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Michel Foucalt: Vida e obra do jusfilósofo
Michel Foucalt: Vida e obra do jusfilósofo
Michel Foucalt: Vida e obra do jusfilósofo
E-book1.068 páginas16 horas

Michel Foucalt: Vida e obra do jusfilósofo

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Sobre este e-book

Assim, mais do que uma reflexão que tem por objeto a obra de Foucault (embora esta seja uma outra possibilidade), o livro pode ser visto como instrumento ou um conjunto de ferramentas para se ver, pensar, e principalmente gerar uma atitude diferente no campo da práxis jurídica. (Celso Ludwig, prefácio)
IdiomaPortuguês
Data de lançamento16 de nov. de 2020
ISBN9786556271033
Michel Foucalt: Vida e obra do jusfilósofo

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    Michel Foucalt - Guilherme Roman Borges

    Michel Foucault

    Michel Foucault

    Michel Foucault

    VIDA E OBRA DO JUSFILÓSOFO

    2020

    Guilherme Roman Borges

    1

    MICHEL FOUCAULT

    VIDA E OBRA DO JUSFILÓSOFO

    © Almedina, 2020

    AUTOR: Guilherme Roman Borges

    DIRETOR ALMEDINA BRASIL: Rodrigo Mentz

    EDITORA JURÍDICA: Manuella Santos de Castro

    EDITOR DE DESENVOLVIMENTO: Aurélio Cesar Nogueira

    ASSISTENTES EDITORIAIS: Isabela Leite e Marília Bellio

    DIAGRAMAÇÃO: Almedina

    DESIGN DE CAPA: Roberta Bassanetto

    ISBN: 9786556271033

    Novembro, 2020

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

    (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)


    Borges, Guilherme Roman

    Michel Foucault : vida e obra do jusfilósofo /

    Guilherme Roman Borges. -- 1. ed. -- São Paulo :

    Almedina, 2020.

    ISBN 978-65-5627-103-3

    1. Filosofia francesa 2. Foucault, Michel,

    1926-1984 3. Foucault, Michel, 1926-1984 - Vida

    social e política I. Título.

    20-44508 CDU-194


    Índices para catálogo sistemático:

    1. Foucault : Obras filosóficas 194

    Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964

    Universidade Católica de Brasília - UCB

    Reitor: Prof. Dr. Ricardo Pereira Calegari

    Pró-Reitora Acadêmica: Prof.ª Dr.ª Regina Helena Giannotti

    Pró-Reitor de Administração: Prof. Me. Edson Cortez Souza

    Diretor de Pós-Graduação, Identidade e Missão: Prof. Dr. Ir. Lúcio Gomes Dantas

    Coordenador do Programa de Pós Graduação em Direito: Prof. Dr. Maurício Dalri Timm do Valle

    Editor-Chefe do Convênio de Publicações: Prof. Dr. Marcos Aurélio Pereira Valadão

    Este livro segue as regras do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990).

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro, protegido por copyright, pode ser reproduzida, armazenada ou transmitida de alguma forma ou por algum meio, seja eletrônico ou mecânico, inclusive fotocópia, gravação ou qualquer sistema de armazenagem de informações, sem a permissão expressa e por escrito da editora.

    EDITORA: Almedina Brasil

    Rua José Maria Lisboa, 860, Conj.131 e 132, Jardim Paulista | 01423-001 São Paulo | Brasil

    editora@almedina.com.br

    www.almedina.com.br

    God knows we’ve equal personality

    Why should men face the dark while women stay

    To live and laugh and meet the sun each day"

    (Nora Bomford – Drafts)

    À minha amada filha Ana , à sua feliz realização existencial, à coragem e à robustez de seu devir-mulher.

    APRESENTAÇÃO

    O presente trabalho é produto das pesquisas iniciadas ainda no final dos anos 1990, no âmbito da Faculdade de Direito da UFPR, então orientadas por Katie Silene Cáceres Argüello e Celso Luiz Ludwig. Naturalmente, ambos de alguma forma estarão presentes nos interstícios deste ensaio.

    Trata-se de um texto que procura localizar o saber foucaultiano dentro da quadratura da ciência jurídica, sem fazer dele um teórico do direito, como talvez ele mesmo rejeitaria, sem também o manter no âmbito estritamente da filosofia ou da sociologia. É uma forma de diálogo, tentando ver nos seus escritos filosóficos um Foucault preocupado com questões jurídicas, ou questões teóricas que dialogam com a justeórica, eis porque, uma espécie de balanço de um jusfilósofo.

    Parte dessas linhas já foram apresentadas à banca de respeitados professores nos tempos de graduação, dentre eles, além dos que guiaram as pesquisas, Ricardo Marcelo Fonseca e Silvino Assmann, os quais também deixaram suas marcas com as críticas feitas. Também algumas ideias já foram reproduzidas em artigos esparsos, mas aqui condensadas e interelacionadas.

    Entretanto, agregam-se aqui discussões que hoje caminham para entender de que modo o pensamento foucaultiano pode servir não apenas para discutir um "ethos" dentro do direito oficial, e suas raízes gregas tradicionais (temas estes aprofundados em outras pesquisas, especificamente doutorais), mas desconstituir este mesmo direito e deixar vir um direito inoficial (temas investigados hoje em pesquisas pós-doutorais sobre a descoloniação do direito brasileiro).

    Em suma, pensar um Michel Foucault jusfilósofo, seja para evidenciar as matrizes gregas do pensar jurídico, seja para entender de que maneira sua atitude crítica nas ciências humanas servem como revisão da episteme jurídica, abrindo caminho para desnudar a hybris do punto cero, a objetividade e a abstração da teoria do direito brasileiro, tão fria quanto artificial, como diria Santiago Castro-Gómez.

    PREFÁCIO

    1. A proposta

    É com grande satisfação que recebi o convite para prefaciar este livro de Guilherme Roman Borges. Desde logo posso dizer que a obra é importante e diferente contribuição para a reflexão do saber no campo do direito, em especial da filosofia e da teoria do direito.

    Em sua Introdução o autor indica o objetivo do livro: investigar a importância da obra de Foucault, especialmente na sua interface jurídica. O objetivo central vem desdobrado em alguns aspectos que revelam a complexa polêmica a ela inerente, na medida em que as reflexões do filósofo tocam o campo jurídico, direta ou indiretamente, e as inevitáveis reações de todos os lados. Projeta também os potenciais leitores: os que apenas querem se iniciar no pensamento foucaultiano e aos que já possuem um certo conhecimento e buscam novas reflexões sobre e a partir de sua obra. Elegeu, para tanto, quatro interfaces que podem ser endereçadas: a aspectos da vida do pensador, à fase do saber, à fase do poder, e à fase do sujeito.

    Cada uma dessas interfaces pode ser vista como uma densa reflexão de Foucault, e ao mesmo tempo sobre a obra foucaultiana. Isso pode ser confirmado, certamente, pelo leitor. No entanto, vejo que o sentido de cada interface tem em vista, principalmente talvez, nessa publicação, uma outra interface manifesta ou pressuposta, que é a interface jurídica. Ou dito de outra maneira, tem como horizonte a provocação do campo jurídico. Tal destaque se expressa no próprio título do livro Foucault jusfilósofo. Algo como a mostrar que cada interface tem muito a dizer ao Direito, mas ao mesmo tempo, o Direito passa a ter muito a dizer a partir de cada interface. Nesse caso, como sendo a condição de possibilidade de outro discurso jurídico. E que pode talvez ser discurso jurídico outro.

    2. A vida

    Em uma Breve Biografia Guilherme apresenta momentos da vida de Foucault desde seu nascimento, com destaque à formação do início ao doutoramento, com ênfase à atividade de professor, conferencista e escritor, com menção à convivência com colegas pensadores, e com realce à participação política e sua práxis social e cultural engajada, até, por fim, referência à luta pela vida diante da saúde abalada.

    A presença, ainda que breve, de aspectos da vida de Foucault, parece importar muito – portanto, para além da notícia – por permitir impressões, quanto à sua elegância e de seu estilo brincalhão, por exemplo, quando em auditório superlotado na PUC-RJ, todos vestidos descontraidamente, apareceu Foucault de terno e gravata, e de imediato anunciou: agora que vocês já sabem que tenho uma gravata, posso tirá-la!. Assim era Foucault, testemunha Roberto Machado . Para logo a seguir afirmar que apresentaria hipóteses possivelmente inexatas, falsas, incorretas.... Assim era Foucault, provocativo, na vida e na academia. A notícia inesperada da morte de Foucault, me deixou mudo ao telefone, tonto, sem chão, confessa Roberto Machado, porque se uma morte é sempre cruel, a de Foucault, jovem, no auge da criatividade, é revoltante! Sentimento que se estende a tantos que tiveram contato com a vida e obra do pensador. Nos diz ainda: Penso em sua importância para mim, por seus livros, seus artigos, suas aulas, suas conferências, suas atitudes, seu afeto. Sua obra mudou minha vida. Desde que comecei a estudá-la, passei a pensar diferente". Essa impressão é paradigmática pelo que se estende a tantos!

    Saber alguma coisa sobre suas viagens, locais, culturas, situações, contextos, interlocutores principais, acontecimentos, ambientes, circunstancias acadêmicas e existenciais ajudam a compreender Foucault e seus pensamentos: Além disso, suas entrevistas e palestras dão a impressão de que ele é um quando fala na França, outro quando nos Estados Unidos, e ainda outro quando no Japão, na Tunísia ou no Brasil (...). Se nos Estados Unidos e na Europa ele é outro, é porque lá as pessoas pensam diferente, e ele quer atingir aquelas pessoas de modo específico (...).

    O filósofo Michel Foucault sempre estava disposto ao combate, à luta, mesmo nos enfrentamentos de militância das ruas, detido algumas vezes pela polícia, fazendo declarações à imprensa, se manifestando em eventos estudantis, enfim, sempre correndo riscos – pois, toda coragem é física! Para exemplificar, no Brasil, em plena ditadura militar, no Rio de Janeiro, afirmou que se os brasileiros realmente quisessem, derrubariam o regime militar! Se todos dissessem não, o poder não funcionaria!; em São Paulo, na USP, em assembleia de protesto contra a prisão de estudantes, professores e jornalistas, Foucault anunciou a suspensão do curso que ministrava, afirmando entre outras coisas que Uma universidade que não é plenamente livre não passa de uma empresa de servilismo. Não dá para lecionar sob o tacão das botas; não dá para falar dos muros das prisões; não dá para estudar quando as armas ameaçam. (...) Presto minhas homenagens à sua coragem e me associo de bom grado às decisões que vocês possam tomar para conseguir que a justiça não seja uma palavra ultrajada. Roberto Machado informa que o pronunciamento do filósofo foi corajosamente publicado no Jornal EX de novembro de 1975, com o título ‘Uma aula de Fucô’, e foi para os arquivos da repressão.

    As informações quanto aos interlocutores de Foucault, tem em vista os assuntos que auxiliam a compreensão de sua obra, mais especialmente os que contribuem, pelos acordos e desacordos, para repensar o discurso jurídico e o discurso filosófico, como assevera Guilherme: se se escolhem Sartre, Heidegger, Arendt, Derrida, é porque as temáticas que os integram e os separam de Michel Foucault servem aos questionamentos futuros da interlocução com o discurso jurídico (cuidado de si, liberdade, loucura), dessa maneira, inúmeros autores são renegados, como Deleuze, Blanchot, Hyppolite, não porque não foram importantes para Foucault, mas porque ao trabalho que se apresenta não se mostraram diretamente relacionados com a base teórica e a delimitação de seu pensamento na questão jurídica.

    Assim, imagino que aspectos biográficos podem ser um pedaço do fio condutor na leitura do livro do Guilherme.

    3. O saber

    A organização do texto tem na fase do saber um dos seus momentos, bastante recorrente nos estudos e publicações da obra de Foucault, com diferentes nomeações (fase, etapa, dimensões, áreas, campos, eixos e outras). O que se pretende dizer é que há um conjunto de textos e reflexões que constituem uma arqueologia do saber. O recorte proposto na obra consiste, nesta questão do saber, mostrar a relação das ideias foucaultianas com o discurso jurídico, especialmente nos temas da: historiografia na história e na história do direito; crítica às ciências humanas e a conformação do direito ante tais ciências; psicanálise e discurso jurídico; discurso, arquivo, episteme e disciplinas com a definição de um discurso jurídico. Enfim, trata-se de um olhar e dizer do e sobre o discurso jurídico, nos termos da interpelação do próprio Foucault, e também o que pode ser visto e dito através de Foucault.

    O saber como uma linha a mais para o fio condutor do e no pensamento de Foucault e na leitura deste livro.

    4. O poder

    O livro se organiza em sua textura com mais este momento, a fase do poder. A determinação central desta dimensão mostra a visão de microfísica e normalização na constituição de um biopoder, em vista também da reflexão jurídica. É também tema da loucura, do criminoso, dos manicômios e das prisões, e a ordem do discurso jurídico nestes assuntos. Nesse eixo do poder, o autor enfrenta de igual modo a recepção e o modo da recepção das teorias foucaultianas na teoria do processo e na teoria da decisão. E, por fim, a questão da norma e do Estado, na perspectiva jurídica. Como na fase do saber, também aqui o autor não se limita às incursões da reflexão de Foucault sobre o discurso jurídico, mas mostra a presença foucaultiana no campo do direito.

    Essa é certamente uma parte do fio condutor da leitura tanto de Foucault como deste livro de inestimável ajuda na compreensão da realidade em geral e da realidade jurídica dos tempos atuais, especialmente nos conflitos das relações de poder da estrutura e da conjuntura do Brasil de hoje.

    5. O sujeito

    A fase do sujeito ou a fase da ética configura o momento da considerada concepção mais madura de Foucault. Neste momento o foco da reflexão recai sobre o sujeito, sua autoconstituição e novas possibilidades de existência, a partir das experiências que o sujeito faz de si, no cuidado de si, na relação consigo, e mesmo na perspectiva de um devir, movimento de ultrapassagem do mesmo ao outro. Essa reflexão no deslocamento para o eixo do sujeito tem o olhar voltado para a a reflexão na configuração de um novo sujeito de direito, com destaque a alguns temas: sexualidade e a repressão jurídica aos crimes contra os costumes, na formação de um sujeito permeado por sua expressão sexual; a posição de Foucault em relação à ética, à amizade e à noção de moral no discurso jurídico; por fim, preocupa-se com a posição do intelectual, do autor, da educação e toda a sua importância para o ambiente jurídico.

    A questão do sujeito é decisiva e perpassa as diversas fases do pensamento de nosso filósofo, bem como o modo de distribuição dos diversos temas do livro de Guilherme.

    O fio condutor – os quatro momentos – é organizado e orientado pela especificidade da questão jurídica – ou de outro modo –, a interpretação, a leitura feita pelo Guilherme de alguma maneira se condiciona pela reflexão jurídica manifesta na obra de Foucault e pela reflexão jurídica latente que olhares e dizeres foucaultianos atualizam a partir das obras, dos ditos e escritos de Foucault. Filosofia e Teoria do Direito feita e a fazer! O livro de Guilherme é uma das possibilidades que opera tal movimento. Muitas potencialidades a serem atualizadas estão sugeridas neste livro. Não sei se é a mais correta, mas gostaria de indicar tal possibilidade de leitura. Assim, mais do que uma reflexão que tem por objeto a obra de Foucault (embora esta seja uma outra possibilidade), o livro pode ser visto como instrumento ou um conjunto de ferramentas para se ver, pensar, e principalmente gerar uma atitude diferente no campo da práxis jurídica.

    A dimensão instrumental do pensamento de Foucault – o que me parece não deixa de ser foucaultiano! – pode materializar o desejo, e hoje a necessidade, de fazer alguma coisa diferente da rasteira e superficial vigência do presente. O livro apresenta o autor Foucault em exame de sua vasta produção, inclusive em item revisando os livros, que permite ao leitor, iniciado ou não, intelecção e compreensão de seu pensamento, com o que o escrito cumpre, entre nós, mais essa importante tarefa. No entanto, sublinho a importância instrumental – ideias, conceito, categorias, provocações, suspeitas – na condição de um conjunto de ferramentas, agora, apontadas na direção do horizonte jurídico. Tudo isso a permitir e possibilitar outro discurso jurídico e outra prática: um jurídico outro!

    Nessa perspectiva, o leitor encontrará neste livro de Guilherme Roman Borges um vasto e profundo campo para inovadoras reflexões tão necessárias nesse tempo de agravamento da injustiça! À leitura!

    Celso Luiz Ludwig

    Prof. de Filosofia do Direito

    UFPR e UNINTER

    SUMÁRIO

    Introdução: conhecer Michel Foucault para pensar o direito

    I – Michel Foucault e suas Implicações

    1. Uma breve biografia

    2. Revisando os livros

    2.1. Doença Mental e Psicologia (1954)

    2.2. História da Loucura na Idade Clássica (1961/72)

    2.3. O Nascimento da Clínica (1963)

    2.4. Raymond Roussel (1963)

    2.5. As Palavras e As Coisas (1966)

    2.6. A Arqueologia do Saber (1969)

    2.7. A Ordem do Discurso (1975)

    2.8. A Verdade e as Formas Jurídicas (1973)

    2.9. Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão (1973)

    2.10. Vigiar e Punir: História da Violência nas Prisões (1975)

    2.11. História da Sexualidade I: A Vontade de Saber (1976)

    2.12. Herculine Barbin dita Alexina B. (1978)

    2.13. A desordem das Famílias (1982)

    2.14. História da Sexualidade II: O Uso dos Prazeres (1984)

    2.15. História da Sexualidade III: O Cuidado de Si (1984)

    3. A fundação do seu pensamento

    3.1. Friedrich Nietzsche lido pela verdade e pelo poder

    3.2. Gaston Bachelard, Georges Canguilhem e as bases epistemológicas

    3.3. Martin Heidegger como cuidado e liberdade

    3.4. Immanuel Kant e a atualidade do presente

    4. Algumas relações essenciais

    4.1. Max Weber, a condução da vida e do poder

    4.2. Jürgen Habermas e os horizontes da teoria crítica

    4.3. Nicos Poulantzas e a positividade relacional

    4.4. Louis Althusser e o debate marxista

    4.5. Jean-Paul Sartre e as angústias do humanismo e do existencialismo

    4.6. Antonio Gramsci e a organicidade do intelectual

    4.7. Jacques Derrida e o cogito cartesiano

    4.8. Hannah Arendt e os limites da liberdade e da política

    II – O Saber e sua Reflexão Inicial

    5. História e historiografia no direito

    5.1. Discurso, saber e episteme: o ponto de partida

    5.2 A arqueogenealogia e a crítica historiográfica

    5.3. Rediscutindo a história do direito

    6. As ciências humanas, psicanálise, direito

    6.1. As ciências humanas e o discurso jurídico

    6.2. A topografia da psicanálise

    6.3. O lugar do movimento antipsiquiátrico

    III – O Poder e a Viragem do Pensamento

    7. A analítica do poder e o direito

    7.1. Analítica histórica e a normalização

    7.2. Analítica filosófica e a dimensão relacional

    7.3. Analítica política e a resistência

    8. Exclusão e normalização

    8.1. A exclusão do louco e o criminoso

    8.2. O abolicionismo penal

    8.3. As prisões hoje

    IV – O Sujeito como Obra Final

    9. Do cuidado de si à amizade

    9.1. Tecnologias e estética de si

    9.2. O cuidado de si e a questão da liberdade

    9.3. As práticas de liberdade e a amizade

    10. Sexualidade e discurso jurídico penal dos costumes

    10.1. A sexualidade moderna e a discursividade do sexo

    10.2. A criminalização dos contra-costumes

    10.3. A sexualidade penalmente reprimida

    Conclusões: em busca do jurista curador de si

    Referências

    Introdução

    Conhecer Michel Foucault para pensar o direito

    Os questionamentos sobre determinados temas, como subjetividade, poder, ética, sexualidade, saber e discursos constituíram sempre, sobretudo de algumas décadas para os dias de hoje, questões indispensáveis de serem postas, refletidas e investigadas no ambiente científico, sejam elas de cunho filosófico, sociológico, histórico, psicanalítico, jurídico, etc. Indagações que não se colocam à toa, desconectadas do mundo, mas, pelo contrário, que se projetam na dimensão humana, na sua história, no seu progresso e no seu desenvolvimento; no seu retrocesso e no seu desgaste; na sua aniquilação e na sua superfície.

    Analisar a vida do brilhante intelectual francês, Michel Foucault, como tantos e poucos outros, especialmente no seu cruzamento com o discurso jurídico, é colocar-se naquele trilho de angústias e insatisfações, de presenças e calmarias; é endireitar-se no caminho, mas ao mesmo tempo; é dobrar a cada esquina, separar-se a cada bifurcação, interromper-se na curva.

    Tendo em vista essa árdua tarefa de pesquisar tais temas, especialmente no universo filosófico e jurídico, é imensamente importante escolher paradigmas teóricos, para melhor refleti-los e desvendá-los, evitando-se, assim, inúmeras incoerências e inexistências de marcos, de estratégias de abordagem, e, para tal propósito, aprouve-se eleger Michel Foucault. É sobre este magnífico intelectual, como diria Annie Guedez, um fenômeno cultural, o sinal individual de uma evolução do campo intelectual de nossa sociedade,¹ que teve sempre um jeito peculiar de viver, que amava pintura, poesia, Bach, Mozart, literatura, como o romance Au-dessous du Volcan, mas detestava, segundo Jacqueline Verdeaux, a natureza, pois não via graça em quadros feitos de sol reluzente e céus bonitos;² ao mesmo tempo, uma pessoa sarcástica, fiel em suas amizades,³ obstinada, extremamente culta, de personalidade forte, riqueza intelectual e erudição indiscutível, que acabou por marcar o mundo acadêmico do séc. XX, que se pretende adiante traçar algumas linhas e alguns horizontes.

    O texto que se espraia a seguir objetiva antes do que qualquer imposição de questionamentos mais alvissareiros, investigar a importância da obra de Foucault especialmente na sua interface jurídica, isto é, sobretudo no liame que se vislumbra, quando as teorias deste filósofo tocam o universo jurídico, direta ou indiretamente, causando furor a inúmeros filósofos, e indubitáveis críticas de incontáveis juristas. Procura-se, sempre que possível, não simplesmente traçar os argumentos de Foucault a respeito de um determinado tema jurídico, mas permitir um diálogo, uma interlocução, por vezes um monólogo, com os próprios juristas, isto é, permitir que a teoria foucaultiana seja posta à prova e contraposta às reflexões jurídicas, a fim de que se possa, assim, antes de tão-somente estudar o conjunto de sua obra e de suas investigações, aplicar o pensamento deste filósofo no ordenamento jurídico, para que realmente se verifique o impacto de suas indispensáveis concepções jurídico-filosóficas, encontrando-se, talvez, um jusfilósofo.

    O objetivo se coloca desde o início: atingir a leitores diversos, dos que apenas querem se introduzir no pensamento foucaultiano, aos que já possuem um certo conhecimento, e desejam buscar novas correlações, deixando-se, certamente, aqueles leitores já experimentados de lado, posto que a esses nada se poderia, de fato, contribuir além dos originais, muito menos com este texto. Para tanto, acreditou-se por bem indagar a presença de Foucault em quatro interfaces, as quais podem por sua própria história ser definidas, como muitos já o fizeram; de sua vida, de sua fase do saber, de sua fase do poder, e, por fim, de sua fase do sujeito:

    a) A primeira, procura iniciar por uma abordagem mais planificada, passando pela sua vida (tendo como referência, especialmente, os clássicos livros de Didier Eribon, David Macey, Hervé Guibert, e as cronologias reunidas por Daniel Defert e François Ewald), pelos intelectuais que lhe foram essenciais na fundação de seu pensamento, pelos autores contemporâneos que se ocuparam das mesmas temáticas, objetivando delimitar o pensamento de Foucault (logo, ir até aonde é possível pensar alguns assuntos sem que se recaia em contradições e distanciamentos desnecessários), e por uma breve síntese de suas principais publicações. Quer-se situar o pensamento de Foucault dentro dos rumos históricos que a humanidade, nos avanços e significativos retrocessos, passou durante sua vida no séc. XX; compreender cada publicação de Foucault, cada alteração de rumo em suas pesquisas; cada mudança de enfoque, cada tropeço e saltos gnoseológicos, enfim, quer-se localizar Foucault, tentar-lhe traçar um mapa dentro de sua própria genealogia, encontrar nele próprio uma orientação e um método arqueológicos. Procura-se ir não a uma detalhada biografia, cujo leitor teria que se dedicar exaustivamente a tal feito, mas tampouco se pretende fazer uma biografia pontualmente datada, que não só vai de encontro aos próprios ensinamentos de Foucault, quanto não serve à nada. É preciso trazer certas nuances, certos envolvimentos de Foucault, certas guinadas teóricas representadas por sua vida pessoal.

    Do mesmo modo, seguem-se os resumos de todas as obras de Michel Foucault, isto é, trazem-se pequenos instrumentos de introdução do leitor ao conjunto da obra do intelectual francês, permitindo assim, que o leitor que por ventura não tenha lido todos os seus livros, não tome por mímese uma única obra como se o todo fosse, e então interprete erroneamente o pensamento foucaultiano, que por sua própria natureza altera-se texto a texto. O objetivo é único e despretensioso: permitir uma visão global das obras, ainda que de maneira inicialmente superficial, sem críticas ou considerações essencialmente pessoais, apenas tracejando conceitos básicos e reproduzindo as ideias principais de Foucault, bem como trazendo, sempre que possível, com base nas leituras de todas as suas entrevistas, o impacto de suas obras na França e no mundo no momento em que foram publicadas.

    Quanto às interlocuções com os autores, as metas se alongam um pouco, e partem em busca da delimitação do pensamento foucaultiano em relação aos autores com os quais lhe serviram de base, de fundamento, e, em relação àqueles que com ele viveram, dialogaram ou apenas contribuíram para responder a seguinte pergunta: até aonde vai o pensamento de Michel Foucault? ou melhor, o que há de Foucault em determinados temas que não de outros autores? O fim é evidente: encontrar os contornos das ideias foucaultianas. Os autores então resgatados não são aleatoriamente escolhidos, mas planejados e direcionados de acordo com as temáticas que adiante servirão de pano de fundo para repensar o discurso jurídico e o discurso filosófico, isto é, se se escolhem Sartre, Heidegger, Arendt, Derrida, é porque as temáticas que os integram e os separam de Michel Foucault servem aos questionamentos futuros da interlocução com o discurso jurídico (cuidado de si, liberdade, loucura), dessa maneira, inúmeros autores são renegados, como Deleuze, Blanchot, Hyppolite, não porque não foram importantes para Foucault, mas porque ao trabalho que se apresenta não se mostraram diretamente relacionados com a base teórica e a delimitação de seu pensamento na questão jurídica.

    b) A segunda, enlaça desde o início, na questão do saber, as ideias foucaultianas e o discurso jurídico, abordando o tema da historiografia na história e na história do direito; as críticas às ciências humanas e ao posicionamento do direito como tais ciências; a relação entre a psicanálise e o incipiente debate com o discurso jurídico; e, finalmente, a conceituação do discurso, do arquivo, da episteme e das disciplinas na interceptação com a definição de um discurso jurídico. O objetivo se estende além da simples reflexão dentro da obra de Foucault, procura-se, sempre que possível, inicialmente, investigar a obra foucaultiana, no que tem de original, no seu próprio zelo, para em seguida, encontrar a relação com o discurso jurídico, no que o próprio Foucault interpelou, e naquilo que pode ser visto através do olhar foucaultiano.

    c) A terceira, demora-se com a questão do poder, sua visão de microfísica e normalização à constituição de um biopoder, suas alterações ao longo de seus livros, e sua reflexão jurídica; quer-se também demonstrar a construção ou desconstrução da noção de louco e de criminoso em Foucault, bem como dos manicômios e das prisões e o tratamento dado pelo discurso jurídico a estes temas; envereda-se, ainda, pela presença das teorias foucaultianas numa teoria do processo, em especial do processo penal, e a busca da verdade e do convencimento do juiz; e, por fim, a questão da norma e do Estado, numa qualificação jurídica. Não se cogita, tão-somente, do que Foucault disse ou pôde dizer por suas reflexões sobre o discurso jurídico em seu curto período de vida, mas, indo além de seu próprio discurso, procura-se situar sua obra já nas argumentações jurídicas, nos sistemas jurídicos de pensamento, nos seus reflexos para uma teoria do Direito.

    d) A quarta e última perspectiva, já numa interpretação mais madura de Foucault, preocupa-se com a questão do sujeito, sua autoconstituição e a reflexão de suas teorias para a configuração de um novo sujeito de direito; a perspectiva da sexualidade e a repressão jurídica aos crimes contra os costumes, na formação de um sujeito permeado por sua expressão sexual; a posição de Foucault em relação à ética, à amizade e à noção de moral no discurso jurídico; por fim, preocupa-se com a posição do intelectual, do autor, da educação e toda a sua importância para o ambiente jurídico.

    Assim, deseja-se, ora através de um seco corte de navalha, fazer um simples retalho em bisel na leitura foucaultiana, provocando leves escoriações e deixando a desnuda sua derme, seus encalços mais superficiais, suas interpretações mais significativas e evidentes, suas reflexões mais singulares e cotidianas, suas polêmicas mais notórias e usualmente debatidas; mas também, ora através do impacto de um punhal, tenta-se, quando a ignorância do autor não se demonstra, atingir as regiões mais profundas do pensamento foucaultiano, embrenhar-se em suas incoerências e, mais, em seus ávidos interstícios e pensamentos, nas suas regiões cavitárias, com o intuito de produzir lesões e feridas, mais que lesões, escavações na beleza e nas entranhas de suas ricas reflexões.

    Através desse caminho tortuoso, reconhece-se, inevitavelmente, que estudar Foucault é sempre muito difícil, haja vista que foi passo a passo uma personalidade marcante, tanto amado por uns, como também, tanto criticado por outros. Todavia, furtar-se a tal empreendimento significa não simplesmente condená-lo ao ostracismo filosófico, mas, negar-lhe a palavra indispensável em torno do jurídico, isto é, destituir-lhe de seus signficados para a história da própria humanidade e especialmente para a comunidade filosófico-jurídica brasileira, sobretudo, se se evidenciam às vezes que ele esteve neste país para proferir palestras e conferências, ganhando adeptos e respeitado público.

    Mas, ao mesmo tempo, que resgatar-lhe se faz como um imperativo, diante da Ciência do Direito, esquecê-lo não se propõe tão-somente como um relapso na constituição histórica da filosofia, mas antes, um relapso com um intelectual que se preocupou com temas tanto pormenorizados e com realidades tanto diminuídas, como do Irã, dos magrebins, dos negros, etc. Esquecê-lo significa, também, não valorizar seus encantos pelos intelectuais brasileiros, como dissera certa vez num entrevista a G. Fellous, ao resgatar suas vindas ao Brasil, que teria sido o lugar, juntamente com a Tunísia, onde havia encontrado os estudantes mais apaixonados e ávidos por conhecimento.⁵ É em respeito a essa observação de Foucault, de seu reconhecimento aos pesquisadores brasileiros, e à toda sua vasta contribuição para o ambiente filosófico e jurídico que se estendem estas singelas páginas.

    -

    ¹ GUEDEZ, Annie. Foucault. (trad. Edson Braga de Souza). São Paulo: Edusp, 1977, p. 96-97.

    ² ERIBON, Didier. Michel Foucault. (trad. Hildegard Feist). São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 61.

    ³ ERIBON, Didier. Michel Foucault..., p. 272. É um dos traços constantes de sua vida: muitas vezes brigar com gente a qual estava ligado. Ele exige fidelidade absoluta na amizade e nunca perdoa o que considera uma traição. Há muitos nomes que ninguém deve pronunciar diante do filósofo.

    ⁴ Para tanto, a pesquisa que resultou neste ensaio, cuidou para que fossem lidas as principais revistas francesas e mundiais nas quais Foucault publicou, sendo que, de algumas, como Critique, LesTemps Modernes e Esprit, todos os volumes foram visto enquanto ele viveu, afim de que o pensamento foucaultiano fosse compreendido com mais veracidade e atenção.

    ⁵ FELLOUS, G. La philosophie structuraliste permet de diagnostiquer ce qu’est aujourd’hui. Dits et Écrits (org. Daniel Defert et François Ewald). v. 1 Paris: Gallimard, 1994, p. 584. M.F. Il n’y a probablement qu’au Brésil et en Tunisie que j’ai rencontré chez les étudiants tant de sérieux et tant de passion, des passions si sérieuses, et ce qui m’enchante plus que tout, l’avidité absolue de savoir. [trad. do autor. M.F.: Foi provavelmente sobretudo no Brasil e na Tunísia que eu encontrei nos estudantes tanta seriedade e tanta paixão, paixões tão sérias, e o que mais me encanta, a avidez absoluta de saber.]

    I – Michel Foucault e suas Implicações

    1.

    Uma breve biografia

    Paul-Michel Foucault, assim chamado pelos pais em homenagem à tradição do nome de seu avô,⁶ nasceu em 15 de outubro de 1926, na cidade de Poitiers, e faleceu em 25 de junho de 1984, na cidade de Paris. Sua vida foi marcada por um itinerário de estudos, aulas, cursos e livros, que acabaram por lhe dar status de um dos maiores pensadores do séc. XX, e, sem dúvida, um dos intelectuais mais ativistas, ousados e autênticos que as academias francesas puderam presenciar.

    Naquela data, filho de Anne Malapert e Paul Foucault, nasce Michel Foucault no casarão branco construído em 1903 pelos pais de Anne, depois de 1 ano e 3 meses do nascimento de sua irmã Francine, de quem teve grande proximidade e amizade durante sua vida. Alguns anos mais tarde teria outro irmão, chamado Denys.

    Foucault cresce num ambiente confortável, com todas as regalias que muitos franceses não possuíam, embora quando adulto venha a negar grande parte dessa situação, tendo uma vida singela e muitas vezes sem gastos. Seu pai, cirurgião de renome na cidade e professor de anatomia na Escola de Medicina; sua mãe, filha de um importante cirurgião de Poitiers e igualmente professor da mesma Escola, dão a Foucault as condições necessárias à sua formação intelectual.

    Sua família, que na época vai residir no castelo, assim chamado por muitos vizinhos, em Vendeuvre-du-Poitu, é muito rica, tendo ainda terras e fazendas na região. Entretanto, teve um educação muito rígida, pois, embora a família de Foucault não fosse dedicada excessivamente à igreja, a ela ía aos domingos, chegando ele muitas vezes a ser coroinha nas missas. Sua personalidade, marcada pela solidão, pelo estudo obsessivo, pelo espírito ativo, pela ironia, auto-exigência, e ao mesmo tempo por uma eloquência e uma autoridade na fala, constrói-se nessa época e nos anos de ensino superior.

    Foucault, aos quatro anos, no dia 27 de maio de 1930, acompanhando a sua irmã, principia seus estudos no liceu público e jesuíta Henri-IV, fazendo a pré-escola e o primário, quando de lá egressa em 1940, e vai cursar o secundário no colégio Saint-Stanislas, onde, embora fosse uma instituição símbolo da Resistência e de devoção ao Marechal Pétain, filhos de empresários e pequenos industriais estudavam. O período inicial de seus estudos não demonstra muito de seu talento, tem notas regulares, dificuldades em matemática, mas suas notas em francês, história, grego e latim o compensam. No entanto, bons professores o acompanham nestes anos, em especial De Montsabert, um monge beneditino que ensinava história aos alunos de Saint-Stanislas, com quem aprendeu a apreciar Carlos Magno, fazendo-lhe recuperar o estímulo pelos estudos. Obtém prêmios d’excellence em redação, inglês, história, latim, e literatura francesa.

    Em 1943, na terminale (terceiro ano do ensino médio), quando se prepara para o Baccalauréat (vestibular) Foucault tem pela primeira vez contato com a filosofia, através de Dom Pierrot, o qual vislumbra desde o início o potencial do futuro filósofo, dizendo-lhe que suas características eram de orientação cartesiana, pois a filosofia lhe seria sempre um objeto de curiosidade e orientação do conhecimento.⁷ Concomitantemente aos estudos de filosofia no instituto Saint-Stanislas, por intermédio de sua mãe, Foucault passa a ter um reforço extra-classe, com Louis Girard, estudante do segundo ano da Faculdade de Filosofia, que em muito lhe contribuirá. No final do ano, Foucault termina a troisième em segundo lugar de filosofia na turma, mas não se sai muito bem no Bac, obtendo somente as notas suficientes para concluir o ensino secundário.

    Na dúvida instigada pelo Dr. Foucault (com quem o intelectual terá grandes desavenças durante a vida, pela sua constante ausência familiar) entre cursar medicina e dedicar-se aos seus gostos, em especial a história e a literatura, Foucault a custo consegue convencer a família, e decide preparar-se para ingressar na École Normale Supérieure da Rue d’Ulm, em Paris, onde grandes filósofos lá estiveram ou ainda estudavam, como Sartre, Hyppolite, Althusser, Jules Vuillemim. Para tanto, cursa, durante dois anos, os preparatórios Hypokhâgne e Khâgne, no liceu de Poitiers, tendo como professores Gaston Dez e Jean Moreau-Reibel. Época em que Foucault desperta seu gosto por Bergson, Platão, Descartes, Kant e Spinoza. Entretanto, em 24 de maio de 1945, após apresentar-se no hotel Fomé, na Académie de Poitiers para realizar as provas escritas, Foucault é eliminado já nesta etapa, por obter o 101o lugar, quando somente os cem primeiros se classificavam para as provas orais. Após a decepção, deixa Poitiers, distancia-se da família, mas não totalmente, em especial de sua mãe, quem visita quase todas as férias.

    Chegando a Paris, no outono de 1945, matricula-se no liceu Henri-IV, um dos mais prestigiados da França, disposto a passar novamente pela bateria de testes. Sua vida lá é difícil, por ser um jovem provinciano, sem embargo sua condição financeira, sofre certo preconceito, tendo de se isolar um pouco do convívio social, mas não totalmente, graças à instalação de sua irmã na cidade, com quem passará a frequentar alguns cinemas no intervalo dos estudos. Entre os professores do Henri-IV, estavam Emmanuel Le Roy Ladurie, Jean Boudout, mas especialmente, Jean Hyppolite, que prepara os alunos para a prova de filosofia. Hyppolite, contemporâneo de Sartre e Merleau-Ponty, marca profundamente Foucault, que anos mais tarde, em 1970, ao substituí-lo na cátedra do Collège de France, por ocasião da morte daquele em 1968, expressará sua gratidão com o pronunciamento L’Ordre du Discours em agradecimento aos ensinamentos desse grande hegeliano.

    Apesar das dificuldades, Foucault termina muito bem o curso preparatório, com a menção aluno de elite, e não enfrenta problemas nos testes. As provas escritas foram tranquilas e em julho de 1946 é aprovado em quarto lugar geral, após as provas orais, cuja banca era formada por Pierre-Maxime Schuhl e Georges Canguilhem. Agora normalien, Foucault, juntamente com outros 38 estudantes, passa a viver no edifício da École Normale Supérieur, cujo ingresso marcará significativamente sua vida acadêmica, mas especialmente sua vida pessoal, pois inúmeras vezes terá crises psicológicas, sendo agressivo com os outros conscritos, ironizando de qualquer modo aqueles que dele se aproximassem, culpando-se pelas saídas noturnas e clandestinas, dada a repressão da época, para encontros homossexuais, etc., todas experiências trágicas que demonstraram, segundo os médicos e os alunos da própria instituição, um certo desequilíbrio psicológico, até a sua tentativa de suicídio em 1948.

    Apesar das atribulações psicológicas pelas quais Foucault, e tantos outros, passa na École Normale Supérieure, esse período marca seu encontro, além da filosofia, com a psicologia e a psicanálise. Assiste às aulas de Daniel Lagache, Julian Ajuriaguerra, Jean Hyppolite, Jean Wahl, Sartre e Merleau-Ponty. Passados os anos, na École, Foucault obtém em junho de 1949 seu diploma de estudos superiores, defendendo sua monografia sobre Hegel, com o título A constituição de um transcendental histórico na ‘fenomenologia do espírito’ de Hegel. Continuando na École Normale Supérieure, Foucault insiste em assistir às aula de psicologia, até obter, alguns anos mais tarde, o diploma de psicologia patológica. É com essa importante passagem pelo curso de psicologia, que permite Foucault lançar-se, além de inúmeras amizades, como a de Jacqueline Verdeaux, que o incentiva a escrever o prefácio para o livro que ambos traduzem de Binswanger "Traum und Existenz", a inspirar-se para redigir Histoire de la Folie. Nesse período, Foucault realiza, ainda, trabalhos num hospital psiquiátrico, aplicando os testes de psicologia experimental, e numa prisão. Em seguida, começa, então, a se preparar para a agrégation (teste necessário para exercer a profissão de professor).

    Neste período conhecerá Louis Althusser, e através deste, em 1950, adere ao PCF (Partido Comunista Francês), juntamente com outros vários normaliens. Nesta época a École Normale Supérieure vira um centro ativista da máxima esquerda, encabeçados, sobretudo, por Sartre, Jean d’Ormesson, Jean Charbonnel, Claude Mauriac e Maurice Clavel, bem como pelo partido Rassemblement Democratique Révolutionnaire. Entretanto, essa aproximação com o partido comunista é desde o início um pouco turbulenta, pois Foucault deseja militar na célula do partido, e não no sindicato dos alunos, como assim o impuseram. Muitos afirmam que Foucault sempre dizia, apesar da proximidade de seus escritos com o poder político, que jamais nascera com a alma militante, o que certamente nunca o levou efetivamente a embates políticos diretos, senão raras vezes. No mesmo ano de seu ingresso no partido comunista, Foucault é reprovado na agrégation, pois embora houvesse sido aprovado nas provas escritas, esbarra na banca da prova oral, cujos integrantes eram Pierre-Maxime Schuhl e Georges Davy. Apesar de uma curta fase de crise, em junho do ano seguinte Foucault obtém êxito, após discorrer horas sobre Bergson, Spinoza e sobre sexualidade, numa banca constituída por Georges Davy, Jean Hyppolite e Georges Canguilhem.

    Agora agrégé, Foucault vai lecionar num liceu, de Thiers, recebendo então uma bolsa do CNRS (Centre National de Recherches Scientifiques), indo residir no 16e arrondissement de Paris. Entretanto, Foucault conquista a antipatia geral, sobretudo em virtude de um suposto envolvimento mal resolvido com um dos bolsistas, e decide tornar-se assistente em 1952 na Universidade de Lille. Um pouco antes de ensinar nesta instituição, a pedido de Althusser, no outono de 1951, Foucault começa a dar aulas, que irão até a primavera de 1955, na École Normale Supérieure. Seu público é numeroso e suas aulas agradam a todos, pela eloquência e pelo vasto conhecimento. É nesse período que Foucault, ou le Fouk’s, como muitos o chamavam, ainda sob as vanguardas do PCF, organiza um grupo de normaliens, formado por Paul Veyne, Jean-Claude Passeron, Maurice Pinguet, e outros, para discutir as questões políticas da época. No entanto, como visto, seu envolvimento com o PCF não é muito intenso, e em 1953, segundo alguns por virtude da condenação à homossexualidade pelo partido, deixa-o, um pouco antes de partir para a Suécia, em 1955.

    Nesse período, que antecede seu exílio, Foucault se aproxima da poesia de René Char e da literatura, em especial de Bataille e Blanchot, esta que nele manterá forte influência até o final dos anos sessenta, quando será substituída pela visão política do mundo, como adiante se desenvolverá. A partir de outubro de 1952, já com 26 anos, Foucault, por sugestão de Jules Vuillemin, amigo de Althusser, inicia seu curso sobre a psicologia e história da psicologia em Lille, onde ficará até a partida para a Suécia. Nesse período escreve Maladie Mentale et Personnalité, e conhece ainda vagamente Gilles Deleuze.

    Em 26 de agosto de 1955, Foucault, a convite de Georges Dumézil, professor do Collège de France, parte para Uppsala, uma cidade a setenta quilômetros de Estocolmo, na Suécia. Muitos afirmam que sua retirada da França ocorre em virtude da vida social e cultural parisiense,⁸ porém, passa lá três difíceis e depressivos anos, haja vista o clima excessivamente frio da cidade e a forte repressão à homossexualidade, dada a sua fundação puritana. Muito embora, nesses anos, dá a sua primeira entrevista, em fevereiro de 1956, para o jornal local, e faz vários amigos, compartilhando jantares e bebedeiras. Entretanto, dedica-se muito às suas aulas na universidade, que versam, para desespero e incômodo de alguns alunos, sobre a concepção de amor na literatura francesa do marquês de Sade, sobre o teatro francês contemporâneo, sobre a experiência religiosa na literatura francesa de Chateubriand e Bernanos, e sobre Racine. Não se reserva às aulas, dedicando-se a organizar serões sobre filmes e a dirigir pequenas peças teatrais, feitas pelos alunos. Nesses anos, em Uppsala, Foucault recebe na Maison de France, grandes nomes para dar palestras: Jean Hyppolite, Albert Camus, Alberto Moravia, e Roland Barthes⁹. Sua estada em Uppsala marca, também, seus escritos sobre a Histoire de la Folie, e indiretamente sobre a clínica,¹⁰ pois lá redige quase completamente sua tese. Entretanto, busca defendê-la na própria universidade de Uppsala, mas não obteve acolhimento, o que acaba por decepcioná-lo e de consequência a incentivá-lo a deixar a Suécia.

    Após passar o mês de junho de 1958 em Paris, Foucault regressa rapidamente a Uppsala, arruma suas malas, e parte em outubro do mesmo ano para Varsóvia, na Polônia, onde exercerá, a pedido de Dumézil, que conhecia o chefe do serviço de ensino francês no exterior, Philippe Rebeyrol, exnormalien, as mesmas funções de leitor.¹¹ Fica em Varsóvia até o final de 1959, e segundo muitos, sua retirada teria sido, como sempre, por causa de um envolvimento mal resolvido como um jovem que trabalhava na polícia. Em seguida, decide ir a Hamburgo, na Alemanha, onde exercerá a tarefa de leitor, no instituto cultural francês, até o ano de 1960. Em Hamburgo, Foucault termina sua tese, e decide voltar no verão deste ano a Paris para mostrá-la a Jean Hyppolite, a fim de que este seja seu orientador pro forma, uma vez que ela já estava escrita.

    Em Paris, Foucault consegue uma vaga na faculdade de Clermont-Ferrand, para ser auxiliar de ensino (maître de conférence), já que ainda não havia defendido a sua tese. Receberá, nesse retorno à França, inúmeros convites para ser novamente leitor, em Tóquio, em Roma, em Nova York, mas ele não os aceita, pois já tem em vista o Collège de France, embora aceite vários deles, para dar palestras, sobretudo na Tunísia, onde estará durante o estouro do movimento de maio de 1968. Nesse ano decide, então, defender a sua tese, e ao pedir a Hyppolite para ser seu orientador, este lhe nega o pedido, por ocupar-se excessivamente no período com a direção da École Normale Supérieure. Entretanto, como era preciso defender uma tese principal e uma complementar, que Foucault redigira com o tema a Antropologia de Kant, Hyppolite aceita orientá-lo na tese complementar (que nunca será publicada por Foucault), mas o encaminha para Georges Canguilhem, seu ex-aluno, então professor na Sorbonne, para que orientasse Foucault na tese principal.

    Inicialmente, Canguilhem escuta Foucault falar suas teorias sobre a loucura e lhe diz, laconicamente, que se isso fosse realmente verdade, as pessoas já saberiam. No entanto, vai para casa, lê com atenção e vê a maravilha do texto, aceitando ser seu orientador, dando-lhe apenas algumas dicas, as quais Foucault escuta mas em nada modifica seu texto, pois tinha o medo de alterar a forma literária em que este fora escrito. Canguilhem, então, em 19 de abril de 1960, escreve um relatório, necessário segundo a tradição, para dar a autorização a Foucault, perante a Sorbonne, para apresentar a sua tese, quando acaba por reconhecer a cultura e a originalidade de suas ideias.¹² Com a autorização de Canguilhem, Foucault vai em busca de um editor, entretanto, ao fazer contato com a Gallimard, com a qual sempre sonhara ter seus livros publicados, sofre inicialmente uma certa hostilidade, em virtude do tema não ter tanta aceitação no mercado. Apesar do desconforto inicial, Foucault consegue, para após a sua defesa, publicar sua tese pela Plon, embora esta lhe renda uma certa indiferença pelo público, como ser verá adiante.

    No dia 20 de maio de 1961, as 13h30, na sala Louis-Liard, onde usualmente se faziam as grandes defesas de teses, Foucault realiza sua sustentação oral, perante um público de mais ou menos 100 pessoas, e uma banca composta por Henri Gouhier, presidente, Georges Canguilhem, e Daniel Lagache. Antes de iniciar suas argumentações sobre a loucura, conforme manda o rito, Foucault começa pela apresentação de sua tese complementar sobre a Antropologia de Kant, diante de uma banca composta por Jean Hyppolite e Maurice de Gandillac. Nessa pequena e ao mesmo tempo grande defesa, Foucault traz à tona seu vocabulário que ficará célebre, ou seja, fazer uma arqueologia do texto kantiano, mas se restringe tão-somente a apresentá-la. Em seguida, após um breve intervalo, inicia-se a espetacular defesa de Foucault, deixando o público impressionado com a demonstração de sua cultura. Após algumas duras intervenções de Daniel Lagache, sobretudo no que se refere às falhas sobre informações médicas e psiquiátricas, e de Henri Gouhier, sobre o tratamento excêntrico dado a alguns textos, Foucault obtém o título de doutor em letras pela Sorbonne, com a menção honrosa.

    Então doutor, no outono do ano seguinte, Foucault é nomeado inicialmente professor assistente na Universidade de Clermont, a pedido de Jules Vuillemin, amigo de Merleau-Ponty e Althusser, e em 1º de maio de 1962, assume a titularidade da cátedra de filosofia, embora acabe ensinando psicologia, e fique conhecido como dândi, em virtude de suas vestimentas pouco usuais. Nesse período, Foucault já esboça alguns de seus ensinamentos que constituiriam, futuramente, Les Mots e les Choses. Ainda professor de Clermont-Ferrand, Foucault, juntamente com outros intelectuais como Jules Vuillemin e Franand Braudel, participa da elaboração da reforma universitária em 1965, comandada por Christian Fouchet, ministro da Educação, o que causa certo desconforto no ambiente acadêmico. Segundo Didier, seria talvez desta reforma também, de que Foucault teria participado, é que teria se originado o movimento de maio de 1968.

    Suas aulas, apesar de se dedicarem às questões consideradas por ele mais importantes, como direito, sexualidade, psicanálise, linguagem e ciências humanas, e mesmo sendo adorado e muitas vezes aplaudido pelos alunos, Foucault, dada a sua arrogância e ao seu jeito excêntrico de viver, bem como a aproximação amorosa com Daniel Defert, deixa Clermont no final do ano letivo de 1965-1966, para ir a Túnis.¹³ Por falar de suas crises amorosas, questão tão renegada por seu biógrafo Didier Eribon, que o fizera com magistral competência a fim de preservar a imagem deste brilhante intelectual, algumas passagens demonstram essa turbulência em sua vida, desde a tentativa de suicídio na École Normale Supérièure até seus mais íntimos romances, que o fizeram deixar algumas vezes as instituições em que lecionara. Poucos de seus relacionamentos homossexuais vieram à tona, nomes como Jean Barraqué, músico em Paris, Stéphane, provavelmente, no livro de Guibert, referência a Daniel Defert,¹⁴ seu assistente desde Clermont Ferrand, com quem vivera parte de sua vida e seus últimos anos, e a quem gostaria de ter lhe deixado toda a herança¹⁵, tendo em vista o período nefasto de repressão em que vivera. Segundo David Macey, Foucault e Daniel Defert viveram juntos muito tempo, desde o contato em 1963 até os anos da morte do grande intelectual. Defert, foi, sem dúvida, a grande paixão de Foucault, tanto que misteriosamente na edição resumida de 1964 de Histoire de la Folie a dedicatória feita a Eric-Michael Nilsson havia desaparecido, e seu relacionamento com Roland Barthes se tornara complicado.¹⁶ Macey arrisca afirmar que uma das razões para Foucault não ter aceito o convite para ensinar no Japão foi a presença intensa de Daniel Defert.

    Sua homossexualidade esteve ligado frequentemente à perversão sexual. A perversão sexual, muitas vezes presente na vida de Foucault, como ressalta Guibert Hervé (ao referir-se sobre a morte de Muzil, seu personagem fictício substitutivo para o intelectual francês, quando foram encontrados chicotes, algemas, freios e roupas de couro no seu armário, ou mesmo das inúmeras orgias, que participava nas saunas próximas à Paris)¹⁷ tem fundamental relevância em sua vida, e, importante expressão em suas orientações literárias e filosóficas, a ponto de proclamar seu desprezo, como ressalta Didier Eribon, pelos que não são adeptos das ideias do marquês (Sade).¹⁸ Ganha, inclusive, uma certa repressão, quando dá suas aulas sobre Sade em Uppsala. Narra Hervé inúmeras odisséias de Foucault nas saunas ao redor de Paris, quando voltava de seus seminários, e nos bares que visitava, como Le Keller, no 12º arrondissement.¹⁹ Além de seus relacionamentos homossexuais, Foucault sofre, infelizmente, alguns empecilhos na vida acadêmica, em especial quando quiseram nomeá-lo subdiretor do ensino superior no ministério da educação, tendo-lhe sido recusado em virtude de sua opção sexual.²⁰

    No fim do ano de 1965, quando ainda estava em Clermont, Foucault vem pela primeira vez ao Brasil, a São Paulo, para se encontrar com seu amigo Gérard Lebrun, e entregar-lhe seu manuscrito de Les Mots et les Choses, para escutar suas críticas. Alguns anos antes de deixar Clermont, Foucault publica em 1963 Naissance de la Clinique e Raymond Roussel. Nesse período, verifica-se uma importante e indispensável influência literária de Foucault, através de autores, como ser verá adiante, Blanchot, Bataille e Klossowski, e de constantes aparições para discutir romances e poesias em revistas específicas, ano em que se torna editor da Revista Critique, juntamente com Roland Barthes, Michel Deguy e Jean Piel.

    Após as publicações, Foucault estréia no rol dos filósofos de renome, aos trinta e oito anos de idade, com seu livro Les Mots et les Choses. A tal obra, como se verá adiante, inúmeras críticas e elogios despertam o público, mas fazem de Foucault uma febre de consumo nos meios filosóficos e fora deles. É nesse período que Foucault se envolve em alguns dissídios com Sartre e outros intelectuais, mas que acabam sendo resolvidos. Com essa glória, após desligar-se de Clermont, Foucault vai a Túnis ensinar na Faculdade de Letras e Ciências Humanas, sobre literatura, filosofia, psicologia, e, principalmente, pintura, rendendo-lhe uma platéia lotada, sobretudo de jovens. Nesse ano tem certa desavença com Paul Ricoeur, que tinha sido convidado para ir a Túnis falar sobre linguagem, mas também se preocupa com a elaboração de Archéologie du Savoir, que está pronto ao partir da cidade em 1969. Em Túnis, Foucault percebe a agitação intelectual de maio de 68, e decide voltar alguns dias a Paris, para participar.

    A participação de Foucault no movimento revolucionário estudantil é incisiva, apesar das críticas de ser gaullista e não estar em Paris durante o acontecimento, demonstrando muitas vezes reprovar a atitude do governo dos estudantes, ao considerar os saques, os incêndios, as greves, as suspensões nas aulas, as balbúrdias na rua, uma própria vergonha ao marxismo, que passava a unir nacionalismo, racismo e esquerdismo (especialmente trotskista). Aliás, nesse sentido salienta Pierre Billouet, que Foucault ao longo da vida seria inúmeras vezes condenado politicamente, ora gaulista, ora anarquista, ora gauchista, ou marxista e antimarxista.²¹ Ele mesmo afirma numa entrevista concedida a Paul Rabinow um mês antes de sua morte: "Eu penso, de fato, ter-me localizado um após a outro, e às vezes simultaneamente, sobre a maior parte dos espaços do tabuleiro político: anarquista, esquerdista, marxista barulhento (tapageur) ou oculto, nihilista, antimarxista explícito ou reservado, tecnocrata ao serviço do gaulismo, neoliberal."²² Muitos de seus alunos são presos em Túnis, e Foucault pede ao embaixador da França que interfira no movimento, a fim de evitar as prisões excessivas e as torturas que estavam sendo realizadas contra os alunos. Apesar da recusa de intervenção, Foucault abriga em sua casa alguns estudantes fugitivos das prisões, e os ajuda na impressão dos folhetos panfletários. Foucault também interfere nos processos judiciais de estudantes após o verão de 1968, sendo até agarrado e espancado por policiais à paisana que o interceptam numa estrada que levava a Sidi Bou Said, na Tunísia, como uma advertência das autoridades tunisianas, só não sofrendo mais por causa de seu prestígio internacional. Embora tenha retornado a Túnis em 1971, para interferir junto ao Ministro do Interior a favor de estudantes presos, Foucault percebe a indiferença política, e resolve não voltar mais ao país.

    No outono de 1968, Foucault deixa Túnis, e vai residir em Paris, para ensinar no departamento de psicologia criado em Nanterre, a pedido de Didier Anzieu. Embora tenha sido eleito e nomeado para Nanterre, Foucault recebe nova proposta, pela qual acaba se decidindo, para ocupar a recém-criada cadeira de Filosofia em Vincennes, em 1º de dezembro de 1968. Nessa época, Foucault também tem dúvida em saber se corria o risco de assumir uma cadeira na Sorbonne, a pedido de Aron meio a contragosto, ou se preferia ir para o Collège de France, que no momento não apreciava muito as pessoas que dela faziam parte. Foucault então se decide pelo Collège de France, segundo orientação de Canguilhem.

    A Universidade de Vincennes, da qual Foucault se encarrega, foi criada após as revoltas de maio de 1968, a pedido do deão da Sorbonne, tendo a ajuda de Georges Canguilhem, Emmanuel Le Roy Ladurie, Roland Barthes e Jacques Derrida para organizá-la. Com a sua criação, Foucault encabeça um grupo de renomados professores, como Jean-Claude Passeron, Robert Castel, Jacques Droz e Michel Serres. No comitê de recrutamente de professores, Foucault chama Judith Miller, filha de Lacan, Alain Badiou, Jacques Rancière, François Regnault e, especialmente, François Châtelet. Apesar do bom começo, logo se iniciam os tropeços ainda derradeiros de 68, chegando a polícia a invadir o local, então tomado pelos alunos, com bombas de gás lacrimogênio, levando inúmeros professores e alunos presos, inclusive Foucault. Mesmo assim, Foucault continua sua luta contra os desvairios da repressão do governo, e protesta diante de uma gigantesta platéia, juntamente com Sartre, contra as medidas disciplinares em Vincennes, que resultou na explulsão e perseguição de inúmeros estudantes. Após os encalços, Vincennes progride, e Foucault ministra aulas sobre epistemologia das ciências da vida e sobre Nietzsche. Muitas vezes irá responder a perguntas de jornalistas, como em Le Piège de Vincennes²³, sobre a sua visão do departamento de Vincennes, sua refutação ao ensino da filosofia voltado exclusivamente para a política, como se fazia até então com o marxismo. Nesse período, Foucault, revoltado com o movimento estudantil ultra-esquerdista, distancia-se gradativamente dos alunos, e, desanimado com Vincennes, resolve preparar a sua campanha para o Collège de France. Mas durantre o período de sua carreira com vistas ao instituto, Foucault retorna à política, agora como um filósofo engajado. É também nesses anos, que suas reflexões começam a tomar outro rumo, em busca de Archéologie du Savoir, embora muitas vezes promova, como em fevereiro de 1969, palestras que trazem suas marcas anteriores, tal qual Qu’est-ce qu’un auteur?.²⁴

    Entregando nas mãos de François Châtelet o departamento de filosofia, Foucault deixa Vincennes, para ingressar no prestigiado Collège de France, sobretudo, a partir dos esforços de Dumézil, Hyppolite, Vuillemin e Braudel. A sua candidatura foi um pouco conturbada, pois a instituição era muito conservadora, e as teorias de Foucault um pouco distintas do que se esperava normalmente. Com a criação da carreira de filosofia, no dia 30 de novembro de 1969, os professores do Collège de France se reuniram para decidir quem ingressaria como titular, tendo concorrido Paul Ricoeur, com a proposta da criação da cadeira de filosofia da ação, Yvon Belaval, com a cadeira já tradicional de história do pensamento racional, e Michel Foucault, na cadeira de história dos sitemas de pensamento. Apesar das dificuldades da apresentação para o concurso à cadeira, por 25 a 10 votos, em segunda votação, é criada, por defesa de Vuillemin, a cadeira de história dos sistemas de pensamento. Então, cinco meses após a criação, no dia 12 de abril de 1970, Foucault é escolhido por 24 a 15 votos como o novo titular da cadeira de história dos sistemas de pensamento. Assim, no dia 2 de dezembro de 1970, Foucault pronuncia sua magistral aula inaugural, intitulada L’Ordre du Discours,²⁵ para uma platéia que se empilhava para ouvi-lo reconhecer, sobretudo, a importância de seu grande mestre Jean Hyppolite. Período em que a prestigiada instituição recebe Raymond Aron, no dia 1º de dezembro de 1970, e Georges Duby, no dia 4 dos mesmos mês e ano.

    Após a sua magnífica aula inaugural, reportada até mesmo no renomado Le Monde, Foucault inicia suas aulas, onde restará como catedrático por quatorze longos e produtivos anos, até o ano de sua morte. Segundo Didier Eribon, todas às quartas-feira, na sala 8, inicialmente à tarde e depois às nove horas da manhã, por cerca de duas horas Foucault pronuncia seus cursos, para um público de mais de 500 pessoas que se aglomeram em busca de seus ensinamentos, tornando-se um verdadeiro acontecimento cultural da vida parisiense²⁶ (na época, exigia-se que o professor cumprisse uma carga horária anual de 24 horas – doze de aulas e doze de seminários). Nessas aulas Foucault, por obrigação da instituição, mostra, durante doze horas anuais, as linhas de sua pesquisa e as conclusões que chegou durante o ano. É nesse espaço que Foucault coloca à prova e à discussão suas novas obras dos anos 70, em especial, Surveiller et Punir e os volumes de sua Histoire de la Sexualité, especialmente aos alunos do Collège de France, visto que adorava trabalhos em grupo e pesquisas coletivas, tal como admirava nas universidades americanas. Foucault tem somente dois pesquisadores preenchendo a função de assistente titular, François Ewald, durante os anos de 1977 a 1980 e Éliane Allo, de 1981 até 1983.

    Concomitantemente com os cursos ministrados no Collège de France, Foucault realiza outras atividades, aproveitando para viajar ao Brasil, ao Japão, ao Canadá e aos Estados Unidos, e para criar, no dia 8 de fevereiro de 1971, na capela Saint-Bernard, na Montparnasse, o prestigiado grupo GIP – Groupe d’Information sur les Prisons, como se verá adiante, formado inicialmente por ele, Pierre Vidal-Naquet, historiador da Grécia Antiga, e Jean-Marie Domenach, diretor da revista Esprit, com o objetivo de tornar pública a situação das prisões na França. Esse grupo também suscita o reingresso de Foucault no ambiente político, bem como altera significativamente suas linhas de pesquisa, que vão dos campos discursivos para os ambientes institucionais, a ver-se pelos resumos de seus cursos anuais no Collège de France, que passam a versar sobre os seguintes temas: as teorias e instituições penais (1971/1972);²⁷ a sociedade punitiva (1972/1973);²⁸ o poder psiquiátrico (1973/1974);²⁹ os anormais (1974/1975);³⁰ a defesa da sociedade (1975/1976);³¹ segurança, território e população (1977/1978);³² o nascimento da biopolítica (1978/1979);³³ o governo dos vivos (1979/1980);³⁴ subjetividade e verdade (1980/1981);³⁵ e a hermenêutica do sujeito (1981/1982),³⁶ e das publicações sucessivas de Moi, Pierre Rivière, ayant égorgé ma mère, ma soeur et mon frère, em 1973, e Surveiller et Punir, em 1975. Apesar do estrondoso movimento do GIP, e dos valiosos dados obtidos, como se verá adiante, este se auto dissolve, para a infelicidade de Foucault. Entretanto, a luta de Foucault não cessa mais, e após a dissolução do movimento de reforma dos sistemas penitenciários, ingressa em lutas incisivas, participando de debates e passeatas, como sua insatisfação contra a pena de morte. Este é o momento em que Foucault se torna definitivamente uma personalidade pública, conhecendo pessoalmente grandes nomes, como o ilustre filósofo Jean-Paul Sartre e o grande escritor Jean Genet, mas também são os anos em que Foucault ingressa na sua realização concreta como intelectual, envolvendo-se em diversas lutas contra os crimes de racismo, como de Djellali Ben Ali e de Mohamed Diab. Neste último, em particular, quando Foucault

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