A Narrativa Ficcional Escrita por Fãs de Literatura Brasileira na Internet: análise comparativa de fanfictions da obra Dom Casmurro, de Machado de Assis
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A Narrativa Ficcional Escrita por Fãs de Literatura Brasileira na Internet - Daphne Jardim
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Atualmente, podemos afirmar, baseados nos estudos acerca da reescrita realizada por jovens, que a fanfiction não é somente um gênero textual, mas faz parte também da literatura digital. Para Sant-Gelais (2011)¹, as fanfics são relatos escritos por amadores de uma ficção a partir dos personagens, enredos e, às vezes, mundos de uma ficção midiática
. As narrativas escritas por fãs de literatura na internet mostram o avanço da escrita no ambiente digital e, a partir disso, a possibilidade de criar outros gêneros, considerando produções de textos baseados em obras do cânone literário.
Essas informações possibilitam discussões sobre como escritas de jovens postadas na internet podem enaltecer uma obra da literatura brasileira, contrariando as negativas de que, muitas vezes, as postagens de produções textuais de jovens são textos sem importância. Por isso, observar como a leitura e a escrita acontecem hoje no ambiente digital é fator relevante nos estudos da literatura contemporânea, levando em conta que o advento da internet ofereceu oportunidade para pessoas que não teriam acesso a determinadas leituras ou, ainda, que não privilegiam o acesso tradicional à literatura editada em papel. Com isso, esses jovens se unem com outros de iguais interesses, para que possam juntos construir um grupo sólido em prol da continuação das suas escritas.
O fandon, como uma comunidade virtual de fãs, é um dos motivos pelo qual a fanfiction existe, considerando que o grupo auxilia os membros nas postagens e incentiva a continuação das narrativas. As páginas da internet que hospedam as reescritas de obras como Dom Casmurro (1889), de Machado de Assis, têm cada vez mais adeptos, mesmo que um dos motivos de sua criação, por exemplo, seja a adaptação da obra literária para teledramaturgia — e, ainda que ela não seja popular atualmente, a comunidade continua crescendo. Notamos que, às vezes, as maiores plataformas que recebem reescritas deixaram de ser foco principal das postagens, uma vez que, hoje, qualquer pessoa pode criar um site e personalizá-lo para isso.
Quando páginas mais conhecidas de postagens de fanfictions foram criadas, a exemplo da fanfiction.net, a maior e uma das mais antigas, com acesso aberto na rede virtual, em 1998, não havia tanta facilidade e conhecimento disponível para a criação de páginas digitais. Nesse sentido, os primeiros sites que exibem narrativas de fãs ainda são referências para o desenvolvimento de outras plataformas. Com isso, entendemos que há uma série de questões a serem analisadas no campo das fanfictions.
Por essas razões, e motivados pela quantidade de jovens que discutem obras clássicas da literatura brasileira na internet, observamos que aspectos como as definições do que seriam autor e leitor poderiam ser importantes para compreender o porquê da quantidade de reescritas. Com essa base, refletimos acerca do que seriam os limites entre o criador do texto e seu receptor, sempre contextualizando com a escrita no formato digital, oferecendo possibilidades criadoras que não existem com a forma tradicional de papel. Mesmo sendo necessário que as fanfictions sejam escritas obedecendo à norma culta da língua, é interessante ressaltar que as narrativas são publicações online.
Assim, o presente trabalho inicia com essas considerações para apresentar os capítulos e tópicos que norteiam a leitura da pesquisa. Após explicar as motivações, métodos e objetivo do estudo, apresentamos as fronteiras entre o leitor e o autor na era da literatura digital, explicando como a internet aproximou o criador do texto com seu receptor, discutindo se ambos podem atuar no mesmo papel, como autores/escritores, já que é necessário questionar se, atualmente, o leitor é ou não mais responsável e menos passivo. Nessa parte, discorremos sobre a mudança dos recursos da escrita do ambiente físico para o virtual, contemplando a ideia de conceitos e conflitos sobre autoria do texto.
Ainda no primeiro capítulo, apresentamos a importância do leitor ao longo do século 20, pois o tempo favoreceu a dinâmica da leitura e escrita, proporcionando o surgimento de gêneros textuais como a fanfiction. No segundo capítulo, desenvolvemos os motivos que podem apresentar a narrativa ficcional escrita por fã como um fenômeno no ciberespaço. Uma vez que, diante do surgimento de novas plataformas em diversos segmentos, haver uma específica para leitura e escrita voltada para um público jovem é um acontecimento importante para as pesquisas no campo da literatura. Para melhor compreender as narrativas, apresentamos sua origem, as categorias e os endereços online de onde selecionamos fanfics para a análise nesta pesquisa.
Continuando, o terceiro capítulo apresenta questões acerca das pesquisas dos teóricos que norteiam o nosso estudo, em busca do entendimento de como os textos de fãs, na internet, mostram aspectos entre transmutação — quando um gênero absorve outro — e transficcionalidade — termo que faz referência à migração das entidades ficcionais de um texto. Assim como outros gêneros, a fanfiction ainda é uma escrita marginalizada. E, para finalizar o capítulo, dissertamos acerca da estética da recepção na obra machadiana.
No quarto capítulo, selecionamos uma fanfiction baseada em Dom Casmurro, escrita por Tamires² (2021), jovem autora que deu voz a Capitu na narrativa. Dessa forma, comparamos os textos, reescrita e obra-fonte, para analisar os aspectos que caracterizam a escrita da fã como uma representação da voz feminina na internet. Por fim, no quinto capítulo, analisamos três reescritas inspiradas no texto machadiano, percebendo aspectos congruentes e divergentes entre os textos e salientando como o cânone foi bem representado ao ser imitado com as mesmas personagens, porém, com as distinções que os fãs acreditam que as fanfics deveriam ter.
1.1 Motivação, metodologia, objetivo e problemática
A motivação desta pesquisa surgiu ainda na graduação em Letras, quando iniciei a experiência docente em escolas e projetos, período entre 2016 e 2019. Nesse interim, estava em projetos paralelos de pesquisa, inclusive com bolsa concedida pela FAPEMA – Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão. Entretanto, devido às frequentes conversas com alunos e por ouvir sobre o universo do fandon, a curiosidade aguçou o interesse por entender o que essas comunidades produziam no ambiente online.
A partir de então, o contato com as reescritas foi mais próximo. Os alunos informaram que os livros de literatura clássica — que, às vezes, liam durante o ano letivo — são inspirações constantes para fanfictions. Começando a observar a temática mais de perto, pesquisei a fundo para desenvolver o trabalho de conclusão de curso no final da graduação, no entanto, a primeira pesquisa foi concentrada nas narrativas fictícias de obras da literatura clássica espanhola, pois havia um interesse pela língua estrangeira.
Durante o primeiro estudo, observei, assim como os alunos diziam, que existiam muitas reescritas de literatura clássica brasileira. Com isso, notei fanfics de obras pelas quais sempre mantive interesse, muitas vezes, narrativas de livros que há tempos havia lido. Ao ler algumas reescritas de fãs, senti o interesse de reler determinadas obras, e assim o fiz. Percebi, em minhas leituras, que as lacunas preenchidas pelas escritas de fãs, às vezes, correspondiam com ideias que eu havia tido durante as releituras.
Apesar de escrever algumas fanfics na língua espanhola, como exercício de aprendizagem, não desenvolvi a prática de reescrever textos baseados em literatura brasileira. Preferi manter-me com olhar de observadora, notando o movimento do ficwriter na rede virtual, pois percebi que, se escrevesse as narrativas, precisaria ser membro de uma comunidade de fãs — e não era esse meu objetivo. Poderia, sim, adaptar um site que já havia criado para postar as narrativas, mas, com o passar do tempo, e outras ocupações, não havia o interesse de fazê-lo de qualquer forma.
O mestrado foi uma oportunidade de pesquisar para melhor compreender acerca do universo da reescrita ficcional de literatura brasileira. Com isso, descobri o motivo pelo qual uma quantidade considerável de jovens reescreve literatura na internet e propõe essa atividade para professores dentro das salas de aula. Assim, decidi escolher Dom Casmurro, Machado de Assis, por ser uma obra a qual poderia reler muitas vezes, e percebi, também, que é a mais reescrita nos sites de fanfictions no Brasil e, além de ser o romance mais conhecido do autor, compõe o cânone da literatura brasileira. Dessa forma, utilizo a obra machadiana como texto-fonte para compará-la com algumas fanfictions selecionadas para este trabalho.
Para esse propósito, desenvolvemos, pesquisadora e orientadora, formas de realizar a pesquisa. Então, como já conhecia alguns alunos que participavam de comunidades no ambiente digital, iniciei os questionamentos sobre os sites e as reescritas no Brasil. Apesar de conhecer algumas plataformas, a conversa com eles me atualizou sobre a criação constante de novos sites, os quais foram citados nas conversas, mas não apresentados aqui por se distanciarem do propósito do trabalho. Desse modo, um questionário foi aplicado, mas somente para entender se seria necessário realizar uma pesquisa com entrevistas para nortear nosso estudo. Notamos, com o decorrer da pesquisa, que não havia necessidade de incluí-lo, visto que a quantidade de informações obtidas com o questionário poderia nos distanciar do foco do trabalho. Porém, as perguntas realizadas para alguns ficwriters foram exibidas e explicadas no capítulo que apresenta a opinião desses jovens sobre o hábito da reescrita, o que, para eles, é um hobby.
Percebemos a necessidade de realizar um aporte histórico na literatura a respeito da reescrita, para, então, conseguir analisá-la de forma mais coerente. Desse modo, observamos que nem sempre as reescritas eram vistas de maneira positiva, não que hoje seja uma referência de literatura, pelo contrário, notamos que ainda é considerada uma escrita marginal, no que tange à reescrita online. Todavia, atualmente, a fanfiction é um gênero textual de literatura digital. Nesse sentido, por estar nesse ambiente, notamos que alguns estudiosos ainda subestimam as narrativas escritas por fãs e, consequentemente, não dão atenção às que reescrevem literatura brasileira.
Com isso, há possibilidade de encontrar o contraste entre o cânone literário e os aspectos contemporâneos da escrita por fanfiction. A exemplo, notar possíveis versões de fanfics cujos cenários e falas se distanciam das personagens na obra machadiana. Assim, o objetivo é discutir a respeito das narrativas de maneira que elas possam ser vistas como uma criação literária. Dessa forma, verificar se a reescrita de fã enaltece a obra-fonte ou se se distancia do texto-fonte a ponto de desconsiderar aspectos importantes do cânone, uma vez que Dom Casmurro estimula fanfictions constantemente.
Diante desses motivos, há elementos nas narrativas escritas por fãs de Machado de Assis que precisam ser observados, considerando-se também que a reescrita, na internet, está dentro de um ambiente que pode transformar um texto clássico, reformulando-o numa perspectiva efêmera. Contudo, baseamo-nos na seguinte problemática: "como as narrativas fictícias escritas por fãs de Dom Casmurro transmutam o texto-fonte sem descaracterizar uma obra da literatura brasileira?" Esse questionamento ocorreu concomitantemente às práticas de atividades realizadas dentro das escolas, no exercício do professorado. A partir de então, acreditamos que encontrar uma maneira de pesquisar esse fenômeno da reescrita virtual, e observar como os jovens estão ressignificando suas leituras, é uma investigação pertinente aos estudos do campo literário para melhor entender as práticas de escritas no ambiente online.
1 Gelais, Fictions transfuges. La transfictionnalité et ses enjeux, Paris, Seuil, coll. Poétique
, 2011, p.397-398. Citação traduzida por Émilie Audigier (2023).
2 Tamires é o nome ou apelido apresentado na fanfictionMaria Capitolina, postada em 2021. Disponível em: https://www.spiritfan_ction.com/historia/mariacapitolina-22124786.
2. As fronteiras entre o leitor e o autor na era DA LITERATURA digital
A aproximação do leitor com o autor do texto ficou mais fácil com o advento das novas tecnologias, entre elas, destacamos a internet. A partir desse meio, um mundo virtual de ideias é criado, normalmente, das vozes dos autores que, dentro desse universo tecnológico, expressam através da escrita seus sentimentos acerca de uma leitura. Por isso, também podemos destacar o plágio e o pastiche da literatura, não para tratar no estudo como gêneros literários que fazem parte das reescritas, mas para esclarecer que, a exemplo, o pastiche é um tipo de recurso que usa de paródia para abordar outros textos. E, devido à intertextualidade, o plágio, às vezes, está entre as escritas como algo que fora escrito originalmente pela primeira vez. Em vista disso, o que ocorre no ambiente digital perpassa por esses tipos de escrita, mas não se limita a ela.
A internet, também como propulsora de novos gêneros, oferece, em alguns aspectos, as necessidades do mundo físico no qual estamos inseridos. Assim, na rede virtual, estão presentes: os produtos que adquirimos (livros, eletrodomésticos, roupas etc.), os textos que lemos e, mais recentemente, por meio da criação do metaverso, o mundo virtual. Este último conceito do universo na internet tenta replicar a realidade por meio dos dispositivos digitais — as representações virtuais dos seres humanos para que possam interagir como indivíduos através de uma imagem, nesse mundo digital.
Com efeito, os atores desse universo virtual fazem parte de uma coletividade, na qual, muitas vezes, não sabemos se seus partícipes são os mesmos indivíduos por trás dos logins³, os quais se autodenominam