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Poder Punitivo, Polícia Judiciária e Democracia: Reflexões contemporâneas sobre a atividade de investigação criminal
Poder Punitivo, Polícia Judiciária e Democracia: Reflexões contemporâneas sobre a atividade de investigação criminal
Poder Punitivo, Polícia Judiciária e Democracia: Reflexões contemporâneas sobre a atividade de investigação criminal
E-book319 páginas3 horas

Poder Punitivo, Polícia Judiciária e Democracia: Reflexões contemporâneas sobre a atividade de investigação criminal

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Sobre este e-book

O livro Poder Punitivo, Polícia Judiciária e Democracia: Reflexões Contemporâneas sobre a Atividade de Investigação Criminal promove uma releitura do processo penal a partir de sua orientação democrática. Ao analisar pontos cruciais da atividade de investigação criminal, a partir de uma necessária interdisciplinariedade com outros campos do saber, como a filosofia política, a teoria do estado, a sociologia jurídica, a criminologia e a psicanálise, a obra contempla uma moderna abordagem de importantes temáticas associadas à disciplina processual penal.
Nesse contexto, a atividade de investigação criminal, há tempos tratada de modo superficial e negligenciado, passa a ser vista como um dos mais relevantes marcos da marcha processual. O procedimento investigativo, titularizado no ordenamento jurídico pátrio pelas Polícias Judiciárias, adquire um novo dimensionamento, sendo apresentado como um momento endoprocessual imprescindível à persecução criminal, de modo a comportar não só uma ressignificação de seus principais conceitos, mas também um realinhamento hermenêutico a partir do enfrentamento de questões ligadas à superação de antigos paradigmas, aos discursos penais utilizados na gestão diferenciada da criminalidade, a imagem ritualística do investigado e ao resgate do tecnicismo jurídico no âmbito da cadeia de custódia probatória.
Certamente, ao percorrer temas de alta sensibilidade do processo penal, o livro alcança seu objetivo de se debruçar sobre diversas lacunas doutrinárias acerca do fundamento existencial da investigação criminal e de seus subsequentes desdobramentos na atividade policial.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento7 de jul. de 2020
ISBN9786556750101
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    Poder Punitivo, Polícia Judiciária e Democracia - Carlos Eduardo Rangel

    TÍTULO I

    INVESTIGAÇÃO CRIMINAL E DEMOCRATICIDADE – A NECESSÁRIA SUPERAÇÃO DO PARADIGMA INQUISITORIAL

    TÍTULO I

    INVESTIGAÇÃO CRIMINAL E DEMOCRATICIDADE – A NECESSÁRIA SUPERAÇÃO DO PARADIGMA INQUISITORIAL

    I.a. Processo Penal Constitucional – a consolidação das decisões políticas fundamentais no Estado de Direito

    Num primeiro momento, importa esclarecer que a exata compreensão do modelo atual da investigação criminal e a subsequente análise de seu nível de democraticidade implicam, obrigatoriamente, numa breve imersão em suas raízes estruturantes.

    Desta forma, para se compreender a moldura contemporânea do processo penal, e a busca incessante por seu devido redimensionamento constitucional, faz-se necessária não só uma interlocução com outros ramos do conhecimento, como, por exemplo, a sociologia política, a economia, a criminologia, a teoria do estado e a filosofia, mas também com o exame das relações de poder estabelecidas na conformação social e seus mais diversos fatores de modificação, como os sistemas de produção econômica, a governabilidade, a ocorrência de grandes conflitos, os níveis de coesão ou exclusão social, dentre outros.

    Para tornar esse trajeto ainda mais instigante, passaremos a um pequeno exercício, a partir da análise da sentença condenatória do cidadão Robert Damiens, acusado de atentar contra a vida do Rei Luís XV no ano de 1757, tomando a sua descrição reproduzida na obra Vigiar e Punir, de Michel Foucault¹:

    Damiens fora condenado, em 2 de março de 1757, a pedir perdão publicamente diante da porta principal da Igreja de Paris, aonde devia ser levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; em seguida, na dita carroça, na praça de Grève, e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento..

    O relato mais completo, ao qual ora convidamos o leitor à escrita de Foucault, ainda é mais aterrador.

    Os cavalos, por exemplo, não eram afetos à tração, mas sim típicos de montaria. Por isso, após várias tentativas sem sucesso para o desmembramento do condenado, os carrascos foram obrigados a lhe cortar nas articulações das coxas com o tronco, para somente então proporcionar a execução desta etapa prevista na sentença.

    Por óbvio, a breve leitura desse extrato punitivo automaticamente remete nosso imaginário a uma sensação de extrema repugnância, tendo em vista a tamanha brutalidade do cenário.

    Contudo, conforme anteriormente proposto, retomaremos nosso exercício a partir de outra perspectiva analítica do julgado, já partindo dos seguintes questionamentos: o condenado foi submetido a algum sistema processual? A sentença de condenação foi proferida no bojo de um processo penal? A pena estabelecida ao condenado foi compatível com sua conduta criminosa?

    A resposta que se impõe é positiva.

    Considerando a época dos fatos, o ano de 1757, forçoso reconhecer que tudo ali descrito ocorreu de forma legítima e em observância aos preceitos do sistema de justiça criminal, regularmente estabelecidos naquele peculiar contexto histórico.

    Do mesmo modo, pode-se afirmar que a Idade Média, através dos processos levados a cabo pelo Tribunal do Santo Ofício, testemunhou o maior feminicídio já experimentado pela humanidade, onde mulheres rotuladas como bruxas foram levadas às fogueiras da Inquisição, sob grave acusação de atentado contra a supremacia da ordem religiosa, bem jurídico de extremo relevo naquela época.

    Em menção à obra Malleus Maleficarum, escrita em 1484 pelos monges dominicanos Kramer e Spenger, Lola Aniyar de Castro² explica que as bruxas eram mulheres que realizavam experimentos com ervas, ou mesmo analisavam esqueletos de defuntos enterrados, com vistas a desenvolver métodos de tratamento para crianças e idosos enfermos, procedimentos proscritos pela igreja.

    A partir de um salto histórico de cerca de quinhentos anos e voltando nossas lentes para a realidade brasileira atual, já não temos mais as forcas, abandonamos as guilhotinas e os carrascos, apagamos as fogueiras, mas, ainda assim, desaguamos na chamada era do grande encarceramento³, onde, num sistema penitenciário com capacidade de 350 mil vagas, atingimos uma população carcerária na ordem de 726 mil presos⁴.

    Não se almeja aqui traçar qualquer tipo de análise crítica aos distintos modelos de sistema punitivo, nem mesmo aferir o seu grau de humanidade.

    O ponto de convergência que ora se pretende alcançar é que, nos três contextos citados, o tratamento sistêmico conferido a um fato delitivo teve seu desenvolvimento através de uma sequência de atos preordenados.

    Ou seja, a solução final (castigo) para um comportamento delituoso (crime) adquiriu concretude a partir de uma persecução criminal (processo), devidamente legitimada em seu contexto social.

    Nesse momento, nos interessa justamente o exame conjuntural desta tríade: crime-processo-castigo.

    Assim, com o trilhar dos séculos, considerando as suas mais variadas nuances e alterações conjunturais, constata-se a relevância da análise das relações de poder firmadas ao longo de todo o processo de desenvolvimento histórico para, a partir de então, aferir seus reflexos e graduar sua impactação no desenho processual contemporâneo.

    Na busca por esse real dimensionamento, o ponto de partida, sem dúvida, reside na derrocada do Absolutismo e o subsequente advento do Estado de Direito.

    A ordem social do sistema absolutista era marcada pela supremacia de um poder ilimitado nas mãos de um ser soberano, cuja legitimação político-social era referendada, em larga escala, pela ordem religiosa.

    Tornou-se célere a frase de Luiz XIV, monarca francês que imperou de 1643 a 1715 e aclamado como Rei Sol: "le Etat c’est moi" (o Estado sou eu!), traduzindo bem a natureza do absolutismo monárquico.

    No campo da filosofia política, Thomas Hobbes⁵, em o Leviatã, defende o Estado Absoluto e o empoderamento do monarca como meio de legitimação das relações de poder, pois esta seria uma forma de refrear o caos social, impedindo o retorno do homem a seu estado de natureza e evitando, assim, a chamada bellum omnium contra omnes (eterna guerra de todos contra todos):

    … pertence à soberania todo o poder de prescrever as regras através das quais todo homem pode saber quais os bens de que pode gozar, e quais as ações que pode praticar, sem ser molestado por qualquer de seus concidadãos: é a isto que os homens chamam propriedade. Porque antes da constituição do poder soberano, todos os homens tinham direito a todas as coisas, o que necessariamente provocava a guerra.

    A partir do final do século XVII, esse sistema de governo entra em declínio, principalmente tendo em vista a incompatibilidade de sua manutenção com os fatores de modificação nos campos político e econômico.

    Nessa época, movimentos de grande envergadura como a Revolução Francesa e a independência das colônias norte-americanas, bem como as concepções filosóficas do Iluminismo, dão um novo tom à ordem social, constituindo elementos fundamentais para a derrocada do sistema absolutista.

    E é justamente nesse marco histórico, de transição do regime absolutista para o então chamado Estado de Direito, modelo amplamente adotado pelas democracias ocidentais, é que devem ser identificados importantes aspectos de interesse ao redesenho da arquitetura processual penal contemporânea.

    A partir dessa nova concepção, a essência do poder soberano, antes ilimitado e concentrado na figura de um monarca, passa às mãos do povo, ora reconhecido como seu verdadeiro e único titular.

    Essa alteração no eixo da titularidade do poder soberano, operada no final do século XVIII, inaugura uma nova conformação político-social, cujos efeitos estendem-se até os dias atuais.

    Para tal, basta analisar o artigo 1º da Carta Republicana brasileira⁶, onde, em seu parágrafo único, pode-se verificar a expressa disposição legal de que todo poder emana do povo e que o exercício desse poder é realizado por mandatários legitimamente escolhidos por ele.

    No mesmo sentido, a Constituição dos Estados Unidos⁷, França⁸, Colômbia⁹, dentre outras nações.

    Deste modo, a formação estrutural do Estado de Direito, em sua nova roupagem, tem início a partir da transferência de parcela do poder soberano, titularizado pelo povo, para a figura do Estado.

    Contudo, nessa operação de transferência, povo e Estado firmam mutuamente um pacto (denominado de constituição), onde são tomadas decisões políticas fundamentais que passam a constituir o núcleo jurídico-político essencial daquela coletividade.

    Nesse sentido, é a lição de Canotilho¹⁰:

    Designam-se por princípios politicamente conformadores os princípios constitucionais que explicitam as valorações políticas fundamentais do legislador constituinte. Nestes princípios se condensam as opções políticas nucleares e se reflecte a ideologia inspiradora da constituição. Expressando as concepções políticas triunfantes ou dominantes numa assembleia constituinte, os princípios político-constitucionais são o cerne político de uma constituição política, não admirando que: (1) sejam reconhecidos como limites do poder de revisão; (2) se revelem os princípios mais directamente visados no caso de alteração profunda do regime político. Nesta sede situar-se-ão os princípios definidores da forma de Estado: princípios da organização económico-social, como, por ex:, o princípio da subordinação do poder económico ao poder político democrático, o princípio da coexistência dos diversos sectores da propriedade — público, privado e cooperativo —; os princípios definidores da estrutura do Estado (unitário, com descentralização local ou com autonomia local e regional), os princípios estruturantes do regime político (princípio do Estado de Direito, princípio democrático, princípio republicano, princípio pluralista) e os princípios caracterizadores da forma de governo e da organização política em geral como o princípio separação e interdependência de poderes e os princípios eleitorais

    Essas decisões políticas fundamentais tratam sobre a forma de Estado, a separação dos poderes do Estado e a consolidação de direitos e garantias individuais fundamentais.

    Um breve exame de nossa Constituição Federal permite facilmente a identificação dessas decisões políticas fundamentais, logo na leitura dos primeiros dispositivos constitucionais.

    No artigo 1º da CRFB/88¹¹, tem-se a forma de Estado, ao constar expressamente menção à República Federativa do Brasil.

    Na mesma linha, o artigo 2º¹² traz a necessária tripartição dos poderes, resguardadas a autonomia e a harmonia entre legislativo, executivo e judiciário.

    Por fim, em seu artigo 5º¹³, tem-se um rol exemplificativo de direitos e garantias individuais, tendo como eixo gravitacional o respeito à dignidade da pessoa humana, fundamento central da ordem constitucional.

    Nesse contexto, torna-se essencial reconhecer que essas decisões políticas fundantes derivam diretamente do poder soberano do povo, quando da formação do Estado de Direito, de modo a constituir uma forma de autolimitação do poder do Estado.

    Deste modo, as relações de poder entre o Estado e seus súditos encontram um limite intransponível, na medida em que o corpo coletivo, na qualidade de titular do poder soberano, transfere parcela desse poder para a conformação estrutural do Estado, mas, desde logo, impõe que qualquer desvirtuação na forma de Estado, na separação de poderes ou na consolidação de direitos e garantias individuais significa uma ruptura inaceitável da ordem instituída.

    Compreendidas a gênese e a sistematização do Estado de Direito e, partindo-se da premissa de que eventual afetação a qualquer uma das decisões políticas fundamentais constitui um abalo sísmico na ordem democrática, cabe analisar de que forma isso repercute no sistema processual penal.

    Nesse diapasão, é preciso reconhecer quais foram os padrões constitucionais estabelecidos para o funcionamento do sistema processual penal.

    Ou seja, é preciso identificar se, no bojo das decisões políticas fundamentais, o povo, no exercício de seu poder soberano, elegeu, dentre os diversos direitos e garantias individuais, parâmetros de índole processual penal.

    Por óbvio, esse conjunto de garantias individuais de origem processual molda o formato sistêmico do processo penal e toda a arquitetura processual passa necessariamente a retirar dele seu fundamento de legitimação e validade.

    Pelo exame da ordem constitucional brasileira, resta evidente que nela se encontra esculpido um vasto arcabouço normativo, sobretudo na ótica principiológica, de standards de cunho processual penal que norteiam (ou, em tese, deveriam nortear) todas as etapas da persecução criminal.

    A partir do artigo 5º da Carta Republicana, são facilmente identificáveis, dentre outras, normas do mais elevado grau hierárquico e dotadas de sólido conteúdo axiológico no campo processual penal, como, por exemplo, a cláusula geral do devido processo legal, os princípios do contraditório, da ampla defesa, da vedação de obtenção de provas ilícitas e da presunção de inocência, dentre outras.

    Além disso, há ainda um conjunto de garantias individuais, como a inviolabilidade domiciliar, a privacidade nas comunicações, a liberdade, a propriedade privada, a vedação a tortura ou a tratamento degradante que, por sua vez, possui repercussão reflexa na esfera processual penal.

    O aspecto crucial aqui, que inclusive precede o estudo isolado de cada uma dessas garantias constitucionais, é esclarecer que esse conjunto normativo funda, rege e orienta toda a ordem processual, na medida em que inaugura um núcleo essencial, cuja legitimação emana do próprio povo, reconhecidamente alçado ao status de titular do poder soberano, segundo a nova conformação jurídico-política do Estado de Direito.

    Torna-se imperioso reconhecer que os pilares estruturais do sistema processual penal foram erguidos a partir das decisões políticas fundantes tomadas pelo povo na construção da ordem constitucional e que, por essa razão, comportam uma função binária, na medida em que, a um só tempo, constituem uma autolimitação do poder punitivo estatal e representam uma garantia intangível aos cidadãos submetidos à persecução criminal.

    Alinhado a essa premissa fundamental, o legislador constituinte assim dispôs expressamente no artigo 60, § 4º, inciso IV do nosso Pacto Republicano, vez que, ao cuidar dos limites ao poder de reforma, acertadamente asseverou o status de cláusula pétrea aos direitos e garantias individuais.

    Nesse contexto, entendendo-se que os parâmetros balizadores da persecução criminal não só estão inseridos na própria ordem constitucional, mas também, derivam de um conteúdo decisório originariamente soberano, torna-se factível aferir o grau de democraticidade de uma sociedade através do exame dos componentes estruturais do seu sistema processual penal.

    Com maestria, Goldschmidt nos ensina que o processo penal nada mais é que um termômetro da própria Constituição. Para esse grande catedrático da Universidade de Berlim, o embate entre elementos corporativos e autoritários no sistema processual constitui um valoroso parâmetro de análise do grau de democraticidade de uma nação.

    Eis a lição¹⁴:

    se puede decir que la estructura del proceso penal de una nación no es sino el termómetro de los elementos corporativos o autoritários de una nación.

    Desta forma, pode-se concluir que a eventual constatação de um processo penal arbitrário e utilitarista, com abuso de direitos e violação garantias individuais no âmbito da persecução criminal, reflete a existência de uma ordem constitucional autoritária ou mesmo de um simulacro de constituição.

    Por outra via, o reconhecimento de uma estrutura processual equilibrada, com observância de preceitos garantidores e alinhados a um sistema de liberdades, é indicador da consolidação de um projeto constitucional verdadeiramente democrático.

    No campo processual penal, é necessário compreender que esses critérios constitucionalmente estabelecidos decorrem do exercício da soberania popular e, portanto, são revestidos por um caráter de inalienabilidade (enquanto perdurar a ordem jurídico-política instituída).

    Com efeito, todas as normas, regras, protocolos, regulamentos e procedimentos afetos à disciplina processual penal devem ser submetidos a uma filtragem constitucional.

    Isso significa que a eventual identificação de qualquer ponto de dissonância da orientação constitucional implica num descumprimento da vontade soberana e, por conseguinte, numa ruptura inaceitável do pacto forjado pelo legítimo detentor do poder, ou seja, o próprio povo.

    Então, quando se fala num processo penal constitucional, isso não pode estar adstrito ao campo teórico ou ser reduzido a uma mera construção dogmática. Esse efeito deve ter realização concreta e seu espectro deve ser irradiado para todas as esferas de exercício do poder.

    Na estruturação do Estado de Direito, o poder punitivo emerge como uma atividade monopolizada pelo Estado e o sistema processual penal passa a ser um componente do mais alto relevo, na medida em que constitui uma barragem obrigatória à manifestação e à forma de exercício desse poder, que ali encontra uma autolimitação imposta por decorrência de uma decisão política fundamental, estabelecida pelo próprio povo.

    Eis aqui a linha mestra do sistema processual penal no Estado de Direito, qual seja, ele é fruto de uma decisão política fundamental tomada na construção da estrutura jurídico-política da nação.

    I.b. Sistemas Processuais Penais – a legitimação sistêmica pelo reconhecimento do núcleo fundante.

    A compreensão dos modelos processuais sistêmicos é de grande valor ao estudo do processo penal e essa necessidade encontra-se atrelada a dois motivos fundamentais: o reconhecimento da autonomia do processo penal e a manutenção da unicidade e coerência do próprio sistema processual.

    Num primeiro momento, é importante esclarecer a importância da compreensão do processo penal enquanto ramo autônomo das ciências jurídicas.

    E digo isso, porque já há tempos se fala numa teoria geral do processo¹⁵ e, em nome dela, vivencia-se uma transposição indiscriminada de elementos do processo civil para o processo penal de modo a deformá-lo enquanto unidade sistêmica.

    Partindo da aceitação de uma teoria geral do processo, passa-se a uma verdadeira ginástica hermenêutica, procurando adequar elementos típicos do processo penal à estrutura matricial do processo civil, desnaturando-os para além de seus limites semânticos.

    Vamos tomar como exemplo o interesse de agir.

    No estudo do processo civil, o chamado interesse de agir decorre do binômio necessidade-utilidade, na tradicional concepção de Liebman¹⁶.

    Já no processo penal, a doutrina identifica o interesse de agir, assim como as denominadas condições da ação penal, a partir da disposição do artigo 395 do Código de Processo Penal.

    No processo civil, o interesse decorre da noção de utilidade-necessidade do provimento jurisdicional na heterocomposição de um conflito, o que evidencia uma substitutividade secundária, na medida em que a satisfação de um direito violado não encontrou uma solução espontânea pelas partes diretamente afetadas.

    Ora, essa proposição é completamente descabida no âmbito do processo penal, vez que este se encontra regido pelo princípio da necessidade e, consequentemente, a marcha processual é imposta como caminho único e necessário para alcançar a pena.

    O direito penal transita no campo da abstração e o jus puniendi estatal somente encontra realização no plano concreto através do processo penal. Por isso, Carnelutti¹⁷, acertadamente, nos ensina que é o processo penal quem toca no homem de verdade, no homem de carne e osso.

    A pena não pode ser vista tão somente como um mero efeito do delito, mas também como um efeito do próprio processo penal.

    Num cenário onde o Estado apresenta-se como detentor do poder punitivo, o processo penal emerge como o único meio, o único caminho, a única via de impor uma sanção a um fato punível.

    Desta forma, o interesse de agir não está vinculado a uma valoração da necessidade-utilidade do processo penal em satisfazer um interesse material, mas sim está ínsito à própria ação penal, já que constitui o único caminho de alcançar a pena.

    Num outro plano, é preciso resgatar a identidade e a autonomia do processo penal.

    A primeira questão que se deve enfrentar no estudo do processo penal importa em repensar seu fundamento existencial.

    É preciso iniciar um curso de processo penal com os seguintes questionamentos: pra que serve o processo penal? E, principalmente, pra quem serve o processo penal?

    E é justamente na busca por essas respostas que se deve refletir sobre a lógica, a coerência e a unidade dos sistemas processuais penais, no sentido de orientação e interpretação de seu arcabouço normativo.

    Nesse cenário, resta evidente, como já visto no tópico anterior, que a ordem constitucional é o paradigma do processo penal, já que todas as normas de índole processual penal devem necessariamente sofrer oxigenação constitucional.

    Pode-se afirmar que, enquanto sistema, o processo penal instrumentaliza e confere concretude ao próprio direito penal. E é justamente assim que o processo penal se apresenta, como um caminho, uma ponte, um eixo de ligação entre o fato punível e a sua correspondente sanção.

    Esse percurso, obviamente, é construído a partir de normas (princípios e regras), que retiram seu fundamento de validade da própria Constituição.

    Como muito bem coloca o professor Juarez Tavares¹⁸, na tensão entre a liberdade individual e o poder punitivo do Estado, não se pode esquecer que a liberdade é a regra e, como regra constitucional, ela não precisa de legitimação, de fundamentação.

    Pelo contrário, a sua restrição, a sua privação (eventual e excepcional) é que necessita de legitimação. Ou seja, o poder punitivo do Estado é que precisa de legitimação, não a liberdade.

    Nesse contexto, é preciso analisar o sistema processual penal brasileiro e refletir sobre um cenário conflitante, qual seja: a

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