Senhor Cão
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Senhor Cão - Flávio Ilha
Senhor Cão
Flávio Ilha
Sumário
1
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9
O silêncio, o silêncio sempre, as moedas de ouro do sonho
Alejandra Pizarnik, Extração da pedra da loucura
Tradução de Davis Diniz
Viver em silêncio é viver como as baleias, grandes castelos de carne flutuando a metros de distância uma da outra, ou como as aranhas, cada uma isolada no coração de sua teia, que para ela é o mundo inteiro.
J. M. Coetzee, em Foe
Tradução de José Rubens Siqueira
Vê aquele cão ali, Eulália? Aquele cão que vaga pelas sendas, que fareja o que ninguém mais quer? Aquele cão cismado? Aquele cão é ele, me desafia a Voz.
Não pode ser ele, respondo. O cão vive preso à sua condição de fome, de raiva, de medo. Ele, ao contrário, tem ambição. É ser decantado, que não se pode parar. O cão, escravo da própria indigência, nem cão é. Tratam-no feito coisa. Bicho raivoso. Só lhe restam os caninos infectos e uma rasca de osso roído. E tu? O que me dizes desse cão?
Digo que te procura, me responde a Voz.
1
É uma curva. Ele vê uma longa curva de onde se divisa quase a circunferência toda da Terra. Como se estivesse flutuando no espaço. Mas não a vê, não de verdade, não está flutuando no espaço. É apenas uma sensação de vertigem, justo quando entra na casa da sua memória. Procura o interruptor, tateia a mão na parede, só encontra a penumbra da sala de estar. O bafo da memória lhe traga a razão. E sente vontade de ir embora logo que ouve a buzina do carro, do outro lado da rua. Maria Izabel chegou
. Não se move. Alguma coisa o detém no limiar daquele universo, vê sombras, escuta um sopro que vem da cozinha, vozes lhe tangem os ouvidos. A garganta arde. A fumaça das lembranças, ouve o pai lhe dizendo, o crivo entre os dedos. O rio suculento da infância. Tudo agora se encaixa no elemento primordial de sua existência, a mônada, o grão, o mundo distinto, indestrutível, que ele quer carregar para longe dali, enquanto a partícula da mãe se consome, vassala, ao rilhar de um cachorro caduco.
Aqui, Rex! Vem!
Não se chama Rex. Pedro é seu nome. Pedro Flávio Póvoa. Acomodada na cadeira de balanço, dona Leda não distingue mais as horas, esquece nomes, enxerga apenas uma massa disforme à sua frente, sem cor. Repreende o cão da família, morto há anos; depois, afaga o animal sem entender por que está tão escuro. A cabeça tem os mesmos pelos ralos do filho, que ela agora segura entre os dedos. Esmaga uma migalha de pão e a arremessa pela janela que dá para o jardim, onde outro cão, este vivo, a recolhe com a língua rosada para se alimentar.
Pedro escuta a buzina mais uma vez. Ergue os joelhos, ajeita o cabelo em desalinho. O som atiça sua costumeira indiferença por Maria Izabel. Ela queria filhos. Não os terá. Não desta vez, nem com ele. Fracassou nas escolhas. E Pedro não se sente minimamente culpado se é obsequiosa, condescendente com os esculachos do seu homem, impassível, dominador. Assim vai perder o voo!
, ela grita, lá distante. Mulheres feito Iza, que buzina uma terceira vez, já aflita, são feitas de desassossego. Como a mãe, sem mais direção, batendo cabeça pelos cantos, chamando por Alba, por Tereza, há muito desencarnadas; dona Leda busca novamente pelo cão morto, pelas plantas que já secaram nos vasos, pela tesoura que nem existe mais, queria voltar a tecer as roupas dos filhos, os vestidos de Eulália, camisas para Pedro e para Quim, mas desconhece o paradeiro da máquina de costura. Então Pedro conclui que ela não tem mais serventia, seu prazo expirou, assim como o prazo de Maria Izabel, louca por uma companhia para atravessar a velhice.
A mãe amassa mais um pedaço do pão dormido e dessa vez o engole, faz uma careta, olha para o desconhecido à sua frente, desconfia do seu silêncio e volta a se concentrar na novela de época da TV, enquanto busca um afago na cabeça do cão ausente. Tudo se move, o mundo gira sem parar, é uma sobreposição metódica de lembranças, fracionada, Amália, as fotografias, Ceiça, a grana, Carlito, o escândalo. Mesmo Pedro, inerte no umbral que o contrapõe a seus dois mundos, está em movimento. Quando der as costas, o passado não será mais que o hálito fermentado de todas as manhãs.
Pega a mochila, leva-a ao ombro. Faz a sua escolha.
[ ]
Só na rua cogita se redimir. Como pôde trair a própria mãe? Tem vontade de vomitar, ali mesmo, no carro que o leva ao aeroporto. Mas logo se deixa levar pelo decoro, essa é a verdade, enquanto Iza guia em silêncio, sem perceber o desenrolar da trama que os colocará em campos opostos. Ela sabe que se trata de uma fuga — e nunca uma fuga, por mais justificada que seja, pode ser bem-vista. Sabe também que não se trata de uma fuga qualquer, mas sim de uma desesperada viagem em busca de proteção. Ou de um desaparecimento, agora que a imagem de dona Leda, inerte em frente à TV, o corpo seco em curva, se projeta fugaz na mente de Pedro.
Ainda dá tempo de voltar, amor.
Ele ri. Amor — há quanto tempo não pronuncia essa palavra?
[ ]
O viaduto logo à frente, orquestrado por algum mau administrador, cinde sua cidade em duas: a massa pertinaz de prédios, à frente; a bucólica Porto Alegre das casas baixas, com quintais e gatos nos telhados, ficando para trás, junto da mãe, feito ele, um pé no mundo-mundo-vasto-mundo, outro na infância-querida-que-os-anos-não-trazem-mais. Até que diz para si mesmo, derradeiro ponto de inflexão: finalmente estou fugindo dela estou fugindo dela estou fugindo graças a deus estou fugindo dela.
O silêncio no trajeto é apenas um mecanismo de defesa. Uma maneira de simular uma culpa que não carrega. Afinal, não aprendeu a ter remorso nem a pensar em arrependimento. Foi ele quem enterrou Rex no jardim de casa, a mãe e os irmãos não quiseram ver o cão em agonia, os músculos paralisando aos poucos, os espasmos. O sinal da cruz, a missão. O certo é que se considera, desde então, um predestinado. Não há de se penitenciar por dona Leda, por Ceiça, os irmãos, Iza. Pedro, o escolhido. Aquele que tudo pode. Pedro, o homem.
E se foi sempre assim, tão assertivo quanto a isso, bem, como diz Coetzee, o crânio, depois o temperamento: as duas partes mais duras do corpo.
Vou poupar os leitores da despedida em si, são cenas enfadonhas, cheias de frases lamuriosas. Essa não foi diferente. Mas, como já disse, vou poupar os leitores. Agora basta saber que o filho problemático, a razão das preocupações de dona Leda, o mote de suas orações e das noites mal dormidas, foi embora. Pedro supõe, já a bordo do Airbus que o deixará em Lisboa dentro de dez horas, que a mãe pode ter tido a mesma premonição que ele, de que não o veria mais, de que a história dos dois, a tumultuada história de mãe e filho, se encerrava ali.
Se ela teve tal visão, Pedro Póvoa nunca saberá.
O voo é calmo, só que dormir nas poltronas da classe econômica é doloroso. Ele passa quase toda a noite acordado. No começo da viagem, abre o notebook, mas logo sente aumentar o desconforto dos assentos, quase colados uns aos outros, e procura uma posição melhor. Como ficou no meio do corredor central, não pode apoiar na janela a cabeça, que pende enquanto cochila. Dorme. Acorda com um solavanco da aeronave. Dorme de novo. Acorda. Dorme. Sonha.
Está num hospital. Não há mãe nem pai, só ele observando um cavalinho de corda que pula sobre o lençol branco. Está deitado, suspeita que foi operado. Não sente dor. Mas o fato de estar sozinho, ainda criança, num hospital, o deixa aflito. Olha para os lados, não vê ninguém. A porta do quarto se mantém fechada. Tenta se levantar da cama, mas percebe que está amarrado com as tiras de um lençol rasgado. O cavalinho segue pulando frenético sobre ele, a corda do brinquedo não termina nunca e o garoto do sonho sente uma agonia lhe tomar conta do corpo. A rotação do cavalinho aumenta mais e mais a ponto de lhe furar a barriga. Acorda quando percebe uma mancha de sangue escorrer de seu abdome.
O vizinho do lado se agita. O homem nota que ele acordou sobressaltado, pergunta se está tudo bem e Pedro responde, em inglês, que sim. Por que responde em inglês se sabe que o vizinho de voo é brasileiro? Sente um pouco de vergonha pela arrogância, mas precisa se acostumar com a ideia de que não tem mais pátria. Quer dizer, sempre terá pátria. Sempre será brasileiro, embora a ideia lhe pareça um tanto quanto antiquada. Típica do seu pai, que por ironia do destino virou um expatriado. Mas quer se acostumar com a noção de que não necessita mais de uma identidade nacional. Ou que está acima dela, de seus compatriotas mal-vistos pelo mundo. Ou, ele elabora melhor o raciocínio, que terá várias pátrias para escolher quando desembarcar em território europeu. Fica feliz com a possibilidade.
Sabe que tentou de tudo para manter-se inabalável. Mesmo depois que as pessoas perderam o bom senso, que condenar sem julgamento passou a ser a regra; mesmo assim, mesmo na mira, preferiu protelar uma decisão tão drástica. Afinal, o que os outros tinham a ver com as escolhas pessoais dele? De Maria Izabel? Da doce Ceiça? De qualquer modo, não conseguia enxergar proporção entre fato e sentença. Por precaução, preferiu se afastar, o mais rápido que pôde. Não conviver mais com o risco, com a censura, as negativas, Há meses se sente amarrado, como no sonho que o despertou de súbito, sem possibilidade de reagir ao cerco a que foi submetido. Ao que teria de enfrentar se ficasse: a derrocada.
Mas o que sabe do futuro? Nada, pensa. Sente medo, como todo mundo sente ao seu redor. Medo do avião, que os leva a trinta mil pés de altura, despencar. Medo de perder tudo, de acabar na merda. Da dor nas costas, que só piora. De tudo um pouco. Lembra do Pequeno mapa do tempo
e do personagem do Belchior. Não dá pra viver sem algum tipo de medo, é isso que a canção quer dizer? É isso. Mas na época se vivia uma guerra, algumas pessoas podiam ser embarcadas num avião e, com as mãos amarradas, jogadas no mar,. Nunca poderia compactuar com isso, de forma alguma. Se julga um humanista. Só que, com o tempo, passou a questionar os atos que levaram a tal solução. Relativizou, como dizem, enxergou as coisas sob outro prisma. Com menos ingenuidade? Não. Simplesmente lhe parece que era necessário se opor, na força que fosse, às tentativas de abolir a liberdade. A sua liberdade, da qual não abre mão.
É essa liberdade que defende: o seu direito, o de Ceiça. A liberdade de escolha de ambos. Afinal, não acredita que a tenha enganado. Não soube mais dela depois do episódio, embora Pedro tenha se inteirado da repercussão, e tenha se dado por satisfeito com a baixeza tão bem arquitetada: ela se deixou levar pela sedução, pela vaidade típica da juventude. Talvez por um pouco de rebeldia também. Foi uma decisão consciente, por isso a paz de espírito. Mas ele também sabe que o medo de agora tem cor e cheiro: fede aos zumbis que ainda clamam seu cancelamento, que trabalham para transformar sua vida num inferno. Está livre disso. E pode ir para onde quiser, fazer o que bem entender: é um homem branco. Tem passaporte. Dois passaportes, na verdade, um brasileiro, outro português, o caderninho bordô que lhe garantirá a blindagem necessária. Embora, é verdade, preferisse o documento azul do Reino Unido, o inglês ao lusitano. Leva um bom dinheiro, suficiente para impor respeito. Não pode ser molestado. Mesmo assim, não há garantias. Sente que faz o que deve fazer. Talvez o que devesse ter feito há muitos anos, quando ainda podia celebrar escolhas e não era importunado por qualquer um que se sentisse no direito de censurá-lo. De qualquer modo, nunca mais ouviu Belchior. E agora detesta tudo que remete à memória daquele tempo, a reverência ao pai, o heroísmo da mãe. Por isso viaja cheio de esperança.
O avião atravessa o Atlântico com uma suavidade surpreendente. O homem que está do seu lado esquerdo se ajeita na poltrona, estica a perna e a estende no corredor. A camisa apertada faz saltar pequenas bolas de gordura entre os botões. Sente nojo. Mas tem inveja da mobilidade que a poltrona do vizinho proporciona. Do lado direito, uma adolescente dorme com grandes fones sobre as orelhas. Ao lado dela, uma mulher e, logo no outro corredor, um homem. Os dois dormem com máscaras nos olhos e ele presume que sejam os