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Água com gás & Outros Contos
Água com gás & Outros Contos
Água com gás & Outros Contos
E-book130 páginas1 hora

Água com gás & Outros Contos

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Sobre este e-book

A água é o elemento mais abundante do planeta. Em um banho morno, a água traz certo alívio para as dores do corpo e da alma. Uma água com gás "num bar horrível, onde só entrou porque precisava muito de um banheiro", pode mudar uma vida inteira. Durante o tratamento de câncer, a água garante o funcionamento do corpo, a regulação da temperatura e a eliminação de resíduos e toxinas. Pela terceira vez em tratamento oncológico, a autora declara que deveríamos "morrer vivendo, e não viver morrendo", afinal, cada dia é uma oportunidade para se desfrutar da melhor maneira possível. Estreante na ficção, mas com um talento veterano, Elza Galdino fisga, conduz e integra o leitor em cada história dos contos de "Água com gás".
IdiomaPortuguês
EditoraMinotauro
Data de lançamento1 de dez. de 2022
ISBN9786587017884
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    Água com gás & Outros Contos - Elza Galdino

    Água com gás

    Uma pulsão de morte a acompanhou desde sempre. Morreu-lhe a mãe no nascimento e o pai, na mesma hora entrou em estado de abandono do mundo, de nada lhe servindo também (ok, houve aquele espermatozoide).

    Por mágoa do pai nunca se aproximou de homens e pulou de mulher em mulher, com mais dor do que prazer. Aos 70 conheceu, num bar horrível onde só entrou porque precisava muito de um banheiro, um poeta.

    Achou que devia retribuir a gentileza do banheiro e comprou uma água com gás. Ia sentar no banco da rua e matar a sede. Ele abriu a porta pra ela, subitamente surpresa com aquele cavalheirismo que ela achava tão démodé (feminista raiz não admite homem abrindo portas, né mesmo?).

    Ele sentou-se com ela e estava meio bêbado (como convém aos poetas de bar). Ela ficou meio bêbada, não soube bem porque – se a atenção natural dele ou aquele par de olhos acinzentados que a olhavam com certa afabilidade (era Paul Newman¹ que tinha os olhos assim acinzentados? Ou?).

    Contaram reciprocamente o que ele chamava de epopeia amorosa terrena.

    Quando ela terminou de desfiar as mulheres todas ele lhe disse que aquilo era uma canção do Chico (o Buarque, que outro não existe, afiançou).²

    A primeira lhe chegou como quem vem do florista, trouxe um bicho de pelúcia, trouxe um broche de ametista. O bicho de pelúcia era, na verdade, o chaveiro-gorila da Kipling, pendurado numa mochila linda (e cara) que ela jamais compraria mas que usa até hoje (só o namoro era descartável, como concluiu três meses depois). E o broche de ametista foi mesmo uma viagem inesquecível a Ametista do Sul, de que jamais tinha ouvido falar e que mantém na memória porque ainda quer ver tudo aquilo novamente (e sozinha).

    A segunda lhe chegou como quem chega do bar, trouxe um litro de aguardente tão amarga de tragar. Era uma velha amiga, bateu-lhe à porta num começo de madrugada, saída de uma briga no bar com a agora ex. O litro de aguardente era a cara inchada de um tabefe e uma cachoeira de lágrimas que deixou no travesseiro de fronha até então intocada da troca do sábado. No domingo, trouxe a mala.

    A terceira lhe chegou como quem chega do nada e parecia trazer nada mesmo. Escondia o passado e já fazia home office quando ninguém sabia o que era, o que fazia crer que tinha morado no estrangeiro (onde se fala inglês, ou seja, em todo o Ocidente pelo menos) e nunca lhe deixou ver seus escritos, que vendia a bom preço. Mas se deitou na cama e a chamou de mulher, coisa que ela percebeu que negava a si mesma até o último fio de cabelos cortados à la garçonne.

    Claro que houve muitas outras, tantas que nem lembrava, ajudada pelo dito esquecimento freudiano (a terapeuta junguiana adorava Lacan e usava o artifício de Freud pra eliminar traumas instantaneamente). Mas as relatou, também, àquele estranho de repente conhecido, de repente amigo, de repente íntimo, na certeza de que nunca mais se encontrariam e era então só um alívio esse revival do tipo vale-a-pena-ver-de-novo, e parece até que valia mesmo. Sentiu-se assim, sem qualquer arrependimento, como aqueles porres que todos tomam numa festa só de amigos e amanhecem dormindo nos quatro cantos da casa do anfitrião, sem culpa alguma (o primeiro a acordar sempre vai fazer o café e depois sai chutando delicadamente os retardatários pra que pelo menos ponham as canecas e o pão na mesa, já que fiz até omelete).

    Ele ouviu tudo em silêncio e ela estranhou muitíssimo, já que estava tão exausta de ser interrompida que fez placas para quando participava das reuniões e as levantava sempre que necessário, causando, ainda, espanto, mas já alguma reeducação nos infratores (manterrupting – homem que interrompe; bropriating – homem que se apropria da ideia já expressa pela mulher e leva os créditos; gaslighting – abuso que faz a mulher duvidar de seu senso de percepção e mansplaining – homem que explica a uma mulher o que ela sabe mais que ele). Ainda ria por dentro porque no começo todos diziam que a macha achava que era mulher e agora descobriram que ela é mesmo, e ainda apoia as outras, ora bolas!

    Daí foi a vez dele de falar, e então tiveram que ir de novo ao banheiro do boteco e aproveitaram para pegar mais duas águas (que confissão dá mais sede que conversa, parece).

    Ele contrastava com ela porque falava entrecortadamente, parece que com longos mergulhos em memórias muito remotas, mas sabia mesmo encantar com as palavras. Vez ou outra tirava da bolsa (sim, ele carregava uma bolsa) um volume manuscrito e lia trechos inspirados por uma ou outra das apelidadas respeitosamente musas.

    Eram muitas e pareciam todas lindas, diáfanas, irreais quase, e ao mesmo tempo duma concretude tão contundente que a alma dele parecia ter sido cruelmente apedrejada. Ele falava de um jeito doce, sem qualquer mágoa (uma me levou todos os móveis da casa, outra raspou a conta bancária, teve uma que tentou me envenenar), como se estivesse contando um filme ou a vida de outro.

    Ela se flagrou invejando as musas, todas elas, com todos os defeitos que tinham e que ele relatava ponteando com doçuras recebidas e afagos retribuídos, porque lhe enriqueceram tanto a existência que sua poesia só melhorou.

    Ao que pareceu o fim daquele encontro confessional surpreenderam-se com o dono do bar baixando a porta de ferro e atrapalhando o sono dos normais (ou seja, todos os que não trocavam confidências com estranhos no primeiro encontro que aliás nem era um encontro).

    Era madrugada, nenhum dos dois tinha carro e pareceu natural caminharem até uma birosca próxima, para comer alguma coisa. Ali ele era conhecido e (ela sentiu um estranho alívio) foi cumprimentado por quase todos os habitués, mas não por uma ou duas mulheres nas mesas pequenas e dispostas a uma mínima distância umas das outras.

    Serviam um bife à cavalo famoso, e ela se descobriu faminta de carne (quebrando uma promessa antiga de não comer bichos de quatro patas), que acompanhou de cerveja preta doce, e ele riu dizendo que aquilo era um crime contra o cozinheiro.

    O bistrô era do tipo só-fecha-quando-o-último-freguês-for-embora e ninguém saia de lá antes do amanhecer.

    As primeiras luzes do sol nascente pegaram os dois ainda juntos, rindo de piadas velhas que ambos conheciam e que achavam deveriam constar de um raro almanaque para ensinar as novas gerações a rir de coisas que não ofendam, só sejam engraçadas na sua simplicidade inteligente.

    Ele lhe disse que era pobre e a convidou para conhecer sua pobreza (agora? Agora, por que não?).

    Era um pequeníssimo sítio, escondido em uma vila de casas com um grande portão e uma espécie de pracinha onde já estavam crianças e velhos, uma vizinhança que o saudou alegremente e perguntou se o milho já estava a ponto de colher porque alguém (ela não entendeu o nome) ia fazer novamente o curau pra todos ali.

    Ela se surpreendeu com a ordem e a limpeza, e não estranhou o vazio da geladeira e da despensa. Ele tinha a melhor cafeteira do mercado e a convidou para o melhor café de sua vida.

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