantendo a tensão, explorando contradições e reconfigurações – tese e antítese sem dialética, sem síntese. Exímio equilibrista, carrega consigo a bipolaridade que lhe causa transtornos e vexames, mas que o reveste de tantas potencialidades, reais e imaginárias.
A obra de Hélio R. S. Silva é travesti: calcula para si um centro, monitorando possibilidades, frequentando extremos, experimentando limites. Desapegado ao tema da identidade e, sobretudo, à escatologia da dialética. Não espera, não prepara, nem antecipa o triunfo da síntese: o conceito que explique, finalmente, e redima as diferenças intratáveis, irredutíveis. Travestis, a obra, a narrativa, desfia as singularidades persistentes, que escorregam entre os eixos classificatórios e prolongam descrições em detalhes e sutilezas preciosas, interpelando leitores, induzindo-os a perseguir todas as trilhas até a poeira mais irrelevante, porque a bijuteria é, como tudo aqui, essencial. A obra, como seus personagens, leva às últimas consequências o exercício de esticar a experiência humana do sentido e da comunicação às pontas extremas do possível, estendendo-o, reinventando-o, transgredindo limites e disciplinas.
Tudo sendo falso – ou verdadeiro –, no universo teatral dos travestis – onde esta distinção é sistematicamente relativizada –, não há, para o autor, pistas falsas. Nesse mundo instaurado como vontade e representação, o risco seria traduzir, termo a termo, o cotidiano, confundindo-se com ele. A solução engenhosa foi condensar a energia dispersa dos caminhos inumeráveis em um relato compacto, no qual situações-chave de cada período do dia são flagradas – solução que, aliás, tem história na literatura do século XX, cujo principal herói rebateu a temporalidade mitológica na épura coloquial de um dia (a jornada de Ulisses). Por situação-chave me refiro à cena que concentra, de forma prodigiosamente fecunda e reveladora, elementos alusivos a dimensões diversas – individuais, emocionais, sociais, intersubjetivas, culturais, econômicas, micropolíticas –, constitutivas do modo de vida em pauta, em sua complexidade plástica, processual, repleta de ambivalências, ambiguidades e contradições. A tarefa do autor é capturar esses momentos, fisgá-los no fluxo de acontecimentos fortuitos, fixá-los em quadros pluridimensionais, devolver-lhes movimento, soprar-lhes a alma pelas frestas da narrativa, organizá-los e ordenar sua sucessão, contrastá-los, interrogar a matéria de que se fazem, perscrutar sua natureza cambiante.
Hélio R. S. Silva opera em duplo registro: etnografia e literatura. Está atento às exigências da primeira, com o devido respeito às melhores tradições da antropologia urbana – não por acaso, foi aluno do mestre pioneiro e principal referência nessa matéria no Brasil contemporâneo: Gilberto Velho. Recorre à literatura quando percebe que precisa convocar o testemunho dos símbolos, ativando-os para que voltem a atuar como tais e inundem o texto com seu brilho – não os reduzindo, portanto, a objeto de dissecação analítica. A intervenção da perspectiva literária não impede a realização do belíssimo trabalho etnográfico; tampouco este obsta a consecução da rigorosa elaboração literária. Por vezes, convivem, lado a lado, a descrição que se espera de um etnógrafo aplicado e a redescrição inesperada do escritor. Em outros momentos, superpõem-se os ofícios, em benefício da expansão da percepção sociológica e da aproximação do Outro – ao qual se chega por empatia, vacina contra estigmas; sem que se aliene o espírito crítico, jamais.
Vejamos um caso em que o virtuosismo do etnógrafo é complementado pelo rigor do escritor – o inverso também vale.
Diz-nos, Hélio, no capítulo Sal e açúcar
: "Ali, ela tratou de se desvencilhar de sua fantasia de Jeannie é um gênio e retornou do quarto num rabugento vestidinho doméstico, um torço improvisado a lhe proteger da fumaça dos bifes e dos vapores do feijão. Enquanto preparava o rango, auxiliada por Helena, que decidiu incrementar tudo com uns ovinhos mexidos, os homens bebiam cerveja, conversavam na cozinha. De todos, a mais quieta e silenciosa era Sharon, que parecia resistir a voltar a esse mundo prosaico, todo feito de bife, feijão e ovinhos mexidos.
"Glória queixava-se do filtro de parede da cozinha, que o sempre disposto Arnaldo limpou em segundos, explicando, didático, que não se limpa filtro com sal, como era o hábito de Glória, mas com açúcar. O fato é que o filtro que ela jurava não conseguir limpar adquiriu depois da limpeza de Arnaldo uma impecável tonalidade branca. Glória, de costas, a atenção voltada para o fogão, como se estivesse pensando: ‘Ah! Não sei, só sei que era com uma coisa branquinha que mamãe limpava o filtro.’
"Uma das lâmpadas fluorescentes da cozinha piscava sempre, outro desafio para Arnaldo, que subiu na cadeira. Ficamos sem luz alguns minutos, Glória tendo trazido dos quartinhos do fundo um candelabro já com todas as velinhas acesas. A dona da casa tinha lâmpadas e fusíveis complementares, faltava-lhe apenas um homem que os fixasse. Quando se fez a luz, depois de soprar velinha por velinha, tendo o cuidado de comprimir o pavio com os dedinhos molhados para não deixar odor, comentou com o sorriso agradecido para Arnaldo: ‘E eu que vinha sofrendo com esta lâmpada há três semanas...’
"Percorremos a casa enquanto bebíamos cerveja. Reconheci na biblioteca porte e qualidades compatíveis com a cultura requerida a uma professora de História. Estava ainda a considerá-la, quase como um inspetor do Ministério da Educação, quando ouvi Dr. Nilton me chamar. Pegou-me pelo braço e, rindo, conduziu-me até a porta do quarto de Glória. Dali da porta mesmo o apontava: na cabeceira da cama abajures rendados, nos profundos travesseiros duas lindas bonequinhas dormiam à espera da dona. Comentou, o riso bom: ‘É quarto de veado mesmo.’
Fiquei ali pensando um pouco no filtro de Glória e no alvoroço feliz que cercava o jantar. Era tudo tão desconcertante e ao mesmo tempo tão familiar, tão esdrúxulo e tão carinhosamente amigo. A comida boa, a cerveja gelada, uma simpática e gordinha dona de casa a nos cumular de atenções. Repeti para mim próprio como quem se aplica em si mesmo um bom beliscão para voltar a si: uma coisa branquinha pode ser sal, mas também pode ser açúcar.
No capítulo anterior, a turma que compunha o elenco do jantar em casa de Glória participou de uma festa infantil muito peculiar: "A essa altura, senhoras e crianças, o auditório, enfim, composto também de graves chefes de família, parecia chegar ao delírio. Delírio este que – não brinquemos com elas – evidentemente contagiou Paola, que, depois de bisar o número algumas vezes (em que fazia dublagem), pareceu em transe, protagonizando uma cena que seria constrangedora em outros sítios para além da Estrada do Guerenguê: desfez-se da calcinha em pleno palco, exibindo para o público, agora já de pé, excitadíssimo, o íntimo produto de sua cirurgia. Os aplausos frenéticos emolduravam a cena.
Ari, o apresentador, parecia não acreditar no que via. Talvez por isso tivesse descido do palco, microfone de fio comprido nas mãos, para recolher das mesas da plateia seus comentários e impressões. Foram todos depoimentos entusiastas sobre a excelência do show e contra o preconceito até chegar à simpática menina, epicentro daquele furor de exibicionismo sexual, já que a festa fora produzida para comemorar seus nove aninhos, que ao microfone declarou emocionada que de agora em diante queria que todos os seus aniversários fossem comemorados em festas gays.
Voltemos ao ponto em que o autor beliscava-se: "Repeti para mim próprio como quem se aplica em si mesmo um bom