Olivier Dekens - Compreender Kant
Olivier Dekens - Compreender Kant
Olivier Dekens - Compreender Kant
www.loyola.com.h
Compreender
Olivier Dekens
Co mpreender
T raduo
Paula Silva
Biblioteca Padre Vaz
llllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllll/111
20101662
Compreender Kant
Edies Loyofa
liTULO ()f{!GIN,\L.:
Co111pre11dre f...:a11t
sumrio
J:l :
I S I
Introduo
i>
A d isposio filosfica 9
Uma filosofia da filosofia 1O
A natureza filosfica 11
A herana kantiana 13
201 01 662-1
Capitulo 1
Edies Loyola
R ua !822 n" 347 - l piranga
0421 6-000 So Pa ulo SP
Caixa Postal 42.335 - 04218-970 So Paulo SP
11 1 ) 6914-1922
@.) ( l i) 6163-4275
de dados
l'l.'111 f!t..TllliHlJ
l!l'lTfil
Que filosofia?
15
26
Capitulo li
da
Editora
Capitulo Ili
O fato do dever 85
Factum rat1on1
A moral como reflexo sobr e a conscincia da obrigao 85
Os imperativos: o homem e seu dever 97
Da moral religio. ou a religio moral 119
CAPTULO IV
141
141
148
Capitulo V
189
Concluso
Bi bliog rafia
201
nd ice 205
Introduo
A disposio filosfica
H filsofos sobr e os quais nos per gun tamos s vezes por que sua obra
con tinua a influenciar, muito tempo depois de sua morte, o campo do
pensamen to A influncia de um texto filosfico pode dever-se sua qualidade
objetiva, personalidade do homem que o engendrou, ruptura que
introduziu no curso tranqilo da histria das idias ou ainda ao momen to de
sua irrupo Quando se trata de Kant, uma questo assim parece desti tuda de
sentido, pois os seus escritos superam, em originalidade e fora conceitual,
os escritos da maior parte de seus contemporneos, bem como da maior
parte da produo filos fica As razes do sucesso so aqui manifestas:
criatividade da obra, majestade do sistema, sutileza das anlises - tudo
isto concorre para a excelncia do propsi to Mais ainda: a filosofia de Kan
t parece condenar todo pensamento ulterior a um novo exame de seus
prprios princpios, tornados frgeis pelo sopro da crtica Como refletir
seriamente sobre a origem dos conhecimen tos humanos sem levantar a
questo de seus limites, nos pr prios termos, insubsti tuveis, da Crtica da
razo pura? Como fundar a conscincia moral, mesmo que fosse para
contest-la em seguida, sem evocar o que Kant chama de um fato da razo: a
presena em ns, misteriosa e incompreensvel, da lei? Como dizer o belo, os
fins da humanidade ou os do individuo sem aplicar essa
9
Compreender
10
A disposio filosfica
A natureza filosfica
Define-se comumente a crtica kan tiana como uma avaliao dos poder es da
razo, tan to terica como prtica 'Tra tar-se-ia, em suma, de determinar os
limites da razo cognoscente e o dever da razo agente Tudo isso verdade
E preciso acrescentar, primeiramen te, que esse procedimento no visa princi
palmente a restringir as aspiraes da razo, mas antes a gui-la, a fim de que
ela manifeste seu valor, sua utilidade e sua vocao da maneira mais slida e
mais legitima Kant constri, pois, seu pensamen to como uma defesa e uma
ilustrao da razo humana em seu destino fundamen tal Convm, pois, que
nos interroguemos brevemente sobre a natureza dessa faculdade
A razo kan tiana , primeiramen te, o poder mais elevado do espirito, pelo
qual as regras do entendimen to -que organiza a experincia dos sentidos so conduzidas unidade de um principio' Esta razo , contudo, marcada
por uma tendncia mais essencial ainda: aspira ao infinito, ao alm dos fen
menos, ao que Kant chama de Idias No , pois, a arma triunfante de um
espirito in teiramente senhor de si, mas a faculdade prpria do homem, pela
qual este se abre obscuramente quilo que no pode verdadeiramente conhe
cer: Deus e a liberdade. Na origem do projeto kantiano, acha-se assim uma
potncia inquieta, "curvada sob o peso de questes que no pode descartar"',
que ela pr pria produz, sabendo que no poder responder a elas Se ela no
, como acabamos de ver, uma faculdade perfeitamente independente, no se
11
A disposio filosfica
Compreender
3 (f Pro fegmenos a toda meta fsica futura que possa se apresentar conw cincia, AK IV,
351; P li, p 135: " verdade, no podemos dar, fora de toda experincia possvel_ um conceito
deter minado do que podern ser as coisas em si Mas no somos contudo livres, em face das
investi gaes que as concernem, de delas nos abster completamente"
12
A herana kantiana
Filosofia da filosofia, filosofia do homem, filosofia da razo, o kantismo aparece
assim como um pensamento antes de mais nada preocupado em no quebrar
o grande impulso do esprito humano A recepo dada a Kant, desde seus pri
meiros leitores alemes, insistiu muito no carter destruidor de sua obra, que
exclui, com efeito, todo conhecimento terico de um objeto no-sensvel Esse
juzo deve ser matizado luz do que dissemos sobre os direitos da razo Kant ,
segundo sua prpria terminologia, um pensador dos limites, mais que um pen
sador das fronteiras'; isso significa que ele no busca restringir o campo de apli
cao da razo, mas sim delimitar suas difer entes partes E aqui que intervm
a faculdade cuja importncia sublinhamos logo no incio de nossa exposio: a
reflexo A crtica o exerccio pelo qual a reflexo determina a fronteira entre
os campos possveis da racionalidade; tal levantamento do campo da reflexo
permite, in fine, razo expressar sua natureza metafsica onde deve faz-lo (a
moral), e faz-la calar onde preciso (a cincia) O kantismo no destri, pois, a
razo clssica, unificante e soberana; ele a rompe, constituindo espaos de
especializao, cada um com suas regras prprias de funcionamento. A razo
prtica pode se permitir o que proibido razo terica; mais ainda: deve fazlo
A leitura que propomos ser a narrativa desse levantamento critico.
Tentaremos ver como a reflexo age, a cada vez, para conceder o devido lugar
voz da razo, salvaguardando desse modo a disposio filosfica que Kant
detecta, em germe, em todo ser humano Atravessaremos sucessivamente
seus mo mentos essenciais: a crtica do poder da razo terica; a de uma
razo prtica que se d na evidncia de um fato, a conscincia moral; enfim, a
de uma razo ainda mais hesitante, que busca, tateante, sinais de sua prpria
presena no territrio da esttica ou no da poltica Esse percurso estaria
incompleto sem uma anlise mais aprofundada de algumas pistas que
acabamos de esboar rapidamente; a definio kantiana da filosofia, a do
homem como ser metafsico e, enfim, a determinao original do conceito de
reflexo, tal como podemos encontr-lo na Critica da faculdade de julgar
, pois, por essas questes que comearemos Elabor-las nos permitir talvez
seguir, sem perigos excessivos, as sinuosidades do procedimento kantiano,
que constituem toda a fora e - por que no diz-lo? -todo o encanto
de seus escritos
4 Esta distino essencial longamente elaborada nos Prolegmenos Cf AK V, 352; P !I,
p 136
13
Captulo 1
A definio kantiana da
filosofia
Uue filosofia?
Di to isto, impor tan te ler um pouco mais aten tamen te alguns tex tos expli
citamen te destinados a determi nar os objetos da filosofia Kant pe ai em
andamen to a separao cr tica , e expe a organizao de seu pensamen to, e
enuncia o resultado da aplicao da reflexo totalidade dos objetos poss
veis de anlise
15
Compreender
Os objetos da filosofia
Dois textos podem ser aqui evocados O primeiro tirado da Teoria transcen
dental do mtodo, que fecha a Critica da razo pura Kant define a o conceito
de inter esse da r azo, isto , as questes s quais a razo est condenada a
responder por seu prprio interesse A passagem das mais clebres:
Todo interesse de minha razo (tan to especulativo como prtico) concentra-se
nas trs questes seguintes:
1 Que posso conhecer?
2 Que devo fazer?
3 Que posso esperar'? 1
razo pura ,
1 CRP, A 805/B 833
2 Cf Lgica. AK [X, 25; trad Guillermit, Paris, Vr in, 1969_ p 25
simples razo
-respondam questo Pode-se at dizer que bastan te delicado atribuir
a uma nica obra a tarefa de respond-la Digamos simplesmente, e ainda
provisoriamen te, que a cada vez que Kan t se in terroga sobre a finalidade
do homem como ser moral e ten ta estabelecer que gnero de felicidade
um ho mem virtuoso tem o direito de esperar ele responde a essa terceira
questo E a este titulo que a Critica da faculdade de julgar , mas tambm
numerosas passagens da Critica da razo prtica corr espondem a esse
objetivo
A filosofia kantiana -e 2 filosofia em geral -deve abordar sucessiva
mente o problema dos limites do conhecimen to, o do dever e, enfim, o das
esperanas legtimas de todo homem Tal programa de trabalho pode fazer
pensar que a filosofia se reduz, no fundo, a um conjunto sistemtico de conhe
cimentos que um estudan te consciencioso poderia assimilar progressivamen
te Kant no se atm naturalmente a esta concepo escolar da filosofia, que
ele qualifica at mesmo de escolstica Acrescenta, pois, um pouco adiante,
16
17
Compreender
Os objetos da filosofia
Dois textos podem ser aqui evocados O primeiro tirado da Teoria transcen
dental do mtodo, que fecha a Critica da razo pura. Kant define ai o
conceito de in teresse da razo, isto , as questes s quais a razo est
condenada a responder por seu prprio in teresse A passagem das mais
clebres:
Iodo in teresse de minha razo (tanto especulativo con10 prtico) concentra se
nas trs questes seguin tes:
16
Compreender
que o enu n
ciado de seus campos de aplicao Isso significa concretamen te tambm que
a partilha cri tica que f u nda a diviso ele filosofia em trs questes repousa
numa experincia da filosofia mais origi nal, aquela que a Crtica da faculdade
4 Isto ser objeto de de1nonstrao no capt ulo seguinte A respeito desse pon to, subs ctevemos
as anlises de Alxis PH!LONENKO em sua introduo da Critica da faculdade de julgar Paris.
Vrin. 1993, p 11
L gica , AK IX, 24; trad Gui!!ern1i t, p 25
18
defi nida como a "cincia da relao de todo con hecimen to e de todo uso da
razo para o fi m lti mo da razo h u mana"' Responder questo do homem
consiste em elucidar, em seu fundarnen to, essa disposio particular do seI
humano, explici tando o princ pio das trs primeiras questes, organizando-se
o conjun to em torno do conceito de fim A na tureza filosfica a condio de
possibilidade da filosofia sob todas as suas formas: descrever o homem resul
ta , pois, em mostrar por q ue e como h filosofia
Para designar essa aptido par ticular do hornem e1n relao ao que o
transcende, Kan t emprega o belo termo "cultura"7 Essa qualidade propria
men te humana confere ao homem toda a sua dignidade e o torna digno de
respei to Ela o que permi te a todo sujei to dar-se fins, objetivos, pri ncipies
e obrigaes; mas tambm, em Kan t, sinnimo de uma certa receptividade
s Idias ou, de modo mais geral, ao que transcende a experincia sensivel
Reten hamos simplesmen te aqui alguns ndices da presena da cultura
nas descries que Kan t nos d do homem No campo terico, vi mos que o
homem tende na turalmen te ao absoluto: , literalmen te, mais forte que ele
No campo moral. as coisas se apresen tam um pouco diversamente: mas I<an t
fala de novo de uma "cultura da razo' para designar a aptido para escutar a
exigncia da lei moral, malgrado sua severidade e a i nfelicidade a que parece
condenar o individuo D-se o mesmo no ca1npo esttico: no possvel, diz
I(an t, sentir alguma coisa como o sublime, na arte ou na nat ureza, sem ser a
1ni11ilna receptivo ao que ultrapassa a nat uieza O homem kan tiano, nessas
diferen tes figuras, manifesta, pois, uma racionalidade 1narcada por uma forrna
de passividade, de abertura ao infi ni to Se a filosofia kan tiana uma antro
pologia, e se toda filosofia deve s-lo, seria, pois, por esta nica razo: h no
corao do homen1, como no corao do pensamen to, um s e inesmo desejo
das Idias Resta com preender agora aquilo a que conjun tamen te tendem o
homem e a filosofia A juno ou a quase iden tificao en tre a cultura, a filo
sofia, a metafisica e a humanidade poder ento ser feita, e nosso percurso do
pensamen to kan tiano se desen rolar, sem que percamos de vista essa singular
conf uso de in teresses en tre o homem e sua razo
6 lbid
7 Cf C ritica da faculdade de ;ulgar (doravan te CFJ). AK V, 265; P li, p
1036 3 F undanientos da met afsica dos costumes. AI< IV .396; P li. p
254
19
Compreender
Os fins do homem
Que orientar-se no
pensa
lnento? -, Kan t formula, ainda mais claramen te que na critica da razo pura ,
Num texto curto, publicado no outono de 1786 -
Salvar a liberdade
A celebridade bem compreensvel da Crtica da mzo pura e uma longa tradio
da i n terpretao fizeram do pensamento critico uma filosofia do conhecimento,
preocu pada, antes de mais nada, ein fundar a cincia, como tentara1n faz-lo,
Locke Para sim plificar, pode-se dizer que a fundao da cincia obtida por sua
definio como unidade entre a sensibilidade e os conceitos do entendimento
um efeito secundrio do empreendimento kan tiano. Kant salva os fenmenos,
determina precisamente a condio de seu saber, elabora os limites insuperveis
de todo conhecimen to cien tifico ludo isso verdade Con tudo, no esse o ob
jetivo primeiro da tarefa da crtica Salvar a cincia s tem significado, para Kant,
se esse procedimen to permite salvar a liberdade e a metafsica como disposio
na tural do homem Os tex tos so, quan to a esse pon to, ele grande clareza, mais
ainda, talvez, na segunda edio da Crtica da razo pura que na primeira
O pr efcio da segunda edio esfora-se para esclarecer o estatuto do tex
to que apresen ta I(an t escreve a, especialmen te, e esta frase da mais alta
i111portncia:
U nia crtica que restringe a razo especulativa segu ra1nen te negat iva nisso,
mas ao suprimi r, assim, ao n1esmo tempo. utn obstculo gue restringe o uso
prtico, ou ameaa mesmo aniquil-lo_ ela , de fato, de urna uti lidade positiva
e muito i mportan te, desde que se esteja convencido de que h um uso pr tico
absoluta men te necessrio da razo pura (o uso moral)lll
Este trecho exige duas observaes. Primeiro, a cri tica supe como um
fato indubi tvel a existncia de um in teresse prtic:n da razo l(an t no de
monstra por que a moral vital; ele o afirma como um dado incon testvel E m
segundo l ugar, o obstculo que se trata de destruir a negao da liberdade,
que resultaria da extenso ao supra-sensvel das leis da causalidade que con
vm aos fenmenos sensiveis Quebrando o impulso da Iazo terica em suas
pretenses de con hecer o supra-sensivel, a cri tica abre um espao para a razo
prtica, que no mais um espao de conhecimen to cientifico, mas um espao
20
CRP. B XXV
11 lbid
21
Compreender
pecula tiva no torne con tradi trio o conceito de liberdade Mostrando que as
leis da fsica, principalmen te a lei da causalidade necessria, s se aplicarn
aos fenmenos sensveis, Kan t torna pelo menos pensvel uma liberdade,
delas escapando Ele no pretende ter uma in tuio dessa liberdade; menos
ainda um conhecimen to cien tfico; con tenta-se em afirmar que a idia da
liberdade compatvel com a de um m u ndo. Em ou tros termos: a crtica da
razo pura per m ite disposio metafsica que constit ui o ser h umano
manifestar-se legi ti mamen te num campo de pensamen to no submetido
s condies do saber cien tifico Com o estabelecimento dos limi tes deste,
abre-se um universo, um espao de liberdade, de dever, um lugar tambm
para que a idia de Deus no seja mais uma quimera ou conceito vazio de
uma teologia pretensiosa
f(
14
12 A 800/B 828
13 Cf A 806/B 8:34
22
23
Compreender
i mpossvel; deve, em seguida, indicar e1n que consiste a 1netafsica co1no cin
razo pura diz isso de maneir a mui to mais explicita: a metafisica , antes de
mais nada, uma tendncia ineren te ao esprito humano, que no pode se
satisfazer s com a experincia sensvel e inevitavelmen te afirma no mundo
supra-sen svel os conceitos de que a razo tem necessidade, em virtude de
sua prpria
natureza Na determinao desta disposio, Kant oscila entre o elogio e o
oprbrio: ora ela a filha querida da razo, um "germe originrio sabiamen te
organizado em vista de grandes fins"16; ora ela essa dialtica inevi tvel da
razo que finalmen te a conduz a se enganar Mas, em todos os casos, a metaf
sica deve ser protegida, n1ais que destruida O ho1nem nunca renunciar a ela,
como no renuncia a respirar17; mais ainda, ela tem como vocao completar a
cultur a da razo, conduzindo-a a seu verdadeiro destino
24
25
Com preender
consti tui um campo em si, pois sua possibilidade s estabelecida urna vez
posto o sistema da filosofia transcenden tal. Sem cr tica da razo terica propedutica 1netafsica como cincia -, a liberdade no sequer conside
rvel, e o conceito de dever destitudo de significao Parece en to que este
ltimo sentido do termo seja o mais impor tante, se recordamos que para Kan t
a filosofia afinal uma doutrina da liberdade
O dispositivo a rq uitetnico
do pensamento kantiano
A disposio metafsica na qual reside a essncia da filosofia, bem como a da
hu manidade, s est salva e confirmada em seus direitos pela diviso cr tica
A Crtica da razo pura dela participa, evidentemen te, estabelecendo explici
ta mente limi tes ao uso terico da razo, liberando um espao novo por seu
2 "A parte desse can1po na qual passivei, para ns, u1n conhecimento um
terreno para os conceitos e para a faculdade de conhecer requerida para
tan to '21 O ter reno corresponde ao conjun to dos fenmenos suscetiveis de
Cartografia filosfica
propusemos
aqui -
uma
leitura
das duas
i n
26
27
Compreender
A Filosofia como cartografia delimi ta dois campos. de tal sorte que toda pas
Geofilosofia
2 O primado da prtica impe, con tudo, que a moral tenha uma in luncia
real
no n1undo da experincia sensvel
3 Esse mundo deve, pois, ser concebido para se acei tar em si o exercido da
liberdade
A faculdade de julgar precisamen te a insistncia de tal unidade final dos
campos e dos poderes do espiri ta E a terceira Crtica, a simples descrio dos
diferen tes meios utilizados par a alcanar esse objetivo
A filosofia critica pode ser concebida como um vasto trabalho de organi
zao do terri trio Importa, pois, saber um pouco mais precisamente o que o
texto que acabamos de comen tar nos permi te entender -a quem
efetivamen te cabe tal misso As duas i n trodues no so sempre claras
quan to a esse pon to Ora Kant parece atribuir ao juzo teleolgico aquele que postula a organizao finalizada da natureza -a tarefa de
unificao dos campos, ora o juizo esttico -que estatui sobre a beleza e a
feira da arte ou da natureza - considerado o verdadeiro tema da passagem,
dado que exprime a livre relao en tre as diferentes faculdades do espri to
Essa dupla tendncia no indica ne-
28
29
Compreender
uma represen tao, isto , detern1inar sua fon te: , pois, uma generalid ade,
a mesma que preside ao vasto recorte territorial da i n troduo Critica da
direito, mesmo que nen hum ato moral jamais tenha sido realizado Na
configurao terica, assim como na situao pr tica, a filosofia vai e vem
entre fato e di rei to, da mesma manei ra que oscila en tre os diferen tes
campos de legislao E sse car ter par ticular do procedimen to kan tiano ,
talvez , a marca de sua reflexividade constitu tiva Vol taremos a este pon to
Crtica e filosofia
An tes de entrar no texto da Critica da razo pura , convm dizer algumas pala
vras sobre o termo "critica" Kan t muito eloqen te sobre esse pon to, sem que
contudo se possa fixar as diferen tes abordagens que ele prope n uma nica
defin io Digamos, a t tulo preliminar, que a cr tica est pt esen te em cada
uma das etapas que at agora atravessamos: ela aquilo que toma como objeto
a disposio metafsica; aquilo pelo que o bom e o mau uso dessa metafsica
so separados; , enfim, aquilo que produz o exerccio da
parece ativa na totalidade do trabalho filosfico, no se
Sua relao com a filosofia em geral talvez, alis, o que
Kant muito preciso em relao a isso, logo no incio da
Crtica da faculdade de 1ulgar:
con trrio, que esboa e1n primeiro lugar a idia desse sistema e o pe prova
20
reflexo Mesmo se
confu nd e com ela
melhor a determina
Primeira introduo
31
Compreender
Capitulo li
pois, filosofia, como a planta do arquiteto precede a construo do edifcio;
mas continua a agir ao longo do trabalho do pensamento, enquan to m cons
cincia deste pensamento, to pron ta a ir alm de sua esfera de legi timidade
A critica no um empreendimento de destruio Ela, antes, se
pergun ta como transformar em cincia o que dado como uma disposio
natural do esprito humano Procede de uma ten tativa de reorientao
dessa dispo sio, de consolidao de sua tendncia geral, da qual vimos o
valor, acom panhada de uma estrita limitao de suas pretenses tericas
Uma segunda definio de crtica merece ser aqui lembrada:
A inveno do
transcendental
O sentido de uma
revoluo na teoria do
conhecimento
Corno amadureceu tal projeto em Kan t? Como se d que ele pr ecise atingir o
outono de sua vida para ver aparecer uma obra que se reivindica como prel
dio e prolegmeno a propsi tos mais vastos? No se trata aqui de seguir passo
a passo a evoluo intelectual de Kant, de seus primeiros escritos Critica'
S
1 A obra clssica de Alexis PH!lOM E N KO. L'oeuvre de f{ anr. Paris, Vrin. 1969. con tm ern
32
33
A 'ir1veno do transcendental
Compreender
34
Psicologia e crtica
Kant no o nico filsofo ele seu tempo a se interessar pelo funcionamento
das faculdades de conhecimen to e pela construo do saber humano Se
existe uma especificidade do procedimento cr tico, no est na natureza de
seu objeto, mas, antes, no mtodo empregado Desde Descartes, os filsofos
quiseram construir o quadro do conhecimen to, mostrando igualmente a partir
de quais fontes este est constituido Cassirer o diz muito justamen te, em sua
Filosofia das Luzes:
A psicologia est ( ) colocada explici ta1nen te na base da teoria do conheci1nen to
e at a Crtica da razo pura de Kant reivindicar esse papel mais ou menos sem
contestao
35
Compreender
O que o transcendental?
O procedimento epistemolgico kantiano, mesmo distingui ndo-se prof un
damen te quan to aos concei tos empregados da gentica dos conhecimen tos,
to comuns na poca das L uzes, tem um pon to de partida similar Critica e
gnese do saber apiam-se ambas, com efeito, na existncia de fato de uma
cincia triunfan te, cujo sucesso iro ten tar explicar Para as corr en tes empi
ristas f rancesas ou inglesas, tra ta-se de mostrar como o mtodo experimen tal
pode transformar as sensaes em dados cientificas, servindo a simples des-
3 CRP, B 1
A inveno do transcendental
4 B IX
36
37
A inveno do transcendental
Compreender
A revoluo copernicana
mine em parte a priori seu objeto, alm de fazer dele experincia Kan t chama
de "conhecimento terico puro" a descrio do a priori das cincias D dois
exemplos disso: a matemtica e a fisica A primei ra in teiramen te pura, j que
seus objetos no lhe so dados pelos sentidos; a cincia s o parcialmente, j
que uma fsica se1n objetos materiais seria um absurdo
A que se deve o sucesso dessas duas cincias? Quanto matemtica,
compreende-se facilmente que uma disciplina que produz por si mesma seus
concei tos r.o pode cair no erro; aqui o conhecimen to a priori a descrio do
que a prpria cincia colocou no objeto que analisa A fisica apresen ta uma
configurao mais complexa, e preciso dessa vez estudar o rnodo operatrio
dessa cincia para compreender seu sucesso Tomemos Galileu: ele faz descer
num plano inclinado bolas de peso determinado a priori , portan to, antes da
experincia Que faz ele, na verdade? Antecipa a experincia, submete-a ao que
ele 1nesmo postulou, ao confron to entre o a priori de sua deciso e o a
5 B XIE
6 B1''V-XV!
39
38
A inveno do transcendental
Compreender
Anlise e sintese
parte A pon to de Kant considerar que a busca dessas duas qualidade em todo
conhecilnen to permite-nos decidir corn uma certeza absoluta se o conhecimen to
no sujeito, e o juzo dito analtico; seja que o predicado deve ser acrescen
porque a experincia sensvel no pode ir alm do fato Pode muito bem mostrar nos
que um fenmeno se produz desta ou daquela maneira; pode, no mximo,
estabelecer algumas generalidades; no pode, em caso algum, afirmar que este
ou aquele fenmeno deva se produzir desta ou daquela maneira Desde que haja
necessidade, j h outra coisa diversa da experincia, isto , um conceito que a
torna possivel e a estrutura, o a priori . D-se o mesmo quanto universalidade;
a experincia pode cer tamente produzir uma universalidade relativa ou compa
rativa, no capaz de estabelecer uma universalidade verdadeira ou rigorosa;
novamente necessrio lanar mo de um outro conceito: o de a priori Da Kant
concluir: "Necessidade e universalidade rigorosas so, pois, caractersticas certas
10
12,
9 B3
10 B 4
11 A 10/B 14
40
41
Compreender
A inveno do transcendental
A definio do transcendental
42
------------- ---- --
43
A inveno do transcendental
Compreender
ou, mais precisamen te ainda, por aquela do lugar onde seus objetos podem lhe
ser dados Esta ordem natural claramen te enunciada por Kan t nas l timas
linhas da i n troduo A sensibilidade e o entendimen to -que iremos definir
-so as duas fon tes do conhecimen to h umano; mas, como o homem
sente antes de pensar, convm comear pelo estudo da sensibilidade humana,
reser vando analitica transcenden tal a elaborao conceitua! do material
empirico fornecido pela intuio sensivel"
O espao do mundo
A determinao kantiana da faculdade de sentir um dos elementos d e sua
doutrina que j encontramos na Dissertao de 1770, sob a forma que a
Critica da razo pura no modificar Kan t, com efeito, a escreve que
a sensibilidade a receptividade do sujeito, pela qual possivel que sua disposi
o para formar r ep1esen taes seja afetada de um cer to modo pela presena de
um objeto qualquerrn
16 Cf CR A 19/B 33
1B A 23/B 38
17 A 20/B 34
44
45
Compreender
O tempo da
representao
A inveno do transcendental
tuio Segu ndo ponto essencial, que marca a diferena de importncia entre
0 espao e o tempo: este "a condio formal a priori de todos os fenmenos
em gera1"20 Por qu? Simplesmente porque sendo a forma do sentido interno
-a percepo de ns mesmos -o tempo a condio de in tuio de todos
os fe
nmenos, cada um entre eles, inclusive os fenmenos espaciais, sendo objeto
de uma represen tao in terna ao esprito Duas situaes so, pois, passiveis:
o objeto percebido espacial e ele se repor ta ao tempo pela mediao da r e
presen tao in terna que tenho dele; ou o objeto percebido pertence primeira
men te ao meu espirita, e ento o tempo sua condio imediata. O tempo
no defini tivamen te nada mais que uma condio subjetiva de nossa relao
com o mundo; sem o sujeito cognoscente, ele no existe
O espao e o tempo vo per1nitir construir cincias puras como as mate
mticas, e a parte pura de cincias empiricas como a fsica I\1o concerne1n
em nada s coisas em si e, por sua dimenso subjetiva, so elementos bem
ieais da construo do conhecimento Kan t quer exatamen te mar car aqui sua
ruptura com Leibniz Este afirmava, com efeito, que a sensibilidade era uma
faculdade de conhecimento inferior razo, mas de mesma natureza Para ele,
como para Wolff, conhecemos as coisas em si confusamente pela
sensibilidade, claramente pela razo Kan t responde que no conhecemos
absolutamente nada das coisas em si pela intuio sensvel, a qual est
reservada percepo fenomenal
A esttica transcendental atingiu seu objetivo Podemos agora compreen
der como proposies sintticas a priori so passiveis corno elaborao das
formas puras da sensibilidade, o espao e o tempo Mas a outra metade do
caminho, pelo qual podemos compreender como in tuies podem entrar na
consti tuio de uma cincia do mundo, deve ainda ser percorrida A anal
tica transcenden tal ir se debruar sobre esse problema, no sem encon trar
dificuldades de uma amplitude inteiramente diversa daquelas que a esttica
soube resolver em poucas palavras
A ana ltica.
Conceitos, pri ncpios,
subjetividade
A ar ticulao entre a esttica e a anal tica repousa na noo de r epresen
tao Na sensibilidade, o esprito recebe passivamen te um cer to tipo de r
epresen-
19 A 34/B 48
20 A 34/B 50
46
47
Compreender
A inveno do transcendental
O uso do entendimento
O pon to de par tida da analtica reside na afirmao da necessria colaborao
dessas duas utilizaes, uma ativa, a outra passiva, da noo de Iepr esen tao:
I n tuio e concei tos consti tuem, pois, os ele1nen tos de todo nosso conhecimen
to, de sorte que nem os concei tos sem a intuio que lhes corresponda de algum
11
modo, nem uma intuio sem concei tos podem resul tar em conhecimen to"
de exerccio, e a lgica geral pura, que faz abstrao de tais condies e , pois,
pura de todo pri ncpio emprico Para que podem servir essas precises termi
nolgicas to laboriosas'? S tm por funo indicar ex negati vo o que uma
lgica transcenden tal: enquan to a lgica geral diz respeito a toda utilizao d o
entendimento, quel' se refiia a conhecimentos empiricos ou a conheci1nentos
puros, a lgica transcenden tal s se i n teressa pelas leis do entendimen to e da
razo em sua con tribuio a objetos a priori. De modo ainda mais preciso: a
lgica transcenden tal o estudo do en tendimen to e da razo como fon tes de
concei tos a priori , enquanto estes so, por sua vez, condies de possibilidade
de um conhecimento a priori 2
An tes de indicar as razes da diviso da lgica transcenden tal em
analtica e dialtica, Kan t retoma por sua con ta uma definio da verd ade,
bem clssica alis, que em seguida ir utilizar nessa diviso Kan t escreve,
sem hesi tao:
O que o entendimento?
Chama-se de entendimento nosso poder de pensar o objeto da in tuio sen
svel a fun de conhec-lo Sem ele, o objeto na.o pensad o; mas sem in tuio
o objeto nem sequer dado Kan t o diz numa frmula que se tornou -no
sen1 razo -clebie: "Pensamen tos sem con tedo so vazios; in tuies sem
conceitos so cegas"22
O estudo do funcionamento do en tendimen to a lgica Esse termo
pode
qualificar uma grande diversidade de disciplinas distintas, que Kan t vai i ni
cialmen te tratar de designar A lgica pode se dividir primeiro em u ma lgica
geral, que descreve o funcionamen to do pensamen to sem considerar seu ob
jeto, e uma lgica de uso par ticular, que s uma especializao da primeira,
em funo de um campo de objetos especficos Esta ltima, til na construo
das cincias particulares, no in teressa a Kan t, e assim ele a deixa de lado
Voltando primeira, retoma sua diviso, separando a lgica geral aplicada,
que ir estudar o entendimen to em sua relao com suas condies sensveis
21 A 50/B 74
22 A 51/B 75
24 A 58/B 82
48
49
Compreender
Conceitos e1uizos
Kant tem gosto pelas distines Mal acabara de introduzir a diferena entre
anal tico e dialtico quando in troduziu nova ciso no interior da analtica
Esta comporta dois momentos sucessivos: a analtica dos conceitos e a
analtica dos princpios A primeira "a decomposio, ainda pouco tentada,
do pr prio poder do entendimento""; a segunda "um cnon para a
faculdade de julgar que lhe ensine a aplicar aos fenmenos os concei tos do
en tendimen to"2 A primeira cuida da enumerao daquilo que o
entendimento produz esponta neamen te; a outra, da aplicao aos dados da
sensibilidade dos resul tados da atividade do en tendimen to, uma aplicao
confiada faculdade de julgar
Como elaborar uma lista completa dos concei tos do en tendimento? Po
demos aqui tomar como base o prprio trabalho do entendimento Para que
serve o en tendimen to? Ele funciona antes de tudo como um poder de ligao
entre diversas representaes, sejam estas recebidas na sensibilidade ou con
cebidas pelo prprio entendimen to. Fazer uso do entendimento julgar, quer
dizer, conduzir unidade de um objeto uma pluralidade de r epresentaes,
diferen tes tanto por sua fon te como por sua natureza Tal identificao do
en tendimento ao poder de julgar permite que Kant disponha de um fio con
dutor na elaborao de uma lista de conceitos do entendimento: a cada tipo
de juizo corresponde, com efeito, um conceito particular, aquele que permite
diversidade ser unificada pela funo lgica do juizo O quadro de todos os
jul
gamen tos possiveis 27 que Kan t prope no tem, portan to, seno uma funo
secundria em relao ao quadro dos conceitos, que so o objeto prprio dessa
primeira parte do analtico este segundo quadro que deve nos interessar
A inveno do transcendental
As categonas
25 A 65/B 90
20 A 77/B 103
29 A 78/B 103 Paia a leitura de HEIDEGGE R, o indispensvel I<ant et !e probleme de la
1ntaphysique. Paris, Gallimard, 1953
50
51
A inveno do transcendental
Compreender
tir dos quais os outros podero ser encontrados por derivao Kan t prefere
deixar a seus sucessores o cuidado da exaustividade e ater-se a precisar por
trs breves observaes os pri ncpios de seu quadro:
possivel3
2 Este quadro foi constr uido em quatro sries de trs ca tegorias A terceira re
sulta sempre da associao das duas primeiras Assin1, a totalidade a adio
da pluralidade e da unidade
3 A ligao en tre a categoria da identidade e a forma do juzo qual ela deve
corresponder, o juizo disjun tivo, no eviden te, exceto se tomamos a iden
tidade como uma causalidade reciproca entre elemen tos distintos, embora
1
Da
Quantidade
Unidade
Pluralidade
fotalidade
Da
Qualidade
Realidade
Negao
Lim itao
Todos esses atores esto presentes no palco: intuies puras, concei tos pu
ros, a sensibilidade, o entendimento Falta compreender por que cenrio esses
Causalidade e dependncia
Comunidade
A deduo transcendental
Da Relao
Inerncia e subsistncia
Da M odalidade
Possibilidade-Impossibilidade
Existncia-No existncia
Necessidade-Contingncia
53
52
A inveno do transcendental
Compreender
33 A 84/B 116
3q A 85/B 117
35 A 89/B 122
36 A 90/B 122
55
54
Compreender
56
A inveno do transcendental
57
A inveno do transcendental
Compreender
Pensar e conhecer
A deduo tr anscenden tal mostrou por que no h conhecimento seno pelo
uso das categorias do en tendimento, sob a unidade da apercepo transcen
den tal A primeira e mais importante conseqncia desse procedimento a
44 B 131
45 B 138
42 A 119
43 B 130
59
58
A inveno do transcendental
Compreender
deduo:
1
As categorias so conceitos que prescrevem a priori leis aos fenmenos e por conseguin te natureza, como conjunto de feno.menos "
40 B 16:3
49 B 165
50 Cf A 130/B J69s
45 B 152
47 Cf B J5 7
61
60
A inveno do transcendental
Compreender
O que Kant chama aqui de faculdade ele julgar no , na verdade, uma nova
fa culdade do conhecimen to Trata-se antes de um outro nome do
en tendimento, quando este concebido em sua dimenso prtica e em sua
aplicao efetiva; uma aplicao que procede, diz Kan t, de "um talento
particular, que absolu ta mente no pode ser apreendido, mas somen te
Este primeiro captulo da analtica dos princpios est bem longe de ser se
cundrio No basta, com efei to, ter determinado os componen tes de todo
conhecimento para ter resolvido o problema de sua real constituio preciso
acrescen tar afirmao dos conceitos puros do entendimen to e das in
tui es da sensibilidade a anlise de sua relao, quer dizer, a anlise da
subsuno pela qual uma in tuio submetida ao poder sinttico do conceito
Os concei tos puros do en tendimento e as intuies sensiveis so produ
es heterogneas ele duas faculdades absolutamente distintas Como ima
ginar que a subsuno possa se fazer harmoniosamente sem introduzir um
teiceiro termo, homogneo categoria como in tuio, que sirva de in terme
dirio entre uma e outra"? O esquen1a ir preencher esta funo53
Determinar o funcionamen to do esquema significa, pois, buscar em pri
meiro lugar o elemento presente tanto nos conceitos como nas intuies. Este
elemento o tempo: contido de fato em cada repr esentao sensvel, inclusive
quando essa representao a de um objeto exterior, o tempo igualmente
homogneo para o conjunto das categorias, partilhando com elas uma mesma
universalidade O esquema, apoiando-se na presena da forma temporal entre
51 A 133/B 172
52 Cf A 136/B 175
53 Cf A 138/B 177
62
63
A inveno do transcendental
Compreender
Os axioma s da intuio
"Todas as intuies so gr andezas extensivas"!i!J A percepo pelos sentidos s
possvel pela constr uo progressiva (extensiva) da grandeza do objeto intudo
A intuio de um obje to espacial se faz, assim, pela ex tenso do pon to linha,
depois da linha ampli tude A geometria no seno o conjunto sistemtico dos
difeien tes usos deste principio
As antecipaes da perce po
"Em todos os fenmenos, o real, que un1 objeto da sensao, tem u1na gran
deza intensiva, quer dizer, u1n gr au " Toda sensao dotada de uni grau de
intensidade determinado: certamen te no se pode pr ever esse grau, mas pode-se
antes da percepo antecipar o fato de que ela ter um grau Nas palavras de
Kant: "Todas as sensaes no so, pois, dadas como tais seno a posteriori ,
mas sua propriedade de ter uni grau pode ser conhecida a prior(
1
Axion1as da intuio
3
Analogia s da
Antecipaes da
percepo
experincia
191
50 A 158/B 19
7
64
59 A 162/B 102
U A 166/B 20
7 G1 A 176/B
218 52
A
182/B 224
65
Compreender
eia da permanncia, pois ao menos uma parte daquilo gue muda, pelas razes j
evocadas, no deve mudar Este elemen to permanente no pode ser o prprio
tem po preciso, pois, que um conceito a priori , o de substncia, sirva de
"substrato de toda determinao do tempo"6J Pensar que uma substncia pode
nascer ou morrel' , no fundo, supor a passagem de uma temporalidade a outra, o
que absurdo
"Todas as mudanas se do seguindo a lei da ligao da causa e do efei to
"IM A simples percepo de uma sucesso de fenmenos no per mi te absol
utamen te saber qual precede logicamente o ou tro O conhecirnento da relao
entre dois fe nmenos supe, por sua vez , que sua ordem seja determinada Sem
tal ordem a experincia permanece in1possivel: "no , pois, seno porque
submeternos a se qncia de fen1nenos lei da causalidade, e por conseguin te
toda mudana, que a prpria experincia, quer dizer, o conhecimen to empirico
desses fenmenos
5
possive1G A causalidade a condio a priori do conheci1nento de toda ligao
de fenmenos e, na verdade, j de sua simples distino Graas a ela, o espao es
capa da anarquia da percepo bruta, assim como a substncia permitia escapar
da pulverizao das temporalidades A posio empirista , pois, invertida En
quan to Hume deduzia a causalidade da experincia de uma conjuno repetida
dos dois fenmenos, Kan t afirma gue ela an ter ior prpria experincia destes
Sa bemos por experincia que tipo de r elao causal existe entre dois fenmenos
sabemos antes da experincia que essa relao ser causal
Todas as substncias, na medida em que podem ser percebidas como si
mul tne;is no espao, esto em uma ao recipioca uui versal."ITT A terceira
analo gia na realidade derivada da segunda A experincia da simultaneidade
supe a causalidade reciproca; pieciso que a relao temporal en tr e os dois
fenmenos simultneos seja determinada a priori, e no pode s-lo seno pelo
conceito de urna comunidade dinmica de interao causal
Essas trs analogias constituem jun tas os princpios mais fundamentais
da experincia da natureza, quer dizer -como sempre em Kan t -, da
prpria natu reza Sem esses princpios, nenhuma experincia seria possivel, e a
prpria idia de natureza se reduziria a um conglomerado informe e desordenado
de percepes
63 A 183/B 226
64 A 189/B 232
65 A 189/B 234
A inveno do transcendental
possive f'U!l Mostra simplesmente que um objeto no pode ser considerado pos
sivel seno ao respei tar as condies a priori de toda a experincia O con
teU.do dessa experincia no absolutan1ente detenninado por isso; somen te
posta a condio minitna de sua possivel realidade objetiva
O segundo postulado s faz prolongar o priineiro Ele designa, desta vez ,
aquilo que o conhecimen to de um objeto con ttn necessariamente para que esse
objeto possa ser qualificado de real: "O que coerente com as condies mate
riais da experincia (a sensao) real"m A realidade de um objeto no pode ser
conhecida seno pela percepo sensvel que dela temos Essa observao parece
sensata, mas tem, como a dialtica mostrar, um alcance restritivo essencial, que
retira toda legi timidade posio de existncia de um objeto no-sensivel
O texceiro postulado, o da necessidade, assiin se enuncia; aquilo cuja coe
rncia em relao ao real determinada de acordo com as condies gerais da
ex perincia necessrio" 11 Kant apressa-se a pr ecisar o sentido que atribui
neces sidade No se trata de afirmar a necessidade absolu ta deste ou daquele
objeto, mas somen te de afirmar que a relao entre os fenmenos determinada
a priori segundo o princpio de causalidade Um fenmeno se1npre
hipoteticamente necessrio Ou mais simplesmente: nada acontece sem razo
Esta apresen tao dos postulados ao mesmo te1npo a opor tunidade para
Kan t de deixar claia sua posio e1n relao ao idealismo Convm dedicar a
esta breve passagem um interesse especial, pois trata-se, para Kan t. de se
si tuar em relao histria da filosofia em geral, em torno do problema da
realidade dos obje tos exteriores
6U Cf A 234/B 28
7 G9 A 218/B 265
70 A 218/B 266
71 !bid
67
66
A inveno do transcendental
Compreender
A re1e1o do 1dea/1smo
Fenmenos e noumena
Kant chega ao fim de u ma par te essencial do projeto cri tico a hora dos balanos, e Kan t torna-se por uma vez l rico:
do de uin vasto e turbulen to oceano, sede pr pria da apa rncia, onde rnan tos de
nvoa, onde bancos de gelo em vias de derre ter apresentan1 a imagen1 enganosa
de novos pases e no cessam de acenar com vs esperanas ao navegador que
partiu para a descober ta, levandoo a aventuras a que no pode ren unciar, inas
da experincia externa" 13
real
72 Cf G BE R!\E l r:v, T rais dialogues entre fly!a s et Phi/011016 Kant deforma sensivelmen
te o pensamento de Berkeley, e podemos duvidar da confiabilidade das infonnaes de que
dispe
73 B 275
cada coisa o seu lugar E n tretan to, este pas u1na ilha, encerrado pela propna
natureza en1f ron teiras imutveis o pas da verdade (um nome sedu tor), cerca
68
69
Compreender
A inveno do transcendental
o erro Mas esse erro o fruto da razo, no pode ser totalmen te ignorado,
nem se produzir sem uma certa lgica Este , alis, o sentido da integrao da
dialtica transcendental na lgica transcendental: o espirita humano feito
de tal modo que ordenado mesmo quando se engana A aparncia transcen
dental o nome kantiano desse erro significativo que a razo provoca quando
pr etende poder eximir-se dos limites do conhecimento legitimo e conhecer
uma realidade suprafsica
76 Cf A 253/B 308
70
71
Compreender
A inveno do transcendental
que deve ser feito das faculdades do espri to E nquan to um pr incipio imanen
te se con tm in teiramente nos limites da experincia sensvel, um pri ncpio
transcenden te supe a existnci de uma realidade que, por definio, no
apresentvel sob uma forma sensvel Ainda mais importan te sem duvida: o
transcenden tal depende do bom ou do mau uso do entendimen to; o transcen
den tal procede da razo, quando produz regras que tm toda a aparncia de
princpios objetivos sem, no entan to, possuir sua legitimidade A funo da
dialtica defini tivamen te determinada por essa distino:
A dialtica transcenden tal con tentar-se-, pois, em atualizar a aparncia dos ju
zos transcendentes e ao mesmo tempo impedir que ela nos engane113
79 CRP, B XXV
ao A 329/B 386
81 Ibid
02 A 296/B 352
73
72
Compreender
B5 A 323/B 3 79
B6 Cf A 329/B 385
A inveno do transcendental
samento em geral, que, pelo conceito de Deus, ser o objeto de uma teologia
transcendental
A razo em questo
Essas trs idias so produzidas por um r aciocinio dialtico, natural ao espri
to humano e, na verdade, inevitvel Kant esclar ece ainda -novamente a
ob sesso pelo vocabulrio mais adequado possvel -que esse raciocinio
assume trs formas: a do paralogismo, no caso da psicologia; a da antinomia,
no caso da cosmologia; e a do ideal, no caso da teologia
O obstculo do Eu
penso
O paralogismo transcendental um falso raciocinio que leva a uma iluso ine
vitvel, mas analisvel Essa iluso , aqui, o conceito fundamental da psicolo
gia racional: a alma Que se pode legitimamente dizer da expresso Eu penso?
Podemos inicialmente afirmar que ela expressa a condio fundamental de
todos os conceitos e de todo conhecimento, o que Kant chama de apercepo
transcenden tal; podemos tambm dizer que temos uma in tuio da alma pelo
sentido interno, assim como tivemos uma do corpo pelo sentido externo Mas
entre a funo lgica do sujeito transcendental e o conhecimento sensvel da
quilo que somos como alma e corpo no h lugar para um conhecimento do
Eu penso A psicologia racional uma iluso da cincia, pois pretende dizer
algu ma coisa sobre a alma como conceito racional, embora na realidade a
simples posio do Eu penso seja seu nico texto, seu nico contedo
verdadeiro"
A psicologia racional, ao pr a alma como incondicionado da sntese de
to dos os fenmenos do sentido interno, cr poder atribuir-lhe um certo
nmero de qualidades: a alma uma substncia imaterial, simples e,
portanto, incor-
74
Bl Cf A 343/B 401
75
A inveno do transcendental
Compreender
76
77
Compreender
A inveno do transcendental
79
T
.
Compreender
A inveno do transcendental
Assim, liberdade e nat ureza, cada qual en1 seu sentido completo, estariam jun
tas e sem nenhum confli to nas mesmas aes conforme as aproximamos de sua
92 A 542/B 569
93 Cf A 557/B 585: 'mas porque o carter inteligvel traz justainen te esses fenn1enos e
esse carter emprico nas ci rcunstncias presentes? A est uma questo que vai n1ui to alin
do poder de nossa razo de dar-lhe resposta
94 A 570/B 598
80
81
Compreender
O que uma
metodologia?
A inveno do transcendental
97 A 644/B 6 72
98 A 65 7/B 686
99 A 665/B 693
100 A 707/B 736
83
82
Capitulo Ili
o fato do dever
Factum rationi.
A moral como reflexo
sobre a conscincia da obrigao
A hiptese que nos guiar ao longo desta travessia pela filosofia moral de
Kan t pode ser assim formulada: a moral kan tiana uma reflexo sobre a
conscincia da lei, do mesmo modo que sua filosofia terica uma reflexo
sobre a cincia Nos dois casos, o pon to de par tida no questionado, cincia
e conscincia moral so considerados um fato eviden te, que ser preciso ela
borar e no legitimar
85
Compreender
O lato do dever
A evidncia da moral
Esse carter fundamen tal do procedimen to kan tiano apar ece desde o texto
de juven tude, de ttulo sugestivo, consagrado Investigao sobre a evidncia
dos princ pios da teologia natural e da moral (1763)2 Kan t mostra aqui que a
filosofia, con trariamen te matemtica, deve parti r daquilo que parece evi
den te, para analis-lo ou even t ualmen te corrigi-lo. O fim do texto bem
claro a esse respei to: a conscincia da obrigao um dado indubi tvel do
espri to humano, e as filosofias do sentimen to moral tm razo de insisti r
sobre sua dime nso ao mesmo tempo primitiva e universal Uma n1etafisica
dos cos tumes apenas poder aplicar a um tal sentime n to o poder do racio
nal, a fim de distinguir o n cleo a priori , o nico capaz de resisti r s ten taes
do egoismo e do in teresse
O primeiro grande texto da moral kan tiana -a Fundamentao da
meta fsica dos costumes -retoma esse procedimento Kan t reconhece, com
efeito, que uma verdadeira fundao da metafisica dos costumes no pode ser
seno o fato de uma Critica da razdo prtica Mas, como no campo 1noral o
conheci mento comum j se encontra em grande parte na verdade, basta, ao
menos num primeiro tempo, formular e estruturar a evidncia moral sempre
presen-
O fato da
razo
1 Cf aqui a clebre concluso da Critica da razo prtica (CRPr) AK V 161; P II, p 801802: "Duas coisas enche1n o corao de uma admirao e de uma venerao sem pre novas e
sempre crescentes, na medida em que a reflexo nisso se detenha e refli ta: o cu estrelado
sobre mim e a lei tnoral em mim Essas duas coisas, no pr eciso que eu as procure ou que faa
delas con jecturas alm do meu horizon te, como se estivesse1n envoltas e111 trevas ou
situadas em uma regio transcendente: eu as vejo diante de mim e as associo imediatamen te
conscincia de n1inba existncia
Para rnais inforn1aes. remetemos intioduo de Jean FERRARI na edio de La P!ia
de (P 1. p 201-213)
86
87
Compreender
88
O fato do dever
Dito de outro modo: a nica matria possvel para uma obrigao moral
de natureza universal a prpria forma da universalidade, quer dizer, a forma
da legislao Kan t o diz de maneira notadamen te resumida:
uma lei pr tica que eu reconhea como tal deve ser prpria para uma legislao
universaF
89
Compreender
O fato do
dever
Liberdade e dever
O dever um fato Dominado pela presena inquietante da lei, o kan tismo
prtico no parece, de incio, oferecer um quadro muito favorvel a uma teoria
da liberd ade Todavia, como o prprio Kant afirma constantemen te, esse
conB lbid . AK V 31; P li, p 645
9 Cf CRP1: AK V 3; P II, p 609: ..Pois se, como razo prtica. ela realmen te prtica.
ela prova sua realidade e a dos seus conceitos pelo fato e nenhuma astcia pode contestar sua
possibilidade de ser prtica
10 lbid , AK V 31; P 11. p 644
11 Cf ibid , AK V 55; P H. p 674: "A realidade objetiva de uma vontade pura, ou. o que a
mesma colsa. d:? uma razo pura prtica, dada a priori na lei mora! de certo modo por um fato
90
ceita de liberdade o pilar de toda sua moral Como entender essa afirmao
e que sentido dar a essa palavra to aviltada?
.
A abordagem kantiana do problema da liberdade , ao mesmo tempo,
tradi
cional e original: tradicional quando se trata de analisar sua relao com o
deter minismo causal que rege o mundo fisico; original quando afirmada
como princi pio ontolgico do dever moral Kant aborda o primeiro desses
aspectos desde a critica da razo pura , e em seguida na Pundan1entao da
n1etafisica dos costurnes
Na histria da filosofia, a liberdade tem sido definida muito diversamen te
Podemos, todavia, guardar como caracterizao mnima sua descrio como o
controle, pelo homem que age, do desenvolvimen to de sua ao Isso significa
que se pode atribuir ao agente a responsabilidade por seu ato e que uma outr a
escolha teria sido possvel A questo tradicional consiste em se perguntar se
a percepo que a cincia possui da realidade questiona ou no a possibilidade
de tal poder Chama-se determinismo a afirmao segundo a qual as leis da
natureza regem fenmenos de acordo com uma relao de causa-efeito fixa e
imutvel Que resta da liberdade do homem se cada uma de suas aes pode,
na verdade, ser inteiramente previsivel? Eis o problema que, depois de muitos
outros, Kant ir enfrentar
Essa dificuldade aparece na Fundamentao , no inicio da terceira seo
A liberdade ai definida como a capacidade de poder agir independentemente
das causas exteriores que a determinam Toda a moral esboada nas sees
prece dentes repousa, finalmente, no conceito de liberdade: agir por dever
supe, com efeito, que o ser razovel capaz de ordenar sua ao em funo
de uma repre sentao da lei, e no somente de seguir mecanicamen te a
causalidade natural Kant assim obrigado, se quiser preservar seu sistema
moral, a demonstrar que a liberdade passive! O problema do determinismo
no , pois, colocado aqui por si mesmo, mas sim porque pode tornar a moral
sem objeto
Essa dificuldade muitas vezes resolvida pela simples rejeio do deter
minismo causal E m Kant no pode ser este o caso, pois a Critica da razo
pura afirmara que os fenmenos sensveis obedeciam a leis rigorosamen te
univer sais e necessrias A cincia fsica , alis, a descrio dessas leis, que
no so frem excees ou incertezas Do ponto de vista das sensaes e da
faculdade de percepo, o homem inegavelmente submetido a essa
necessidade, como um fenmeno entre os fenmenos. Mas como ser
razovel o homem tem o poder de no depender mais inteiramente do
sensvel, de agir espontanea mente e de maneira independente, de organizar
ele mesmo suas representa es segundo as normas que d a si mesmo O
quadro da soluo kantiana
91
Compreender
O falo do dever
lei moral no fosse primeiro claramen te concebida e1n nossa razo, jamais nos
acharamos autorizados a admitir uma coisa tal corno a liberdade (embora essa
idia no implique con tradio) Por outro lado, se no houvesse liberdade, a lei
moral no poderia absolutarne11te ser encontrada dentro de ns12
na
Essa analitica [ ] mostra, ao mesmo tempo, que esse fato est inseparavelmente
ligado, e mesmo idntico, conscincia da liberdade da vontade 14
A funo da moral
Havamos partido deste ponto: a moral uma evidncia A filosofia critica
contentar-se- em estabelecer a realidade desse fato, por um lado para expli12
93
92
Compreender
citar suas modalidades, por outro para consolid ar sua infl uncia na von tade
humana Esses dois aspectos so, ademais, indissociveis no esprito de Kan t:
mostrar por que a conscincia moral um dado inexplicvel con tribui para
dispensar-lhe um efeito rnximo no agir h umano Essa vocao concreta da
moral kan tiana, sua preocu pao em i nfluenciar realn1ente o compor tamen to
do homem, aparece desde a Fundamentao da metafsica dos costumes
Kan t reflete, com efeito, desde a primeira seo, com ceI ta admirao
so bre a faculdade de julgar prtica da humanidade A funo da
humanidade deve, pois, ser limitada nesse campo: no se tra ta de in
troduzir considera es estranhas ao conhecimen to moral comum, mas
somen te de expor mais claramen te e mais completamen te os principias e o
sistema. "A inocncia uma coisa bela; mas pena que saiba se preservar
to pouco e que se dei xe to facilmente seduzir'"L a filosofia moral deve
simplesmen te proteger a conscincia comum, dar-lhe uma solidez e uma
consistncia suplementar Ela deve, sobretudo, ir ao encontro da dialtica
natural do esprito humano, que bem gostar ia de acomodar a justa
conscincia que tem do dever satisfao de suas tendncias e seus desejos
A filosofia deve, finalmen te, produzir uma critica completa da razo prtica
para fortalecer definitivamente os elemen tos
morais j presen tes no conhecimen to popular
, pois, ainda uma vez e muito logicamente na Crtica da razo prtica
que essa preocupao toma sua forma conceitual mais satisfatria, pois a
clareza da elaborao do fato inicial da conscincia moral est diretamen te
ligada sua penetrao no corao do homem
Se no pensamen to kantiano a afirmao do formalismo moral e de sua
justificao absolu tamente determinan te, um dos elementos desse forma
lismo - a pureza da lei - parece ser para Kan t o objeto de uma
especial preocupao e de uma ateno reiterada, como se o que impor
tasse para a moral no fosse tanto a realidade da moralidade mas a afirmao
mais pura e, por conseguin te, a mais dura do fato da obrigao, livre de toda
empiria, mas tambm de toda dimenso an tropolgica, sentimen tal e at
mesmo -como mostraremos -de todo aspecto terico
A pureza da lei no seria, pois, simplesmen te uma das conseqncias da
elaborao kantiana do dever moral -na resistncia sensibilidade ou na es
tri ta posio da distino terica/prtica -mas, na raiz do conjunto de proce
dimentos argumentativos da moral kantiana, a condio de existncia da mo15 Fundamentao da metafisica dos costurnes ( F!v!C), AK IV, 405; P 11. p 265
94
O fato do
dever
95
Compreender
O fato do dever
primeira cri tica, pois nenhum conhecimen to terico dessa liberdade aqui
afirmado'; mas pensar a liberdade no conhec-la, e uma filosofia conse
qente pode faz-lo porq ue deve faz-lo
Os imperativos:
o homem e seu
dever
96
A anlise da formulao kan tiana do dever moral exige uma leitura conjunta
da Fundamentao e da Critica da razo prtica O primeiro texto, mais
simples e mais concreto, tenta enunciar sob uma forma acessvel o contedo da
lei moral de modo a permitir sua eventual aplicao A segunda Crtica
pouco se detm nesse ponto, preferindo insistir, como ns mesmos o fizemos nas
pginas precedentes, no carter originrio da conscincia moral No h uma
ruptura entre as duas obras, mas uma inflexo sensivel na apresentaa dos
conceitos -sem dvida, a Critica est mais prxima que a F undarnentaao da
As palavras do dever
Per corramos rapidamen te o texto de 1785 O segundo tempo da segunda
seo abre-se corn uma distino kan tiana caracterstica de seu pensamen to
Todo 0 ser age, para Kan t, segundo leis Os fenmenos naturais obedecem
s leis fsicas Os seres razoveis agem, por sua vez, segundo a represen
tao que fazem das leis s quais desejam se submeter Aqui, a von tade a
capa cidade de escolher os principias da ao, e deve ser identificada
prpria razo como razo prtica No homem, todavia, essa iden tificao
da von tade razo torna-se problemtica pela influncia que essa mesma
von tade sofre por parte das condies subjetivas da sensibilidade Disso
decorre um con flito -uma tenso -que transforma a lei em uma
obrigao, pars o homem no capaz de conformar-se a ela de modo
algum, ele que con tinua a ser racional e sensvel
97
Compreender
O pnncpio da
universalidade
A par tir dessa definio da obrigao, Kant pode enunciar a do imperativo: "a
represen tao de um princpio objetivo, na medida em que esse principio
exigvel para uma vontade, chama-se um comando (da razo), e a frmula do
comando charna-se um imperativo"25 O imperativo enuncia, pois, o dever para
um ser que no o respei ta necessariamen te Ele no diz Iespei to, assim, a um
ser perfeitamente bom, em quem o querer est de imediato de acordo com a
lei moral. Por conseguin te, no h imperativos seno para os homens, sendo o
ser divino nat uralmente, e por definio, moral
preciso, entretanto, proceder s distines indispensveis no interior do
conjunto dos imperativos Alguns, os imperativos hipotticos, afirmam a neces
sidade prtica de aplicar certos meios para chegar a um fim visado. Um ou tro,
o imperativo categrico, representa a necessidade de uma ao em si mesma,
sem que essa necessidade derive de um objetivo qualquer Os primeiros
afirmam que uma ao boa em vista de um fim possvel (o imperativo ,
ento, qualificado de problematicamente prtico) ou real (neste caso chamado
de necessariamen te prtico); o segundo declara a ao necessria em si
mesma, e enuncia assim um princpio apodicticamen te prtico (quer dizer,
absolutamente necessrio)
Kan t determina, em seguida, o contedo desses diferentes imper ativos
Aqueles que tm por objeto designar o melhor meio de se chegar a um fim pos
sivel so irr-.perativos de habilidade Ele d o exen1plo seguin te: se u1n r nclicu
quer rapidamen te curar seu pacien te, ento deve proceder desta ou daquela
maneira. Encontramos, por m, um fim que os homens perseguem sempre: a
felicidade Fala-se, ento, de imperativos da prudncia para qualificar o enun
ciado dos mtodos mais eficazes para sua conquista. Finalmen te, o imperativo
categrico no diz respei to ao contedo efetivo da ao e quilo que even tual
mente poderia disso resultar, mas sua forma somente, e in teno que pre
side ao Fala-se en to de moralidade Enquan to os imperativos hipotticos
desguam em regras de habilidade e em conselhos de prudncia, somen te o
imperativo categrico supe uma necessidade sem condio, e formula-se por
um comando S ele, em definitivo, tem uma dimenso moral
A questo saber como esses imperativos so possveis As regras da ha
bilidade, os conselhos de prudncia no represen tam problemas especificas
Nos dois casos, a proposio que contm o imperativo analtica: a anlise da
O lato do dever
finalidade permite determinar os meios para atingi-los, sem que seja necessrio
sair do conceito deste fim claro que as coisas so mais complexas para os
conselhos de prudncia, pois o fim -a felicidade - uma idia to indetermi
nada que difcil entender como se poderia dai deduzir uma descrio to pouco
precisa dos meios para alcan-la A tal ponto que "o problema que consiste em
determinar de modo seguro e geral qual a ao a favorecer a felicidade de um
ser razovel um problema absolutamente insolvel"'" Estabelecer condies
de possibilidade do imperativo categrico apresenta dificuldades bem mais im
portan tes Com efeito, no se pode deduzir o dever da finalidade da ao, ou de
suas conseqncias, pois o ato no seria mais, ento, realizado por dever, mas
em vista de um r esultado O imperativo categrico deve, pois, ser considerado
como uma proposio sinttica que une a vontade e a lei moral
Curiosamente, Kan t abandona subitamen te a busca dos fundamentos
do imper ativo categrico, como se bastasse ter notado suas especificidades
Como uma soluo satisfatria do problema implica uma cr itica da razo pr
tica -esta esboada na terceira seo -, I(an t con tenta-se em insistir
no fato de que o imperativo categrico uma lei prtica, que se impe
indepen den temente de toda finalidade particular Isto posto, pode ser til
dar sua fr mula, na falta de melhor explicao
A primeira formulao do impera tivo categrico baseia-se em sua iden ti
dade de forma e contedo Um imperativo hipottico recebe seu con tedo do
fim buscado. O imper ativo categrico, por sua vez, comand a absolutamente:
sua forma a universalidade do dever; sua matria a necessidade de cumprir
o dever pelo dever Disso decorre que o imperativo categrico in teiramente
definido pela necessria conformidade do principio de minha ao -sua m
xima -com a forma da lei em geral, a universalidade. Pode-se en to dizer
que o imperativo categrico afirma: "age unicamen te segundo a mxirna que
faz
27
que possas querer, ao mesmo tempo, que ela se tor ne u1na lei universal" A lei
mor al to universal quan to uma lei da nat ur eza, que funciona aqui corno
um modelo Devo agir de tal modo que a universalizao de minha mxima
seja para mim desejvel Isso no significa interrogar-se sobre as possveis
conse quncias da minha ao (o que acon teceria se todo mundo fizesse
como eu?), mas aplicar-lhe um teste, permitindo identificar sua moralidade em
virt ude da exigncia, para o dever, de ser seguido como uma lei
98
99
Compreender
O fato do dever
Em vez de esclarecer essa fr mula pelo estudo dos casos par ticulares,
Kant adia o problema da aplicao do imperativo categrico -no caso espe
cfico da razo pura prtica -o problema da aplicao do imperativo categ
rico Ele prefere dirigir sua ateno para o conceito que ir unificar a idia de
lei e a de liberdade: a autonomia
Autonomia e autopos1o
A Fundamentao no prope uma teoria completa da autonomia O
conceito in tervm apenas na busca de urna nova form ulao do imperativo
categrico capaz de fornecer uma determinao completa
rationis a 1narca dessa sujeio moral, tan to mais singular quanto constit u
tiva de verdadeira au tonomia Nesse sentido, o fato da conscincia da lei um
dom anterior ao exercicio da razo, o modo prtico do ser-afetado da razo30
Compreender
102
O fato do dever
Compreender
O fato do
dever
O bem e a mai
Por concei to da razo prtica en tendo a representao de um objeto como um
104
105
Compreender
A moral do ato
O itinerrio da Critica da razo prtica limpido Aps ter definido a lei moral
e postulado a conscincia dessa mesma lei como fato da razo, aps ter deter
minado quais poderiam ser os objetos da von tade, Kant ir ater-se aplicao
concreta da lei em atos efetivos
A t1polog1a
Conforme o carter ainda fundamental da segunda Critica , ele no ir aqui
analisar virtudes par ticulares, que seriam exemplos de manifestaes emp
ricas do agir moral Ele con ten ta-se -isso o essencial -em elaborar um
mtodo universal que permite determinar a priori a moralidade ou a imora
lidade de um ato -a tipologia; em seguida, em pensar a repercusso feno
menal da lei no espir ita humano: o respei to Cumprido este l timo trajeto,
a moral ter realizado aquilo pelo que se havia empreendido seu estudo: a
posio de um ser racional como ser sob a lei, e a descrio das modalidades
dessa obrigao
O problema da tipologia o seguinte: como fazer a ligao entre a lei
moral, universal e supra-sensvel e a ao moral particular, que procede da
sensibilidade, mas da qual no podemos a priori afirmar a existncia? A
Crtica da razo pura levantava uma dificuldade semelhante, buscando um
meio de aplicar conceitos puros do entendimento aos dados da sensibilidade
O esque matismo permitia resolver esse problema de modo relativamente
fcil, pois dispomos realmente de intuies empricas, que se subsumem aos
conceitos atravs da faculdade de julgar terica e da imaginao. Na
prtica, muito diferen te Na verdade, no apenas no temos nenhum
exemplo de ato moral comprovado, ao qual se aplicaria facilmente a lei
moral, mas tampouco existe elemento homogneo razo e sensibilidade,
ao passo que havia um -o tempo -entre a sensibilidade e o entendimento
A distncia entre a liberdade e a natureza, a lei e a ao, par ece
impossvel de ser preenchida:
106
O fato do dever
A faculdade de julgat sob as leis da razo pura prtica parece, pois, submetida a
dificuldades particulares, pr ovenien tes do fato de que uma lei da liberdade
deve se aplicar a aes, como evento que ocorre no mundo sensvel e, portanto,
nessa qualidade, pe1 tencente natureza:i 7
critica da razo prtica, mas sim a uma doutrina da virtude Podemos assim
tomar as leis enunciadas pelo en tendimen to -as leis da natureza
como
um modelo de universalidade para as mximas da ao moral:
A regl'a da faculdade de julgar sob leis da razo pura prtica esta: pergunta a ti
mesmo, considerando a ao que tens em vista como procedente de uma lei da
natureza em que tu mesmo serias par te, se ainda poderias vla como possvel
para tua vontade:rn
107
O fato do dever
Compreender
108
Compreende
r
Respeito e
humanidade
O exame da mxima da ao pela tipologia no fornece em si mesmo nenhu
ma razo de agir moralmente Kant, muito afastado da tica socrtica que
supe ser bom o agir desde que se conhea o bem, deve, pois, logicamente,
propor um outro motivo para a razo prtica O capitulo seguint.e da segunda
Crtica ir buscar tal motivo Sua identificao no garanttra, evidentemen te,
nenhuma ao moral efetiva; mas permi tir compreender o que se passa com
uma vontade quando esta determinada somente pela lei moral, excluindo
qualquer outra razo de agir
Respei to o nome desse motivo Kan t assim o define:
O respeito <la lei tHural , pois, u t11 se11li111en tu pt udu:ddo pot un1a causa in te
42
109
O fato do
dever
43 Cf ibid . AK V 16: P 11. p 100- 101: 'No se destina a julgai as aes ou mesmo a fun dar a
prpr ia lei 1noral obje tiva. en1 vista de dela fazer uma 1n-.xima em si'
44 Cf ibid , AK V, 79; P 11. p 704 por conseguinte, essa humilhaao no se d seno re!ativan1en
te pureza da lei"
45 Cf FlvIC. AK IV 436; P II, p 303: "Pois ben1. a legislao que determina todo o valor deve ter
precisarnen te para isso u ina dignidade. quer dizer. um valor incondicionado, inconipa rve!, que
traduz a palavra respeito, .nica que fornece a expresso conveniente da estima que un1 ser
razovel deve ter por esse valor"
110
50 [bid
51 lbid
111
Compreender
outro (o homem em geral) para julgar suas aes"' E m sua relao com a
Idia da lei moral, que sempre ao mesmo tempo a Idia de sua prpria
santidade, o homem manifesta uma disposio personalidade, uma
compreenso dessa "idia da humanidade considerada de modo
A virtude. ou a moral em ao
112
O fato do
dever
56
113
Compreender
a seguin te: o homem concebe a lei moral, ela faz dele um ser digno e para
ele um dever de elevar-se cada vez mais no sen tido do concei to de humanida
de que funda sua personalidade assim "para o homem um dever trabalhar
para sair da rusticidade de sua natureza, da animalidade, para elevar-se at a
humanidade"" Di to de outro modo:
A razo moralmente prtica ordena-lhe isso, de modo absoluto, e faz deste firn
um dever, a fim de que ele seja digno da humanidade que o ha bi ta5!l
114
O fato do dever
Age segundo uma mxima cuja lei univer sal possa ser para todos do que pro
por-se (i.nsm
115
Compreender
nossa prpria existncia !1 Sentimen to nico em seu gnero, diz I<:ant, ele
literalmen te arrancado pela lei n1oral, que 1ne faz eslii nar u [neu ser e u .ser do
ou tro, e que funda -o termo vai bem mais longe que o simples acompanha
mento propedutico -certas aes relativas ao dever para consigo mesmo O
efeito , aqui, o efeito sentimen tal da lei, no sobre o livre-arbtrio em geral,
mas em nossa relao conosco mesmos Nos dois casos, l{an t, sem deixar de
lado uma grande prudncia na abordagem elas qualidades morais, rein tegra ao
funcionamen to da moral dados no-racionais que fazem eco receptividade
originria da r azo prtica A autonomia no pr ejudicada, mas, an tes, refor
ada em sua efetividade
63 Cf bid ,AK VI. 400; P III, p 682: "tvlas para o bem e o mal (moral) no ternos um
senso especial ;:i[m daquele que ten1os para a verdade -embora se utilize n1ui tas vezes essa
expres so -, mas temos uma recepcf11idade do livre-arb trio que lhe pennite ser tnovido
por eles graas razo pura pttica (e sua lei), e a isso que chan1a1nos sentimen to moral..
64 Cf foid . AK VI, 402-403: P III. p 685-686
116
O fato do
dever
117
Compreender
fiG _C.f ibid . AK V!, 468; P Ili, p 766: "Entretanto. assirn como se exige uma passagem
d_a n1etaf1s1ca da nat ureza para a fsica, que ten1 suas regiaS particulares. assim se exige, a
justo ti t ulo, algo de anlogo da n1etafisica dos cost un1es. ou seja. esquematizar. de certo
inodo os
pri ncpios puros do dever pela aplicao destes aos casos da experincia, e apresent los pr.on
tos para o uso moial prtico'
e'.
59
ibid . AK VI, 45 7; p III. p 752: ..pois esse sentimen to , pois, UITI impulso implan
tado em nos pela natureza, de fazer aquilo cuja execuo a represen tao do dever. por si s,
no alcanaria
1 18
O fato do dever
cao da metafisica dos costumes exclua por principio toda funo positiva
para esse tipo de sen timento. O que de modo eviden te estava excludo da
fundao da moralidade pode ser reconhecido agora como um suplemen to
til dessa mesma moralidade
O formalismo moral kantiano no atenuado por essa abordagem re
lativizada da receptividade esttica Ele antes aprofundado em um de seus
traos, a receptividade racional, que o fato da razo designa A exigncia da
aplicao da lei o pano de fundo do que consti tui, ao mesmo tempo, o co
rao da moral kantiana e o cmao do homem: a razo afetada Ela provoca
no uma reviravolta na construo da metafsica dos costumes, rnas urn de
senvolvimento esttico do sen timen to originrio, consti tutivo de um quase
esquematismo moral Encon trar emos um procedimento comparvel em um
campo completamente diferente, o da religio Ainda ai, nenhuma negao
da prudncia critica e da rejeio do dogmatismo metafisico Todavia, a efeti
vidade da lei moral exige que certos conceitos estranhos aos fundamentos da
moral encontrem no esprito humano um espao de receptividade, condio
do pr prio Bem Supremo Esse percurso da Doutrina da virtude sem dvida
parcial, e deixamos de lado muitas anlises particulares nas quais se expressa
a sutileza psicolgica do espirita kantiano O essencial nos parece, ainda
assim, residir nessa profunda preocupao com a eficcia, que tanto mais
original quanto mais se enraiza em uma preocupao aparen temen te inversa,
a de uma purificao e de uma racionalizao extrema dos conceitos morais
1
O fato do dever
Compreender
A sede de Deus
Gostaramos, todavia, de insistir aqui em duas proposie,s especificamente
kan tianas, que do ao seu discurso sobre Deus uma tonalidade original A pri
meira afirma que a posio de Deus o efeito de uma tendncia natural do
esprito humano, a mesma que j chamamos no inicio deste livro de desejo das
Idias. A segunda, que justifica a insero desta seo em um capitulo consa
grado ao dever moral, define a religio como o conhecimen to de nossos deve
res como mandamen tos divinos Nos dois casos, a religio uma necessidade
vital; tambm nos dois casos, preciso distinguir, pelo exerccio da cri tica,
uma forma legitima de crena em Deus de uma forma ao mesmo tempo falsa
e perigosa de f Seguiremos, pois, os modos dessa diviso crtica, comeando
por lembrar em que o homem est, em principio, espera de Deus
A postura kan tiana em r elao a Deus s se torna compreensvel se a
r einscrevemos no con texto global de um homem kan tiano marcado por um
desejo de infini to Esse desejo est na origem, como vimos desde a in trodu
o, da prpria necessidade do trabalho crtico; encon tramos uma segunda
forma na passividade laten te em relao lei que faz a especificidade da
au tonomia kan tiana; ele est tambm no principio da atitude par ticular do
homem para com a idia de Deus Esta, enfim, no tem sentido seno na
perspectiva da esperana, aberta de maneira pragmtica na tercei ra das fa
mosas questes da filosofia
Por que e em que condies fazer a pergun ta "O que me permi tido
espe
rar?'' O concei to-chave da passagem entre a segunda e a terceira das questes
da filosofia , talvez, precisamente essa especificidade humana, cuja funo
na moral kan tiana acabamos de descr ever, quer dizer, o fato, para o homem,
de estar sob a lei moral. nesses termos que Kan t determina o objetivo final
da prpria criao: no um ser santo, mas um ser defeituoso,
considerada a lei que, justamen te porque ele no consegue ser-lhe
adequado, se per gunta o que poder esperar A partir dessa insuficincia
do homem, o Bem Supre mo -voltaremos suposta evidncia desse
principio - como unidade da felicidade e da moralidade est excludo
como objeto de experincia na terra e remetido condio de um progresso
indefinido da moralidade e atividade de um Deus que proporciona uma
felicidade perfeita perfeio assim alcan ada Sem entrar nos detalhes
dessa prova moral da existncia de Deus -o que faremos mais fren
te -, preciso notar que Kant, depois de t-la expos to, observa que
"ela j se encon trava na faculdade racional do homem em sua
1 20
supra-sensivel fora de ns
73 Cf Teoria e prtica, AK VI I I. 2 78; P !li, p 256 -Renunciar ao seu fim nat ural. a felicida
de, pois isto. co1no todo ser razovel finito. em geral. ele no pode'
711 A religio nos limites da sin1ples razo, AK VI, 5; P II. p
17 15 Cf ibid . AK VI. 6: P III. p 18
121
Compreender
A impossibilidade de uma
prova terica da existncia de Deus
O problema da legitimidade de uma prova da existncia de Deus posto desde
as obras de juventude A partir de 1763, em um texto justamen te in tit ulado O
nico fundamento passivei de uma demonstrao da existncia de Deus, Kan t
des taca o carter fundamen tal da prova ontolgica em relao s outras
provas e indica em que o concei to de existncia no pode ser considerado um
predi cado. Mes!Tlo se Kan t mantm, aqui, a possibilidade de uma
demonstrao terica da existncia de Deus, ele j formula os principais
argumentos que a Crtica da razo pura utilizar para denunciar sua ilegi
timidade"
Como vimos ao comen tar o inicio da Dialtica transcendental , a idia de
Deus necessria e nat uralmen te postulada pela razo A fim de avaliar o
eventual uso legi timo, Kant deve indicar o que no permitido fazer, sob o
risco de transgredir os limites do conhecimento que a Analitica definitivamen
te estabeleceu
Deus afirmado pela razo Essa mesma razo no pode se con ten tar
com sua prpria tendncia ao incondicionado, e busca fundamentar o resulta
do desta por uma argumen tao racional e que possa ser recebida por todos
Trs possibilidades se abrem: ou ela parte da constituio do mundo para,
elevando-se, chegar ao que sua indispensvel condio; ou ela se atm
exis tncia em geral para, em um movimento anlogo, postular Deus em seu
prin cipio; ou, finalmente, ela tenta deduzir a necessidade da existncia de
Deus de
7 Para uma apresentao detalhada desse texto. rernetemos introduo fei ta por Syl
vaio
ZAC
O fato do
dever
seu prprio concei to Essas trs provas, que Kan t ir sucessivamen te r ejeitar,
tm um nome preciso em filosofia: a primeir a chamada fsico-teolgica, a
segunda cosmolgica, a terceira ontolgica
Contrariamente ao procedimen to comum, I(ant ir enfrentar inicial1nente
a prova ontolgica Segundo esta, a prpria idia de Deus inclui a idia de uma
existncia absolutamente necessria e incondicionada Dito de outro modo, e
Descartes no afirma nada diferente, conceber Deus sem a existncia uma
con tradio O problema aqui que se confunde a necessidade do juzo e a
ne cessidade da cosa Julgar que um tringulo que no tenha tr s lados uma
con tradio , sem dvida, legtimo, mas isso no implica que um tringulo
existan Todavia, a necessidade lgica de um elo entre a afirmao do conceito
de Deus e sua existncia to podeiosa e convincente que uma simples
observao no suficien te para abat-la Ser preciso, pois, entrar nos
detalhes da prova
Kan t reformula primeiro, de modo mais preciso, o que acaba de avanar
rapidamente:
Se en1 um juzo idn tico suprno o predicado e conservo o sujeito, disto resul ta
tradio,
pois no h mais nada com que possa haver contradio7
Difcil escapar a tal objeo, a menos que se mostr e que o conceito de
Deus, e s ele, justamente no pode ser suprimido A necessidade em jogo
no seria pois somente a do juizo que estabelece um lao entre Deus e a exis
tncia, mas a da prpria coisa, independen temen te do juzo que dela se faa
Descartes, na quinta das M editaes metafisica s , apia-se, com efeito, nessa
excepcionalidade do conceito de Deus, em que o prprio enunciado demons
tra, na realidade, a existncia Nas palavras de Descartes: "No est em minha
liberdade conceber um Deus sem existncia (quer dizer, um ser soberana
men te perfeito sem uma soberana perfeio), como sou livr e para imaginar
um cavalo sem asas ou com asas"7!l
Kant elabora uma formidvel rplica a essa resposta cartesiana Ela exige,
com efei to, que o predicado da existncia seja analiticamente compreendido
JD lbid
79 R DESCAR r Es, !viditations mtaphysiques. V Ed Adam-Tannery, t IX. p 53
122
123
r!
Compreender
O fato do
dever
A prova cosmolgica pode ser assim resumida: "se alguma coisa existe,
deve existi r tambm um ser absolutamente necessrio Ora, eu, pelo menos,
existo; portan to, um ser absolutamen te necessrio existe"
O pon to de par
partir essa tese no seno um artifcio para utilizar de outro modo, talvez
mais hbil, o argumento on tolgico H aqui, ao mesmo tempo, erro e
engano; mais ainda: uma pretenso extraordinria, que faz de uma hiptese
eventu almente til para unificar a experincia do mundo - Deus -uma
realidade teoricamente demonstrvel' Bem podemos admitir a idia de
Deus como principio heurstico, til para a unificao do conhecimento
fenomenal: dizer mais seria uma fraude Basta lembrar o que dissemos das
idias reguladoras em nosso comentrio da Dialtica
A ter ceira e ltima prova tem destino idn tico ao da segunda Mas, ao con
trrio desta, Kant considera com mui to respeito o argumento fsico-teolgico,
que deduz a existncia de Deus da organizao do mundo , diz ele "o mais
an tigo, o mais claro e o mais bem apropriado para a razo humana cornum"11il
Dito isto, essa prova repousa em definitivo igualmen te na prova on tolgica
Ela permite no mximo estabelecer que o ser necessrio um bom arquiteto,
mas no pode ir alm sem fazer um salto ilegtimo na prova cosmolgica, no
sendo esta, por sua vez, seno uma prova on tolgica disfarada
Kan t, finalmente, extrai as conseqncias ltimas dessa tripla rejeio:
124
125
Compreender
O fato do
dever
Deus postulado
Havamos anunciado no inicio desta seo: a afirmao efetiva de Deus sub
metida em Kant da lei moral, por intermdio de um concei to original do Bem
Supremo. Este produto natural da dialtica do espiri ta humano, tenden te
necessaria1nente ao incondicionado Essa tendncia a causa, no campo teri
co, da iluso transcenden tal; ela exige, no campo prtico, a realizao do Bem
Supremo, quer dizer, a efetividade da unidade da lei moral e da felicidade Essa
dialtica prtica, apesar de sua complexidade, pode no fundo ser reduzida a
uma frmula bastan te simples: o Bem Supremo realiza a sintese daquilo que
ns devemos fazer e do que desejamos realizar
Essa sntese, todavia, no justa para com seus componen tes A vir tude
como respei to efetivo da lei moral sempre vem primeiro; em Kant, ela o Bem
Supremo, aquilo que devemos absolutamen te perseguir O Bem realizado, ou
Bem Supremo, no , no fundo, seno o Bem Supremo acompanhado de uma
satisfao sensvel proporcionada sua realizao, a felicidade Se devemos ,
pois, postular esse concei to como o objeto final da von tade, no pelo fato do
carter efetivamen te universal do desejo de ser feliz, mas em razo do fato da
obrigao moral, que nos impele a ser virt uosos
Resta estabelecer a modalidade da sntese consti tutiva do Bem Supremo
Duas solues, no mais, podem aqui ser consideradas: ou a busca da virtude
significa, no fundo"", buscar a felicidade, ou buscar a virtude produz mecani
camen te a felicidade Kant ilustra essas duas opes com duas referncias
histria da filosofia:
O epicurista dizia: ter conscincia de sua mxima conduzindo felicidade, eis a
a virt ude; o estico: ter conscincia de sua vir tude, eis a felicidade1
Dito de maneira mais simples: a vir tude causa de uma felicidade real
que se d em outra parte, alm do mundo sensvel e graas ao de Deus A
seqncia imediata do texto, no qual Kant retorna even tual con tribuio dos
esticos e epicuristas, nada altera ao principio de sua soluo de autonomia
indispensvel ir alm da experincia sensivel para que o conceito de Bem
Supremo seja possivel, o que ele deve ser, pois necessrio
A suspeita de uma traio dos limites definida pela primeir a Critica leva
da a srio por Kant De que modo a razo se permite postular algo cuja expe
rincia jamais poderemos fazer? A resposta kantiana extr emamente fir me:
o interesse prtico tem a supremacia em relao razo terica, e esta deve
ao Ibid . AK
126
O fato do dever
Compreender
Deus post ulado faz oscilar a filosofia prtica de Kan t da moral para a
reli gio, definida como reconhecimento de nossos deveres como
mandamentos di vinos O homem, ao pensar Deus como aquele que r fazer
da felicidade perfei ta a seqncia da santidade idealmente alcanada, modifica
seu olhar sobre a lei moral Ela, pois, no mais somente a marca de sua
autonomia, mas tambm a assinatura de um Deus, nico capaz de realizar a
plenitude pelo Bem Supremo
A moral no seno a doutrina que nos ensina a ser dignos da felicidade
A r eligio nos d a esperana de chegar verdadeiramente a isso. A diferena ,
sem dvida, essencial, mas o r egistro sempre o mesmo, o de uma pacien te
deduo de todos os efeitos da presena em ns da lei moral. Talvez esteja a
a chave para compreender a curiosa adjuno aos dois primeiros postulados,
por Kant, de um terceiro postulado, o da liberdade Deve-se postular a liber
dade como condio fundamental da busca da santidade, primeiro elemen to
do Bem Supremo Jamais se conhece a liberdade, mas preciso pens-la, o
que, no fundo, j dizia a analtica da r azo prtica, fazendo da liberdade a ratio
essendi da conscincia da lei
Deus indemonstrvel, Deus postulado, Deus incognoscvel, mas que deve
ser pensado: a teologia kan tiar.a uma questo de moral, como dever ser a
religio, inclusive em seus aspec tos institucionais
Deus moral
Antes de abordar a religio propriamen te dita, e o texto que Kan t lhe
consa gra, gostaramos de nos deter nesta curiosa expresso de teologia
moral, que l(ant utiliza aqui, o mais das vezes, em ressonncia com um
outro conceito, tambm surpreendente: o de f racional
A religio como
moral
90
128
129
Compreender
130
Compreender
O lato do dever
pa1a ns con10 ser es n101ais" 9fl A religio esvazia<l <le Lu<la on lulugia e de
toda prtica que lhe seja derivada Kant parece proceder aqui por uma esp
cie de red uo transcenden tal, que no conserva de Deus seno sua relao
comigo como ser livre, submetido lei Como corretamen te obser va Eric
Weil, todo conhecimen to objetivo da nat ureza de Deus faria do homem um
131
Deus; mas ele deve sempre tambm limi tar seu pensamen to ligao en tre
a soberania parcial de um ser marcado pela lei moral e a soberania absoluta
daquele que conduz o mundo
A cri tica kan tiana da religio ir se apoiar constantemen te neste princ pio
de interpretao: o que interessa ao filsofo, na religio, reside unicamen te
naquilo que "con tribui para a realizao de todos os deveres humanos como
mandamen
tos divinos ..10 Fora dessa con tribuio, a religio vazia, ou
um
obstculo ao bem 101 Ficam assim excludos todos os dados sobrenaturais inde
vidamente conf undidos com o supra-sensivel e1n ns, toda crena puramente
esta tutria sem efeito moral, todo misticis1no inimigo da razo A religio no
auten tificada, inclusive em seu aspecto histrico e biblico, seno na exata
me dida em que demonstrada nos fatos sua capacidade de ''tornar
melhores""" os homens e "reuni-los em uma Igreja universal (embora
invisvel)" 10"
A receptividade da filosofia idia de Deus no legi tima seno se o
pen sarnen to rejeita o religioso patolgico, equivalente no dogmatismo
quilo que a Doutrina da virtude exclua a t tulo de sentimen to esttico
patolgico
Kan t ir assim, munido desse princpio hermenutico, considerar cada
um dos con tedos positivos da religio Atendo-se constan temen te aos
con fins da filosofia, ele distingue, ento, uma legitima r eceptividade
desta aos conceitos moralmen te fecundos - Deus, claro, n1as tambm,
en1 parte, a graa ou o perdo -e uma receptibilidade patolgica a
comportamen tos in teis, ou mesmo doen tios, como o en tusiasmo e o m
isticisrno
A disposio moral do homem em experimentar a santidade da idia de
dever , para Kan t, absolutamente incompreensvel Ela pode suscitar na alma
uma emoo violenta, indo at a exaltao; mas, apesar de seu carter eminen
temente passional, essa emoo, na medida em que desperta as melhores in
ten es 1norais, deve ser favorecida rodavia, e a intervm a herana critica,
uma religio racional deve evitar confundir o sentimen to de nossa prpria
dignidade com o efei to emocional de elementos ilegitimamen te integrados
religio, como os milagres, os mistrios ou um pretenso efeito da graa
an terior ao aperfeio
amento moral de si mesmo1' De um lado, um sentimento intimamente ligado
ao respeito, de outro o entusiasmo, mui tas vezes acornpanhado de superstio
O lato do dever
A reduo de Deus
O principio redu tor tem como conseqncia uma formulao mui to particular
daquilo que con tm a idia de Deus preciso, com efeito, para apreenso
das idias, e en tre elas a de Deus, s conservar "o que necessrio para a
possibi lidade de pensar uma lei moral"m 7 A reduo do divino consiste, pois,
no em negar ou em colocar o problema da existncia de Deus, mas em no
afirmar de
100 A religio nos li mites da si1npfes razo, AK VI. 110; P 1!1. p 133
101 Cf Le Conflit des facults, AK VII. 48; P !11. p 852
103 lbid
104 Cf ibid . AK VI. 53; P 111. p 70
132
milagres'
133
Compreender
O fato do dever
divino aos deveres humanos: Estar Deus na origem destes? Exigir 0 impera
tivo categrico em seu fundamen to a realidade de Deus? Ao conjun to dessas
questes Kan t responde por um "como se" que designa o limite entre o tico
e
o teolgico, sem deixar de constatar sua indissociabilidade O que explica duas
teses snultneas: primeiramente, "o imperativo categrico no supe uma
substncia ordenadora em posio suprema que estaria fora de mim"1H1; em
segundo lugar, "apesar disso, deve ser considerada como provenien te de um
ser que tem sobre tudo um poder irresistvel'"" A primeira afirmao destaca
assim a au tonomia do moral e a no-necessidade de um Deus postulado como
ser fora de tnim; a segunda, ao contrrio, insiste na necessidade de um Deus
em pensamento como origem analgica do imperativo categrico O conceito
de Deus impe-se, pois, no momento em que Kan t define o dever em sua au
tonomia, como o sinal de uma frao de heteronomia, no real, porm ideal,
sinal de que eu no sou o autor da lei que formulo, e qual eu me submeto por
mim mesmo Se Deus no pode ser considerado razo de ser da lei, que sem
pre a liberdade, ele entra como parte em sua definio como razo de conhecer,
justamen te como mar ca da aprioridade da lei e da incon trolvel necessidade
para a liberdade humana de lhe ser submissa Mas, acrescenta Kant imedia
tamente, "No h Deus em substncia cuja existncia seja demonstrada""'
Nada justificaria substituir a uma teologia tica uma tica teolgica que consi
derasse que os deveres humanos so realmente rnandamentos divinos113
O "como" da definio moral da religio deve, pois, ser encarado no sen
tido de um "como se" Que resta ento do concei to de Deus? Nada, ontolo
gicamente Deus no seno a idia da deficincia do homem, para quem a
obrigao sempre dada Ou an tes, Deus a idia-limi te de um ser que pode
obrigar sem ser obrigado11\ algo impossvel para o homem, uma idia que no
tem significado exceto quando completamente elaboradas a natureza e as con
dies do dever moral
Deus um ser que no tem seno dir eitos Mas que Deus ordene
-analo gicamen te, claro -no significa que esses mandamentos instituem
os deve res humanos: h, sem dvida, identidade entre mandamentos divinos
e deveres humanos, e no deduo destes a partir daqueles, sendo a divindade
causa de
135
O fato do
dever
Compreender
seu carter obrigatrio Se Deus um "ser que tem o poder de comandar todos
115
os seres razoveis segundo as leis do dever" , ele no pode eximir-se dessas leis
corno leis da razo, que a ele se impem sem ser coe citivas, Deus as respeitando
por elas mesmas Deus no fonte do dever, mas figura e idia da santidade,
perfeita adequao do agir ao dever: h deveres de Deus, no s porque tenha
mos que considerar divinos nossos deveres, mas tambm porque Deus no est
acima das leis como leis da razo tico-prtica, nem tampouco, claro, abaixo
delas Mais exatamen te: essas leis esto nele Como vemos, Deus no traz nada
natureza do imperativo categrico, no constitui seu dever, nem funda sua
racionalidade A ordem das razes ir sempre da tica ao teolgico: e, sublinha
I(ant, "no consideraremos nossas aes obrigatrias porque so mandamentos
de Deus, mas, pelo contrrio, ns as vere1nos como mandamen tos divinos por
que a elas estaremos interiormente obrigados"116
Podemos legitimamente nos pergun tar por que Kant mantm to firme
mente a necessidade desse desvio analgico pela idia de Deus, ao passo que
parece ter relegado a segundo plano, at mesmo abandonado, a demonstrao
de Deus por postulados Para que poder aqui servir Deus?
Com cuidado para no retirar de Deus todo o papel em seu discurso, Kan
t ir multiplicar as observaes indicando a utilidade de Deus para a moral
Po demos distinguir sucessivamen te quatro funes da referncia a Deus:
uma funo de repr esentao da santidade, uma funo catalitica na dico
da lei, uma funo motora, e, finalmente, uma funo que se poderia
qualificar de disciplinar A frmula do conhecimento de todos os deveres
humanos como mandamento tem inicialmente a conseqncia de sublinhar
a santidade e a inviolabilidade desses dever es111 Mais ainda, o prprio
imperativo categrico exige ser expresso nesses termos -" determinar
todos os deveres humanos como mandamentos divinos j se encon tra ern
cada imperativo categrico"118
-para que seja afirmada a diferena absoluta entr e o que exigido de
mim e aquilo de que sou capaz A idia de Deus funciona aqui como a
acentuao da humildade do homem peran te a lei; Deus -e partindo
dai os deveres, que so os seus mandamentos -aquilo dian te de que
"todo joelho deve se dobrar"" O vocabulrio paulino que Kan t utiliza
aqui indica que o respeito
115 Ibid , AK XX!I, 115, trad Marty, p 169170 116 CRP, A 819/B 84 7
117 Cf Opus posn1nn1111. AK X!l, 121, trad !Vlar ty. p 174
110 Ibid
119 Ibid
por Deus r epresen ta analogicamente o respei to pela lei, o desvio pelo divino
acentuando a desproporo tica, dor da obrigao
A in troduo de Deus na formulao dos deveres humanos tem igual
men te o efeito de aumen tar a fora com a qual esses deveres se apresen tam
liberdade: ela tem funo cataltica com relao ao poder coercitivo das leis da
razo tico-prtica no ao modific-las -vimos que o pensamento da obriga
o sempre precede a idia de Deus como potncia indulgen te por analogia mas ao conferir-lhes um vigor suplemen tar120 A terceira funo da passagem
ao teolgico decorr e muito diretamente da segunda, pois o endurecimento
da lei que produz tem como conseqncia exasperar o efeito motor do dever
Mesmo que Deus no exista, sua idia deve ser considerada como uma fora
motora agindo sobre a natureza do homem Este ponto encon tra-se em per
feita continuidade com aquilo que Kant apresenta, notadamente em O conflito
das faculdades, sobre a utilidade das idias da razo consider adas em relao
realizao da moralidade: a influncia das idias que a religio expressa que
a distingue da moral, diferena certamente formal, mas que separa duas for
mulaes, uma mais eficaz do que a outra, de um mesmo dever121 Finalmente,
tambm ai, sem ruptur a com o que precede, a refer ncia a Deus indispen
svel realidade da obedincia dos homens lei Sem a postulao pela r azo
tico-prtica de uma idia subjetivamente fundada da divindade " a razo dos
homens no seria disciplinada" 122
A teoria da religio elaborada no Opus postumum retoma muitos dos ele
mentos avanados em obras anteriores 'Todavia, ela vai mais longe no mo
vimento de reduo do divino, fazendo de Deus no somente nem principal
mente um conceito moral deduzido das necessidades do Bem Supremo, mas
em primeiro lugar o principio de uma formulao do dever que no lhe deixa
seno uma funo analogicamente criadora, abstrao feita de sua existncia
A primazia da lei remete o teolgico a no ser seno um instrumento de sua
dico, um papel que a idia de Deus sem dvida est apta a desempenhar,
sem que seja necessrio supor um ser todo-poderoso fora de mim
A reduo do divino a uma funo definitivamente secundria na for
mulao dos deveres humanos tem o efeito ele deslocar a apreenso filos
fica de Deus de sua natureza para a relao que ele pode ter com o homem
137
136
j
Compreender
O fato do dever
sem essncia, talvez sem existncia, sem agir distinto da santidade ideal, sem
outro dever seno aqueles que a razo lhe atribui, a ele como a ns, mesmo sem
relao com o homem, pois essa relao no , afinal, nada mais que a relao
consigo mesma da pessoa sob leis morais Deus como ens rationis
Kant no podia absolutamente ir mais longe na racionalizao da religio
e sua red uo moral A importncia do procedimento est altura de seu
objetivo: assegurar lei moral uma eficincia mxima no corao do hon1em
O imenso edificio conceitual da primeir a Critica no possua, no fundo, outro
objetivo seno liberar espao par a esse trabalho de elaborao da moral A fi
losofia kantiana no podia ficar ai Por um lado, na medida em que os campos
da natureza e da moral, to obstinadamente dissociados, ter o que inventar
as modalidades de suas relaes, por ou tro na medida em que Kan t est muito
longe de ignorar ou de desprezar as necessrias conseq ncias jurdicas e insti
tucionais de sua exigncia moral nessas duas direes que iremos con tinuar
nosso percurso pelo corpus kantiano, comeando por aquilo que constitui, sem
dvida, seu ponto mais alto: a Critica da faculdade de julgar
Deus, que nada mais do que a morte do religioso idia de Deus resta ser
"o conceito de um sujeito que obriga, fora de mim"" -sujeito sem natureza,
123 A religio nos limites da sin1ples razo. AK VI. 139; P III p 170
124 lbid
p 183
138
139
CAPTULO IV
o princpio reflexivo
O lugar da reflexo
Voltemos, pois, ao texto de in troduo.O territrio da experincia est divi
dido em dois domnios. Mas h, no campo critico, trs faculdades superio
res de conhecer e tr s faculdades da alma O texto em que Kant afirma essas
duas triparties segue-se imediatamen te delimitao terminolgica entre o
141
Compreender
campo, o territrio e o domnio Trata-se, aqui, de tr azer uma soluo para o conflito terri
torial entre nat ureza e liberdade; mais ainda, trata-se de mostrar que toda a Critica da
O princpio reflexivo
142
2 Cf ibid . AI( V 168; P 11. p 918 Ou ainda Al<XX 20 7; P 11. p 359, "Ora, o poder de co
nhecer segundo conceitos ten1 seus princpios a priori no entendimento puro (em seu conceito
da natureza), o poder de desejar na razo (ern seu conceito da liberdade)"'
3 lbid . AK XX 208; P 11. p 860
143
Compreender
O principio reflexivo
145
144
Compreender
Dois campos de interveno da reflexo pura podem, ento, ser designa dos no espao
crtico: pri1neiramen te, no campo terico, o espao que separa as leis da natureza em sua
pluralidade, e a idia de sua unidade; em seguida, no terri trio da experincia, o que nela se
146
O principio reflexivo
147
Compreender
Do belo ao sublime:
O principio reflexivo
A esttica do bel
o
O que um juizo de gosto? um juzo que certifica a existncia de um prazer
especial ligado represen tao de um objeto dado No se refere pr pria
natureza desse objeto, mas sim ao jogo das faculdades em sua apreenso A
esttica no , pois, a descrio das qualidades que um objeto deve possuir
para ser qualificado de belo; ela a anlise do sen timen to particular que ne
cessariamen te acompanha o juzo "este objeto belo"
148
fato
fcil entender: essa exigncia deve ser fundada, ou melhor, deve po
der apoiar-se em um princpio que permi ta sua realizao Kan t afirma en to
que o estado da alma consecutivo repr esen tao do belo um prazer co
municvel universalmen te, na medida em que o juzo de um livre jogo das
faculdades, no caso a imaginao e o entendimen to Sendo estas faculdades
149
O princpio reflexivo
Compreender
O senso comum
universais, tambrn o seu livre jogo, o que torna co1nunicvel o prazer que
delas se ex trai A imaginao e o entendi men to no esto aqui em uma
relao determinan te, corno o caso do conhecimento Essas faculdades
esto em uma relao flexvel, livre, desprovida de conceito, em singular
harmonia
Da finalidade
men ta de todos a cada vez que se considera belo um objeto Esse senso comum
o resul tado do livre jogo de nossas faculdades" No absolutamen te a coloca
o emprica em comum dos juzos estticos o que deve ser pressuposto para
que um prazer universalmente comunicvel seja simplesmente possvel. Graas
posio dessa norma ideal do senso comum, pode-se legi timamente exigir ele
ou tro que julgue o belo como eu, e que experimente um idn tico prazer acerca
dos mesmos objetos, exigncia sem dvida de direito, no de fato Talvez nada
haja no mundo de belo, mas se existe o belo preciso ento assim julg-lo Kan t
termina sua exposio destacando a legalidade livre da imaginao, aqui em rela
o com o en tendimento, anunciando a revoluo que ir provocar o conceito de
sublime nessa harmonia facultria Voltaremos a este pon to mais detidamente
150
Compreender
151
152
O principio reflexivo
A arte deve parecer com a natureza ao mesmo tempo e1n que manifesta
seu carter prprio, e deve evitar a imi tao laboriosa Na realidade, somen te
a in teligncia permite essa singular concordncia entre a nat ureza e a arte,
uma in teligncia tomada aqui como disposio ina ta do espri to, um talen
to par ticular para inscrever em u ma produo cul tural original e exe1nplar a
finalidade presen te na natureza A in teligncia no o gosto Ela procede de
uma capacidade prod utiva, no comunicvel como o prazer esttico, ela
esse poder de dar uma alma matria
A criao artstica o prod uto da imaginao Esta no somente o pra
zer de in t ui r ou de perceber pelos sentidos Ela pode tambm, no livre jogo
de que capaz, prod uzir uma idia esttica , qual nenhum concei to determi
nado ser adequado O poeta nada mais faz que apresen tar tais idias: elas
evocam -essa a razo de seu poder -o alm da experincia, ao mesmo
tempo em que revolucionam a legalidade do en tendime nto" Ela tem da idia
a tenso para o infini to que, por direi to, tm as idias da razo; mas toma
corpo na sensibilidade, utilizando-a para animar o esprito, fazendo-o tender
para aquilo que no mais sensibilidade Essa animao do espri to o indi
cio de uma obra genial: ela sempre faz pensar muito, nada d a conhecer
153
Compreender
Dito de ou tro modo: se h concei to, deve ser possvel falar do belo como
do conhecimento; se no h conceito, nada se pode dizer a respeito A con
tradio apenas aparente. l\la realidade, o juzo de guslu u tiliza certamen te
um conceito, o de finalidade subjetiva, mas sem que esse conceito seja deter
minan te No se pode pois contradizer o gosto, quer dizer, demonstrar que
o outro est errado em fazer um juzo diferen te do nosso Ao mesmo tempo,
uma vez que h conceito, h universal em quan tidade suficien te para que se
possa disctir a respei to e, eventualmen te, no estar de acordo acerca daquilo
que deve ser considerado belo
Os ltimos pargrafos da dialtica so em mui tos sen tidos mais im
portan tes do que essa soluo, na verdade bastante previsvel, da antino
mia do gosto Kan t apresen ta ai sua concepo do simbolismo, a partir ela
tese f undamen tal segundo a qual o belo o smbolo do bem Conscien te,
sem dvida, do carter enigmtico de tal afirmao, Kan t aplica-se, inicial
men te, a distinguir o simbolismo do esquematismo Dois tipos de apresen
tao (hipotipose na linguagem kan tiana) so passiveis: ou se apresen ta a
154
O princpio reflexivo
155
Compreender
O desequilbr io do sublime
O principio reflexivo
Do belo ao sublime
diferido aps o choque da sensao de um sbito "bloqueio das foras vi tais"'
Se h prazer, este apenas indireto, nessa extenso da vida libertada de seu
freio No mais, pois, simples felicidade, mas sim uma emoo; e a imaginao
no mais envolvida em um jogo agradvel, mas em sria atividade O sublime
no tem atrativos, nem ornamentos; e a emoo que suscita no merece, nem
mesmo depois, que se utilize a seu respeito o termo prazer posi tivo Essa grave
emoo apenas um prazer negativo, prazer mesclado de admirao, de respei
to, de terror secreto que aniquila defini tivamente o jogo da imaginao
O terceiro elemen to que marca a diferena entre o belo e o sublime reside
no modo de trabalho da imagin2o E nquanto no juzo de gosto a imagina
o, embora ativa, permanece antes esttica, ela violentamente posta em
movimen to no sublime, de modo que a natureza con templativa do esttico ,
por assim dizer, atenuada, ou posta ela mesmo e1n movimen to, o que a apro
xima do campo da ao, do campo prtico
156
157
Compreender
harmoniosa das for mas e leis: o caos, a desordem, a desolao, a tempestade ou o oceano
em fria A con tr afinalidade do sublime torna impossvel sua utilizao na considerao da
natureza Adernais, ela funda a excluso do sublime da crtica da faculdade
de julgar a esttica propriamen te dita, que leva Kant a rejeitar em apndice o texto que lhe
consagrado40
A inadequao do sublime
O princpio reflexivo
e a razo, o que resulta na revelao do sentimen to de urn poder suprasensivel em ns e, dessa forma, na terceira definio do sublime, a mais
completa: " sublime aquilo que revela urna faculdade do esprito que
ultrapassa qualquer critrio dos sentidos, pelo nico fato de que no se pode
seno pens-lo"43
A impotncia da imaginao em apresentar o infinito que a razo dela
exige no pode ser revelada em outro campo seno o da esttica. Com efeito,
no campo terico, a cooperao da imaginao com o entendimen to sempre
possvel, mesmo com uma imensa grandeza, pois esta pode ser matematica
men te divisvel e mensurvel Mas a estimativa esttica da grandeza obedece
a urna lgica absolutamen te diferen te: no se trata aqui de medir sucessiva
men te as partes de um objeto, estimativa da grandeza que no tem limites,
mas sim de apreender imediatamente, de um s golpe, a in tegr alidade do
ob jeto Limitada gr andeza apreensvel de um nico golpe, sem composio,
a imaginao atinge seu limite, ela sai do jogo que a ligava ao entendimen to
no sentimento do belo e se atemoriza dian te de seu novo parceiro Ela cai,
nada mais pode apresen tar, exceto sua impotncia O entendimen to est
perdido, a imaginao diminuda, mas nessa diminuio j se elevam urna outr
a faculda de e urna outra finalidade
A violncia do sublime
158
sobre ns, quer dizer, sem aniquilar nosso prprio poder de resistir-lhe4 To
davia, no existe emoo sublime seno atravs de uma severa restrio que
resulta de fato em urna completa neutralizao das foras da natureza Com
efeito, para que o sentimento do sublime possa se expressar, preciso que a
manifestao da fora da natureza provoque um temor, um pavor, sem que
nos sintamos verdadeiramen te afetados em nossa existncia por essa for a
43 Ibid
44 Cf ibid . AK V 260: P II. p 1030
159
Compreender
O princpio reflexivo
160
4
iil
43
49
lbid AK V 25 7: P 11 p 1026-102 7
lbid , AK V, 257: P 11. p 1026
Cf ibid
lbid , AK V, 2 71: P li p 1044
161
O principio reflexivo
Compreender
Os fins da natureza
O parentesco entre a teoria do sublime e a 1noral, como se ve, cada vez
mais afirmado Finalmente, ele se apia em uma certa racionalidade do
sublime
Racwnalidade do sublime
52 Cf ibid
53 Cf ibid . AK V 280; P 11, p 1055: nossa exposio dos juzos sobre o sublime da natu
ieza foi ao n1esmo ten1po sua deduao
A teleologi a no principio da
cincia
A finalidade posta pela faculdade de julgar teleolgica no subjetiva, na me
dida em que no trata da organizao finalizada elas faculdades Ela tem, sem
dvida, um alcance objetivo Mas essa objetividade no material, no sentido
em que o concei to de fim aqui afirmado significa que as coisas so realmen
te determinadas por aquilo a que parecem tender Kan t afina, pois, progr
essiva men te sua concepo de finalidade, para limit-la aos seres
organizados, cuja apreenso no se pode fazer sem usar uma tal concepo
Podemos, ento, enunciar o seguin te princpio:
Um produto organizado da nat ureza um produ to no qual tudo fi1n e recipro
camen te tambm meio51
Nem a razo, nem o entendimento podem produzir tal conceito Mas sua
posio d a uma e ao outro um fio condutor indispensvel cincia A utiliza
o da finalidade da natureza permite uma ampliao do conhecimento, sem
que no entanto seja necessrio excluir o r11ecanis1no dessa mesma natureza,
cujo en tendimento postulado pela legalidade A faculdade de julgar no
aqui siinples instrumen to suprfluo, que viria, ao final, unificar uma cincia
da na tureza que poderia a justo titulo deix-la lado Ela a condio
inevitvel da prpria cincia, o rebaixamento da relao harmoniosa das leis
da natureza em
54 lbid . AK V 366; P 11. p 1168
163
162
O princpio reflexivo
Compreendei
Compreender
165
Os fins do homem
O principio reflexivo
Se o termo in termedirio varia nas diferen tes definies que Kan t faz da
cultura, suas formas inferiores e superiores no mudam: de um lado, uma dis
posio essencialmente produzida pela nat ureza e seu mecanismo, cuja hist
ria possvel retraar; elo outro, uma personalidade imediatamen te ligada
presena, no homem, do fato da r azo prtica, cujo lugar se pode estabelecer,
mas que no , de modo algum, o produto de um desenvolvimen to regular A
passagem do fim ltimo ao objeto final da natureza no fundo nada mais faz
do que suceder ao desenvolvimen to da prpria cultura, de sua forma inferior, a
habilidade, ao seu aperfeioamento mor al
cultura
para a humanidade como ser no apenas vivo, mas tambm razovel, corres
ponde a disciplina como resul tado jurdico-poli tico desta dupla natureza; fi
nalmen te, personalidade, quer dizer, capacidade de responsabilidade, cor
responde a forma mais alta de cultura: a moralidade 59
nenhum direi to de impor leis liberdade, o que somente a idia do dever pode
fazer, a cuja receptividade corresponde a moralidade como cultura
No desenvolvimen to da cultura, a disciplina ocupa o segundo lugar de
Cultura e moralidade
Podemos, em primeiro lugar, distinguir trs sentidos para a palavra "cultura",
corresponden tes s trs disposies fundamen tais do homem disposio
166
59 Cf A religio nos limites da simples razo. AK Vl. 26; P Ili, p 37-38
167
Compreender
A civilizao da disciplina precede, como a habilidade, a cultura moral: ela d lugar a uma
organizao poltica fundada no direi to de coero e que, como todo corpo poltico, inclusive a
Repblica, no precisa da moralidade em ato dos cida dos Nesse estgio de cultura moral, a
oposio e mesmo a guerra con tinuam a ser, pois, um meio indispensvel para fazer progredir
a civilizao; apenas quan do a receptividade s idias se tiver desenvolvido, ou quando uma
abertura s idias tiver sido organizada no seio das instituies de direito estri to, uma outra
168
O princpio reflexivo
169
'"">1'iif:
i
Capitulo V
o arquiplago da poltica
Resistncias do poltico
Vrias interpretaes podem ser propostas sobre essa ausncia A primeira,
mais radical, consiste em afirmar que no h filosofia politica em Kant En
contraramos, ento, nos textos uma reflexo sobre a histria, uma teoria do
direito, um certo nmero de proposies esparsas mais ou 1nenos referentes
ao campo pol tico, mas nada que possa sequer de longe corresponder a uma
autn tica doutrina filosfica do poltico A segunda opo, certamente mais
legtima, tem como princpio escolher um ou outro escrito de Kan t para nele
ler, excluin do qualquer outro, o essencial da filosofia poltica de Kant Podese, assim, re duzir a poltica kantiana sua filosofia do direi to Pode-se
igualmente fazer do
171
O arq11iplago da politica
Compreender
2 Ponto de vista juridic0Mnorn1ativo: Kan t considera aqui o problema politico se gundo os princpios
racionais que se deve aplicar a ele, antes de toda expe rincia, a ti tulo de nonnas absolutas Ele elabora
para esse fim uma metaf sica dos costun1es, con tendo uma verdadeira Doutrina do direito que procede
construo dos funda111en tos do direito, com base unicamente na razo, como havia feito para a
moralidade na Critica da razo prtica T rata-se aqui no de saber o que o homem e ou pode fazer, mas o
que os homens devern co1 Cf ARE NO'T, ]uger, Sur la philoso phie politque de K ant Paiis,Seuil,
1991
172
letivarnente realizar para formar u111a com unidade justa, dotada de uni
poder legitimo Aqui, a experincia esvaziada em beneficio de consider
aes estr i tamen te racionais Encontramos igualmente em Rurno paz per
ptua alguns elementos que penni tem pensar a pol tica a priori com urna
niesrna indepen dncia em relao experincia
3 Ponto de vista to1ico-judicativo: reflete, desta vez concretamen te, acerca do
que podem fazer o poli tico, o jurista e o cidado e111 si tuaes particulares
ou em carnpos de aplicao especficos Encon tra111os, assim, na Doutrina
do direito anlises mui to concre tas em relao a cer tas passagens do direito
pri vado Esse pon to de vista aparece igualmente em certas passagens de O
que so as Luzes?, Teora e prtica , O conflito das faculdades e tanibm,
sem dvida, e111 Ru1no paz per petua Pode-se tambm falar de registro
juclicativo, j que o juzo r eflexivo, assiin como foi elaborado na terceir a
Critica , f unciona aqui como instncia de passagen1entre a norma poltica,
que da ordem da razo, e as instituies reais, que so da ordem da
sensibilidade
Histria e poltica
A perspectiva teleolgica est, sem dvida, bastan te presente na terceira Cr
tica Mas a idia de iuna histria universal do ponto de vista cosrnopolitico
afirma mais explici tamen te a natureza daquilo que pode ser esperado da
humanidade e a u tilidade de tal posio da finalidade histrica
Compreender
O arquiplago da poltica
Compreender
O arquiplago da
politica
trar eco entre os individuas tornados infelizes por suas prprias tendncias
O homem politico deve simplesmen te organizar o Estado de tal maneira que
o jogo das paixes individuais provoque mecanicamen te um equilbrio com
parvel ao que a razo teria estabelecido se tivesse meios para tan to Trata-se
unicamen te de tirar partido do mecanismo da natureza para obrigar, pela for
a do direito, um homem moralmen te ruim a ser um bom cidado Mesmo um
povo de demnios capaz de fundar uma repblica, desde que a in teligncia
poltica auxilie a na tureza em seu curso ordinrio
Curiosa1nente, I<:an t ir buscar em exemplos de poltica in ternacional a
ilustrao para aquilo que acaba de anunciar e que no dizia respei to seno
poltica in terna O paralelismo entre os dois nveis o au toriza e permi te a
Kant abordar o que realmen te in teressa aqui Os Estados, considerados como
i ndi vduos, no tm que progredir moralmen te para se organizar
juridicamente de modo conforme razo A natureza quer que o direi to
domine: os indivduos e as naes podem a isso se opor: nada consegui ro
J(an t atenua sua afirmao rei terando a recusa de um Estado mundial que
justificara um pouco an tes no texto Essa rejeio e o dever de construir uma
federao de Estados so desta vez analisados no como obrigaes racionais,
mas como o resultado de u1na sbia disposio da nat ureza A lgica acima
empregada aqui retomada: a natureza, ao separar os homens pela
diversidade das lnguas e das religies, auxilia a razo em sua recusa de um
Estado de naes. Ao mesmo te1npo, ao fazer dos povos en tidades
comerciais, ela torna necessria de fato uma fede rao dos povos que a
razo jurd:ca consideraria de direito co1no a condio essencial ele uma paz
perpt ua
O acontecimento
O terceiro tex to que gostaramos ele analisar aqui, O confli to das faculdades,
tambm aplica o conceito de finalidade em sua relao com o conceito de hu
manidade Todavia, no se tra ta mais de ten tar estabelecer urna perspectiva fi
nalizada da histria permi tindo un1 conhecimen to rnais sinttico, nem sequer
de buscar no mecanis1no da natureza motivos para no descrer do homem O
objeto do tex to claro: Kan t quer, pela in terpretao de um acon tecimento
histrico particular, decidir se o homem dispe ou no de uma moralidade
suscetivel de faz-lo progredir O progresso que est aqui em jogo no se limita
ao desenvolvimento da habilidade caracterstica da civilizao em geral. Est
176
177
Compreender
bem mais prximo da rnl tura, essa aptido especificamen te humana de agir em funo de fins
livremen te estabelecidos O concei to de natureza no n1ais levado em con ta; substitudo
O arquiplago da po!itica
o prprio acon teci men to significativo O quadro traado por Kan t da Revo
luo Francesa essencialmen te nega tivo: refere-se a atos ou delitos impor
tan tes, pelos quais "o que era grande torno u-se pequeno entre os homens ou
o que era pequeno tornou-se grande"7 , uma mon tanha de n1isria e ele crimes
horrendos "a tal pon to que um homem prudente, se pudesse, ao empreend-la
pela segunda vez, esperando realiz-la com sucesso, decidiria, todavia, jamais
arriscar tal experincia a preo to al to"!I A Revoluo em questo foi assim
descri ta como um verdadei ro desastre Povo cheio ele egosmo e de pre tenso
liberdade, os franceses manifestam, todavia, nas crueldades e apesar elos de li
tos cometidos, uma cultura e uma aber tu ra ao direi to que l(an t acredi ta no
poder encon trar em outra parte Suscitada pelo egosmo e realizada no pathos
do en tusiasmo, a Revol uo nada tem de moralmen te legitimvel; todavia, ela
tambm o sinal de que um povo atingiu um nvel ele cultura suficien temen te
elevado para que, em meio s paL\'.es, possa se manifestar uma aber t u ra s
Idias, a Idia da liberdade e a Idia do direito
Este primeiro momen to no con tm ainda o sinal procurado, que nos de
monstraria a disposio ao progr esso moral em ao na h umanidade Tal sinal
s aparece quando voltamos a ateno no mais para o palco, mas para a sala
de espetculos, para a atitude dos espectadores da Revoluo a seu respeito
O acon tecimen to significativo no pode consisti r em aes ou ern deli tos
im portan tes "Nada disso"', diz Kan t Pelo con trrio:
T rata-se sin1plesmen te do niodo de pensar dos espectadores que se trai publica
men te nesse jogo das grandes reviravol tas e que, n1esn10 apesa r do perigo de
que tat parcialidade pudesse tornarse pata eles muito pr ejudicial. manifesta. en
tre tan to, uma tomada de posio to un iversal e, de qualquer rnodo,
desinteressada para os partici pan tes de uni partido con1parada aos do outrow
178
J lbicl
O lbicl . AK VII. 85; P 111. p
895 9 lbid . AK VII. 85; P 111.
p 894
10 lbid
179
O aquiplago da poltica
Compreender
ptua 11 O car ter significan te da publicidade ainda aumen tado pelo fato
de induzir a certos riscos para o prprio espectador, sujeito de Estados que
no aderem forosamen te poltica revolucionria, tendo a invocao do
perigo a funo de destacar o desin teresse do espec tador A maneira de
pensar dos espectado res poderia ser igualmen te o acon tecimen to que Kant
busca sem esse perigo1 mas isso ocorre de modo mui to mais evidente
quando aquele que afir1na sua aprovao arrisca realmen te sua vida ou seu
conforto
A concordncia no fato singular do entusiasmo, do desin teresse e da uni
versalidade, possvel na medida em que o espectador no est diretamente en
volvido na Revoluo, constit ui seu carter moral e sua potncia significante;
o que nele revelado a prpria moralidade do homem e a possibilidade
para a espcie de progredir, ou o movimen to em si para o progresso, j
efetivo nesse pathos especfico do en t usiasmo"
Nem a Revoluo nem o entusiasmo so exatamente obras, que seriam
simplesmen te o objeto de uma experincia esttica a reconhecer no que v,
diretamen te e sem descon tinuidade, o ideal poltico encarnado: elas no so,
a f ortiori , belas obras, uma vez que precisamen te o que lhes confere um
poder indica tivo sem dvida da ordem do sublime Se o acon tecimen to
acena em direo ao ideal, Idia de comunidade e Idia de repblica,
jamais se encon trar, todavia, apresentao direta ou prova de tal Idia:
afirmar o contrrio ceder a uma iluso transcenden tal e acreditar que se
pode aplicar as formas da sensibilidade a uma Idia da razo
Nem obra, nem esquema, nem verdadeiramen te smbolo: o aconteci
tnento ainda outra coisa, a apresen tao que h na Idia a apresen tar do
inapresentvel , que no pode mais se dar de ou tra forrna seno sob a forma
imperativa O concei to de direito -a repblica -surge ento como aquilo
1 Rumo paz perptua. AK Vll, 386; P [!!, p 382
2 O co11(/ito das faculdades. AK Vil, 85; P li!, p 895
181
180
Compreender
Moral e direito
A elaborao do concei to de direito, que constitui o essencial do registro nor
mativo em que pensamos ter visto um dos aspectos da filosofia politica de
Kant, resulta, assim, em sua rupt ura; apenas o direito a priori pode ser consi
derado verdadeiramen te normativo Essa ciso, que se anuncia desde o estudo
da situao em relao com a moral, ir se acentuar na anlise de sua realidade
e resultar em um corte definitivo entre um direito ideal e um direito aplicado,
estando o primeiro na origem de um Estado, segundo a idia daquilo que Kan t
s vezes chama de Repblica
O arquiplago da
poltica
Resistncia da moral
182
183
Compreender
O arquiplago da politica
nesse nvel, uma Idia que a razo impe liberdade e que, em um estudo
do direito propriamente dito como legislao externa, no pode cons tituir
se em mvel da ao Devernos, pois, por amor eficcia, "fazer o conceito
do direi to consistir na possibilidade de associar imediatamente a fora rec
proca universal liberdade de cada um" 10 E m ou tras palavras, e Kan t chega
aqu i ao pon to mais radical da Doutrina do di reito , "o direito e a ha bilidade
de obrigar significam, pois, uma s e mesn1a coisa" 21
O amor pureza encontia aqui seu limite extre1no: preciso, sem dvi
da, ver ai o sinal da von tade constan temen te reafirmada por Kan t de fundar
a au tono1nia do direi to, mesmo onde essa au tonomia se mostra impossvel
Podemos ta mbm ler nessa tenso a afi rmao da primazia do'direito, em seu
m undo prciprio, sobre a moral na construo da ordem poltica Em qualquer
caso, direi to e moral man tm relaes mui to ambiguas, o que nos impede de
vislumbrar de maneira unvoca uma passagem qualquer entre essas legisla
es: os dois campos, as duas ilhas do arquiplago da filosofia prtica so se
parados por um oceano que cer tamen te permite a navegao, mas no sem
perdas para ambos os lados E essa ambigiclade preside quebra do conceito
entre o direi to a priori , Idia ligada ao imperativo moral, e o direi to estrito,
definido unicamen te pela coero
A forma do d/feito
Podemos agora, sem perder de vista esse domnio do dever sobre o direi to
- que no deixa de relativizar a pureza que Kan t queria atribui r-lhe
-, abordar a definio mais pura do direito, a do direi to estrito, que
apenas esboamos a t agora Como virnos, o direi to , em sua mais
ampla deter minao, o conjun to de condies que pertni tem a coexis
tncia universal men te determi nada de seres livres Deste direi to decorre,
sem dvida, uma obrigao, a de agir exteriormen te de tal modo que a livre
u tilizao de meu arb trio possa coexisti r com a liberdade de cada um,
segundo uma lei uni versal, mas essa obrigao no tem fora de lei A lei
universal do direi to ,
11 lbicl , AK VI, 230; P lll p 4 79
18 Cf ibid , AK VI, 232; P 111, p 481
19 Cf ibid , AK VI, 224: P I l i p 4 72
Dualidades do direito
184
Compreender
185
23
direitos A r azo disso que o nico direito originrio -a liberdade no conhecido, segundo a tese da Critica da razo prtica que Kan t
1etoma aqui implicitamente, seno pelo imperativo moral, "que uma
proposio que or dena o dever, e a partir da qual se pode em seguida
desenvolver a faculdade de obrigar os outros, quer dizer, o conceito de direi
to"" O imperativo categrico o pr prio principio do direito, que aparece
ento ao mesmo tempo distinto da moral como pon to de vista externo e
dependen te da moral, na medida em que somente nela a palavra dever tem
um sentido
O segundo aspecto que gos taramos de des tacar a idealidade do direito,
que mostramos ser o produto de um processo de purificao muito complexo,
mas que, finalmente, atinge seu objetivo: uma definio do direito indepen
den te da experincia Essa independncia pode constituir-se por uma abstra
o do sensvel anloga quela aplicada pela construo matemtica; temos
ento o direito estrito, quer dizer, a fora Mas ela pode tambm existir como
elaborao jurdica do dever, determinada in fine pelo prprio imperativo ca
tegrico: temos, neste caso, uma Idia do direito. Baseado no dever, o direi
to no pode ser seno racional e a priori e, apesar de todas as restries que
Kan t introduz em sua determinao -em particular, a excluso da mmali
dade como mvel -, , no que se refere a seu principio, determinado pela
lei moral A Idia do direi to, assim definida, vale como extenso nas
dimenses da comunidade do imperativo ca tegrico; ela deve realizar a Idia
do direito na tural e constituir a expresso jurdico-moral
da liberdade
originria Mas no adquire fora de lei nas i nstituies reais de que a norma
seno por uma legislao civil cujo funcionamen to depende da aplicao do
direito estri to: toda Consti tuio politica, todo Estado aplica no um, mas
dois conceitos do direito; ambos apresentam diferentemente os dois traos que
retive1nos -a presena do dever e a idealidade De modo que a preocupao
kan tiana de pu rificao do direi to conduz, inevi tavelmen te, quebra do seu
conceito
O arquiplago da
poltica
186
costu mes, que recebe aqui, enfim, sua aplicao No h concordncia possvel
com o rigor do direito, a pol tica deve a ele submeter-se para poder aspirar ao
titulo de verdadeira poltica, sem o que no , talvez, nada Em ou tros termos:
O direito jamais deve ser adaptado pol tica, 1nas an tes a pol tica que deve
sempre ser adaptada ao direito2B
187
O Biquiplago da poltica
Compreender
189
188
Compreender
mas pol ticas sensiveis; finalmen te, preciso que hornens possam assegurar,
no Estado, que a idia de Repblica no ser esquecida Dito de outro modo: a
justia em ato exige cultura para receber a norma; refi, ex.o para pensar a relao
entre a nonna e as ins ti tuies; e filoso fia para lembrar sem cessar que no se
pode prescindir dessa norma
Cultura e poltica
A presena no Estado de urna receptividade ao que deve ser a marca de uma
forma poltica superior quela que o simples produto da disciplina; ao mes
mo tempo, a cul tura pol tica no possvel seno quando a sociedade civil j se
estabeleceu" A primeira forma ele poltica, cujo direito est1ito o princpio,
assim a condio mnima do prog1esso das artes e da educao; estas, por sua
vez , preparam o homem para "um domnio em que somen te a razo deve ter
poder"33, e portanto para a moralidade; e finalmente a cultura poltica, seguin
do a moralidade mas restando diferente dela, que antecipa a inveno de uma
nova modalidade do poltico, a politica submetida idia de sua prpria justia
A cultura como receptividade Idia do pol tico compreende a obrigao
de susci tar a forma republicana como manifestao poltica real de sua recep
tividade Haver, pois, Estado de justia apenas no cumprimen to do dever de
cultura, que torna o Estado receptivo Idia de norma republicana, no sem
que esse cumprimen to exija a aplicao de todos os recursos da reflexo que
destacamos da Critica da faculdade de julgar
Poltica da reflexo
A reflexo, no campo poltico, eleve ser precedida por uma sensibilidade
Idia que ao mesmo tempo, visto que a Idia aqui referida urna Idia po
ltica, uma experincia da normatividade A reflexo comea, pois, no sen
timen to da inadequao do esprito lei que ai i n tervm, inadequao que
Kant, no campo moral, chama ele r espei to, mas que pode ser aplicada igual
men te no campo poltico se1n mudar radicalmente a nat ureza do sentimen to
do esp ri to O juizo reflexivo ir pois ter que julgaI sobre a conveni ncia
ou inconven incia das diferen tes formas poli ticas concretas com a id ia
norma tiva da Repblica Em todos os casos, a faculdade de julgar dever
operar en tre a razo e a sensibilidade, em uma configu rao prxima quela
que Kan t analisou em sua teoria do sublime
A reflexo poltica -ou a politica do ponto de vista tcnico-judicativo tem a funo de pensar a possibilidade de um acordo ent1e o direi to e a pol ti
ca, aquela vista como moral, ou politica a priori , esta como tcnica de governo
A concordncia desses dois e1emen tos necessria se queremos que o direito
seja aplicado De modo que, diz Kan t, " preciso pensar na possibilidade de sua
combinao" 3'1 A reflexo procede muito diretamen te: ela afirma como uma
necessidade a concordncia da pol tica com o direito, exigindo a submisso da
primei ra ao segundo, o que no quer dizer, claro, que essa concordncia seja
constatada, mas que uma Idia, e que portan to orien tar-se nesse sentido
para a politica um dever
A reflexo no se con ten ta em ler a normatividade ideal na histria, na
politica e nas insti tuies; ela participa, pela inveno das 1egras de seu es
tabelecimen to, ela emergncia das polticas reais sob a Idia do politico, cuja
finalidade se adequarem cada vez mais a essa Idia O juzo reflexivo contm
assim "a obrigao para o poder constitui n te de adaptar a essa Idia o modo
do governo"35 Sem dvida, esse t1abalho de adaptao de longo prazo e, por
definio, in terminvel; mas a impossibilidade de harmonizar perfeitamen te
a Idia e o governo no impede a reflexo de buscar ao menos a conformidade
dos efei tos do governo ao direito, nem de tender a uma consonncia n1xima
do Estado com sua Idia republicana
O melhor exemplo dessa reflexo poltica encon tra-se em Rumo paz per
ptua l{an t passa sucessivamente de u1na posio racional e normativa, a de
um Estado de naes, que pe um termo definitivo guerra, a urna conside
rao das medidas efetivas que poderiam, ao menos provisoriamente, obte1
urna certa pacificao das r elaes entre Estados A reflexo consiste em en
contrar urna forma de organizao internacional r ealmen te aplicvel, tenden
do, ao mesmo tempo, idia de um Estado mundial Kan t procede, assim, em
dois tempos: primeiro, afirmar a repblica corno norma; depois, tentar tirar
da conseqncias no mbito das relaes in terestaduais
191
Compreender
A nica Constituio que pode ser apresen tada como um modelo e uma
obrigao para as naes , com efeito, a Consti tuio republicana Kan t a de
fine a partir dos principias em que se apia: a liberdade de todos os cidados;
sua igual dependncia em relao a uma instituio comum; sua igualdade de
direi tos A repblica a nica forma de governo que assegura um mximo de
liberdade para cada um, compatvel com uma submisso de todos a um poder
par tilhado; esse poder garan te, ademais, a igualdade desse direi to Kan t
logo de incio afirma a dupla van tagem dessa Consti tuio: por um lado,
encarna a "prpria idia do direito"', definida de modo geral em Kan t como
sistema universal da liberdade; de outro, ela pode nos dar a esperana de uma
pacifi cao permanen te
Os Estados, mesmo os repu blicanos, man tm, todavia, uma relao natu
ralmen te belicosa A soluo para esse conflito permanen te ao mesmo tem
po semelhante e diferen te daquela que se impe em politica in terna Como a
repblica, o direi to dos povos deve ser juridicamen te garan tido; mas, como
os Estados so por definio soberanos, o principio de igual dependncia em
relao ao poder comum, que constitua o segundo principio da repblica, no
pode aqui ser exigido. Um Estado dos Estados uma con tradio, somen te
uma federao dos povos pode ser imaginada. Essa situao no ideal: uma
au tn tica civilizao in ternacional exigiria sem dvida uma unidade politica
real Mas os povos tiram, ao mesmo tempo, toda a sua majestade de sua so
berania E n tretan to, nada se perdeu Com efeito, mesmo quando os se en
con tram em relaes confli tan tes e violen tas, todos, ao menos verbalmente,
prestam homenagens ao direito, por exemplo instaurando um direito de guer
ra que poderia parecer absurdo Essa persistncia da referncia ao direito no
prprio mago dos problemas mais graves , para Kan t, o sinal de uma "dis
7
posio moraP " no homem que , ao mesmo tempo, urn motivo para esperar
a paz Os Estados, como entes soberanos, no podem resolver suas questes
peran te um tribunal real; para isso seria preciso pressupor um poder superior
O nico terreno efetivo para expressar suas queixas reciprocas o campo de
batalha Mas o resultado da guerra no pode ento ser outro seno um tratado
de paz, que faz cessar as hostilidades, sem todavia instaurar uma paz durvel
A razo que formula aqui o impera tivo categrico do direito exige, todavia, a
paz Ela faz da insti tuio de uma aliana pacifica um dever para os Estados,
36 Humo paz perpetua , AK V!ll, 351; P !li, p 342
37 !bid . AK VIII. 355; P Ili, p 341
192
O arquiplago da
politica
A filosofia em atas
funo critica e funo poltica
Kan t define o papel da filosofia em relao poltica em um anexo de Rumo
paz per ptua , que , alm ele tudo, um artigo secreto, quer dizer, um artigo cujo
au tor considera delicado para sua dignidade declarar publicamente a autoria
Kant afirma ser um dever para o Estado armado e pron to para a guerra consul
tar as mximas dos filsofos Estes adquirem, pois, no seio do Estado uma fun
o ele critica e de conselho indispensvel ao Estado, sem que este estabelea
formalmen te o dir eito da filosofia . Consultado em segredo, o filsofo pode falar
livre e publicamente O problema que no o nico a dar sua opinio, e tem
dian te de si a classe dos juristas Todas as condies do confli to ai se encon
tram: seu objeto a politica, definida como Idia do direito, o litigio consiste
aqui em saber quem, o filsofo ou o jurista, tem o direito de dizer o direito do
direito, quer dizer, a poltica a priori A filosofia encontra-se assim e1n uma nova
193
Compreender
disputa, que no pode ser resolvida pelo Estado, uma vez que este no deve
dar preferncia nem ao filsofo nem ao jurista, mas apenas escutar o filsofo
A filosofia deve ento assumir seu estatu to critico e problemtico compensan
do as insuficincias do direito e buscando melhorar as leis que os juristas se
contentam em aplicar A questo encontra aqui uma sada aceitvel pelos dois
protagonistas no por sua resoluo, mas pelo deslocamento da poltica -seu
objeto -em duas partes: uma racional, objeto do filsofo; outra pragmtica,
objeto do jurista; de um lado, os principias do filsofo, do outro as sentenas
do jurista'" A tarefa da filosofia ser to mais urgen te quanto os juristas no
fo rem sequer dignos dos smbolos que se der am -a balana e a espada -e
abu sarem da segunda, colocando-a na balana quando puder em auferir
beneficias O filsofo tem, ento, o papel de restabelecer o equilbrio
contrabalanando a tentao do jurista -dar primazia espada sobre a
balana -por um esforo inverso, recriando assim as condies de um direito
justo A filosofia, na medi da em que tem como objeto o ncleo a priori do
direito, continua a ser a nica garantia de sua pur eza e de sua justa aplicao,
motivo pelo qual o Estado tem todo o interesse em ouvir os filsofos, uma
classe que talvez incomode, mas que jamais verdadeiramente perigosa, pois
incapaz, segundo sua natureza, de associar-se em hordas e clubes' Tudo iria
bem nas relaes tripartites entre Estado, os juristas e os filsofos se cada um
se contentasse em reinar em seus dominios, cm suas respectivas partes do
territrio m que seus conceitos so lei: para o filsofo, os princpios do
direito; para os juristas, sua aplicao; para 0 legislador, a unidade dos
principias e das sentenas Mas esse no o caso, e a filosofia, submetida
aos poderes combinados dos juristas e dos telogos, enfrenta as maiores
dificuldades do mundo para se fazer respeitar
A questo grave: se o dir eito da filosofia desprezado, no h mais a
poltica, e restam apenas a obrigao estrita e a prudncia poltica, que, como
vimos, no bastam para assegurar a sobr evivncia do Estado Ela to grave
que Kant lhe consagra o conjun to do Conflito das faculdades, cujo objetivo
estabelecer o lugar institucional da filosofia a fim de salvaguardar a
plenitude de sua liberdade de palavr a e de ao
A defesa estatutria da faculdade de filosofia se impe ao mesmo tempo
ao filsofo, como defesa de seu direito, e ao governante, como aquilo que
pode assegur ar a validade jurdica das leis em que se apia Assim,
absolutamente
..
O arquiplago da politica
43 lbid
44 lbid
45 lbid , AK Vil. 25; P lll. p 822
195
194
Compreender
Concluso
o dever de
filosofar
196
197
Compreender
O dever de filosofar
A inf ncia do
pensamento
O segundo elemento que gostaramos de indicar guisa de concluso diz res
pei to, ele tambm, disposio filosfica que vimos em ao duran te todo
o percurso critico percorrido Est estr eitamen te ligado ao conceito de
cul tura, definida por Kan t como receptividade s idias Essa capacidade
propriamen te kan tiana de identificar a racionalidade daquilo que se d ao
homem como uma lei pode ser designada pelo termo probidade -ou
honestidade in telectual
A probidade exigida pela filosofia significa para Kan t, de um lado, uma
grande prudncia em relao s fendas, aos precipcios e aos abismos que per
meiam o campo critico, de outro uma sensibilidade particular quilo que se
apr esen ta como idia nesse campo O respei to pelas incomensura bilidades
ao mesmo tempo marca de humildade in telectual - a preocupao kan
tia na de distinguir e saber sempre a partir de que instncia transcenden tal
um problema posto -, e mais, uma obrigao moral, pois sem esse
respeito o segundo momen to da probidade no tem mais razo de ser,
perdendo a ideali dade seu lugar especfico na evidncia transcenden tal A
probidade da filosofia , pois, a unidade do sentido critico manifestado nessa
tpica e do sen tido da cultura que d lugar obra do juizo Ela s r eal se
todas as ten tativas para atenuar o dever, diminuir a responsabilidade ou
acomodar sua recepo so severamente excluidas, mesmo se depois, e
so111ente depois disso, cada uma dessas mediaes venha a ter um significado
A filosofia no tergiversa Este um dos traos que retivemos, de imediato, de
nossa leitura da moral kan tiana: uma preocupao em levar a cabo a
elaborao da lei mesmo ao pr eo do fim da boa conscincia e da morte da
felicidade da filosofia
O ser da filosofia um ser obrigado Condenada pelo nascimen to da
ques to e pela condio de toda resposta dolorosa exigncia da cultura,
intimada
198
3 Io . Cusage eles plaisir s. Paris, Galliinard, 1984, p 15
199
Compreender
Bibliografia
Textos de Kant e tr
adues
Kant' s gesamme fre Schriften Ed Academia Prussiana de Cincias, Academia
Alem de Cincias Berlin, De Gruyter, 1966-19 79, 23 v
Kant Werkausgage Ed Wilhem Weischedel Frankf urt a M , Suhrkamp, 1974,
12 V
Kant Oeuvres philoso p/11ques Dir Ferdinand Alqui Paris, Gallimard, 1980/1985,
3 v. (Bibliothque de la Pliade)
As tradues a seguir tambm so teis, seja porque no aparecem na Biblio
thque de la Pliade, seja pela qualidade de seu aparato critico:
Cri tique de la faculte de juger Trad Philonenko Paris, Vrin, 1993
Doctrine du droit Trad Philonenko Paris, Vrin, 1993
Doctrine de la vertu Trad. Philonenko Paris, Vrin, 1985
Anthro pologie d u point de vue pragmatique Trad Foucault Paris, Vrin, 1964
Vers la paix per petuei/e Trad Poirier/Proust Paris, Gamier-Flammarion, 1991
Logique lrad Guillermit Paris, Vrin, 1970
201
200
Compreender
Bibliografia
202
203
Compreender
Kant
Anvers/Paris, 1934-193 7
VUIL L E MIN, J L'hritage kantien et la rvolution copernicienne Paris, PU
F, 1954
YOVE L, Y Kant et la philoso phie de /'histoire Mridiens Klincksieck, 1989 \
ndice
64 70. 75 76
A posteriori 38 40-42. 45 56. 65
A priori 12 16 25. 38-43 45-4 7. 49 51
52. 54-5 7 61. 63-67 86 90 105 106
109. 114 124 125 128 134. 143
154 155 173 181 182 185-187
Alma
22
75128
1
1
160.
Anal
transcendent
al
7
Analogia
38
1
1
An
tecipao
64.
An
75
127
1
204
indice
Compreender
155
Finalidade
1112. 17 18. 20 99. 110
134 144-146. 148. 150 151. 153155 157-159 163-166 168. 172.
173. 175. 177 191.196
155
157 176. 182
Guerra
168. 176. 191-193
Histria
189.191.197
Juizo sinttico 41. 42 64. 74. 124
Justia 168. 178 190 195. 196
207
Compreender
ndice
179-192 197-199
71 72 74 77-80. 82 87 89-92 99
100 102 106-108. 111.114. 118. 125.
180. 199
Irnnscendente 72-74 86
169 176
61-64 66 69 70 75 85 86. 91 96
188-192
Respei to 15. 17-19 27. 32. 34 39-41
49. 71. 72. 78. 86 87. 90. 96 98.
106
109-112. 115-118 125 126 130
132. 136 137 153 154. 157
161
208
209