Um feminismo decolonial
3/5
()
Sobre este e-book
À diferença do termo "descolonização", que diz respeito aos processos históricos que sucederam o fim da relação colonial oficial, "decolonial", um neologismo já consolidado no debate francês, se refere à necessidade de denunciar e tornar visível o que permanece vigente, porém negado, da estrutura colonial nas sociedades pós-coloniais. Assim, um feminismo decolonial, antipatriarcal e anticapitalista, é aquele que leva em conta as consequências da colonização nas relações atuais para repensar o feminismo por dentro, obrigando-o a entrecruzar além de questões de gênero e raça, já bem mapeadas pelo feminismo negro, a variável da desigualdade social ligada ao capitalismo.
A descrição crua e verdadeira de fatos cotidianos atinge em cheio o que Vergès chama de feminismo "civilizatório", aquele defendido por mulheres "brancas e burguesas" europeias que tipicamente reivindicaram desde os anos 1960 direitos iguais em relação aos homens de sua própria classe, as classes média e alta privilegiada. Para a autora, o feminismo deve ser necessariamente multidimensional, incluindo em sua reflexão raça, sexualidade e classe. A leitura deste texto é uma pancada de lucidez que faz perceptíveis as evidências que nos negamos a ver da opressão normalizada que sofrem milhões de mulheres em todo o mundo.
Leia mais títulos de Françoise Vergès
Decolonizar o museu: Programa de desordem absoluta Nota: 0 de 5 estrelas0 notasUma teoria feminista da violência: Por uma política antirracista da proteção Nota: 0 de 5 estrelas0 notas5 anos de Ubu: ebook comemorativo Nota: 0 de 5 estrelas0 notasNegro sou, negro serei: Conversas com Françoise Vergès Nota: 0 de 5 estrelas0 notas
Relacionado a Um feminismo decolonial
Ebooks relacionados
Pensamento Feminista: Conceitos fundamentais Nota: 4 de 5 estrelas4/5Interseccionalidades: pioneiras do feminismo negro brasileiro Nota: 5 de 5 estrelas5/5Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais Nota: 0 de 5 estrelas0 notasCultura fora da lei: representações de resistência Nota: 0 de 5 estrelas0 notasErguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra Nota: 1 de 5 estrelas1/5Interseccionalidade Nota: 5 de 5 estrelas5/5Anseios: Raça, gênero e políticas culturais Nota: 4 de 5 estrelas4/5O sentido da liberdade: e outros diálogos difíceis Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPensamento Feminista Brasileiro: Formação e contexto Nota: 5 de 5 estrelas5/5Algumas histórias sobre o feminismo no Brasil: Lutas políticas e teóricas Nota: 0 de 5 estrelas0 notasTransfeminismo Nota: 5 de 5 estrelas5/5Bandeiras tornam-se objetos de estudo (violência, aborto, sindicalização) Nota: 0 de 5 estrelas0 notasEm busca de novos caminhos críticos Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPensamento feminista hoje: Sexualidades no sul global Nota: 0 de 5 estrelas0 notasViver uma vida feminista Nota: 0 de 5 estrelas0 notasEscrever além da raça: teoria e prática Nota: 0 de 5 estrelas0 notasDevir quilomba: antirracismo, afeto e política nas práticas de mulheres quilombolas Nota: 0 de 5 estrelas0 notasIntrodução ao pensamento feminista negro / Por um feminismo para os 99% Nota: 0 de 5 estrelas0 notasDecolonialidade e pensamento afrodiaspórico Nota: 5 de 5 estrelas5/5Reencantando o mundo: feminismo e a política dos comuns Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPolíticas do sexo Nota: 0 de 5 estrelas0 notasBreve história do feminismo no Brasil e outros ensaios Nota: 5 de 5 estrelas5/5Teoria feminista Nota: 5 de 5 estrelas5/5Angela Davis: Uma autobiografia Nota: 0 de 5 estrelas0 notasIntrodução ao pensamento feminista negro Nota: 0 de 5 estrelas0 notasLugar de negro, lugar de branco?: Esboço para uma crítica à metafísica racial Nota: 0 de 5 estrelas0 notasMulheres e caça às bruxas Nota: 5 de 5 estrelas5/5Cenas de um pensamento incômodo: gênero, cárcere e cultura em uma visada decolonial Nota: 0 de 5 estrelas0 notas
Ciências Sociais para você
A Prateleira do Amor: Sobre Mulheres, Homens e Relações Nota: 5 de 5 estrelas5/5Manual das Microexpressões: Há informações que o rosto não esconde Nota: 5 de 5 estrelas5/5Liderança e linguagem corporal: Técnicas para identificar e aperfeiçoar líderes Nota: 4 de 5 estrelas4/5Tudo sobre o amor: novas perspectivas Nota: 5 de 5 estrelas5/5As seis lições Nota: 2 de 5 estrelas2/5Mais Esperto Que o Método de Napoleon Hill: Desafiando as Ideias de Sucesso do Livro "Mais Esperto Que o Diabo" Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPsicologia Positiva Nota: 5 de 5 estrelas5/5A Farmácia de Ayn Rand: Doses de Anticoletivismo Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPele negra, máscaras brancas Nota: 5 de 5 estrelas5/5Como Melhorar A Sua Comunicação Nota: 4 de 5 estrelas4/5Coisa de menina?: Uma conversa sobre gênero, sexualidade, maternidade e feminismo Nota: 4 de 5 estrelas4/5O lado sombrio dos contos de fadas: A Origem Sangrenta das Histórias Infantis Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPertencimento: uma cultura do lugar Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO martelo das feiticeiras Nota: 4 de 5 estrelas4/5Segredos Sexuais Revelados Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO Ocultismo Prático e as Origens do Ritual na Igreja e na Maçonaria Nota: 5 de 5 estrelas5/5A perfumaria ancestral: Aromas naturais no universo feminino Nota: 5 de 5 estrelas5/5Teoria feminista Nota: 5 de 5 estrelas5/5Entre a Esquerda e a Direita: Uma reflexão política Nota: 0 de 5 estrelas0 notasQuero Ser Empreendedor, E Agora? Nota: 5 de 5 estrelas5/5Verdades que não querem que você saiba Nota: 0 de 5 estrelas0 notasUm Olhar Junguiano Para o Tarô de Marselha Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO livro de ouro da mitologia: Histórias de deuses e heróis Nota: 5 de 5 estrelas5/5Mulheres e deusas: Como as divindades e os mitos femininos formaram a mulher atual Nota: 0 de 5 estrelas0 notasBizu Do Direito Administrativo Nota: 0 de 5 estrelas0 notasUm Guia De Scripts Nota: 5 de 5 estrelas5/5
Avaliações de Um feminismo decolonial
2 avaliações0 avaliação
Pré-visualização do livro
Um feminismo decolonial - Françoise Vergès
FRANÇOISE VERGÈS
UM FEMINISMO DECOLONIAL
TRADUÇÃO
JAMILLE PINHEIRO DIAS
RAQUEL CAMARGO
Por um feminismo radical
FLÁVIA RIOS
Nota da tradução
Prefácio à edição brasileira
Invisíveis, elas abrem a cidade
1. DEFINIR UM CAMPO: O FEMINISMO DECOLONIAL
2. A EVOLUÇÃO PARA UM FEMINISMO CIVILIZATÓRIO DO SÉCULO XXI
Sobre a autora
POR UM FEMINISMO RADICAL
Flávia Rios
Publicada na França em março de 2019, esta breve e incendiária crítica ao feminismo, longe de ser uma luta contra o feminismo, propõe uma luta pelo feminismo. E, se não se trata de um manual nem de uma tese acadêmica stricto sensu, trata-se de um manifesto que defende a um só tempo um feminismo antipatriarcal, anticolonial e anticapitalista, visando ao alargamento de seus horizontes libertários e igualitários.
Afirmando-se feminista, a cientista política Françoise Vergès se soma às vozes de intelectuais racializadas que há muito buscam fazer do feminismo uma teoria radical contra o capitalismo, o racismo e o sexismo, sem sobrepor uma forma de dominação à outra. Ao tornar-se feminista, é preciso, antes de mais nada, problematizar o feminismo. Incomodada com o uso do termo sem que a ele se faça uma crítica, logo de saída a autora nos avisa que, se hoje ela se diz feminista, nem sempre foi assim… Definir-se feminista consiste no desafio de quem quer revolucionar a prática cotidiana; não é se servir de imagens, discursos e frases de efeito palatáveis ao capitalismo e absorvidos pela publicidade da sociedade de consumo. É preciso combater abertamente o feminismo de feição burguesa, diz Vergès, conhecida por suas críticas radicais.
A fluidez da escrita não faz concessão a julgamentos ácidos, deixando à superfície do texto temas espinhosos. Perguntas simples para um pensamento complexo talvez possam ajudar: afinal, o que é um feminismo decolonial? Contra quem ele se insurge? Como Vergès faz dialogar a abordagem decolonial com a perspectiva interseccional?
O grande diferencial deste livro é revelar as clivagens entre os diferentes feminismos. Podemos ter uma visada geral das disputas de narrativa no feminismo francês, mas também nos inteirar do pensamento e das lutas das mulheres de diferentes continentes, especialmente as vindas das chamadas epistemologias do Sul, que de forma alguma podem ser confinadas a fronteiras hemisféricas ou geográficas. Mirando a vivência e a produção intelectual do Sul global, a autora reconhece e dialoga com intelectuais africanas, latino-americanas e asiáticas, cujas experiências e reflexões sobre a colonialidade contribuem para um entendimento mais complexo das formas de dominação e exploração globais. Nesse sentido, o feminismo decolonial se volta para os problemas gerados pelas relações coloniais (em que se inserem a escravidão e seus efeitos deletérios) e também para as imaginações emancipatórias elaboradas neste mundo em que a questão de raça se impôs de forma visceral.
Assim, o feminismo decolonial opõe-se frontalmente ao feminismo liberal, cujas pautas se encerram em demandas relativas à liberação sexual e à igualdade no mercado de trabalho, desconsiderando as clivagens e as desigualdades entre as mulheres. Opõe-se também ao feminismo civilizatório
, que na verdade é uma faceta assumida por organismos internacionais que em geral validam políticas imperialistas sobre os países periféricos, gerando opressão de povos, sobretudo de mulheres racializadas. Exemplo flagrante desse feminismo civilizatório seria a política de controle de natalidade, tema bem conhecido das brasileiras já familiarizadas com os debates nacionais, visto que uma das históricas divergências entre feministas negras e brancas no Brasil reside justamente no entendimento da concepção acerca dos direitos reprodutivos. Em tempo: denúncias de esterilização e controle dos corpos de mulheres racializadas no país datam do contexto da ditadura militar, como demonstrou o movimento de mulheres negras. Esse, aliás, é um dos pontos do livro que marcam a proximidade entre as discussões realizadas no Brasil e a reflexão da autora.
Há, todavia, outros pontos em comum entre o que se tem produzido na Europa hoje e o que já foi e continua sendo debatido entre nós, como a crítica radical ao eurocentrismo no pensamento feminista. Ao ler várias passagens desse ensaio, quem não se lembrará do seminal Por um feminismo afro-latino-americano, de Lélia Gonzalez, escrito há mais de três décadas?
O chamado feminismo interseccional conheceu relevância graças ao trabalho e ao pensamento coletivo das feministas negras americanas a partir dos anos 1970, registrados no famoso manifesto do coletivo Combahee River, e aos esforços de Kimberlé Crenshaw em cunhar e aperfeiçoar a ferramenta analítica. A despeito de não se opor a ele, Françoise Vergès opta por defender uma perspectiva feminista com e para além da interseccionalidade. De alguma forma, embora o black feminism seja altamente influente no pensamento da autora, sua abordagem não se limita a ele.
Em primeiro lugar, ainda que a interseccionalidade seja uma teoria sistêmica e possa abarcar um conjunto de categorias que se interconectam – gênero, sexualidade, raça, etnia, classe, dentre outras –, a essa abordagem é preciso somar uma crítica mais substantiva ao capitalismo. É nesse sentido que os esforços das teóricas feministas materialistas são fundamentais, pois reposicionam o problema da reprodução social, seja na dimensão da reprodução biológica (aí localizado todo o trabalhado da maternidade), seja no trabalho doméstico não remunerado, geralmente realizado no âmbito da família e do lar por meio de cuidados com parentes, idosos, portadores de necessidades especiais. Acresce-se a isso a reprodução social institucionalizada no mercado de trabalho formal, marcada pelo rebaixamento do status social, pela humilhação, pela invisibilidade, pela insalubridade, pela baixa remuneração e pela precariedade dos direitos. Embora todas essas dimensões sejam relevantes para a autora, seu esforço maior é mostrar que o trabalho doméstico remunerado – sobretudo o terceirizado – garante a engrenagem diária do capitalismo. Ou seja, esse trabalho invisível, produzido majoritariamente por mulheres racializadas, é que gera a limpeza e a organização do mundo capitalista. Em uma frase, é o que garante o caráter civilizatório da modernidade ocidental. Esse esforço de pensar o modo como raça, gênero e classe se constituem mutuamente e globalmente nas grandes cidades destaca-se como um dos ganhos mais notáveis do livro.
Por fim, uma nota de advertência: o termo racialização
, aqui, não pode ser reduzido às pessoas negras, tal como ocorre nas Américas e no Brasil em particular. Ou seja, ao se referir às mulheres racializadas, Vergès também considera aquelas vistas e entendidas como não brancas e não ocidentais, que vivem na Europa e nos Estados Unidos, na condição de imigrantes ou refugiadas. O mesmo termo é válido para mulheres que, embora possuam cidadania francesa no papel, não escapam aos processos de racialização devido a marcas sociais diacríticas como cor, costumes, religião, língua ou outro distintivo que as impeça de adentrar a seleta e exclusiva sociedade ocidental.
Françoise Vergès escreve sobre e contra um dos berços do feminismo do Ocidente. A França, com sua autoimagem civilizatória, republicana e universalista, é posta à prova, já que esses ideais abstratos são frágeis diante da concretude dos processos de racialização, do controle dos corpos das mulheres não ocidentais e da hiperexploração capitalista. Nesse sentido, sua crítica reage às bases fundantes e ao próprio desenvolvimento do feminismo ocidental, uma vez que esse teria se curvado ao eurocentrismo, ao neoliberalismo econômico, ao imperialismo geopolítico e cultural e à colonialidade do poder epistêmico. Na contramão, a pensadora francesa se junta aos esforços das ativistas e intelectuais feministas do Sul global, com suas abordagens que explicam a natureza e os mecanismos de reprodução das desigualdades e da exploração nas sociedades contemporâneas em escala planetária; muitas delas ainda apresentam uma perspectiva emancipatória ancorada em valores radicalmente opostos ao capitalismo e ao racismo. É nessa trincheira que Françoise Vergès enfrenta os grandes desafios do feminismo no século XXI.
FLÁVIA RIOS é professora da Universidade Federal Fluminense e coautora de Negros nas cidades brasileiras (São Paulo: Intermeios, 2019) e da biografia de Lélia Gonzalez (São Paulo: Negro / Summus, 2010).
NOTA DA TRADUÇÃO
Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo
O campo semântico do termo em francês décolonial – presente no título e principal conceito do livro –, empregado por Françoise Vergès, caracteriza-se pelo enfrentamento da colonialidade do poder que, mesmo após a formalização da independência de territórios colonizados, persiste como legado da modernidade, do racismo e do capitalismo.
Na França, o termo costuma estar associado ao ativismo antirracista e a um amplo combate à xenofobia, destacando-se a defesa de imigrantes e descendentes de imigrantes vindos de ex-colônias. No Brasil, o adjetivo decolonial
tem sido associado à recepção de estudos do grupo conhecido como Modernidade / Colonialidade / Decolonialidade (mcd), formado por pesquisadores latino-americanos atuantes nas Américas (ver, a esse respeito, autores como Aníbal Quijano, Walter Mignolo e Catherine Walsh).
Para traduzir as poucas ocorrências em que Vergès mobiliza a palavra décolonial para se referir propriamente aos processos histórico-administrativos de desligamento das metrópoles das ex-colônias, optamos por utilizar termos como descolonizar
, descolonização
e descolonial
. Em contrapartida, nos momentos em que a autora faz referência ao movimento contínuo de tornar pensamentos e práticas cada vez mais livres da colonialidade, recorremos a termos como decolonial
e decolonialidade
, marcando essa diferença por meio da supressão do s
. Tal opção busca enfatizar que os processos histórico-administrativos de descolonização de um território não garantem que os discursos que circulam nele e sobre ele tenham superado a lógica colonial.
Buscamos, ainda, acompanhar o recurso de escrita inclusiva do qual Vergès se vale para marcar o gênero das palavras no francês – aglutinando tipograficamente feminino e masculino, ligados por pontos dentro de cada palavra. Para isso, lançamos mão de uma padronização análoga em português, utilizando barra no interior dos termos. Assim, traduzimos, por exemplo, opprimé•e•s por oprimidos/as
, vaincu•e•s por vencidos/as
e colonisé•e•s por colonizados/as
.
FRANÇOISE VERGÈS
UM FEMINISMO DECOLONIAL
Prefácio à edição brasileira
Escrevi este livro para mostrar que o trabalho de cuidado e limpeza é indispensável e necessário ao funcionamento do patriarcado e do capitalismo racial e neoliberal; contudo, embora indispensável e necessário, ele deve permanecer invisível, marcado pelo gênero, racializado, mal pago e subqualificado. Também o escrevi para tornar visível a dimensão colonial e racial de um feminismo europeu convencido de ter escapado das ideologias racistas da escravatura e do colonialismo. Chamo esse feminismo de civilizatório porque ele adotou e adaptou os objetivos da missão civilizatória colonial, oferecendo ao neoliberalismo e ao imperialismo uma política dos direitos das mulheres que serve a seus interesses. Os direitos das mulheres, quando esvaziados de toda dimensão radical, tornam-se um trunfo nas mãos