Voce Tem Cultura - Roberto Damatta
Voce Tem Cultura - Roberto Damatta
Voce Tem Cultura - Roberto Damatta
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Roberto DaMatta
Antroplogo
Outro dia ouvi uma pessoa dizer que Maria no tinha cultura, era ignorante dos fatos
bsicos da poltica, economia e literatura. Uma semana depois, no Museu onde trabalho,
conversava com alunos sobre a cultura dos ndios Apinay de Gois, que havia estudado de 1962
at 1976, quando publiquei um livro sobre eles (Um mundo dividido). Refletindo sobre os dois
usos de uma mesma palavra, decidi que esta seria a melhor forma de discutir a idia ou o conceito
de cultura tal como ns, estudantes da sociedade a concebemos. Ou, melhor ainda, apresentar
algumas noes sobre a cultura e o que ela quer dizer, no como uma simples palavra, mas como
uma categoria intelectual um conceito que pode nos ajudar a compreender melhor o que acontece
no mundo em nossa volta.
Retomemos os exemplos mencionados porque eles encerram os dois sentidos mais comuns
da palavra. No primeiro, usa-se cultura como sinnimo de sofisticao, de sabedoria, de educao
no sentido restrito do termo. Quer dizer, quando falamos que Maria no tem cultura, e que Joo
culto, estamos nos referindo a um certo estado educacional destas pessoas, querendo indicar
com isto sua capacidade de compreender ou organizar certos dados e situaes. Cultura aqui
equivalente a volume de leituras, a controle de informaes, a ttulos universitrios e chega at
mesmo a ser confundido com inteligncia, como se a habilidade para realizar certas operaes
mentais e lgicas (que definem de fato a inteligncia), fosse algo a ser medido ou arbitrado pelo
nmero de livros que uma pessoa leu, as lnguas que pode falar, ou ao quadros e pintores que pode,
de memria, enumerar. Como uma espcie de prova desta associao, temos o velho ditado
informando que cultura no traz discernimento... ou inteligncia, como estou discutindo aqui.
Neste sentido, cultura uma palavra usada para classificar as pessoas e, s vezes, grupos sociais,
servindo como uma arma discriminatria contra algum sexo, idade (as geraes mais novas so
incultas), etnia (os pretos no tem cultura) ou mesmo sociedades inteiras, quando se diz que os
franceses so cultos e civilizados em oposio aos americanos que so ignorantes e grosseiros.
Do mesmo modo comum ouvir-se referncias humanidade, cujos valores seguem tradies
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Artigo publicado no Jornal da Embratel, Rio de Janeiro, 1981
diferentes e desconhecidas, como a dos ndios, como sendo sociedades que esto na Idade da
Pedra e se encontram em estgio cultural muito atrasado.
A palavra cultura, enquanto categoria do senso-comum, ocupa como vemos um importante
lugar no nosso acervo conceitual, ficando lado-a-lado de outras, cujo uso na vida cotidiana
tambm muito comum. Estou me lembrando da palavra personalidade que, tal como ocorre com
a palavra cultura, penetra o nosso vocabulrio com dois sentidos bem diferenciados.
No campo da Psicologia, personalidade define o conjunto dos traos que caracterizam todos
os seres humanos. aquilo que singulariza todos e cada um de ns como uma pessoa diferente,
com interesses, capacidades e emoes particulares. Mas na vida diria, personalidade usada
como um marco para algo desejvel e invejvel de uma pessoa. Assim, certas pessoas teriam
personalidade" outras no! comum se dizer que "Joo tem personalidade quando de fato se
quer indicar que "Joo tem magnetismo", sendo uma pessoa de "presena". Do mesmo modo, dizer
que "Joo no tem personalidade", quer apenas dizer que ele no uma pessoa atraente ou
inteligente. Mas no fundo, todos temos personalidade, embora nem todos possamos ser pessoas
belas ou magnetizadoras como um artista da Novela das Oito. Mesmo uma pessoa "sem
personalidade" tem, paradoxalmente, personalidade na medida em que ocupa um espao social e
fsico e tem desejos e necessidades. Pode ser uma pessoa sumamente apagada, mas ser assim
precisamente o trao marcante de sua personalidade. No caso do conceito de cultura ocorre o
.mesmo, embora nem todos saibam disso. De fato, quando um antroplogo social fala em
"cultura", ele usa a palavra como um conceito chave para a interpretao da vida social.
Porque para ns ''cultura" no simplesmente um referente que marca uma hierarquia de
"civilizao" mas a maneira de viver total de um grupo, sociedade, pas ou pessoa. Cultura , em
Antropologia Social e Sociologia, um mapa, um receiturio, um cdigo atravs do qual as pessoas
de um dado grupo pensam, classificam, estudam e modificam o mundo e a si mesmas.
justamente porque compartilham de parcelas importantes deste cdigo (a cultura) que um conjunto
de indivduos com interesses e capacidades distintas e at mesmo opostas, transformam-se num
grupo e podem viver juntos sentindo-se parte de uma mesma totalidade. Podem, assim,
desenvolver relaes entre si porque a cultura lhes forneceu normas que dizem respeito aos modos,
mais (ou menos) apropriados de comportamento diante de certas situaes. Por outro lado, a
cultura no um cdigo que se escolhe simplesmente. algo que est dentro e fora de cada um de
ns, como as regras de um jogo de futebol, que permitem o entendimento do jogo e, tambm, a
ao de cada jogador, juiz, bandeirinha e torcida. Quer dizer, as regras que formam a cultura (ou a
cultura como regra) algo que permite relacionar indivduos entre si e o prprio grupo com o
ambiente onde vivem. Em geral, pensamos a cultura como algo individual que as pessoas
inventam, modificam e acrescentam na medida de sua criatividade e poder. Da falarmos que
Fulano mais culto que Sicrano e distinguirmos formas de "cultura" supostamente mais avanadas
ou preferidas que outras. Falamos ento em "alta cultura'' e "baixa cultura" ou cultura popular",
preferindo naturalmente as formas sofisticadas que se confundem com a prpria idia de cultura.
Assim, teramos a cultura e culturas particulares e adjetivadas.(popular, indgena, nordestina, de
classe baixa, etc.) como formas secundrias, incompletas e inferiores de vida social.
Mas a verdade que todas as formas culturais ou todas as "sub-culturas de uma sociedade
so equivalentes e, em geral, aprofundam algum aspecto importante que no pode ser esgotado
completamente por uma outra "sub-cultura". Quer dizer, existem gneros de cultura que so
equivalentes a diferentes modos de sentir, celebrar, pensar e atuar sobre o mundo e esses gneros
podem estar associados a certos segmentos sociais. 0 problema que sempre que nos aproximamos
de alguma forma de comportamento e de pensamento diferente, tendemos a classificar a diferena
hierarquicamente, que uma: forma de exclu-la.
Um outro modo de perceber e enfrentar a diferena cultural tomar a diferena como um
desvio, deixando de buscar seu papel numa totalidade. Desta forma, podemos ver o carnaval como
algo desviante de uma festa religiosa, sem nos darmos conta de que as festas religiosas e o
carnaval guardam uma profunda relao de complementaridade. Realmente, se no terreno da festa
religiosa somos marcados pelo mais profundo comedimento e respeito polo foco no "outro mundo
porque no carnaval podemos nos apresentar realizando o justo oposto.
Assim, o carnavalesco e o religioso no podem ser classificados em termos de superior ou
inferior ou como articulados a uma. "cultura autntica" e superior, mas devem ser vistos nas suas
relaes que so complementares. O que significa dizer que tanto h cultura no carnaval quanto na
procisso e nas festas cvicas, pois que cada uma delas um cdigo capaz de permitir um
julgamento e uma atuao sobre o mundo social no Brasil. Como disse uma vez, essas festas nos
revelam leituras da sociedade brasileira por ns mesmos e nesta direo que devemos discutir o
contedo e a. forma de cada cultura ou sub-cultura em uma sociedade (veja-se o meu livro,
Carnavais; Malandros e Heris).
No sentido antropolgico, portanto, a cultura um conjunto de regras que nos diz como o
mundo pode e deve ser classificado. Ela, como os textos teatrais, no pode prever completamente
como iremos nos sentir em cada papel que devemos ou temos necessariamente que desempenhar,
mas indica maneiras gerais e exemplos de como pessoas que viveram antes de ns os
desempenharam. Mas isso no impede, conforme sabemos, emoes. Do mesmo modo que um
jogo de futebol com suas regras fixas no impede renovadas emoes em cada jogo.
que as regras apenas indicam os limites e apontam os elementos e suas combinaes
explcitas. O seu funcionamento e, sobretudo, o modo pelo qual elas engendram novas
combinaes em situaes concretas algo que s a realidade pode dizer. Porque embora cada
cultura contenha um conjunto finito de regras, suas possibilidades de atualizao, expresso e
reao em situaes concretas, so infinitas.
Apresentada assim, a cultura parece ser um bom instrumento para compreender as
diferenas entre. os homens e as sociedades. Elas no seriam dadas, de uma vez por todas, por
meio de um meio geogrfico ou de uma raa, como diziam os estudiosos do passado, mas em
diferentes configuraes ou relaes que cada sociedade estabelece no decorrer de sua Mas
importante acentuar que a base destas configuraes, sempre um repertrio comum de
potencialidades. Algumas sociedades desenvolveram algumas dessas potencialidades mais e
melhor do que outras, mas isso no significa que elas sejam mais pervertidas ou mais adiantadas.
O que isso parece indicar , antes de mais nada, o enorme potencial que cada cultura encerra, como
elemento plstico, capaz de receber as variaes e motivaes dos seus membros, bem como os
desafios externos. Nosso sistema caminhou na direo de um poderoso controle sobre a natureza,
mas isso apenas um trao entre muitos outros. H sociedades na Amaznia onde o controle da
natureza muito pobre, mas onde existe urna enorme sabedoria relativa ao equilbrio entre os
homens e os grupos cujos interesses so divergentes. O respeito pela vida que todas as sociedades
indgenas nos apresentam, de modo to vivo, pois que os animais so seres includos na formao
e discusso de sua moralidade e sistema poltico, parece se constituir no em exemplo de
ignorncia e indigncia lgica, mas em verdadeira lio, pois respeitar a vida deve certamente
incluir toda a vida e no apenas a vida humana.
Hoje estamos mais conscientes do preo que pagamos pela explorao desenfreada do
mundo natural sem a necessria moralidade que nos liga inevitavelmente s plantas, aos animais,
aos rios e aos mares.
Realmente, pela escala destas sociedades tribais, somos uma sociedade de brbaros,
incapazes de compreender o significado profundo dos elos que nos ligam com todo o mundo em
escala global. Pois assim que pensam os ndios e por isso que as suas histrias so povoadas de
animais que falam e homens que se transformam em animais. Conosco, so as mquinas que
tomam esse lugar...
O conceito de cultura, ou, a cultura como conceito, ento, permite uma perspectiva mais
consciente de ns mesmos. Precisamente porque diz que no h homens sem cultura e permite
comparar culturas e configuraes culturais como entidades iguais, deixando de estabelecer
hierarquias em que inevitavelmente existiriam sociedades superiores e inferiores. Mesmo diante de
formas culturais aparentemente irracionais, cruis ou pervertidas, existe o homem a entend-las
ainda que seja para evit-las, como fazemos com o crime - uma tarefa inevitvel que faz parte da
condio de ser humano e viver num universo marcado e demarcado pela cultura. Em outras
palavras, a cultura permite traduzir melhor a diferena entre ns e os outros e, assim fazendo,
resgatar a nossa humanidade no outro e a do outro em ns mesmos. Num mundo como o nosso, to
pequeno pela comunicao em escala planetria, isso me parece muito importante. Porque j no
se trata somente de fabricar mais e mais automveis, conforme pensvamos em 1950, mas
desenvolver nossa capacidade para enxergar melhores caminho para os pobres, os marginais e os
oprimidos. E isso s se faz com uma atitude aberta para as formas e configuraes sociais que,
como revela o conceito de cultura, esto dentro e fora de ns.
Num pas como o nosso, onde as formas hierarquizantes de classificao cultural sempre
foram dominantes, onde a elite sempre esteve disposta a auto-flagelar-se dizendo que no temos
uma cultura, nada mais saudvel do que esse exerccio antropolgico de descobrir que a frmula
negativa - esse dizer que no temos cultura , paradoxalmente, um modo de agir cultural que deve
ser visto, pesado e talvez substitudo por uma frmula mais confiante no nosso futuro e nas nossas
potencialidades.