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A caminho de Macondo: Ficções 1950-1966
A caminho de Macondo: Ficções 1950-1966
A caminho de Macondo: Ficções 1950-1966
E-book594 páginas8 horas

A caminho de Macondo: Ficções 1950-1966

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Sobre este e-book

A caminho de Macondo convida os leitores a mergulhar no processo de criação do universo mítico de Cem anos de solidão, uma das maravilhas da literatura latino-americana. Esta antologia reúne todos os textos publicados por Gabriel García Márquez nos quais a mágica Macondo foi tomando forma e que marcam o prelúdio da escrita de sua obra-prima.
 
Gabriel García Márquez argumentou em várias ocasiões que primeiro era preciso aprender a escrever um livro e só depois encarar a página em branco. Foram quase vinte anos "vivendo" em Macondo para que aprendesse a escrever sua obra-prima Cem anos de solidão. Nesta antologia, os leitores encontrarão as publicações que precedem a escrita de sua obra mais célebre e que ilustram a gênese da mítica cidade.
A caminho de Macondo reúne desde os textos seminais de 1950 a 1954, publicados inicialmente em colunas de jornais e revistas — alguns com a indicação "Apontamentos para um romance" —, até o conteúdo integral das obras A revoada (O enterro do diabo), de 1955, Ninguém escreve ao coronel, de 1961, Os funerais da Mamãe Grande, de 1962, e O veneno da madrugada (A má hora), de 1966, que marcam o prelúdio efervescente de Cem anos de solidão.
Com prefácio da jornalista premiada Alma Guillermoprieto e nota editorial de um especialista na obra do autor, Conrado Zuluaga, esta coletânea nos introduz ao ciclo macondiano e nos guia por personagens, cenários e cheiros que viriam a compor uma das grandes maravilhas da literatura latino-americana, escrita pelo autor colombiano vencedor do Prêmio Nobel e grande mestre do realismo mágico.
IdiomaPortuguês
EditoraRecord
Data de lançamento10 de jun. de 2024
ISBN9788501921895
A caminho de Macondo: Ficções 1950-1966

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    A caminho de Macondo - Gabriel García Márquez

    PREFÁCIO

    Alma Guillermoprieto

    No verão de 1973, cheguei pela primeira vez à Colômbia. Vinha de Nova York, onde morava, a caminho do Chile, onde me haviam prometido uma bolsa para a Universidade de Santiago. Em Nova York, uns amigos me puseram em contato com um rabino ortodoxo, com arroubos revolucionários, que ganhava a vida como agente de viagens. Durante uma longa tarde, o rabino traçou comigo um itinerário que, segundo ele, me pouparia alguns valiosíssimos dólares, em comparação com o preço de um voo direto Nova York-Santiago. Eu precisaria fazer a primeira escala em Miami, e a segunda, na cidade costeira de Santa Marta, Colômbia. De lá, um trem me levaria para as cinzentas alturas da capital colombiana, onde eu deveria embarcar num terceiro voo.

    Na estação ferroviária de Santa Marta, comprei uma passagem de classe econômica para Bogotá e me acomodei num vagão quase vazio, num banco de madeira com respaldo em ângulo reto, também de madeira. Fazia calor na costa e, duas horas depois, à medida que nos internávamos no verde infindável da savana tropical, o trem era um inferno. Cansada da longa viagem, amodorrada e embalada pelo sacolejo do trem lentíssimo, atordoada pelo calor e perdendo a conta da fleumática sucessão de paradas, eu cochilava com a cabeça indo e vindo contra a janela suja, quando o trem parou mais uma vez. Levantei o olhar e, com má vontade, tentei limpar o vidro com o dorso da mão, para ver melhor o letreiro que anunciava o nome da estação. Demorei um segundo para processar as letras:

    Aracataca.

    Aracataca! Esfreguei o vidro outra vez, chamei inutilmente o maquinista, corri até a porta para ver se conseguia pôr pelo menos um pé no chão de um lugar cuja história mítica eu conhecia melhor do que a história de minha família, mas o trem já arrancava de novo. Aracataca! Esfreguei uma vez mais o vidro para enxergar melhor o povoado, tentei enfiar a cabeça pelo vão aberto na parte superior da janela, mas nesses esforços perdi a oportunidade de ver suas ruas poeirentas, que tinham ficado para trás num suspiro.

    Rígida contra o assento torturante, em curto-circuito entre a frustração e a euforia, vi o ar escurecer do outro lado da janela imunda e achei que em segundos desabaria um aguaceiro tropical. Mas era outra a causa da escuridão repentina: o trem abria passagem entre uma nuvem espessa de borboletas amarelas, uma tempestade de asas que se desvaneceu num piscar de olhos.

    Em Gabriel García Márquez, que em geral era um homem circunspecto e reservado, as bochechas vibravam e os cantos dos bigodes se erguiam ligeiramente em sinal de aprovação, diante de casos como esse. Ninguém acredita que não inventei nada, dizia satisfeito. Eu não passo de um simples escrivão. E, como era um homem tímido — outra coisa em que ninguém acreditava —, soltava a última palavra da piada com leve retração da respiração antes de emitir uma tossinha que não chegava a se declarar risada.

    Em reiteradas ocasiões afirmou também que, depois dos oito anos, não lhe havia acontecido nada de interessante. A frase soa como mera extravagância, mas, como tantas outras boutades dele, é rigorosamente correta, pelo menos no sentido de que aqueles primeiros oito anos que ele passou na casa dos avós maternos em Aracataca, no departamento de Magdalena, Colômbia, vulgo Macondo, deram-lhe material para toda uma vida de escrita.

    A história dessa infância é conhecida: Gabriel nasce em Aracataca em 1927 e ainda não completou dois anos quando a acidentada vida dos pais exige que o deixem ali, sob os cuidados dos avós maternos, quando saem em busca de sorte melhor. O avô, Nicolás Márquez, havia lutado do lado liberal, com grau de coronel, na guerra conhecida como dos Mil Dias, que ensanguentou o país quando o século XIX engrenava no XX. Seu maior segredo é que ele, que tanto combateu e exterminou em seus anos de militar, vive atormentado pela morte do homem que matou depois da guerra por uma questão de honra. Convive com o fardo daquela morte única como com um fantasma e abandona o povoado onde cometeu o crime com a esperança de deixar o morto para trás. Vivem em itinerância por vários anos, ele e Tranquilina Iguarán, sua esposa, com os dois filhos mais velhos e a pequena Luisa Santiaga, que um dia será a mãe de Gabriel. Levam consigo também três índios guajiros comprados em sua terra por cem pesos cada um, quando a escravidão já tinha sido abolida, índios que acompanharão toda a vida da família. Tentam fincar raízes em cidades e povoados ao redor da Ciénaga Grande de Santa Marta até arribarem, enfim, em Aracataca, povoado bananeiro que se consome entre o calor e os aguaceiros bíblicos do trópico.

    De um lado dos trilhos da ferrovia estão as imensas fazendas bananeiras da United Fruit e seus povoamentos brancos; casinhas brancas para os gringos brancos que vivem uma vida diferente atrás do alambrado de seus domínios. Do lado contrário fica o povoado, que no início não era mais que uma rua poeirenta com um rio numa ponta e um cemitério na outra. A febre da banana tinha chegado depois da guerra e, com ela, a revoada, uma multidão de charlatães, aventureiros, caçadores de fortunas e meretrizes que um dia formarão o pano de fundo da epopeia da família Buendía.

    Em consequência do massacre da United, a empresa se retirou da zona bananeira de Ciénaga Grande e, durante a Segunda Guerra Mundial, suspendeu em geral suas operações no país. Segundo escreverá García Márquez, a saída da companhia arruinou o outrora próspero povoado, que fora beneficiado pela febre do ouro verde. A United vai embora e leva tudo: O dinheiro, as brisas de dezembro, a faca do pão, o trovão das três da tarde, o aroma dos jasmins, o amor. Só ficaram as amendoeiras empoeiradas, as ruas reverberantes, as casas de madeira e tetos de zinco enferrujado com sua gente taciturna, devastada pelas recordações.

    O avô, já idoso e bem estabelecido, vive numa casa de muitos quartos e grandes corredores sombrosos, habitados também por uma mistura de tias, begônias, irmãs, jasmineiros, mães, avós, cadeiras de balanço. O coronel entrega ao menino Gabriel todo o seu amor junto com suas melhores histórias: da guerra, do passado mítico de Aracataca, das vicissitudes de sua vida. Por sua vez, a avó Tranquilina povoa a imaginação do menino com minuciosos inventários dos fantasmas e assombrações que convivem na casa com a família. O pequeno Gabriel ainda não deixou para trás os balbucios da língua infantil quando também começa a contar à família histórias extravagantes e improváveis. Entre risadas, os idosos o repreendem. Não tinham percebido que as coisas que ele contava eram corretas, mas de outro modo, diz o autor em suas memórias.

    Sentado num dos quartos da grande casa sombrosa, o menino Gabriel observa o avô montar, num ímpeto de concentração milagrosa, os peixinhos flexíveis e perfeitos de ouro que depois vai vender por poucos pesos. O velho leva o adorado neto pela mão para conhecer o gelo, na loja do comissariado da bananeira. Também ensina ao menino de sete ou oito anos que aqueles gringos, donos do gelo e das bananas, foram os responsáveis pelo massacre dos trabalhadores da United, que entraram em greve contra a empresa estadunidense e foram atacados por tropas colombianas numa longa noite de dezembro de 1928. Inexplicavelmente, o coronel também leva o menino para visitar o cadáver fresco de um amigo que acaba de se suicidar. Um assassinato, um massacre, o cadáver de um suicida: a vida do menino Gabriel transcorre dentro da ordem caótica e feliz da infância, enquanto sua paisagem interior vai sendo povoada por mortos, medos e fantasmas.

    O avô Nicolás morre quando a família García está prestes a deixar Aracataca para sempre e estabelecer-se na pequena cidade lacustre de Sucre. Feitas as malas e preparada a partida, o menino vê que na velha casa — sua casa — é feita uma fogueira com toda a roupa do avô, quando é incendiado acidentalmente um boné seu também. Hoje vejo com clareza, escreve ele sessenta anos depois. Algo meu tinha morrido com ele.

    Até aqui, a grande história verdadeira de Macondo que García Márquez narra na primeira parte de suas memórias, Viver para contar. É uma história verdadeira a seu modo, tão confiável, ou não, quanto todas as recordações essenciais, e parece-me que a leremos da melhor maneira se a entendermos como uma nova mitologia montada com as pedras de toque desse escritor. O exorcismo de Aracataca, que se conclui com Cem anos de solidão — a história dos avós, um que mata homens e a outra que vê fantasmas em cada canto; a história da arrevesada corte de seu pai, Gabriel Eligio García, à sua mãe, Luisa Santiaga; a origem de Aracataca e seu final; a história de sua outra avó, mãe de Gabriel Eligio, mulher jovial que tem filhos sem se preocupar em se casar com os diversos pais e que, definitivamente, não confunde alhos com bugalhos; o massacre, os padres, a chuva de pássaros, o descobrimento do gelo — tudo, tudo está naqueles oito anos e nas modestas cento e tantas páginas que o autor gasta em suas memórias para narrar os primeiros e definitivos anos de sua infância e as consequências: o dia em que, aos vinte e três anos, o aspirante a escritor e consagrado boêmio do círculo literário da cidade costeira de Barranquilla, Colômbia, acompanha a mãe para vender a velha casa da infância. Mãe e filho viajam de trem — naquele mesmo, velho, único trem — para o antigo povoado bananeiro, agora abandonado pela United. Percorrem as ruínas de um povoado triste, e suas recordações são infinitamente mais reais do que a realidade mortiça diante de seus olhos. Padecem o calor incendiário de suas ruas poeirentas, agora desprovidas de algazarra. Por fim, visitam a casa que está desmoronando, como se fosse um pedaço de pão duro recuperado de alguma ruína. O presente é um fantasma, e o que está mais vivo é o que já morreu. Na estação, esperando com a mãe o trem amarelo da volta, García Márquez também já vai transformado em fantasma, rondando desconsoladamente os escombros de uma infância irrecuperável.

    Fantasma se exorciza escrevendo, e os textos que seguem são precisamente isto: a oferenda ao passado de um talentoso jovem que, como tantos outros aspirantes a escritor, passara o tempo em busca de temas extravagantes para relatos únicos e geniais que, na realidade, se mostraram incoerentes ou frívolos. A partir da viagem à origem, ele não precisa continuar buscando. Muitos anos depois, ele se lembraria do momento em que, diante da perda, foi resgatado pelo olhar distanciador que o transformou em escritor. Nada tinha mudado, mas senti que na realidade eu não estava olhando o povoado, e sim o sentindo como se fosse uma leitura... e a única coisa que eu tinha de fazer era me sentar e transcrever o que já estava aí. Mal desce do trem, corre à sua escrivaninha no escritório do El Heraldo, periódico de Barranquilla no qual já é um astro do jornalismo, e rascunha as primeiras páginas de La hojarasca [A revoada (O enterro do diabo)]. Na manhã seguinte, um colega e amigo encontra García Márquez ainda datilografando furiosamente; Estou escrevendo o romance de minha vida, anuncia ao amigo. Em vias de terminá-lo, vai publicando trechos do texto aqui e ali; textos que foram recuperados para esta coletânea. Neles aparece um padre velho e bondoso que vê fantasmas; outro, mais jovem e também bondoso, que funciona como mediador em pleitos que são o rescaldo da violência partidária que encheu de mortos o povoado. Num relato, uma mulher presencia, alucinada, uma chuva torrencial que dura três dias. De um conto a outro vão aparecendo diferentes personagens com nomes que nos causam sobressaltos, como se deparássemos de repente com algum velho amigo na estação de trem; há Nicanores, Rebecas, Remédios, Cotes, Moscotes, Buendías. Trata-se, na realidade, de diferentes histórias soltas sobre um mesmo povoado, em cuja barbearia sempre estará pendurado um letreiro que diz Proibido falar de política, e cujo prefeito sempre terá dor de dente. É um povoado que ainda carece de nome, mas em alguns contos se faz referência a outro, situado à beira da mesma ferrovia: Macondo. (Efetivamente, na época bananeira, a estação anterior a Aracataca, para quem vem de Santa Marta, era um povoado um pouco mais próspero, chamado Macondo.) Há histórias que se sucedem numa cidade com cais ribeirinho que pode ser Sucre, onde, na realidade real, a família García se estabeleceu, por fim, nos anos da adolescência do filho mais velho. Outros contos, situados num lugar que tem rio e praia, talvez estejam ambientados na cidade de Ciénaga. Temário, geografia, estilo, voz, tudo nasce ao mesmo tempo em contos que são, na realidade, parte de um único texto obsessivo. Depois do ciclo macondiano, que começa aqui com Monólogo de Isabel vendo chover em Macondo e culmina depois de Cem anos de solidão com Crônica de uma morte anunciada, ele escreverá outros livros sobre ditadores e libertadores, meninas apaixonadas e velhos assanhados apaixonados por meninas adormecidas. Serão os livros de um escritor em busca de temas. Estes textos, em contrapartida, são histórias que insistiram em sair por conta própria e carregam a força de uma locomotiva.

    É difícil saber como García Márquez assimilou o fato de um de seus romances ter se tornado cem vezes mais conhecido do que toda a sua obra precedente ou posterior.

    Talvez nem ele mesmo soubesse. Por um lado, achava que a história de amor de seus pais, transformada em O amor nos tempos do cólera, talvez pudesse ser seu melhor romance. Por outro lado, não resta dúvida de que, para ele, Cem anos de solidão constituiu o ápice de seu esforço por traduzir a realidade em literatura. Além disso, essa obra o tornou rico. E infinitamente famoso. (Lembro-me, entre todos os acontecimentos que cercaram sua morte, da imensa fila que se formou durante mais de vinte e quatro horas para homenageá-lo no Palacio de Bellas Artes do México e de que, nessa fila, um homem disse para as câmeras de algum noticiário que tinha aprendido a ler para poder ler Cem anos de solidão, porque sua mulher, professora do fundamental, tinha gostado muito desse livro. Lembro-me de lamentar que o escritor não estivesse vivo para ouvir essa homenagem que nada tinha a ver com a fama.)

    O que não está claro para mim é que lugar García Márquez concedia aos textos aqui reunidos. Como todo autor, ia mudando sua avaliação de cada livro de acordo com o dia em que lhe perguntassem. Não são poucos os que acreditam que Ninguém escreve ao coronel seja sua obra mais perfeita, mas tenho a impressão — não encontro agora uma citação que sustente isso — de que ele via essa história mais como a culminância de um longo aprendizado. É espantoso que, no único volume das memórias que conseguiu escrever, ele relate com arrebatamento juvenil seus anos de jornalista e em seguida culmine com sua primeira viagem ao exterior aos vinte e oito anos, graças ao periódico bogotano El Espectador, que o enviou para cobrir uma conferência internacional em Genebra, Suíça. No meio, o escritor dedica dois parágrafos — dois míseros parágrafos para o acontecimento mais deslumbrante da vida de qualquer autor! — à publicação de seu primeiro romance, A revoada (O enterro do diabo). Na realidade, o público em geral também teve dificuldade para assimilar estes primeiros textos macondianos: vários deles têm a infelicidade de ser leitura obrigatória dos cursos secundários e preparatórios da América Latina, e é difícil deixar de vê-los simplesmente como aquilo que Gabriel García Márquez escreveu antes de Cem anos de solidão.

    Com mais de meio século de distância, custa imaginar a euforia provocada pela aparição de Cem anos de solidão, livro que, para os leitores que vieram depois, sempre esteve aí. Certa noite, eu me sentei sob a cálida luz de um abajur para ler um livro que acabara de receber de presente, de um autor de quem eu não tinha notícia. Não sei como se passaram as horas em que várias décadas e um segundo me pareceram a mesma coisa, mas, quando voltei a mim, com o coração exaltado e a cabeça cheia de um mundo transbordante, fervilhante de vida, ergui o rosto e vi que a manhã já estava acabando de afastar a noite. Eu, como mais uma pessoa entre milhões, guardei a lembrança daquela leitura como um momento eterno de felicidade perfeita. Nenhum outro autor do século XX conseguiu introduzir seus leitores de maneira tão aparentemente simples num mundo mágico e completo. Corrijo: nenhum autor que não escreva contos infantis conseguiu isso. Um dia, num almoço, García Márquez anunciou que, agora sim, ia começar a ler J.K. Rowling, para ver como anda a concorrência. A conversa tinha girado em torno de direitos autorais, mas ele não se referia a isso, pois sem dúvida sabia que naquelas alturas a autora da épica de Harry Potter tinha vendido milhões de exemplares a mais do que ele. Não: García Márquez tinha entendido que a pessoa que estava lhe fazendo sombra era a única, além dele, capaz de imergir seus leitores num mundo do qual eles não queriam depois sair.

    Durante mais de meio século, a imensa maioria dos leitores que foram às livrarias procurar Ninguém escreve ao coronel, ou A revoada (O enterro do diabo), ou O veneno da madrugada (A má hora) quis ler essas obras depois de ler o romance do cigano Melquíades e das borboletas amarelas, certamente à procura de outra dose da mesma magia. Mas o impulso por trás dos contos deste livro é outro. Dizia García Márquez: Nós, da Costa Atlântica, somos os seres mais tristes do mundo; e pelo menos na épica macondiana dos primeiros contos, a tristeza, a amargura e o rancor são a constante. O principal impulso que desata a ação é a fome, pois o povoado das histórias é um lugar tão perdido do mundo que nem sequer os ricos têm dinheiro. Nessa obra-prima que é Nesta terra não há ladrões, o protagonista sai para roubar e volta com três bolas de bilhar. Nos textos reunidos aqui, as referências ao sexo são escassas e mais do que pudicas. De fato, parece-me que só um personagem — o doutor Giraldo de O veneno da madrugada (A má hora) — desfruta de vida sexual ativa e agradável, e sabemos disso por uma única menção, quase de passagem. Em contrapartida, em Cem anos de solidão, um desencadeador frequente da ação é o desejo físico desorientador, principalmente das mulheres, que admiram demais os homens com pênis de proporções sobre-humanas. É um desejo exorbitante, fértil, febril e criativo: Macondo está povoado de filhos, por todo lado nascem crianças que crescem, e, por sua vez, esses adultos ficam imprensados pelo desejo, como borboletas pelo alfinete, e se reproduzem com maior fervor ainda. Por outro lado, nos contos desta antologia há mulheres grávidas, acabadas e magras, que passam anos com seu parceiro e não são desejadas por ninguém. Há, principalmente, homens e mulheres encerrados na triste lealdade do matrimônio. Há não só morte, mas também, insistentemente, podridão. Uma vaca morta fica encalhada na margem do rio e, ao longo do conto, vai inchando e apodrecendo até que todo o povoado fique com um cheiro insuportável. Um menino é obrigado pelo avô e pela mãe a ver o cadáver de um enforcado que tem a língua mordida e para fora. Imagina-se, com os detalhes produzidos pelo espanto, como teriam ficado trancadas no ataúde as moscas que chegaram em busca do cadáver.

    Em Cem anos de solidão não há moscas. Há um morto do qual sai um fio escarlate que, do quarto onde ele acaba de morrer, avança serpenteando, virando esquinas na rua e evitando a mesa da sala de jantar da casa dos Buendía, até chegar à mulher que vê o sangue e entende que acabaram de assassinar seu filho mais velho. Quer dizer, em Cem anos de solidão, há uma mitologia. Completa e redonda como todas as mitologias, existe num tempo circular e remoto em relação à realidade da putrefação da morte. Além disso, nas últimas páginas, o recém-nascido levado pelas formigas é uma abstração, uma pele seca que sequer ganhou vida dentro da narrativa. Absorto na leitura das previsões do cigano, o último Aureliano descobre no parágrafo final do romance que Melquíades não tinha ordenado aqueles augúrios no tempo convencional dos homens, mas concentrado um século de episódios cotidianos, de maneira que todos coexistissem num mesmo instante. Ou seja, Aureliano descobre o que seu criador quer nos revelar no último momento: seu propósito explícito de criar uma épica familiar dentro do tempo circular de uma mitologia.

    Embora seja verdade que tudo o que García Márquez escreveu para extirpar de si o veneno de Aracataca, vulgo Macondo, foi um ensaio para encontrar o caminho para Cem anos de solidão, também é verdade que A revoada (O enterro do diabo), O veneno da madrugada (A má hora), Ninguém escreve ao coronel e os contos curtos aqui reunidos ocupam o duro tempo linear da realidade, habitada por homens e mulheres como nós, cujos destinos despertam em nós compaixão e espanto, enquanto em Cem anos de solidão, livro sedutor por excelência, somos movidos mais pelo assombro e pela gratidão. Nesse sentido, estes textos não são propriamente o caminho para Macondo, mas sim um Macondo propriamente dito.

    García Márquez dizia: Nunca me esqueço de quem sou; sou filho do telegrafista de Aracataca. Mas, na realidade, a viagem de volta a Aracataca na juventude levou-o como que agarrado pelo cangote a contemplar-se em um espelho de águas mais profundas. Ali, o jovem Gabriel descobriu-se filho de seus avós, criança de olhos grandes e muito abertos, que cresceu submersa numa história de violências, amarguras, perdas arrasadoras e realidades asfixiantes. Os contos que saíram dessa viagem, aqui reunidos para a felicidade de novos e antigos leitores, são sombrios, urgentes, não míticos, mas trágicos, levados pelo impulso febril de exorcizar, enquanto revela, um passado real que ainda dói. São magníficos.

    NOTA DA EDIÇÃO ORIGINAL

    Conrado Zuluaga

    García Márquez afirmou em diversas oportunidades que, para escrever cada livro, primeiro tinha de aprender a escrevê-lo, e só depois enfrentar a máquina de escrever. Precisou de quase vinte anos vivendo em Macondo para aprender a escrever seu romance Cem anos de solidão.

    Esta antologia, realizada com o intuito de rastrear o roteiro do escritor, possibilitará que o leitor curioso encontre alguns momentos desse percurso. Assim como um desbravador, ele precisou abrir um caminho, apropriar-se de um espaço e delinear, pelo menos, alguns traços das personagens que o habitariam. Por isso, esta antologia de textos completos — mas de dimensões muito diversas — tem como título A caminho de Macondo.

    García Márquez iniciou-se na literatura e no jornalismo quase ao mesmo tempo. Seu primeiro conto, A terceira resignação, foi publicado em setembro de 1947; ele iniciou a carreira de jornalista oito meses depois em Cartagena. Em 1950 já era colunista contratado do diário El Heraldo de Barranquilla. Sua coluna, La jirafa, era assinada com o pseudônimo Septimus.

    Também nessa época ele se lançou com os amigos na publicação de uma revista, Crónica, semanário esportivo-literário de vida efêmera. No número 6 (3 de junho de 1950), aparece um texto assinado por García Márquez com o título A casa dos Buendía, tendo como subtítulo uma clara advertência: Apontamentos para um romance. Ali estão os primeiros traços públicos do que ele consegue vislumbrar e do que ronda sua cabeça. Naquele mesmo mês, apenas dez dias depois, na coluna de El Heraldo, é publicado o texto intitulado A filha do coronel, no qual é repetido o esclarecimento Apontamentos para um romance; quem o assina não é Septimus, mas sim Gabriel García Márquez. Essa mise-en-scène, digamos assim, se repetirá naquele mesmo ano em duas ocasiões, O filho do coronel e O regresso de Meme, em 23 de junho e 22 de novembro, respectivamente.

    No primeiro texto já aparecem o nome da estirpe e a figura de um de seus mais destacados personagens, Aureliano Buendía, que volta ao povoado com o término da guerra civil, restando-lhe apenas o título militar e uma vaga inconsciência de seu desastre. Em O regresso de Meme, outro coronel — são vários os militares na obra de García Márquez, uns com nome próprio, outros apenas com a marca genérica de sua patente — será, dentro de alguns anos, a personagem central de A revoada (O enterro do diabo). Já definido aqui com o caráter que, no romance, o conduzirá a uma encruzilhada: Foi quando meu pai, que a sustentara como criada durante quinze anos, tomou-a pelo braço, sem olhar para o público, e a trouxe por meia praça com aquela atitude soberba e desafiadora que sempre adota quando faz alguma coisa com a qual sabe que os outros estão em desacordo. O capítulo 2 de A revoada (O enterro do diabo) (1955) é, em seus primeiros parágrafos, uma reprodução daquela quarta coluna do El Heraldo, com algumas leves variações.

    A colaboração de García Márquez com o diário de Barranquilla terminou em 24 de dezembro de 1952 com O inverno, texto que ocupava toda a última página do periódico, antecedido por uma breve nota, na qual se informava tratar-se de um capítulo de A revoada (O enterro do diabo). Três anos depois, a revista Mito (nº 4, outubro-novembro de 1955) publicou o mesmo texto com o título conhecido no mundo inteiro: Monólogo de Isabel vendo chover em Macondo. Quase trinta anos depois, numa coluna, Como se escreve um romance? (1984), o escritor recorda Jorge Gaitán Durán resgatando do cesto de papéis rasgados um texto que acredita ser publicável: ‘Que título daremos?’, perguntou-me, usando um plural que pouquíssimas vezes tinha sido tão cabível como naquele caso. ‘Não sei’, respondi. ‘Porque isso aí era apenas um monólogo de Isabel vendo chover em Macondo.’ Gaitán Durán escreveu na margem superior da primeira folha quase ao mesmo tempo que eu dizia isso: ‘Monólogo de Isabel vendo chover em Macondo.’

    Nesses primeiros textos, o povoado é genérico, não tem nome específico. Um pouco mais adiante, o leitor descobrirá que há dois cenários muito semelhantes e diferentes, ao mesmo tempo. O povoado, com suas ruas poeirentas, é um lugar que só dispõe de uma via de comunicação, um rio — ao qual chegam, três vezes por semana, uma lancha com passageiros e o malote do correio —, que é uma lâmina de aço nos dias de calor e no inverno transborda, causando estragos nos bairros ribeirinhos. O outro é Macondo, quase tão falto de comunicação quanto o primeiro. Seu rio não é navegável, pois suas águas correm por um leito de pedras polidas, brancas e enormes, como ovos pré-históricos, mas tem um trem diário, um inocente trem amarelo, e, em seus anos de prosperidade, plantações de banana, escritórios com ventiladores e residências com cadeiras e mesinhas brancas.

    A primeira menção a Macondo pode passar despercebida. No conto Um dia depois do sábado, que foi publicado pela primeira vez em 1954 e faz parte do livro Os funerais da Mamãe Grande (1962), um jovem desce do trem que chega ao povoado e, vendo o padre, pensa, sem nenhuma lógica aparente, que, se há um padre naquele povoado, também deve haver um hotel, e entra num estabelecimento sem olhar — diz o texto — a placa que anuncia: Hotel Macondo.

    Nessa narrativa já se encontram antecipações de vários episódios. Há uma nova menção ao coronel Aureliano Buendía, e conta-se que faz mais de quarenta anos que seu irmão José Arcádio Buendía morreu alvejado por um tiro e o cheiro de pólvora do cadáver é insuportável. Também se conta que depois que metralharam os trabalhadores e se acabaram as plantações de banana e, com elas, os trens de cento e quarenta vagões, [...] sobrou apenas aquele trem amarelo e empoeirado [...].

    Mas, assim como há episódios, há uma atmosfera, um ambiente: as amendoeiras centenárias nas ruas, o denso zumbido dos pernilongos, o fedor de pássaros mortos. E os cheiros, um cheiro acre e penetrante, como dos corpos em decomposição. Atmosferas e cheiros que se repetem. O cheiro ocupa lugar predominante na narrativa do escritor: [...] o sentido do olfato é implacável na individualização das recordações. [...] O retrato dá luz e forma, mas a recordação do cheiro dá a temperatura, afirmou em sua coluna El infierno olfativo (7 de setembro de 1950). Em Cem anos de solidão, os cheiros impregnam gestos, atitudes, lembranças, pessoas, espaços: cheiro de demônio, segundo Úrsula, de um frasco que Melquíades quebra, cheiro de alfavaca das arcas, cheiro de sangue na travessia da selva, de alcatrão pestilento de um cigano, um hálito glacial que o cofre de gelo deixa escapar, o cheiro de fumaça das axilas de Pilar Ternera. Tudo cheira em Macondo.

    Em Um homem vem na chuva, publicado em 1954, há uma menção fugaz a uma mulher chamada Úrsula, mas, afora o nome, nada há em comum com a Úrsula laboriosa que em nenhum momento de sua vida alguém ouviu cantar. Poucas linhas antes do final do conto, há também uma referência concreta a um episódio da guerra civil como algo remoto e apagado: E então se lembrou de papai Laurel lutando sozinho, entrincheirado no curral, derrubando os soldados do governo com uma espingarda de chumbinho para andorinhas. E lembrou-se da carta que lhe escreveu o coronel Aureliano Buendía e do título de capitão que papai Laurel recusou, dizendo: ‘Digam a Aureliano que não fiz isso pela guerra, mas para evitar que aqueles selvagens comessem meus coelhos.’

    Em maio de 1955 aparece a primeira edição de A revoada (O enterro do diabo). Macondo e alguns de seus traços mais proeminentes, desde os últimos dias do século — quando o coronel, sua esposa e Meme chegaram ali depois do término da guerra — até 1928, quando o coronel enfrenta o povoado. A narrativa é precedida por um texto datado (Macondo, 1909), que, pelo tom e pela brevidade, parece o fragmento de algumas memórias, no qual está descrito o outro rosto da bonança bananeira: um povoado transformado pela avalanche do rebotalho, até transformarem o que foi uma rua com um rio num extremo e no outro um cercado para os mortos num povoado diferente e complicado, feito com as sobras dos outros povoados.

    Outros três assuntos afloraram nesse romance. Em primeiro lugar, o padre que volta para tomar conta da paróquia, que participou da guerra civil de 1885, coronel aos dezessete anos, de cujo primeiro nome ninguém se lembra, pois só se lembram do apelido que lhe foi posto pela mãe (porque era voluntarioso e rebelde): o Cachorro; depois, o aparecimento, no acampamento do coronel Aureliano Buendía, de um militar estranho com o chapéu e as botas adornados com peles, dentes e unhas de tigre: o duque de Marlborough! E, por fim, no monólogo final de Isabel, uma piscadela eloquente para o acontecimento que se precipitará sobre o povoado: [...] se é que, então, já não terá passado esse vento final que varrerá Macondo, seus quartos de dormir cheios de lagartos e sua gente taciturna, devastada pelas recordações.

    A publicação de Ninguém escreve ao coronel, em 1961, possibilita acrescentar outros elementos e apreciar características mais precisas. A narrativa transcorre no povoado, isolado, a oito horas de lancha. Não há trem nem companhia bananeira. Na alfaiataria, visível, existe um letreiro que em O veneno da madrugada (A má hora) se encontra na barbearia: Proibido falar de política. O clima que se respira é de violência partidária e repressão política, e o prefeito é um militar que sofre de forte infecção dentária. Essa é uma circunstância que se repete com os prefeitos militares nos romances e nos contos de García Márquez. Quase todos eles sofrem de dor de dente. Em Um dia desses, uma frase revela esse infortúnio: O dentista viu em seus olhos murchos muitas noites de desespero.

    Nesse ambiente de isolamento e nervosismo que o povoado suporta, circula um coronel de setenta e quatro anos que há meio século, desde a rendição de 1902, está esperando sua pensão. Uma reminiscência sua ilustra a chegada da revoada a Macondo, cinquenta anos antes: Na modorra da sesta viu chegar o trem amarelo e empoeirado com os homens, as mulheres e os animais asfixiando-se de calor, amontoados até o teto. Era a febre da banana. Transformaram o lugar em vinte e quatro horas. ‘Vou embora’, disse então o coronel. ‘O cheiro da banana me desarranja os intestinos.’ E abandonou Macondo no trem de volta [...]. Em Cem anos de solidão, o leitor encontrará esse coronel, com a idade de vinte anos, no momento crucial da assinatura do armistício. Menos de vinte linhas num romance de quatrocentas páginas, quando chega ao acampamento, antes de o coronel Aureliano Buendía estampar seu nome na última cópia do acordo de paz: Era o tesoureiro da revolução na circunscrição de Macondo. [...] Com uma pachorra exasperante descarregou os baús, abriu-os e foi pondo na mesa, uma por uma, setenta e duas barras de ouro. Ninguém se lembrava da existência daquela fortuna. Por solicitação do jovem tesoureiro, o coronel Aureliano Buendía emite um recibo. O mesmo recibo que ele anexará aos documentos do processo de sua pensão.

    Essa é a natureza do arcabouço que vai sendo armado na cabeça do escritor. No romance de 1961, o coronel de setenta e quatro anos é um ser anacrônico que, num diálogo com o médico, quando este tenta explicar-lhe a segurança dos voos transatlânticos, comenta: Deve ser como os tapetes voadores; enquanto, no romance de 1967, ele tem apenas vinte anos, é um coronel rebelde, tesoureiro da revolução, que devolve uns fundos que todos tinham esquecido.

    E afloram os pesadelos e os mitos que acompanharam os insurrectos. Uma noite, a mulher ouve o coronel murmurar algo entre sonhos e pergunta com quem ele está falando, e ele, sem titubear, responde: Com o inglês fantasiado de tigre que apareceu no acampamento. [...] Era o duque de Marlborough.

    Em 1962, a Universidade Veracruzana, em Xalapa, México, publicou Os funerais da Mamãe Grande, volume com oito contos. O mais popular de todos, aquele que dá nome ao livro, conta os últimos momentos da soberana absoluta do reino de Macondo. Os outros sete narram diversos episódios ou personagens, alguns dos quais depois terão desenvolvimento mais amplo em Cem anos de solidão — tal como a origem incerta de algumas fortunas ou as legiões de Aureliano Buendía acampadas na praça pública —, mas a maioria deles compartilha uma atmosfera comum: o trópico e seus odores. Em meio às plantações simétricas de banana, o ar é úmido e não se volta a sentir a brisa do mar, o povoado flutua no calor, e seus habitantes fazem a sesta rendidos pelo sopor; até as casas jazem numa penumbra sufocante, outubro se eterniza com suas chuvas pantanosas, e o movimento de uma lancha, ao partir do cais do povoado, deixa no ar um odor peculiar: A água exalou um hálito de lama revolvida.

    Em 23 de abril daquele mesmo ano, o júri do prêmio Esso de Romance de 1961 declarou ganhador O veneno da madrugada (A má hora). Sua publicação fazia parte do prêmio e tinha sido contratada para realização na Espanha, onde decidiram intervir no texto e mudar algumas expressões. García Márquez desautorizou aquela edição e declarou como primeira a realizada em 1966, por Ediciones Era de México. Nela, o escritor incluiu a seguinte nota: "A primeira vez em que O veneno da madrugada (A má hora) foi publicado, em 1962, um revisor de provas tomou a liberdade de mudar certos termos e engomar o estilo, em nome da pureza da linguagem. Naquela ocasião, por sua vez, o autor tomou a liberdade de restabelecer as incorreções idiomáticas e os barbarismos estilísticos, em nome de sua vontade soberana e arbitrária. Esta é, portanto, a primeira edição de O veneno da madrugada (A má hora)."

    Conhecido popularmente como o romance dos pasquins — foi assim chamado pelo autor em várias oportunidades — O veneno da madrugada (A má hora) é uma meticulosa descrição do povoado ao longo de dezessete dias, quando foi submetido a uma avalanche de pasquins anônimos que não dizem nada que não se saiba, mas provocam uma tensão que ameaça ressuscitar a violência partidária do passado. O que tira o sono, diz um personagem, não são os pasquins, mas o medo dos pasquins.

    No romance se encontram algumas poucas menções — duas, na verdade — com as quais se pode estabelecer uma relação com episódios de Cem anos de solidão. O prefeito, tenente que — claro — também tem dor de dente, almoçando na copa do hotel, lembra-se de que o coronel Aureliano Buendía, que fora discutir em Macondo os termos da capitulação da última guerra civil, dormiu uma noite naquela varanda, numa época em que não havia nenhum outro povoado muitas léguas derredor. A outra é o padre Ángel, que, antes de chegar ao povoado, tinha sido pároco em Macondo.

    Nestas alturas mais de um leitor se estará perguntando o que esta introdução pretende ao realizar esta inquirição, se o próprio escritor declarou há anos que na realidade a gente não escreve senão um livro. E em outra ocasião afirmou: Por sorte, Macondo não é um lugar, mas um estado de ânimo que nos permite ver o que queremos e como queremos. A pesquisa destas páginas não pretende elucidar qual foi o livro que García Márquez escreveu, tampouco determinar a realidade sobre a qual assenta esse universo. Esta antologia só tem o propósito de mostrar a progressão, a busca — através de vários textos anteriores a Cem anos de solidão — desse mundo alucinado de ficção que tem a ambição de ser real.

    O próprio García Márquez disse a Ernesto González Bermejo em longa e minuciosa entrevista publicada pela revista espanhola Triunfo em 1970, García Márquez: agora duzentos anos de solidão: "[...] o que há entre A revoada (O enterro do diabo) e Cem anos de solidão são uns quinze anos de muita paciência, de muito viver e de estar atento todos os dias, tentando ver como eram as coisas." E o resultado está aí, Cem anos de solidão (1967), romance que, concebido por um autor que parecia tocado pelos deuses, foi considerado, já a partir da primeira edição, como um dos maiores romances em língua espanhola desde Dom Quixote.

    A CAMINHO DE MACONDO

    Ficções 1950-1966

    PRIMEIROS TEXTOS

    1950-1954

    A CASA DOS BUENDÍA

    (Apontamentos para um romance)

    A casa é fresca; úmida durante a noite, mesmo no verão. Fica no norte, no extremo da única rua do povoado, elevada sobre uma base alta e sólida de concreto. Jamba alta, sem escadarias. O longo salão perceptivelmente desmobiliado, com duas janelas de corpo inteiro que dão para a rua, talvez seja a única coisa que possibilite distingui-la das outras casas do povoado. Ninguém se lembra de ter visto as portas fechadas durante o dia. Ninguém se lembra de ter visto as quatro cadeiras de balanço de palhinha em outro lugar ou em posição diferente: colocadas formando um quadrado no centro da sala, aparentam ter perdido a capacidade de proporcionar descanso e agora ter a simples e inútil função ornamental. Agora há um gramofone no canto, junto à menina inválida. Mas antes, durante os primeiros anos do século, a casa foi silenciosa, desolada, talvez a mais silenciosa e desolada do povoado, com aquele imenso salão ocupado apenas pelas quatro [...] (agora o porta-jarros só tem uma pedra de filtro, com musgo) no canto oposto ao da menina.

    Dos dois lados da porta que leva ao único dormitório há dois retratos antigos, assinalados com uma fita de luto. O próprio ar, dentro do salão, é de severidade fria, mas elementar e sadia, como o atilho de vestido de noiva que balança no lintel do dormitório, ou como o ramo seco de babosa que decora por dentro o umbral da porta da rua.

    Quando Aureliano Buendía voltou ao povoado, a guerra civil havia terminado. Ao novo coronel talvez nada tivesse restado da áspera peregrinação. Restava-lhe apenas o título militar e uma vaga inconsciência de seu desastre. Mas também lhe restava a metade da morte do último Buendía e uma ração de fome inteira. Restava-lhe a saudade da domesticidade e o desejo de ter uma casa tranquila, pacata, sem guerra, que tivesse jamba alta para o sol e uma rede no quintal, entre dois mourões.

    No povoado onde ficava a casa de seus ancestrais, o coronel e a esposa encontraram apenas as raízes dos mourões incinerados e o alto terrapleno, varrido já pelo vento de todos os dias. Ninguém teria reconhecido o lugar onde antes houvera uma casa. Tão claro, tão limpo era tudo, disse o coronel, recordando. Mas, entre as cinzas onde estivera o quintal, já reverdecia a amendoeira, como um Cristo entre os escombros, junto ao quartinho de madeira da privada. A árvore, de um lado, era a mesma que havia lançado sombra sobre o quintal dos velhos Buendía. Mas do outro, do lado que caía sobre a casa, espichavam-se os ramos fúnebres, carbonizados, como se meia amendoeira estivesse no outono e a outra metade, na primavera. O coronel se lembrava da casa destruída. Lembrava-se dela por sua claridade, pela música desordenada, feita com as sobras de todos os ruídos que a habitavam até transbordarem dela. Mas também se lembrava do cheiro acre e penetrante da latrina junto à amendoeira e do interior do quartinho carregado de silêncios profundos, repartido em espaços vegetais. Entre os escombros, revolvendo a terra enquanto varria, dona Soledad encontrou um são Rafael de gesso com uma asa quebrada e um copo de lamparina. Ali construíram a casa, com a frente para o poente; na direção oposta à da casa dos Buendía mortos na guerra.

    A construção foi iniciada quando parou de chover, sem preparativos, sem ordem preestabelecida. No buraco onde se fincaria o primeiro pilar, ajustaram o são Rafael de gesso, sem nenhuma cerimônia. Talvez o coronel não tenha pensado no caso quando fazia o traçado sobre a terra, mas, junto à amendoeira, onde estivera a privada, o ar permaneceu com a mesma densidade de frescor que tivera quando aquele local era o quintal. De modo que, quando foram cavados os quatro buracos e foi dito: Assim vai ser a casa, com uma sala grande para as crianças brincarem, o melhor dela já estava feito. Foi como se os homens que tomaram as medidas do ar tivessem marcado os limites da casa exatamente onde terminava o silêncio do quintal. Porque, quando foram levantados os quatro pilares, o espaço cercado já estava limpo e úmido, como agora é a casa. Dentro ficaram encerrados o frescor da árvore e o profundo e misterioso silêncio da latrina. Fora ficou o povoado, com o calor e os ruídos. E, três meses depois, quando se construiu o teto, quando se emboçaram as paredes e montaram as portas, o interior da casa continuou tendo — ainda — algo de quintal.

    A FILHA DO CORONEL

    (Apontamentos para um romance)

    Na igreja havia uma cadeira reservada para o coronel Aureliano Buendía atrás dos últimos bancos, exatamente debaixo do coro. Ao lado da cadeira, um lugar desocupado, onde a pequena Remédios colocava sua almofadinha para se ajoelhar quando o pai

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