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DELEUZE, Gilles. A Filosofia Crítica de Kant. in Col. O Saber Da Filosofia. Trad. Germiniano Franco. Edições 70. Lisboa, 2000

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Nesta coleção publicam-se

textos considerados representativos


dos nomes importantes da Filosofia,
assim como de investigadores
de reconhecido mérito
nos mais diversos campos
do pensamento filosófico.
1 - A EPISTEMOLOGIA
Gaston Bacheland
2 - IDEOLOGIA E RACIONALIDADE NAS CIÊNCIAS DA VIDA
Georges Canguilhem
3 - A FILOSOFIA CRITICA DE KANT
Gilles Deleuze
4 - O NOVO ESPÍRITO CIENTÍFICO
Gaston Bachclard
5 - A FILOSOFIA CHINESA
Max Kaltenmark
6 - A FILOSOFIA DA MATEMÁTICA
Ambrosio Giacomo Manno
7 - PROLEGÔMENOS A TODA A METAFÍSICA FUTURA
Immanuel Kant
8 - ROUSSEAU E MARX
Galvano Delta Volpe
9 - BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL
Jantes Thrower
II) - FILOSOFIA DA FÍSICA
Mario Bunge
11 - A TRADIÇÃO INTELECTUAL DO OCIDENTE
J. Bronowskì e Bruce Mazlish
12 - A LÓGICA COMO CIÊNCIA HISTÓRICA
Galvano DeIla Volpe
13 - A HISTÓRIA DA LÓGICA - DE ARISTÓTELES A BERTRAND RUSSEL
Robert Blanché
14 - A RAZÃO
Gilles-Gaston Granger
15 - HERMENÊUTICA
Richard E. Palmer
16 - A FILOSOFIA ANTIGA
Emanuele Severino
17 - A FILOSOFIA MODERNA
Emanuele Severino
18 - A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
Emanuele Severino
19 - EXPOSIÇÃO E INTERPRETAÇÃO DA FILOSOFIA TEÓRICA DE KANT
Felix Grayeff
20 - TEORIAS DA LINGUAGEM. TEORIAS DA APRENDIZAGEM
Massimo Piattelli - Palmarini (org.)
21 - A REVOLUÇÃO NA CIÊNCIA 1500-1700
A. Rupert HalI
22 - INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DA HISTÓRIA DE HEGEL
Jean Hyppolite
23 - AS FILOSOFIAS DA CIÊNCIA
Rum Harré
24 - GALILEU E NEWTON LIDOS POR EINSTEIN
Françoise Balibar
25 - A S RAZÕES DA CIÊNCIA
Ludovico Geymonat e Giulio Giorello
26 - A FILOSOFIA DE DESCARTES
John Cottingham
27 - INTRODUÇÃO A HEIDEGGER
Gianni Vattìmo
28 - HERMENÊUTICA E SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO
Susan J. Hekman
29 - EPISTEMOLOGIA CONTEMPORÂNEA
Jonathan Dane),
30 - HERMENÊUTICA CONTEMPORÂNEA
Josef Bleicher
31 - CRÍTICA DA RAZÃO CIENTÍFICA
Kurt Hübner
A FILOSOFIA
CRÍTICA
DE KANT
Título original: La philosophie critique de Kant

© 1963, Presses Universitaires de France

Tradução de Germiniano Franco

Capa de Edições 70

Todos os direitos reservados para língua portuguesa


por Edições 70, Lda. Lisboa – Portugal
Depósito legal n° 84760/94

ISBN: 972-44-0289-4

EDIÇÕES 70, LDA.


Rua Luciano Cordeiro, 123 - 2.° Esq.° – 1069-157 Lisboa / Portugal
Tel.: 21 3190240
Fax: 21 3190249
Esta obra está protegida pela lei. Não pode ser reproduzida,
no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado,
incluindo fotocópia e xerocópia, sem prévia autorização do Editor.
Qualquer transgressão à lei dos Direitos do Autor será passível
de procedimento judicial.
Introdução

O MÉTODO TRANSCENDENTAL

A razão segundo Kant

Kant define a filosofia como «a ciência da relação entre todos os


conhecimentos e os fins essenciais da razão humana»; ou como «o amor
que o ser racional experimenta pelos fins supremos da razão humana» (1).
Os fins supremos da Razão formam o sistema da Cultura. Reconhecemos
já nestas definições uma dupla luta: contra o empirismo, contra o
racionalismo dogmático.
Para o empirismo, a razão não é, falando com propriedade, faculdade
dos fins. Estes remetem para uma afetividade primordial, para uma
«natureza» capaz de os estabelecer. A originalidade da razão consiste
antes numa certa maneira de realizar fins comuns ao homem e ao animal.
A razão é faculdade de ajustar meios indiretos, oblíquos; a cultura é
manha, cálculo, rodeio. Decerto que os meios originais reagem sobre os
fins e os transformam; porém, em última instância, os fins são sempre os
da natureza.
Contra o empirismo, Kant afirma que há fins da cultura, fins inerentes
à razão. Mais ainda, só os fins culturais podem ser considerados
absolutamente derradeiros. «O fim último é um

______________________
(1) Crítica da Razão pura (CRP), e Opus postumum.
fim de tal ordem que a natureza não pode bastar para o efetuar e realizar
em conformidade com a idéia, pois tal fim é absoluto (2).»
Os argumentos de Kant a este respeito são de três espécies.
Argumento de valor: se a razão apenas servisse para realizar fins da
natureza, vemos mal como poderia ela ter um valor superior à simples
animalidade (é evidente que deve possuir, na medida em que existe, uma
utilidade e um uso naturais; mas ela não existe senão em relação com uma
utilidade mais elevada donde retira o seu valor). Argumento por absurdo:
se a Natureza tivesse querido... (Se a natureza tivesse querido realizar os
seus próprios fins num ser dotado de razão teria feito mal em confiar-se ao
que há nele de racional, tendo sido preferível que se entregasse ao instinto,
tanto pelos meios como pelo fim.) Argumento de conflito: se a razão não
passasse de uma faculdade dos meios, não se percebe de que modo dois
gêneros de fins poderiam opôr-se no homem, como espécie animal e como
espécie moral (por exemplo, deixo de ser uma criança do ponto de vista da
Natureza quando me torno capaz de ter filhos; mas sou ainda uma criança
do ponto de vista da cultura, já que não possuo ofício, que me falta apren-
der tudo).
O racionalismo, por seu lado, reconhece sem dúvida que o ser dotado
de razão persegue fins propriamente racionais. Mas, neste caso, o que a
razão apreende como fim é ainda algo exterior e superior: um Ser, um
Bem, um Valor, tomados como regra. da vontade. Por conseguinte, há
menos diferença do que se poderia crer entre o racionalismo e o
empirismo. Um fim é uma representação que determina a vontade.
Enquanto a representação é a de alguma coisa exterior à vontade, importa
pouco que ela seja sensível ou puramente racional; de qualquer maneira,
ela só determina o querer pela satisfação ligada ao «objeto» que
representa. Quer se considere uma representação sensível ou racional, «o
sentimento de prazer pelo qual elas formam o princípio determinante da
vontade... é de uma única e mesma espécie, não apenas na medida em que
ele nunca pode ser conhecido senão empiricamente, mas também em
virtude de afetar uma única e mesma força vital» (3).
Contra o racionalismo, Kant põe em realce que não somente os fins
supremos são fins da razão, como ainda a razão não estabelece outra coisa
senão ela própria ao estabelecê-los. Nos fins

________________________
(2) Crítica do Juízo (CJ), § 84.
(3) Crítica da Razão prática (CRPr), Analítica, escólio 1 do teorema 2.
da razão, é a razão que se toma a si mesma como fim. Há, pois, interesses
da razão, mas, além disso, a razão é o único juiz dos seus próprios
interesses. Os fins ou interesses da razão não são julgáveis nem pela
experiência nem por outras instâncias que permaneçam exteriores ou
superiores à razão. Kant recusa de antemão as decisões empíricas e os
tribunais teológicos. «Todos os conceitos, inclusive todas as questões que
a razão pura nos propõe, residem não na experiência, mas na razão... Foi a
razão que engendrou sozinha estas idéias no seu seio; incumbe-lhe
portanto a ela dar conta do respectivo valor ou inanidade (4).» Uma Crítica
imanente, a razão como juiz da razão, tal é o princípio essencial do
método dito transcendental. Este método propõe-se determinar: 1.° A
verdadeira natureza dos interesses ou dos fins da razão; 2.° Os meios de
realizar estes interesses.

Primeiro sentido da palavra faculdade

Toda a representação está relacionada com algo diferente de si,


objeto e sujeito. Distinguimos tantas faculdades do espírito quantos os
tipos de relações existentes. Em primeiro lugar, uma representação pode
ser referida ao objeto do ponto de vista do acordo ou da conformidade:
este caso, o mais simples, define a faculdade de conhecer. Mas, em
segundo lugar, a representação pode entrar numa relação de causalidade
com o seu objeto. Tal é o caso da faculdade de desejar: «faculdade de
ser pelas suas representações causa da realidade dos objetos destas
representações.» (Objectar-se-á que existem desejos impossíveis; mas,
neste exemplo, está ainda implicada na representação como tal uma
relação causal, se bem que esta depare com uma outra causalidade que
acaba de contradizer. A superstição mostra ampla-mente que nem sequer
a consciência da nossa impotência «pode refrear os nossos esforços»)
(5). Enfim, a representação está em relação com o sujeito, visto que tem
um certo efeito sobre ele, visto que o afeta intensificando ou entravando
a sua força vital. Esta terceira relação define, como faculdade, o
sentimento de prazer e de dor.
Talvez não haja prazer sem desejo, desejo sem prazer, prazer e
desejo sem conhecimento..., etc. Mas a questão não é

____________________
(4) CRP, Metodologia, «da impossibilidade em que se vê a razão em
desacordo consigo mesma de encontrar a paz no cepticismo».
(5) CJ, introd., § 3.
esta. Não se trata de saber quais as misturas de fato. Trata-se de saber se
cada uma destas faculdades, tal como é definida de direito, é capaz de uma
forma superior. Diz-se que uma faculdade tem uma forma superior
quando ela acha em si mesma a lei do seu próprio exercício (ainda que,
desta lei, decorra uma relação necessária com uma das outras faculdades).
Sob a sua forma superior, uma faculdade é, pois, autônoma. A Crítica da
Razão pura começa por perguntar: há uma faculdade de conhecer
superior? A Crítica da Razão prática: há uma faculdade de desejar
superior? A Crítica do Juízo: há uma forma superior do prazer e da dor?
(Durante muito tempo, Kant só admitiu esta última possibilidade.)

Faculdade de conhecer superior

Uma representação não basta só por si para formar um


conhecimento. Para conhecermos alguma coisa, é necessário não só
termos uma representação mas também sairmos dela «para reconhecer
uma outra como estando-lhe ligada». O conhecimento é, portanto, síntese
de representações. «Pensamos encontrar fora do conceito A um predicado
F que é estranho a este conceito, mas que julgamos dever unir a ele»;
afirmamos do objeto de uma representação algo que não está contido nesta
representação. Ora, uma tal síntese apresenta-se sob duas formas: a
posteriori, quando ela depende da experiência. Se digo «esta linha reta é
branca», trata-se realmente de um encontro entre duas determinações
indiferentes: nem todas as linhas ratas são brancas e as que o são não o são
necessariamente.
Ao invés, quando digo «a linha reta é o mais curto caminho», «tudo
aquilo que muda tem uma causa», opero uma síntese a priori : afirmo B
acerca de A supondo o primeiro necessária e universalmente ligado ao
segundo. (B é, pois, ele próprio, uma representação a priori ; quanto a A,
pode sê-lo ou não.) Os caracteres do a priori são o universal e o
necessário. Mas a definição do a priori é: independente da experiência.
Pode acontecer que o a priori se aplique à experiência e, em certos casos,
não se aplique senão a ela; mas não deriva dela. Por definição, não há
experiência que corresponda às palavras «todos», «sempre»,
«necessariamente»... O mais curto não é um comparativo ou o resultado
de uma indução, mas uma regra a priori pela qual gero uma linha
enquanto linha reta. Causa também não é o produto de uma indução, mas
um conceito a priori pelo qual reconheço na experiência alguma coisa
que acontece.
Sempre que a síntese for empírica, a faculdade de conhecer aparece
sob a sua forma inferior: encontra a sua lei na experiência e não em si
mesma. Mas, a síntese a priori define uma faculdade de conhecer
superior. Com efeito, esta já se não pauta por objetos que lhe dariam uma
lei; pelo contrário, é a síntese a priori que atribui ao objeto uma
propriedade que não estava contida na representação. E então preciso que
o próprio objeto seja submetido à síntese de representação, que ele mesmo
se paute pela nossa faculdade de conhecer, e não o inverso. Quando a
faculdade de conhecer acha em si mesma a sua própria lei, legisla desta
sorte sobre os objetos de conhecimento.
Eis porque a determinação de uma forma superior da faculdade de
conhecer é ao mesmo tempo a determinação de um interesse da Razão:
«Conhecimento racional e conhecimento a priori são coisas idênticas»,
ou os juízos sintéticos a priori são igualmente princípios do que se deve
denominar «as ciências teoréticas da razão» (6). Um interesse da razão
define-se por aquilo por que a razão se interessa, em função do estado
superior de uma faculdade. A Razão experimenta naturalmente um
interesse especulativo; e experimenta-o pelos objetos que são
necessariamente submetidos à faculdade de conhecer sob a sua forma
superior.
Se perguntarmos agora: quais são esses objetos?, vemos
imediatamente que seria contraditório responder «as coisas em si». Como
é que uma coisa tal qual ela é em si poderia ser submetida à nossa
faculdade de conhecer e pautar-se por ela? Só o podem em princípio os
objetos tais como eles aparecem, ou seja, os «fenômenos». (Assim, na
Crítica da Razão pura, a síntese a priori é independente da experiência,
mas não se aplica senão aos objetos da experiência.) Vê-se, pois, que o
interesse especulativo da razão incide naturalmente sobre os fenômenos e
apenas sobre eles. Não se creia que Kant tem necessidade de longas
demonstrações para chegar a este resultado: é um ponto de partida da
Crítica, o verdadeiro problema da Crítica da Razão pura começa para lá
dele. Se só houvesse o interesse especulativo, seria bastante duvidoso que
a razão se empenhasse alguma vez em considerações sobre as coisas em
si.

Faculdade de desejar superior

A faculdade de desejar pressupõe uma representação que determina a


vontade. Mas bastará, desta vez, invocar a

__________________
(6) CRPr, prefácio; CRP, introd. 5.
existência de representações a priori para que a síntese da vontade e da
representação seja ela própria a priori ? Na verdade, o problema coloca-se
de forma assaz diversa. Mesmo quando uma representação é a priori , ela
determina a vontade por intermédio de um prazer ligado ao objeto que
representa: a síntese permanece assim empírica ou a posteriori; a vontade,
determinada de maneira «patológica»; a faculdade de desejar, num estado
inferior. Para que esta alcance a sua forma superior, é preciso que a
representação deixe de ser uma representação de objeto, mesmo a priori .
E preciso que seja a representação de uma pura forma. «Se tirarmos por
abstração a uma lei toda a matéria, ou seja, todo o objeto da vontade como
princípio determinante, nada mais resta que a simples forma de uma
legislação universal (7).» A faculdade de desejar é, pois, superior, e a
síntese prática que lhe corres-ponde é a priori , quando a vontade já não é
determinada pelo prazer, mas pela simples forma da lei. Então, a faculdade
de desejar já não encontra a sua lei fora de si mesma, numa matéria ou
num objeto, mas em si mesma: diz-se autônoma (8).
Na lei moral, é a razão por si mesma (sem o intermédio de um
sentimento de prazer ou de dor) que determina a vontade. Há, pois, um
interesse da razão correspondente à faculdade de desejar superior:
interesse prático, que se não confunde nem com um interesse empírico
nem com o interesse especulativo. Kant não cessa de lembrar que a Razão
prática é profundamente «interessada». Pressentimos assim que a Crítica
da Razão prática vai desenvolver-se paralelamente à Crítica da Razão
pura: trata-se, antes de mais, de saber qual é a natureza deste interesse e o
que ele abarca. Isto é: achando a faculdade de. desejar a sua própria lei em
si mesma, qual é o campo de incidência desta legislação? Quais os seres
ou os objetos que se encontram submetidos à síntese prática? Todavia, não
está posto de parte que, mau grado o paralelismo das questões, a resposta
seja aqui muito mais complexa do que no caso precedente. Ser-nos-á
assim permitido adiar para mais tarde o exame desta resposta. (Mais ainda:
ser-nos-á provisoriamente permitido não examinar a questão de uma
forma superior do prazer e da dor, porquanto o sentido desta questão
pressupõe também as duas outras Críticas.)

___________________
(7) CRPr, Analítica, teorema 3.
(8) Para a Crítica da Razão prática, deve consultar-se a introdução de M.
ALQUIÉ, na edição das Presses Universitaires de France, e o livro de
VIALATOUX, na coleção «SUP-Initiation philosophique».
Basta-nos reter o princípio de uma tese essencial da Crítica em geral:
há interesses da razão que diferem em natureza. Estes interesses formam
um sistema orgânico e hierarquizado, que é o dos fins do ser racional.
Acontece que os racionalistas só retêm o interesse especulativo: afigura-
se-lhes que os interesses práticos apenas decorrem daquele. Mas tal
inflação do interesse especulativo tem duas conseqüências aborrecidas: é-
se induzido em erro quanto aos verdadeiros fins da especulação, mas,
acima de tudo, restringe-se a razão a um só dos seus interesses. A pretexto
de desenvolver o interesse especulativo, mutila-se a razão nos seus
interesses mais profundos. A idéia de uma pluralidade (e de uma
hierarquia) sistemática dos interesses, em conformidade com o primeiro
sentido da palavra «faculdade», domina o método kantiano. Esta idéia é
um autêntico princípio, princípio de um sistema dos fins.

Segundo sentido da palavra faculdade

Num primeiro sentido, faculdade remete para as diversas relações de


uma representação em geral. Mas, num segundo sentido, faculdade
designa uma fonte específica de representações. Distinguir-se-ão assim
tantas faculdades quantas as espécies de representações existentes. O
quadro mais simples, do ponto de vista do conhecimento, é o seguinte: 1.°
Intuição (representação singular que se refere imediatamente a um objeto
de experiência e que tem a sua fonte na sensibilidade); 2.° Conceito
(representação que se refere mediatamente a um objeto de experiência, por
intermédio de outras representações, e que tem a sua fonte no
entendimento); 3.° Idéia (conceito que supera igualmente a possibilidade
da experiência e que tem a sua fonte na razão) (9).
No entanto, a noção de representação, tal como a empregamos até
agora, permanece vaga. De uma maneira mais precisa, devemos distinguir
a representação e o que se apresenta. O que se nos apresenta é, em
primeiro lugar, o objeto tal como ele aparece. Ainda aqui a palavra
«objeto» está a mais. O que se nos apresenta ou o que aparece na intuição
é, antes de tudo, o fenômeno enquanto diversidade sensível empírica (a
posteriori). Vemos que, em Kant, fenômeno não quer dizer aparência, mas
aparição (10).

___________________
(9) CRP, Dialéctica, «Das idéias em geral».
(10) CRP, Estética, § 8 («Não digo que os corpos se limitam a parecer existir
fora de mim... Enganar-me-ia se não visse senão uma pura aparência naquilo que
deveria olhar como um fenômeno»).
O fenômeno aparece no espaço e no tempo: o espaço e o tempo são para
nós as formas de toda a aparição possível, as formas puras da nossa
intuição ou da nossa sensibilidade. Enquanto tais, são por sua vez
apresentações: neste caso, apresentações a priori . O que se apresenta não
é, pois, unicamente a diversidade fenomenal empírica no espaço e no
tempo, mas a diversidade pura a priori do espaço e do tempo em si
mesmos. A intuição pura (o espaço e o tempo) é precisamente a única
coisa que a sensibilidade apresenta a priori .
Falando com propriedade, não diremos que a própria intuição a
priori seja uma representação nem que a sensibilidade seja uma fonte de
representações. O que conta na representação é o prefixo: re-presentação
implica uma retomada ativa daquilo que se apresenta, portanto, uma
atividade e uma unidade que se distinguem da passividade e da
diversidade inerentes à sensibilidade como tal. Deste ponto de vista, já não
temos necessidade de definir o conhecimento como uma síntese de
representações. É a própria reapresentação que se define como
conhecimento, isto é, como a síntese do que se apresenta.
Devemos distinguir, por um lado, a sensibilidade intuitiva como
faculdade de recepção e, por outro, as faculdades ativas como fontes de
verdadeiras representações. Tomada na sua atividade, a síntese remete
para a imaginação; na sua unidade, para o entendimento; na sua totalidade,
para a razão. Temos assim três faculdades ativas que intervêm na síntese,
mas que são do mesmo modo fontes de representações específicas, quando
se considera uma delas em relação a outra: a imaginação, o entendimento,
a razão. A nossa constituição é de tal ordem que possuímos uma faculdade
receptiva e três faculdades ativas. (Podemos supor outros seres
diferentemente constituídos; por exemplo, um ser divino cujo
entendimento seria intuitivo e produziria o diverso. Mas então todas as
suas faculdades se reuniriam numa unidade eminente. A idéia de um tal
Ser como limite pode inspirar a nossa razão, mas não exprime a nossa
razão nem a sua situação relativamente às nossas outras faculdades.)

Relação entre os dois sentidos da palavra faculdade

Consideremos uma faculdade no primeiro sentido: sob a sua forma


superior, ela é autônoma e legislativa; legisla sobre objetos que lhe estão
submetidos; corresponde-lhe um interesse da razão. A primeira questão da
Crítica em geral, pois: quais são essas formas superiores, que interesses
são esses e sobre
que incidem eles? Mas sobrevém uma segunda questão: como se realiza
um interesse da razão? Isto é: o que garante a submissão dos objetos, como
são eles submetidos? O que é que legisla verdadeiramente na faculdade
considerada? E a imaginação, é o entendimento ou é a razão? Vê-se que,
ao definir-se uma faculdade no primeiro sentido da palavra, de tal sorte
que lhe corresponda um interesse da razão, devemos ainda procurar uma
faculdade, no segundo sentido, capaz de realizar esse interesse ou de
garantir a tarefa legisladora. Por outras palavras, nada nos garante que a
razão se encarregue por si mesma de realizar o seu próprio interesse.
Seja o exemplo da Crítica da Razão pura. Esta começa por descobrir a
faculdade de conhecer superior, portanto, o interesse especulativo da
razão. Tal interesse incide sobre os fenômenos; com efeito, visto que não
são coisas em si, os fenômenos podem ser submetidos à faculdade de
conhecer, e devem sê-lo para que o conhecimento se torne possível. Mas,
perguntamos por outro lado, qual é a faculdade, enquanto fonte de
representações, que garante esta submissão e realiza este interesse? Qual é
a faculdade (no segundo sentido) que legisla na própria faculdade de
conhecer? A célebre resposta de Kant é que só o entendimento legisla na
faculdade de conhecer ou no interesse especulativo da razão. Não é, pois,
a razão que vela, aqui, pelo seu próprio interesse: «A razão pura abandona
tudo ao entendimento (11) ...»
Devemos prever que a resposta não será idêntica para cada Crítica:
assim, na faculdade de desejar superior, por conseguinte, no interesse
prático da razão, é a própria razão que legisla, não deixando a mais
ninguém o cuidado de realizar o seu próprio interesse.
A segunda questão da Crítica em geral comporta ainda um outro
aspecto. Uma faculdade legisladora, enquanto fonte de representações, não
suprime todo o emprego das outras faculdades. Quando o entendimento
legisla no interesse de conhecer, a imaginação e a razão nem por isso
deixam de desempenhar um papel inteiramente original, mas adaptado a
tarefas determinadas pelo entendimento. Quando a própria razão legisla no
interesse prático, é o entendimento que deve por seu turno desempenhar
um papel original, numa perspectiva determinada pela razão ..., etc.
Segundo esta Crítica, o entendimento, a razão e a imaginação entrarão em
relações diversas, sob a presidência de uma das faculdades. Há, pois,
variações sistemáticas na relação entre faculdades,

__________________
(11) CRP, Dialéctica, «das idéias transcendentais».

FK - 2
consoante consideramos um ou outro interesse da razão. Em suma: a uma
certa faculdade no primeiro sentido da palavra (faculdade de conhecer,
faculdade de desejar, sentimento de prazer ou de dor) deve corresponder
uma certa relação entre faculdades no segundo sentido da palavra
(imaginação, entendimento, razão). E por tal motivo que a doutrina das
faculdades forma um verdadeiro entrelaçamento, constitutivo do método
transcendental.
Capítulo I

RELAÇÃO DAS FACULDADES NA CRÍTICA


DA RAZÃO PURA

«A priori» e transcendental

Os critérios do a priori são o necessário e o universal. O a priori


define-se como independente da experiência, mas precisamente porque a
experiência nunca nos «dá» nada que seja universal e necessário. As
palavras «todos», «sempre», «necessariamente» ou mesmo «amanhã» não
remetem para coisa alguma na experiência: não derivam da experiência,
ainda que a ela se apliquem. Ora, quando conhecemos, empregamos tais
palavras: dizemos mais do que aquilo que nos é dado, ultrapassamos os
dados da experiência. Falou-se muitas vezes da influência de Hume sobre
Kant. Hume, de fato, foi o primeiro a definir o conhecimento por uma tal
superação. Conheço, não quando verifico: «vi mil vezes o Sol nascer»,
mas quando julgo: «o Sol nascerá amanhã”, “todas as vezes que a água
está a 100°, entra necessariamente em ebulição» ...
Kant começa por perguntar: qual é o fato do conhecimento (quid
facti)? O fato do conhecimento é termos representações a priori (graças
às quais julgamos). Sejam simples «apresentações»: o espaço e o tempo,
formas a priori da intuição, intuições elas próprias a priori , que se
distinguem das apresentações empíricas
ou dos conteúdos a posteriori (por exemplo, a cor vermelha). Sejam
«representações» propriamente ditas: a substância, a causa, etc., conceitos
a priori que se distinguem dos conceitos empíricos (por exemplo, o
conceito de leão). A questão quid facti? é o objeto da metafísica. Que o
espaço e o tempo sejam apresentações ou intuições a priori , tal é o objeto
do que Kant denomina «a exposição metafísica» do espaço e do tempo.
Que
o entendimento disponha de conceitos a priori (categorias), os quais se
deduzem das formas do juízo, tal é o objeto do que Kant denomina «a
dedução metafísica» dos conceitos.
Se superamos o que nos é dado na experiência, é em virtude de
princípios que são nossos, princípios necessariamente subjetivos. O dado
não pode fundar a operação pela qual ultrapassamos o dado. Todavia, não
é suficiente que tenhamos princípios; não menos necessário é que
disponhamos da ocasião de os exercer. Digo «o Sol nascerá amanhã», mas
amanhã não se torna presente sem que o Sol nasça realmente. Não
tardaríamos a perder a ocasião de exercer os nossos princípios se a própria
experiência não viesse confirmar e como que efetivar as nossas
superações. Importa, pois, que o próprio dado da experiência seja
submetido a princípios do mesmo género que os princípios subjetivos que
pautam as nossas diligências. Se o Sol umas vezes nascesse e outras não;
«se o cinábrio fosse ora vermelho ora negro, ora pesado ora leve; se um
homem se transformasse ora num animal ora noutro; se durante um longo
dia a terra apare-cesse coberta ora de frutos ora de gelo e neve, a minha
imaginação empírica não encontraria ocasião de receber no pensamento o
pesado cinábrio com a representação da cor vermelha...»; «a nossa
imaginação empírica nunca teria algo para fazer que fosse conforme à sua
potência e, por conseguinte, quedar-se-ia enterrada no fundo do espírito
como uma faculdade morta e desconhecida de nós mesmos» (1).
Vemos assim em que ponto se realiza a ruptura entre Kant Hume.
Hume tinha visto muito bem que o conhecimento implica princípios
subjetivos, pelos quais superamos o dado. Mas estes princípios pareciam-
lhe apenas princípios da natureza humana, princípios psicológicos de
associação concernentes às nossas próprias representações. Kant
transforma o problema: o que se nos apresenta de maneira a formar uma
Natureza deve necessariamente obedecer a princípios do mesmo género
(mais ainda, aos mesmos princípios) que aqueles que regulam o curso

_________________
(1) CRP, Analítica, 1.ª ed., «da síntese da reprodução na imaginação».
das nossas representações. São os mesmos princípios que devem dar conta
dos nossos procedimentos subjetivos e também do fato de o dado se
submeter aos nossos procedimentos. O que equivale a dizer que a
subjetividade dos princípios não é uma subjetividade empírica ou
psicológica, mas uma subjetividade «transcendental».
Eis porque, à questão de fato, sucede uma mais alta questão: questão
de direito, quid juris? Não basta verificar que, de fato, temos
representações a priori . É ainda indispensável que se nos torne claro por
que motivo e de que modo tais representações se aplicam necessariamente
à experiência, conquanto dela não derivem. Por que motivo e de que modo
está o dado que se apresenta na experiência necessariamente submetido
aos mesmos princípios que os que regulam a priori as nossas
representações (portanto, submetido às nossas próprias representações a
priori )? Tal é a questão de direito. A priori designa representações que
não derivam da experiência. Transcendental designa o princípio em
virtude do qual a experiência é necessariamente submetida às nossas
representações a priori . Assim se explica que à exposição metafísica do
espaço e do tempo suceda uma exposição transcendental. E à dedução
metafísica das categorias, uma dedução transcendental. «Transcendental»
qualifica o princípio de uma submissão necessária dos dados da
experiência às representações a priori e, correlativamente, de uma
aplicação necessária das representações a priori à experiência.

A revolução copernicana

No racionalismo dogmático, a teoria do conhecimento fundava-se na


idéia de urna correspondência entre o sujeito e o objeto, de um acordo
entre a ordem das idéias e a ordem das coisas. Este acordo tinha dois
aspectos: implicava em si mesmo uma finalidade; e exigia um princípio
teológico como fonte e garantia dessa harmonia, dessa finalidade. Mas é
curioso verificar que, numa perspectiva muito diferente, o empirismo de
Hume recorria a um expediente semelhante: para explicar que os prin-
cípios da Natureza estivessem de acordo com os da natureza humana,
Hume era forçado a invocar explicitamente uma harmonia preestabelecida.
A idéia fundamental do que Kant denomina a sua «revolução
copernicana» consiste no seguinte: substituir a idéia de uma harmonia
entre o sujeito e o objeto (acordo final) pelo princípio de uma submissão
necessária do objeto ao sujeito.
A descoberta essencial é que a faculdade de conhecer é legisladora ou,
mais precisamente, que há algo de legislador na faculdade de conhecer.
(De igual modo, algo de legislador na faculdade de desejar.) Assim, o ser
dotado de razão descobre em si novos poderes. A primeira coisa que a
revolução copernicana nos ensina é que somos nós que comandamos. Há
aqui uma inversão da antiga concepção da Sageza: o sábio definia-se de
uma certa forma pelas suas próprias submissões, de uma outra forma pelo
seu acordo «final» com a Natureza. Kant opõe à sageza a imagem crítica:
nós, os legisladores da Natureza. Quando um filósofo, aparentemente
muito afastado do kantismo, anuncia a substituição de Parere por Jubere,
mostra-se mais devedor a Kant do que ele próprio pensa.
Seria legítimo esperar que o problema de uma submissão do objeto
pudesse ser facilmente resolvido do ponto de vista de um idealismo
subjetivo. Mas nenhuma solução é mais estranha ao kantismo. O realismo
empírico é uma constante da filosofia crítica. Os fenômenos não são
aparências, mas também não são produtos da nossa atividade. Afetam-nos
na medida em que somos sujeitos passivos e receptivos. Podem ser-nos
submetidos, precisamente porque não se trata de coisas em si. Mas como o
serão, sabendo-se que não somos nós que os produzimos? Como é que um
sujeito passivo pode ter, por outro lado, uma faculdade ativa de tal ordem
que as afecções que ele experimenta sejam necessariamente submetidas a
esta faculdade? Em Kant, o problema da relação do sujeito e do objeto
tende, pois, a interiorizar-se: converte-se no problema de uma relação
entre faculdades subjetivas que diferem em natureza (sensibilidade
receptiva e entendimento ativo).

A síntese e o entendimento legislador

Representação quer dizer síntese do que se apresenta. A síntese


consiste, portanto, no seguinte: uma diversidade é representada, ou seja,
tida como encerrada numa representação. A síntese tem dois aspectos: a
apreensão, pela qual fixamos o diverso como ocupando um certo espaço e
um certo tempo, pela qual «produzimos» partes no espaço e no tempo; a
reprodução, pela qual reproduzimos as partes precedentes à medida que
chegamos às seguintes. A síntese assim definida não incide somente sobre
a diversidade tal como aparece no espaço e no tempo, mas sobre a
diversidade do espaço e tempo em si mesmos. Sem ela, com efeito, o
espaço e o tempo não seriam «representados».
A síntese, quer como apreensão quer como reprodução, é sempre
definida por Kant como um ato da imaginação (2). Mas a questão é: será
inteiramente exato dizer, como fizemos precedentemente, que a síntese
basta para constituir o conhecimento? Na verdade, o conhecimento
implica duas coisas que extravasam a própria síntese: ele implica a
consciência ou, mais precisamente, a pertença das representações a uma
mesma consciência na qual devem estar ligadas. Ora, a síntese da
imaginação, tomada em si mesma, não é de modo algum consciência de si
(3). Por outro lado, o conhecimento implica uma relação necessária com
um objeto. O que constitui o conhecimento não é simples-mente o ato pelo
qual se faz a síntese do diverso, mas 'o ato pelo qual se refere a um objeto
o diverso representado (recognição: é uma mesa, é uma maçã, é tal ou tal
objeto...).
Estas duas determinações do conhecimento têm uma relação
profunda. As minhas representações são minhas enquanto estão ligadas na
unidade de uma consciência, de tal sorte que o «Eu penso» as acompanha.
Ora, as representações não estão assim unidas numa consciência sem que
o diverso que sintetizam esteja no mesmo passo referido a um objeto
qualquer. Sem dúvida, conhecemos unicamente objetos qualificados
(qualificados como tal ou tal por uma diversidade). Mas nunca o diverso
se referiria a um objeto se porventura não dispuséssemos da objetividade
como de uma forma em geral («objeto qualquer», «objeto = x»). Donde
vem esta forma? O objeto qualquer é o correlato do Eu penso ou da
unidade da consciência, é a expressão do Cogito, sua objetivação formal.
Por isso, a verdadeira fórmula (sintética) do Cogito é: penso e, pensando-
me, penso o objeto qualquer ao qual se refere uma diversidade
representada.
A forma do objeto não remete para a imaginação, mas para o
entendimento: «Sustento que o conceito de um objeto em geral, que não é
possível encontrar na mais clara consciência da intuição, pertence ao
entendimento como a uma faculdade particular (4).» Com efeito, todo o
uso do entendimento se desenvolve a partir do Eu penso; mais ainda, a
unidade do Eu penso «é o próprio entendimento» (5). O entendimento
dispõe de

________________________
(2) CRP, Analítica, passim (cf. 1.ª ed., «da relação entre o entendimento e
objetos em geral»: «Há uma faculdade ativa que opera a síntese dos elementos
diversos: denominamo-la imaginação, e à sua ação que se exerce imediatamente
nas percepções, chamo-lhe apreensão»).
(3) CRP, Analítica, § 10.
(4) Carta a Herz, 26 de Maio de 1789.
(5) CRP, Analítica, § 16.
conceitos a priori que se chamam categorias; se perguntarmos como é
que as categorias se definem, veremos que são ao mesmo tempo
representações da unidade da consciência e, como tais, predicados do
objeto qualquer. Por exemplo, nem todos os objetos são vermelhos, e os
que o são não o são necessariamente; mas não há objeto que não seja
necessariamente substância, causa e efeito de outra coisa, que não esteja
em relação recíproca com outra coisa. A categoria confere assim à síntese
da imaginação uma unidade sem a qual esta nos não proporcionaria
conhecimento algum propriamente dito. Em suma, podemos dizer o que
incumbe ao entendimento: não é a própria síntese, mas a unidade da
síntese e as expressões desta unidade.
A tese kantiana é: os fenômenos estão necessariamente submetidos às
categorias, de tal modo que, pelas categorias, somos os verdadeiros
legisladores da Natureza. Mas a questão é, antes de mais: por que motivo é
precisamente o entendimento (e não a imaginação) o legislador? Por que
motivo é ele que legisla na faculdade de conhecer? Para encontrar a
resposta a esta questão, talvez baste comentar os respectivos termos. E
evidente que não poderíamos perguntar: porque é que os fenômenos estão
submetidos ao espaço e ao tempo? Os fenômenos são o que aparece, e
aparecer é estar imediatamente no espaço e no tempo. «Como é
unicamente mediante estas puras formas da sensibilidade que uma coisa
pode aparecer-nos, isto é, tornar-se objeto de intuição empírica, o espaço e
o tempo são puras intuições que contêm a priori a condição da
possibilidade dos objetos como fenômenos (6).» Eis porque o espaço e o
tempo são objeto de uma «exposição», não de uma dedução; e a sua
exposição transcendental, comparada à exposição metafísica, não levanta
qualquer dificuldade particular. Não é possível, portanto, dizer que os
fenômenos estão «submetidos» ao espaço e ao tempo: não só porque a
sensibilidade é passiva, mas sobretudo porque ela é imediata, além de a
idéia de submissão implicar, ao invés, a intervenção de um mediador, isto
é, de uma síntese que refira os fenômenos a uma faculdade ativa capaz de
ser legisladora.
Por conseguinte, a imaginação também não é faculdade legisladora. A
imaginação encarna precisamente a mediação, opera a síntese que refere
os fenômenos ao entendimento como única faculdade que legisla no
interesse de conhecer. É por isso que Kant escreve: «A razão pura
abandona tudo ao entendimento, o qual se aplica imediatamente aos
objetos da intuição ou, antes,

______________
(6) CRP, Analítica, § 13.
à síntese destes objetos na imaginação (7).» Os fenômenos não são
submetidos à síntese da imaginação, são submetidos por esta síntese ao
entendimento legislador. Ao contrário do espaço e do tempo, as categorias
como conceitos do entendimento são, pois, objeto de uma dedução
transcendental, que coloca e resolve o problema particular de uma
submissão dos fenômenos.
Eis como o problema é resolvido nas suas grandes linhas: 1.° Todos
os fenômenos estão no espaço e no tempo; 2.° A síntese a priori da
imaginação incide a priori sobre os próprios espaço e tempo; 3.° Os
fenômenos estão, portanto, necessariamente submetidos à unidade
transcendental desta síntese e às categorias que a representam a priori. E
realmente neste sentido que o entendimento é legislador: sem dúvida, ele
não nos diz as leis a que estes ou aqueles fenômenos obedecem do ponto
de vista da sua matéria, embora constitua as leis a que todos os fenômenos
estão submetidos do ponto de vista da sua forma, de tal maneira que eles
«formam» uma Natureza sensível em geral.

Papel da imaginação

Perguntamos agora o que faz o entendimento legislador com os seus


conceitos ou as suas unidades de síntese. Ele julga: “O entendimento não
pode fazer destes conceitos outro uso além do de julgar por seu intermédio
(8).» Perguntamos ainda: que faz a imaginação com as suas sínteses?
Segundo a célebre resposta de Kant, a imaginação esquematiza. Não se
confundirão, pois, na imaginação, a síntese e o esquema. O esquema
pressupõe a síntese. A síntese é a determinação de um certo espaço e de
um certo tempo, pela qual a diversidade é referida ao objeto em geral
conformemente às categorias. Mas o esquema é uma determinação espaço-
temporal, ela mesma correspondente à categoria, em qualquer tempo e em
qualquer lugar: não consiste numa imagem, mas em relações espaço-
temporais que encarnam ou realizam relações propriamente conceptuais.
O esquema da imaginação é a condição sob a qual o entendimento
legislador faz juízos com os seus conceitos, juízos que servirão de
princípio a todo o conhecimento do diverso. Não responde à questão:

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(7) CRP, Dialéctica, «das idéias transcendentais».
(8) CRP, Analítica, «do uso lógico do entendimento em geral». A
questão de saber se o juízo implica ou forma uma faculdade particular será
examinada no capítulo III.
como é que os fenômenos são submetidos ao entendimento?, mas a
estoutra questão: como é que o entendimento se aplica aos fenômenos que
lhe são submetidos?
Na circunstância de relações espaço-temporais poderem ser
adequadas a relações conceptuais (apesar da sua diferença de natureza)
reside, na opinião de Kant, um profundo mistério e uma arte escondida.
Mas não devemos apoiar-nos neste texto para pensar que o esquematismo
é o ato mais profundo da imaginação ou a sua arte mais espontânea. O
esquematismo é um ato original da imaginação: só ela esquematiza. Mas
só esquematiza quando o entendimento preside ou tem o poder legislador.
Ela. apenas esquematiza no interesse especulativo. Quando o
entendimento se encarrega do interesse especulativo, por conseguinte,
quando se torna determinante, então e só então a imaginação é
determinada a esquematizar. Veremos mais adiante as conseqüências de
tal situação.

Papel da razão

O entendimento julga, mas a razão raciocina. Ora, conformemente à


doutrina de Aristóteles, Kant concebe o raciocínio de maneira silogística:
dado um conceito do entendimento, a razão procura um meio-termo, isto
é, outro conceito que, tomado em toda a sua extensão, condicione a
atribuição do primeiro conceito a um objeto (assim, homem condiciona a
atribuição de «mortal» a Caio). Deste ponto de vista, é pois relativamente
aos conceitos do entendimento que a razão exerce o seu gênio próprio: «A
razão chega a um conhecimento por meio de atos do entendimento que
constituem uma série de condições (9).» Mas, precisamente, a existência
de conceitos a priori do entendimento (categorias) coloca um problema
particular. As categorias aplicam-se a todos os objetos da experiência
possível; para encontrar um meio-termo que fundamente a atribuição do
conceito a priori a todos os objetos, a razão já não pode dirigir-se a um
outro conceito (mesmo a priori ), antes deve formar Idéias que superam a
possibilidade da experiência. É assim que a razão é induzida de uma certa
maneira, no seu próprio interesse especulativo, a formar Idéias
transcendentais. Estas representam a totalidade das condições sob as quais
se atribui uma categoria de relação aos objetos da experiência possível;
representam então algo

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(9) CRP, Dialéctica, «das idéias transcendentais».
de incondicional (10). É o caso do sujeito absoluto (Alma) relativamente à
categoria de substância, da série completa (Mundo) relativamente à
categoria de causalidade, do todo da realidade (Deus como ens
realissimum) relativamente à comunidade.
Também aqui se vê que a razão desempenha um papel que só ela é
capaz de assumir; mas é determinada a desempenhar tal papel. «A razão
só tem propriamente como objeto o entendimento e o seu emprego
conforme ao seu fim (11).” Subjetivamente, as Idéias da razão referem-se
aos conceitos do entendimento para lhes conferir ao mesmo tempo um
máximo de unidade e de extensão sistemáticas. Sem a razão, o
entendimento não reuniria num todo o conjunto das suas diligências
respeitantes a um objeto. Eis porque razão, a no próprio momento em que
abandona ao entendimento o poder legislativo no interesse do conhe-
cimento, não deixa de conservar um papel ou, melhor, recebe em troca, do
próprio entendimento, uma função original: constituir focos ideais fora da
experiência, para os quais convergem os conceitos do entendimento
(máximo de unidade); formar horizontes superiores que refletem e
abarcam os conceitos do entendimento (máximo de extensão) (12). «A
razão pura abandona tudo ao entendimento, que se aplica imediatamente
aos objetos da intuição ou, antes, à síntese destes objetos na imaginação.
Reserva somente para si a absoluta totalidade no uso dos conceitos do
entendimento e procura impelir a unidade sintética concebida na categoria
até ao incondicional absoluto (13).”
A razão tem também um papel, objetivamente, pois o entendimento só
pode legislar sobre os fenômenos do ponto de vista da forma. Ora,
suponhamos que os fenômenos se encontram submetidos à unidade da
síntese mas apresentam, do ponto de vista da sua matéria, uma diversidade
radical: igualmente aqui, o entendimento deixaria de ter ocasião de exercer
o seu poder (desta vez: a ocasião material). «Já nem sequer haveria
conceito de género, ou conceito geral, e, por conseqüência, entendimento
(14).» É, portanto, necessário, não apenas que os fenômenos do ponto de
vista da forma estejam submetidos às categorias, mas ainda que os
fenômenos do ponto de vista da matéria correspondam ou simbolizem com
as Idéias da razão.

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(10) CRP, íbíd.
(11) CRP, Dialéctica, apêndice, «do uso regulador das idéias».
(12) CRP, ibid..
(13) CRP, Dialéctica, «das idéias transcendentais».
(14) CRP, Dialéctica, apêndice, «do uso regulador das idéias».
Reintroduzem-se a este nível uma harmonia, uma finalidade. Mas vê-se
que, neste caso, a harmonia é simplesmente postulada entre a matéria dos
fenômenos e as Idéias da razão. Não é lícito dizer, com efeito, que a razão
legisla sobre a matéria dos fenômenos. Ela deve supor uma unidade
sistemática da Natureza, deve fixar esta unidade como problema ou, como
limite e pautar todas as suas diligências pela idéia deste limite até ao
infinito. A razão é, pois, a faculdade que diz: tudo se passa como se... Não
afirma de modo algum que a totalidade e a unidade das condições são
dadas no. objeto, mas apenas que os objetos nos permitem tender para esta
unidade sistemática como para o mais alto grau do nosso conhecimento.
Assim, os fenômenos na sua matéria correspondem de fato com as Idéias,
e as Idéias com a matéria dos fenômenos; porém, em vez de uma
submissão necessária e determinada, temos aqui apenas uma
correspondência, um acordo indeterminado. A Idéia não é uma ficção, diz
Kant; tem um valor objetivo, possui um objeto; mas este objeto é igual-
mente «indeterminado», «problemático». Indeterminada no seu objeto,
determinável por analogia com os objetos da experiência, carregando o
ideal de uma determinação infinita relativamente aos conceitos do
entendimento: tais são os três aspectos da Idéia. A razão não se contenta,
pois, em raciocinar relativamente aos conceitos do entendimento, ela
«simboliza» relativamente à matéria dos fenômenos (15).

Problema da relação entre as faculdades: o senso comum

As três faculdades ativas (imaginação, entendimento, razão) entram


assim numa certa relação, que é função do interesse especulativo. E o
entendimento que legisla e julga; mas, sob o entendimento, a imaginação
sintetiza e esquematiza, a razão raciocina e simboliza, de tal maneira que o
conhecimento tenha um máximo de unidade sistemática. Ora, todo o
acordo das faculdades entre si define aquilo a que se pode chamar um
senso comum.
«Senso comum» é uma expressão perigosa, demasiado marcada pelo
empirismo. Portanto, não deve definir-se como um «sentido» particular
(uma faculdade particular empírica). Designa, pelo contrário, um acordo a
priori das faculdades ou, mais

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(15) A teoria do simbolismo só aparecerá na Crítica do Juízo. Mas a
«analogia», tal como ela é descrita no «apêndice à Dialéctica» da Crítica da Razão
pura, é o primeiro esboço desta teoria.
precisamente, o «resultado» de um tal acordo (16). Deste ponto de vista, o
senso comum aparece, não como um dado psicológico, mas como a
condição subjetiva de toda a «comunicabilidade». O conhecimento
implica um senso comum, sem o qual não seria comunicável e não poderia
aspirar à universalidade. Nesta acepção, Kant nunca renunciará ao
princípio subjetivo de um senso comum, ou seja, à idéia de uma boa
natureza das faculdades, de uma. natureza sã e reta que lhes permite
conciliarem-se umas com as outras e formar proporções harmoniosas. «A
mais alta filosofia, relativamente aos fins essenciais da natureza humana,
não pode conduzir mais longe do que o faz a direção concedida ao senso
comum.» Mesmo a razão, do ponto de vista especulativo, desfruta de uma
boa natureza que lhe permite estar em acordo com as outras faculdades: as
Idéias «são-nos dadas pela natureza da nossa razão, e é impossível que o
próprio tribunal supremo de todos os direitos e de todas as pretensões da
nossa especulação encerre ilusões e prestígios originais» (17).
Busquemos, antes de mais, as implicações da teoria do senso
comum, ainda que elas devam suscitar um problema complexo. Um dos
pontos mais originais do kantismo é a idéia de uma diferença de natureza
entre as nossas faculdades. Esta diferença de natureza não aparece
unicamente entre a faculdade de conhecer, a faculdade de desejar e o
sentimento de prazer e de dor, mas também entre as faculdades como
fontes de representações. Sensibilidade e entendimento diferem em
natureza, uma como faculdade de intuição, a outra como faculdade de
conceitos. Também aqui, Kant opõe-se simultaneamente ao dogmatismo e
ao empirismo, que, cada qual à sua maneira, afirmavam uma simples
diferença de grau (quer diferença de claridade, a partir do entendimento,
quer diferença de vivacidade, a partir da sensibilidade). Mas então, para
explicar como a sensibilidade passiva se concilia com o entendimento
ativo, Kant invoca a síntese e o esquematismo da imaginação que se aplica
a priori às formas da sensibilidade em conformidade com os conceitos.
Mas, assim, o problema é apenas deslocado: visto que a imaginação e o
entendimento diferem também, em natureza, e o acordo entre estas duas
faculdades ativas não é menos «misterioso». (O mesmo sucede com o
acordo entendimento-razão.)
Parece que Kant se debate com uma dificuldade temível. Vimos que
ele recusava a idéia de uma harmonia preestabelecida

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(16) CJ, § 40.
(17) CRP, Dialéctica, apêndice, «do objetivo final da dialéctica».
entre o sujeito e o objeto: substituía-se pelo princípio de uma submissão
necessária do objeto ao próprio sujeito. Mas acaso não reencontra ele a
idéia de harmonia, simplesmente transposta para o nível das faculdades do
sujeito, que diferem em natureza? Não há dúvida de que tal transposição é
original. Mas não basta invocar um acordo harmonioso das faculdades
nem um senso comum como resultado deste acordo; a Crítica em geral
exige um princípio do acordo, com uma gênese do senso comum. (O
problema de uma harmonia das faculdades é tão importante que Kant tem
tendência a reinterpretar a história da filosofia na sua perspectiva: «Estou
persuadido de que Leibniz, com a sua harmonia preestabelecida, que ele
estendia a tudo, não pensava na harmonia de dois seres distintos, ser
sensível e ser inteligível, mas na harmonia de duas faculdades de um único
e mesmo ser, no qual sensibilidade e entendimento se conciliam para um
conhecimento de experiência (18).» Mas esta reinterpretação é igual-mente
ambígua: parece indicar que Kant invoca um princípio supremo finalista e
teológico, da mesma maneira que os seus predecessores. «Se queremos
ajuizar da origem destas faculdades, ainda que uma tal pesquisa seja de
todo em todo feita para lá dos limites da razão humana, não podemos
indicar outro fundamento que não seja o nosso divino criador» (19).)
Todavia, abordemos com mais minúcia o senso comum sob a sua
forma especulativa (sensos communis logicus). Ele exprime a harmonia
das faculdades no interesse especulativo da razão, ou seja, sob a
presidência do entendimento. O acordo das faculdades é aqui determinado
pelo entendimento, ou, o que vem a dar no mesmo, faz-se sob conceitos
determinados do entendimento. Devemos prever que, do ponto de vista de
um outro interesse da razão, as faculdades entram numa outra relação, sob
a determinação de outra faculdade, de maneira a formar outro senso
comum: por exemplo, um senso comum moral, sob a presidência da
própria razão. E por isso que Kant diz que o acordo das faculdades é capaz
de várias proporções (consoante é esta ou aquela faculdade que determina
a relação) (20). Mas, todas as vezes que nos colocamos assim do ponto de
vista de uma relação ou de um acordo já determinado, já especificado, é
fatal que o senso comum se nos afigure uma espécie de fato a priori , para
lá do qual não podemos avançar.

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(18) Carta a Herz, 26 de Maio de 1789.
(19) Ibid.
(20) CJ, § 21.
O mesmo é dizer que as duas primeiras Críticas não podem resolver
o problema originário da relação entre as faculdades, mas apenas indicá-
lo, e remeter-nos para este problema como para uma tarefa última. Todo o
acordo determinado pressupõe, com efeito, que as faculdades, mais
profundamente, sejam capazes de um acordo livre e indeterminado (21). E
somente ao nível deste acordo livre e indeterminado (sensus communis
aestheticus) que poderá pôr-se o problema de um fundamento do acordo
ou de uma gênese do senso comum. Eis porque não devemos esperar da
Crítica da Razão pura, nem da Crítica da Razão prática, a resposta a uma
questão que só adquirirá o seu verdadeiro sentido na Crítica do Juízo. No
que diz respeito a um fundamento para a harmonia das faculdades, as suas
primeiras Críticas só na última acham o seu acabamento.

Uso legítimo, uso ilegítimo

1.° Apenas os fenômenos podem ser submetidos à faculdade de


conhecer (seria contraditório que as coisas em si o fossem). O interesse
especulativo incide, portanto, naturalmente sobre os fenômenos; as coisas
em si não são objeto de um interesse especulativo natural. 2.° Como é que
os fenômenos são precisa-mente submetidos à faculdade de conhecer, e a
quê nesta faculdade? São submetidos, pela síntese da imaginação, ao
entendimento e aos seus conceitos. E pois o entendimento que legisla na
faculdade de conhecer. Se a razão é assim levada a abandonar ao
entendimento o cuidado do seu próprio interesse especulativo, é porque
ela não se aplica aos fenômenos e forma Idéias que superam a
possibilidade da experiência. 3.° O entendimento legisla sobre os
fenômenos do ponto de vista da sua forma. Como tal, aplica-se e deve
aplicar-se exclusivamente ao que lhe é submetido: não nos fornece
conhecimento algum das coisas tais como elas são em si.
Esta exposição não aflora um dos temas fundamentais da Crítica da
Razão pura. A títulos diversos, o entendimento e a razão são
profundamente atormentados pela ambição de nos fazerem conhecer as
coisas em si. Uma tese constantemente recordada por Kant é a de que há
ilusões internas e usos ilegítimos das faculdades. Acontece às vezes a
imaginação sonhar, em lugar de esquematizar. Mais ainda: em lugar de se
aplicar

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(21) Ibid.
exclusivamente aos fenômenos («uso experimental»), acontece ao
entendimento pretender aplicar os seus conceitos às coisas tais como elas
são em si («uso transcendental»): E ainda não é o mais grave. Em vez de
se aplicar aos conceitos do entendimento («uso imanente ou regulador»),
acontece à razão pretender aplicar-se diretamente a objetos e querer
legislar no domínio do conhecimento («uso transcendente ou
constitutivo»). Porque é isto o mais grave? O uso transcendental do
entendimento pressupõe apenas que este se abstraia da sua relação com a
imaginação. Ora, tal abstração teria apenas efeitos negativos se porventura
o entendimento não fosse impelido pela razão, que lhe dá a ilusão de um
domínio positivo a conquistar fora da experiência. Como diz Kant, o uso
transcendental do entendimento vem unicamente da circunstância de este
negligenciar os seus próprios limites, ao passo que o uso transcendente da
razão nos ordena que transponhamos os limites do entendimento (22).
É neste sentido que a Crítica da Razão pura merece o seu título:
Kant denuncia as ilusões especulativas da Razão, os falsos problemas para
os quais ela nos arrasta, a respeito da alma, do mundo e de Deus. Kant
substitui o conceito tradicional de erro (o erro como produto, no espírito,
de um determinismo externo) pelo de falsos problemas e de ilusões
internas. Estas ilusões são ditas inevitáveis e até tidas como resultantes da
natureza da razão (23). Tudo o que a Crítica pode fazer é conjurar os
efeitos da ilusão sobre o próprio conhecimento, mas não impedir a sua
formação na faculdade de conhecer.
Abordamos, desta vez, um problema que respeita plenamente à
Crítica da Razão pura. Como conciliar a idéia das ilusões internas da razão
ou do uso ilegítimo das faculdades com estoutra idéia, não menos
essencial ao kantismo: que as nossas faculdades (incluindo a razão) são
dotadas de uma boa natureza e se acordam umas com as outras no
interesse especulativo? Por um lado, é-nos dito que o interesse
especulativo da razão incide natural e exclusivamente sobre os fenômenos;
por outro, que a razão não pode coibir-se de sonhar com um conhecimento
das coisas em si e de «se interessar» por elas do ponto de vista
especulativo.
Examinemos com mais precisão os dois principais usos ilegítimos. O
uso transcendental consiste no seguinte: o entendimento pretende
conhecer alguma coisa em geral (logo, independentemente

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(22) CRP, Dialéctica, «da aparência transcendental».
(23) CRP, Dialéctica, «dos raciocínios dialécticos da razão pura» e
«apêndice»,
das condições da sensibilidade). Por conseguinte, esse alguma coisa só
pode ser a coisa tal como ela é em si; e só pode ser pensada como supra-
sensível («númeno»). Mas, na verdade, é impossível que um tal númeno
seja um objeto positivo para o nosso entendimento. O nosso entendimento
tem, sem dúvida, como cor-relato a forma do objeto qualquer ou o objeto
em geral; mas, precisamente, este só é objeto de conhecimento na medida
em que é qualificado por uma diversidade que se lhe refere sob as
condições da sensibilidade. Um conhecimento de objeto em geral, que não
fosse restringido às condições da nossa sensibilidade, é simplesmente um
«conhecimento sem objeto». «O uso puramente transcendental das
categorias não é de fato um uso e não tem objeto determinado, nem sequer
objeto determinável quanto à forma (24).»
O uso transcendente consiste nisto: a razão pretende por si mesma
conhecer alguma coisa de determinado. (Ela determina um objeto como
correspondendo à Idéia.) Tendo embora uma formulação aparentemente
inversa do uso transcendental do entendimento, o uso transcendente da
razão leva ao mesmo resultado: só podemos determinar o objeto de uma
Idéia supondo que ele existe em si conformemente às categorias (25). Mais
ainda, é esta suposição que conduz o próprio entendimento ao seu uso
transcendental ilegítimo, inspirando-lhe a ilusão de um conhecimento de
objeto.
Por muito boa que seja a sua natureza, é penoso para a razão ter de se
desfazer do cuidado do seu próprio interesse especulativo e remeter para o
entendimento o poder legislativo. Mas, neste sentido, nota-se que as
ilusões da razão triunfam sobretudo enquanto esta permanece no estado de
natureza. Ora, não deve confundir-se o estado de natureza da razão com o
seu estado civil, nem mesmo com a sua lei natural que se cumpre no
estado civil perfeito (26). A Crítica é precisamente a instauração deste
estado civil: à semelhança do contrato dos juristas, ela implica uma
renunciação da razão, do ponto de vista especulativo. Mas quando a razão
renuncia assim, o interesse especulativo não deixa de ser o seu próprio
interesse, e ela realiza plenamente a lei da sua própria natureza.

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(24) CRP, Analítica, «do princípio da distinção de todos os objetos em
geral em fenômenos e númenos».
(25) CRP, Dialéctica, «do objetivo final da dialéctica natural».
(26) CRP, Metodologia, «disciplina da razão pura relativamente ao seu
uso polêmico».

F K-3
Todavia, esta resposta não é suficiente. Não basta referir as ilusões
ou perversões ao estado de natureza e a sã constituição ao estado civil ou
até à lei natural. Pois as ilusões subsistem sob a lei natural, no estado civil
e crítico da razão (mesmo quando elas já não têm o poder de nos enganar).
Uma única saída se abre então: é que a razão, por outro lado, experimenta
um interesse propriamente legítimo e natural pelas coisas em si, mas um
interesse que não é especulativo. Como os interesses da razão não
permanecem indiferentes uns aos outros, antes formam um sistema
hierarquizado, é inevitável que a sombra do mais alto interesse se projete
sobre o outro. Então, até a ilusão toma um sentido positivo e bem fundado,
a partir do momento em que cessa de nos enganar: exprime à sua maneira
a subordinação do interesse especulativo num sistema dos fins. Jamais a
razão especulativa se interessaria pelas coisas em si se estas não fossem
primeiro e verdadeiramente objeto de um outro interesse da razão (27).
Devemos, portanto, perguntar: qual é esse interesse mais alto? (E é
justamente porque o interesse especulativo não é o mais alto que a razão
pode remeter-se para o entendimento na legislação da faculdade de
conhecer.)

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(27) CRP, Metodologia, «do objetivo final do uso puro da nossa razão».
Capítulo II

RELAÇÃO DAS FACULDADES NA CRÍTICA


DA RAZÃO PRÁTICA

A razão legisladora

Vimos que a faculdade de desejar era capaz de uma forma superior:


quando ela era determinada não por representações de objetos (sensíveis
ou intelectuais), não por um sentimento de prazer ou de dor que ligaria
representações deste género à vontade, mas pela representação de uma
pura forma. Esta forma pura é a de uma legislação universal. A lei moral
não se apresenta como um universal comparativo e psicológico (por
exemplo: não faças aos outros, etc.). A lei moral ordena-nos que pensemos
a máxima da nossa vontade como «princípio de uma legislação universal».
E pelo menos conforme à moral uma ação que resiste a esta prova lógica,
ou seja, uma ação cuja máxima pode ser pensada sem contradição como
lei universal. O universal, neste sentido, é um absoluto lógico.
A forma de uma legislação universal pertence à Razão. Com efeito, o
próprio entendimento nada pensa de determinado se as suas
representações não forem as de objetos restritos às condições da
sensibilidade. Uma representação independente, não só de todo o
sentimento, mas também de toda a matéria e de toda a condição sensível, é
necessariamente racional. Mas, aqui,
a razão não raciocina: a consciência da lei moral é um fato, «não um fato
empírico, mas o fato único da razão pura que se anuncia deste modo como
originariamente legisladora» (1). A razão é, pois, a faculdade que legisla
imediatamente na faculdade de desejar. Sob este aspecto, chama-se «razão
pura prática». E a faculdade de desejar, encontrando a sua determinação
em si mesma (não numa matéria ou num objeto), chama-se, falando com
propriedade, vontade, «vontade autônoma».
Em que consiste a síntese prática a priori ? As fórmulas de Kant
variam a este propósito. Mas, quando se pergunta qual é a natureza de uma
vontade suficientemente determinada pela simples forma da lei (logo,
independentemente de toda a condição sensível ou de uma lei natural dos
fenômenos), devemos responder: é uma vontade livre. E quando se
pergunta qual é a lei capaz de determinar uma vontade livre enquanto tal,
devemos responder: a lei moral (como pura forma de uma legislação uni-
versal). A implicação recíproca é de tal ordem que razão prática e
liberdade talvez se identifiquem. Todavia, a questão não é esta: Do ponto
de vista das nossas representações, é o conceito da razão prática que nos
leva ao conceito da liberdade como a algo que está necessariamente ligado
àquele primeiro conceito, que lhe pertence e que no entanto não «reside»
nele. Na verdade, o conceito de liberdade não reside na lei moral, visto ser
ele mesmo uma Idéia da razão especulativa. Mas esta idéia permaneceria
puramente problemática, limitativa e indeterminada, se a lei moral nos não
ensinasse que somos livres. E pela lei moral, unicamente, que nos sabemos
livres, ou que o nosso conceito de liberdade adquire uma realidade
objetiva, positiva e determinada. Achamos assim na autonomia da vontade
uma síntese a priori que confere ao conceito da liberdade uma realidade
objetiva determinada, ligando-o necessariamente ao da razão prática.

Problema da liberdade

A questão fundamental é: sobre que incide a legislação da razão


prática? quais os seres ou os objetos que são submetidos à síntese prática?
Esta questão já não é a de uma «exposição» do princípio da razão prática,
mas a de uma «dedução». Ora, dispomos de um fio condutor: só seres
livres podem ser submetidos

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(1) CRPr, Analítica, escólio da «lei fundamental».
à razão prática. Esta legisla sobre seres livres, ou, mais exatamente, sobre
a causalidade destes seres (operação pela qual um ser livre é causa de
alguma coisa). Consideramos agora já não o conceito de liberdade por si
mesmo, mas o que representa um tal conceito.
Enquanto apreciamos fenômenos, tais como eles aparecem sob as
condições do espaço e do tempo, nada encontramos que se assemelhe à
liberdade: os fenômenos estão estritamente submetidos à lei de uma
causalidade natural (como categoria do entendimento) segundo a qual
cada um é o efeito de outro até ao infinito, ligando-se cada causa a uma
causa anterior. A liberdade, ao invés, define-se por um poder «de começar
de si mesmo um estado, cuja causalidade não se situa por seu turno (como
na lei natural) sob outra causa que a determina no tempo» (2). Neste
sentido, o conceito de liberdade não pode representar um fenômeno, mas
apenas uma coisa em si que não é dada na intuição. Há três elementos que
nos levam a tal conclusão.
1.° Ao incidir exclusivamente sobre os fenômenos o conhecimento é
forçado no seu próprio interesse a pôr a existência das coisas em si como
não podendo ser conhecidas, mas devendo ser pensadas para servir de
fundamento aos próprios fenômenos sensíveis. As coisas em si são, pois,
pensadas como «númenos», coisas inteligíveis ou supra-sensíveis que
marcam os limites do conhecimento e o remetem para as condições da
sensibilidade (3). 2.° Pelo menos num caso, a liberdade atribui-se à coisa
em si, e o númeno deve ser pensado como livre: quando o fenômeno a que
ele corresponde goza de faculdades ativas espontâneas que se não reduzem
à simples sensibilidade. Temos um entendimento e sobretudo uma razão;
somos inteligência (4). Enquanto inteligências ou seres racionais, devemos
pensar-nos como membros de um mundo inteligível ou supra-sensível,
dotados de uma causalidade livre. 3.° Mesmo assim, o conceito de
liberdade, tal como o de númeno, permaneceria puramente problemático e
indeterminado (ainda que necessário), se a razão não tivesse outro
interesse além do seu interesse especulativo. Vimos que só a razão prática
determinava o conceito de liberdade dando-lhe uma realidade objetiva.
Com efeito, quando a lei moral é a lei da vontade, esta acha-se
inteiramente independente das

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(2) CRP, Dialéctica, «solução das idéias cosmológicas da totalidade da
derivação...».
(3) CRP, Analítica, «do principio da distinção fenômenos-númenos...».
(4) CRP, Dialéctica, «esclarecimento da idéia cosmológica de liberdade».
condições naturais da sensibilidade que ligam qualquer causa a uma causa
anterior: “Nada é anterior à determinação da vontade (5).» E por isso que
o conceito de liberdade, como Idéia da razão, desfruta de um privilégio
eminente sobre todas as outras Idéias: em virtude de poder ser
determinado praticamente, é o único conceito (a única Idéia da razão) que
dá às coisas em si o sentido ou a garantia de um «fato» e que nos faz
efetivamente penetrar no mundo inteligível (6).
Parece, portanto, que 'a razão prática, ao conferir ao conceito de
liberdade uma realidade objetiva, legisla precisamente sobre o objeto deste
conceito. A razão prática legisla sobre a coisa em si, sobre o ser livre
enquanto coisa em si, sobre a causalidade numenal e inteligível de um tal
ser, sobre o mundo supra-sensível formado por tais seres. «A natureza
supra-sensível, tanto quanto dela podemos fazer um conceito, não é mais
do que uma natureza sob a autonomia da razão prática; mas a lei desta
autonomia é a lei moral, que é assim a lei fundamental de uma natureza
supra-sensível...»; «a lei moral é. uma lei da causalidade por liberdade, por
conseguinte, uma lei da possibilidade de uma natureza supra-sensível» (7).
A lei moral é a lei da nossa existência inteligível, isto é, da espontaneidade
e da causalidade do sujeito como coisa em si. Eis porque Kant distingue
duas legislações e dois domínios correspondentes: «a legislação por
conceitos naturais» é aquela em que o entendimento, determinando esses
conceitos, legisla na faculdade de conhecer ou no interesse especulativo da
razão; o seu domínio é o dos fenômenos como objetos de toda a
experiência possível, na medida em que formam uma natureza sensível.
«A legislação pelo conceito de liberdade» é aquela em que a razão,
determinando esse conceito, legisla na faculdade de desejar, isto é, no seu
próprio interesse prático; o seu domínio é o das coisas em si pensadas
como númenos, na medida em que formam uma natureza supra-sensível.
Tal é o que Kant denomina o «abismo imenso» entre os dois domínios (8).
Os seres em si, na sua causalidade livre, são, pois, submetidos à razão
prática. Mas em que sentido se deve compreender «submetidos»?
Enquanto o entendimento se exerce sobre os fenômenos no interesse
especulativo, ele legisla sobre algo diferente de si. Mas, quando. a razão
legisla no interesse prático, ela legisla sobre

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(5) CRPr, Analítica, «exame crítico».
(6) CJ, § 91; CRPr, Prefácio.
(7) CRPr, Analítica, «da dedução dos princípios da razão pura prática».
(8) CJ, introdução, § 2, § 9.
seres racionais e livres, sobre a sua existência inteligível independente de
toda a condição sensível. É, pois, o ser racional que se atribui a si mesmo
uma lei pela sua razão. Contrariamente ao que se passa quanto aos
fenômenos, o númeno apresenta ao pensamento a identidade do legislador
e do sujeito. «Não é enquanto a pessoa está submetida á lei moral que tem
em si sublimidade, mas na medida em que, no tocante a essa mesma lei,
ela é ao mesmo tempo legisladora e só nesta qualidade lhe está
subordinada (9).” Eis, pois, o que significa «submetido» no caso da razão
prática: os mesmos seres são súbditos e legisladores, de tal modo que o
legislador faz aqui parte da natureza sobre a qual ele legisla. Pertencemos
a uma natureza supra-sensível, mas na qualidade de membros legisladores.
Se a lei moral é a lei da nossa existência inteligível, é no sentido em
que ela é a forma sob a qual os seres inteligíveis constituem uma natureza
supra-sensível. Com efeito, ela encerra um mesmo princípio determinante
para todos os seres racionais, donde deriva a sua união sistemática (10).
Compreende-se, portanto, a possibilidade do mal. Kant sustentará sempre
que o mal se acha numa certa relação com a sensibilidade. O que não
obsta a que ele se funda igualmente no nosso carácter inteligível. Uma
mentira ou um crime são efeitos sensíveis, mas nem por isso deixam de ter
uma causa inteligível fora do tempo. É até por este motivo que não
devemos identificar razão prática e liberdade: há sempre na liberdade uma
zona de livre-arbítrio pela qual podemos optar contra a lei moral. Quando
optamos contra a lei, não cessamos de ter uma existência inteligível,
apenas perdemos a condição sob a qual esta existência faz parte de uma
natureza e compõe com as outras um todo sistemático. Cessamos de ser
súbditos, mas antes de tudo porque deixamos de ser legisladores (na
verdade, recebemos da sensibilidade a lei que nos determina).

Papel do entendimento

É, pois, em dois sentidos assaz diferentes que o sensível e o supra-


sensível formam cada qual uma natureza. Entre as duas Naturezas há
somente uma «analogia» (existência sob leis). Em virtude do seu carácter
paradoxal, a natureza supra-sensível

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(9) Fundamentos da Metafísica dos Costumes (FMC), II.
(10) Ibid.
nunca é completamente realizada, visto que nada garante a um ser racional
que os seus semelhantes harmonizarão a existência deles com a sua e
formarão essa “natureza” que apenas é possível pela lei moral. Assim, não
basta dizer que a relação das duas naturezas é de analogia; convém
acrescentar que o próprio supra-sensível só pode ser pensado como uma
natureza por analogia com a natureza sensível (11).
Vemo-lo bem na prova lógica da razão-prática, onde se investiga se a
máxima de uma vontade pode tomar a forma prática de uma lei universal.
Pergunta-se, primeiramente, se a máxima pode ser erigida em lei teórica
universal de uma natureza sensível. Por exemplo, se toda a gente mentisse,
as promessas destruir-se-iam por si mesmas, já que seria contraditório que
alguém nelas acreditasse: a mentira não pode, portanto, ter o valor de uma
lei da natureza (sensível). Conclui-se daí que, se a máxima da nossa
vontade fosse uma lei teórica da natureza sensível, «cada um de nós seria
obrigado a dizer a verdade» (12). Donde: a máxima de uma vontade
mentirosa não pode sem contradição servir de lei prática pura a seres
racionais, de maneira a que eles componham uma natureza supra-sensível.
E por analogia com a forma das leis teóricas de uma natureza sensível que
indagamos se uma máxima pode ser pensada como lei prática de uma
natureza supra-sensível (isto é, se uma natureza supra-sensível ou inteligí-
vel é possível sob uma tal lei). Neste sentido, «a natureza do mundo
sensível» aparece como «tipo de uma natureza inteligível» (13).
É evidente que o entendimento desempenha aqui o papel essencial.
Na realidade, nada retemos da natureza sensível que se refira à intuição ou
à imaginação. Retemos unicamente «a forma da conformidade à lei» tal
como ela se encontra no entendimento legislador. Mas, justamente,
servimo-nos desta forma, e do próprio entendimento, segundo um
interesse e num domínio onde este já não é legislador. Porquanto não é a
comparação da máxima com a forma de uma lei teórica da natureza
sensível que constitui o princípio determinante da nossa vontade (14). A
comparação não passa de um meio pelo qual investigamos se uma máxima
«se adapta» à razão prática, se uma ação é um caso que se inscreve na
regra, isto é, no princípio de uma razão a partir de agora única legisladora.

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(11) Ibid.
(12) CRPr, Analítica, «da dedução dos princípios da razão pura prática».
(13) CRPr, Analítica, «da típica do juízo puro prático».
(14) CRPr, ibid.
Eis que encontramos uma nova forma de harmonia, uma nova
proporção na harmonia das faculdades. Segundo o interesse especulativo
da razão, o entendimento legisla, a razão raciocina e simboliza (determina
o objeto da sua Idéia «por analogia» com os objetos da experiência).
Segundo o interesse prático da razão, é a própria razão que .legisla; o
entendimento julga ou inclusivamente raciocina (se bem que este
raciocínio seja muito simples e consista numa singela comparação) e
simboliza (extrai da lei natural sensível um tipo para a natureza supra-
sensível). Ora, nesta nova figura, devemos manter sempre o mesmo prin-
cípio: a faculdade que não é legisladora desempenha um papel
insubstituível, que só ela é capaz de assumir, mas ao qual é deter-minada
pela legisladora.
Como se explica que o entendimento possa desempenhar por si
mesmo um papel de acordo com uma razão prática legisladora?
Consideremos o conceito de causalidade: ele está implicado na definição
da faculdade de desejar (relação entre a representação e. um objeto que ela
tende a produzir) (15). Está, pois, implicado no uso prático da razão
concernente a esta faculdade. Mas quando a razão persegue o seu interesse
especulativo, relativamente à faculdade de conhecer, ela «abandona tudo
ao entendimento»: a causalidade atribui-se como categoria ao
entendimento, não sob forma de uma causa produtora originária (visto que
os fenômenos não são produzidos por nós), mas sob forma de uma
causalidade natural ou de uma conexão que liga os fenômenos sensíveis
até ao infinito. Quando, pelo contrário, a razão persegue o interesse
prático, retira ao entendimento o que lhe havia emprestado unicamente na
perspectiva de outro interesse. Determinando a faculdade de desejar sob a
sua forma superior, ela «une o conceito de causalidade ao de liberdade»,
isto é, dá à categoria de causalidade um objeto supra-sensível (o ser livre
como causa produtora originária) (16). Perguntar-se-á como é que a razão
pode retirar o que abandonara. ao entendimento e de certo modo alienara
na natureza sensível. Mas, precisamente, se é verdade que as categorias
nos não fazem conhecer outros objetos que, não sejam os da experiência
possível, se é verdade que elas não formam um conhecimento de objeto
independentemente das condições da sensibilidade, nem por isso deixam
de conservar um sentido puramente lógico relativamente a objetos

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(15) CRPr, Analítica, «do direito da razão pura no uso prático a uma
extensão...»: «no Conceito. de Uma Vontade está já contido o da causalidade».
(16) CRPr, Prefácio.
não sensíveis, e podem aplicar-se a eles com a condição de que tais
objetos sejam determinados por outra parte e de um ponto de vista
diferente do conhecimento (17). Assim, a razão deter-mina praticamente
um objeto supra-sensível da causalidade e determina a própria causalidade
como uma causalidade livre, apta a formar uma natureza por analogia.

O senso comum moral e os usos ilegítimos

Kant lembra amiúde que a lei moral não tem necessidade alguma de
raciocínios subtis, antes assenta no uso mais vulgar ou mais comum da
razão. Nem sequer o exercício do entendimento pressupõe qualquer
instrução prévia, «nem ciência nem filosofia». Devemos, pois, falar de um
senso comum moral. Decerto que há sempre o perigo de compreender
«senso comum» à maneira empirista, de o tornar um sentido particular, um
sentimento ou uma intuição: não haveria pior confusão, atingindo a
própria lei moral (18). Mas definimos um senso comum como um acordo a
priori das faculdades, acordo determinado por uma de entre elas enquanto
faculdade legisladora. O senso comum moral é o acordo do entendimento
com a razão, sob a legislação da própria razão. Reencontramos aqui a.
idéia de uma. boa natureza das faculdades e de uma harmonia determinada
em conformidade com tal interesse da razão.
Porém, não menos que na Critica de Razão pura, Kant denuncia os
exercícios ou os usos ilegítimos. Se a reflexão filosófica é necessária, é
porque as faculdades, não obstante a sua boa natureza, engendram ilusões
nas quais elas não podem livrar-se de cair. Em lugar de «simbolizar» (ou
seja, de se servir da forma da lei natural como se fosse um «tipo» para a
lei moral), acontece por vezes ao entendimento procurar um «esquema»
que refere a lei a uma intuição (19). Mais ainda: em lugar de comandar,
sem nada conceder, no que diz respeito ao princípio, às inclinações
sensíveis ou aos interesses empíricos, acontece à razão acomodar o dever
com os nossos desejos: «Resulta daí uma dialéctica natural (20).» Importa,
pois, perguntar, também neste caso, como se conciliam os dois temas
kantianos, o de

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(17) CRPr, Analítica, «do direito da razão pura no uso prático a uma
extensão...”,
(18) CRPr, Analítica, escólio 2 do teorema IV.
(19) CRPr, Analítica, “da típica do juízo puro prático».
(20) FMC, I (fim).
uma harmonia natural (senso comum) e o dos exercícios discordantes
(contra-senso).
Kant insiste na diferença entre a Crítica da Razão pura especulativa e
a Crítica da razão prática: esta última não é uma crítica da Razão «pura»
prática. Com efeito, no interesse especulativo, a razão em si mesma não
pode legislar (olhar pelo seu próprio interesse): é, pois, a razão pura que é
fonte de ilusões internas, a partir do momento em que pretende assumir
um papel legislador. Ao invés, no interesse prático, a razão não remete
para mais ninguém o cuidado de legislar: «Depois de se mostrar que
existe, ela já não necessita de crítica (21).» O que tem necessidade de uma
crítica, o que é fonte de ilusões, não é a razão pura prática, mas, isso sim, a
impureza que se lhe vem misturar, na medida em que os interesses
empíricos nela se refletem. À critica da razão pura especulativa
corresponde então uma crítica da razão prática impura. No entanto, algo
de comum subsiste entre as duas: o método dito transcendental é sempre a
determinação de um uso imanente da razão, conformemente a um dos seus
interesses. A Crítica da Razão pura denuncia assim o uso transcendente de
uma razão especulativa que pretende legislar por si mesma; a Crítica da
Razão prática denuncia o uso transcendente de uma razão prática que, em
vez de legislar por si mesma, se deixa condicionar empiricamente (22).
Seja como for, o leitor tem o direito de se interrogar se este célebre
paralelo que Kant estabelece entre as duas Críticas responde
suficientemente à questão formulada. O próprio Kant não fala de uma
única «dialéctica» da razão prática, antes emprega a palavra em dois
sentidos bastante diferentes. Mostra, de fato, que a razão prática não pode
deixar de instituir uma ligação necessária entre a felicidade e a virtude,
mas cai assim numa antinomia. A antinomia consiste na circunstância de a
felicidade não poder ser causa da virtude (porquanto a lei moral é o único
princípio. determinante da vontade boa) e de a virtude não parecer
igualmente poder ser causa da felicidade (porquanto as leis do mundo
sensível se não pautam de modo algum pelas intenções de uma boa
vontade). Ora, não há dúvida de que a idéia de felicidade implica a
satisfação completa dos nossos desejos e inclinações. Hesitar-se-á, não
obstante, em ver nesta antinomia (e sobretudo no seu segundo membro) o
efeito de uma simples projeção dos interesses empíricos: a razão pura
prática exige

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(21) CRPr, Introdução.
(22) Ibid.
ela própria uma ligação da virtude e da felicidade. A antinomia da razão
prática exprime na verdade uma «dialéctica» mais profunda que a
precedente; implica uma ilusão interna da razão pura.
A explicação desta ilusão interna pode ser reconstituída como segue
(23): 1.° A razão pura prática exclui todo o prazer ou toda a satisfação
como princípio determinante da faculdade de desejar. Mas, quando a lei a
determina, a faculdade de desejar experimenta por isso mesmo uma
satisfação, uma espécie de fruição negativa exprimindo a nossa
independência a respeito das inclinações sensíveis, um contentamento
puramente intelectual exprimindo imediatamente o acordo formal do
nosso entendimento com a nossa razão. 2.° Ora, esta fruição negativa não
deve ser confundida com um sentimento sensível positivo, ou até com um
móbil da vontade. Não se confunda o contentamento intelectual ativo com
algo de sentido, de experimentado. (É inclusive desta maneira que o
acordo das faculdades ativas surge ao empirista como um sentido
especial.) Há aí uma ilusão interna que a própria razão pura prática não
pode evitar: «Há sempre aí ocasião de cometer a falta a que se chama
vitium subreptionis e, de certo modo, de ter uma ilusão de óptica na
consciência do que se faz, diferentemente do que se sente, ilusão que até o
homem mais experimentado não pode evitar na totalidade.» 3.° A
antinomia assenta, pois, no contentamento imanente da razão prática, na
confusão inevitável deste contentamento com a felicidade. Cremos assim
umas vezes que a própria felicidade é causa e móbil da virtude, outras
vezes, que a virtude por si mesma é causa da felicidade.
Se é verdade, de acordo com o primeiro sentido da palavra
«dialéctica», que os interesses ou os desejos empíricos se projetam na
razão e a tornam impura, tal não obsta a que esta projeção tenha um
princípio interior mais profundo, na própria razão prática pura, em
conformidade com o segundo sentido da palavra dialéctica. A confusão do
contentamento negativo e intelectual com a felicidade é uma ilusão interna
que nunca pode ser inteiramente dissipada, sendo apenas possível escon-
jurar o seu efeito através da reflexão filosófica. Acrescentemos que a
ilusão, neste sentido, só aparentemente é contrária à idéia de uma boa
natureza das faculdades: a própria antinomia prepara uma totalização, que
ela é, sem dúvida, incapaz de operar, mas que nos força a procurar, do
ponto de vista da reflexão, como sua solução própria ou chave do seu
labirinto. «A antinomia

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(23) CRPr, Dialéctica, «solução crítica da antinomia».
da razão pura, que se torna manifesta na sua dialéctica, é de fato o erro
mais benfazejo em que alguma vez caiu a razão humana (24).»

Problema da realização

A sensibilidade e a imaginação não têm até agora qualquer papel no


senso comum moral. Isto não causará admiração visto que a lei moral,
tanto no seu princípio como na sua aplicação típica, é independente de
todo o esquema e de toda a condição da sensibilidade; visto que os seres e
a causalidade livres não são objeto de intuição alguma; visto que a
Natureza supra-sensível e a natureza sensível estão separadas por um
abismo. Há realmente uma ação da lei moral sobre a sensibilidade. Mas a
sensibilidade é considerada aqui como sentimento, não como intuição; e o
próprio efeito da lei é um sentimento mais negativo que positivo, mais
próximo da dor que do prazer. Tal é o sentimento de respeito da lei,
determinável a priori como o único «móbil» moral, mas minimizando
mais a sensibilidade do que dando-lhe um papel na relação das faculdades.
(Vemos que o móbil moral não pode ser fornecido pelo contentamento
intelectual, de que. falávamos mais atrás; este não é de modo algum um
sentimento, mas apenas um «análogo» do sentimento. Só o respeito pela
lei fornece um tal móbil; ele apresenta a própria moralidade como móbil)
(25).
Mas o problema da relação da razão prática e da sensibilidade não
fica assim resolvido nem suprimido. O respeito serve antes de regra
preliminar para uma tarefa que continua por efetivar positivamente. Um
único contra-senso é perigoso, no que respeita ao conjunto da Razão
prática: crer que a moral kantiana permanece indiferente à sua própria
realização. Na verdade, o abismo entre o mundo sensível e o mundo supra-
sensível não existe senão para ser preenchido: se o supra-sensível escapa
ao conhecimento, se não há uso especulativo da razão que nos faça passar
do sensível ao supra-sensível, em compensação «este deve ter uma
influência sobre aquele, e o conceito de liberdade deve realizar no mundo
sensível o fim imposto pelas suas leis» (26).

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(24) CRPr, Dialéctica, «de uma dialéctica da razão pura prática em geral».
(25) CRPr, Analítica, «dos móbiles da razão pura prática». (Sem dúvida que o
respeito é positivo, mas somente «pela sua causa intelectual».)
(26) Cf, Introdução, § 2.
Eis que o mundo supra-sensível é arquétipo e o mundo sensível, “éctipo,
porque contém o efeito possível da idéia do primeiro» (27). Uma causa
livre é puramente inteligível; mas devemos considerar que é o mesmo ser
que é fenômeno e coisa em si, submetido à necessidade natural como
fenômeno, fonte de causalidade livre como coisa em si. Mais ainda: é a
mesma ação, o mesmo efeito sensível que remete, por um lado, para um
encadeamento de causas sensíveis segundo o qual ele é necessário, mas
que, por outro, com as suas causas, remete igualmente para uma Causa
livre da qual é sinal ou expressão. Uma causa livre nunca tem o seu efeito
em si própria, dado que nela nada acontece nem começa; a livre
causalidade não tem efeito algum que não seja sensível. Por conseguinte,
a razão prática, como lei da causalidade livre, deve «ter causalidade
relativamente aos fenômenos» (28). E a natureza supra-sensível, que os
seres livres formam sob a lei da razão, deve ser realizada no mundo
sensível. E neste sentido que se pode falar de uma ajuda ou de uma
oposição entre a natureza e a liberdade, consoante os efeitos sensíveis da
liberdade na natureza são conformes ou não à lei moral. «Oposição ou
ajuda só existem entre a natureza como fenômeno e os efeitos da liberdade
como fenômenos no mundo sensível (29).» Sabemos que há duas
legislações, logo, dois domínios, correspondendo à natureza e à liberdade,
à natureza sensível e à natureza supra-sensível. Mas há somente um
campo, o da experiência.
Kant apresenta assim o que ele designa por «o paradoxo do método
numa Crítica da razão prática»: nunca uma representação de objeto pode
determinar a vontade livre ou preceder a lei moral; mas, ao determinar
imediatamente a vontade, a lei moral determina também objetos como
conformes a esta vontade livre (30). Mais precisamente, quando a razão
legisla na faculdade de desejar, a faculdade de desejar também legisla
sobre objetos. Estes objetos da razão prática formam aquilo a que se
chama o Bem moral (é em ligação com a representação do bem que
experimentamos o contentamento intelectual). Ora, «o bem moral é,
quanto ao objeto, algo de supra-sensível». Mas ele representa objeto como
a realizar no mundo sensível, isto é, «como um efeito possível pela
liberdade» (31). E por isso que, na sua

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(27) CRPr, Analítica, «da dedução aos princípios da razão pura prática».
(28) CRP, Dialéctica.
(29) CJ, Introdução, § 9.
(30) CRPr, Analítica, «do conceito de um objeto da razão pura prática».
(31) CRPr, Ibid.
definição mais geral, o interesse prático se apresenta como uma relação da
razão com objetos, não para os conhecer, mas para os realizar (32).
A lei moral é inteiramente independente da intuição e das condições
da sensibilidade; a Natureza supra-sensível é independente da Natureza
sensível. Os próprios bens são independentes do nosso poder físico de os
realizar e são só determinados (conformemente à prova lógica) pela
possibilidade moral de querer a ação que os realiza. Resta dizer que a lei
moral nada é, separada das suas conseqüências sensíveis; nem a liberdade,
separada dos seus efeitos sensíveis.. Bastaria, então, apresentar a lei como
legislando sobre a causalidade de seres em si, sobre uma pura natureza
supra-sensível? Certamente que seria absurdo dizer que os fenômenos
estão submetidos à lei moral como princípio da razão prática. A natureza
sensível não tem a moralidade por lei; nem sequer os efeitos da liberdade
podem causar dano ao mecanismo como lei da Natureza sensível, já que
eles se encadeiam necessariamente uns nos outros, de maneira a formar
«um único fenômeno» exprimindo a causa livre. Jamais a liberdade
produz qualquer milagre no mundo sensível. Mas, se é verdade que a
razão prática só legisla. sobre o mundo supra-sensível e sobre a
causalidade livre dos seres que o compõem, tal não obsta a que toda essa
legislação faça deste mundo supra-sensível algo que deve ser «realizado»
no sensível e desta causalidade livre, algo que deve ter efeitos sensíveis
exprimindo a lei moral.

Condições da realização

Falta ainda saber se uma tal realização é possível. Se o não fosse, era
a lei moral que desabaria por si mesma (33). Ora, a realização do bem
moral pressupõe um acordo da natureza sensível (segundo as suas leis)
com a natureza supra-sensível (segundo a sua lei). Este acordo apresenta-
se na idéia de uma proporção entre a felicidade e a moralidade, ou seja, na
idéia do Soberano Bem como «totalidade do objeto da razão pura prática».
Mas, se se perguntar como é que o Soberano Bem é por sua vez possível,
logo, realizável, depara-se com a antinomia: está posto de parte que o
desejo da felicidade seja móbil da virtude; mas também parece excluído
que a máxima da virtude seja causa da

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(32) CRPr, Analítica, «exame crítico».
(33) CRPr, Dialéctica, «a antinomia da razão prática».
felicidade, visto que a lei moral não legisla sobre o mundo sensível e que
este é regido pelas suas próprias leis que permanecem indiferentes às
intenções morais da vontade. Todavia, esta segunda direção deixa aberta
uma solução: que a conexão da felicidade com a virtude não seja imediata,
mas se faça na perspectiva de um progresso que vá até ao infinito (alma
imortal) e por intermédio de um autor inteligível da natureza sensível ou
de uma «causa moral do mundo» (Deus). As Idéias da alma e de Deus são
assim as condições necessárias sob as quais o próprio objeto da razão
prática é colocado .como possível e realizável (34).
Vimos já que a liberdade (como Idéia cosmológica de um mundo
supra-sensível) recebia uma realidade objetiva da lei moral. Eis que, por
seu turno, a Idéia psicológica da alma e a Idéia teológica do ser supremo
recebem sob esta mesma lei moral uma realidade objetiva. De tal modo
que as três grandes Idéias da razão especulativa podem ser postas no
mesmo plano, tendo em comum o serem problemáticas e indeterminadas
do ponto de vista da especulação, mas recebendo da lei moral uma deter-
minação prática: neste sentido e enquanto são determinadas praticamente,
elas denominam-se «postulados da razão prática»: são objeto de uma
«crença pura prática» (35). No entanto, mais precisamente, notar-se-á que a
determinação prática não incide sobre as três Idéias da mesma forma. Só a
Idéia de liberdade é imediatamente determinada pela lei moral: a
liberdade, por conseguinte, é menos um postulado do que uma «matéria de
fato» ou o objeto de uma proposição categórica. As duas outras idéias,
como «postulados», são apenas condições do objeto necessário de uma
vontade livre: «O que equivale a dizer que a sua possibilidade é provada
pelo fato de a liberdade ser real (36).»
Mas serão os postulados as únicas condições de uma realização do
supra-sensível no sensível? Para tal são ainda necessárias condições
imanentes à própria natureza sensível, que devem fundar nesta a
capacidade de exprimir ou de simbolizar alguma coisa de supra-sensível.
Elas apresentam-se sob três aspectos: a finalidade natural na matéria dos
fenômenos; a forma da finalidade da natureza nos objetos belos; o sublime
no informe da natureza, pelo qual a natureza sensível dá igualmente

______________________
(34) CRPr, Dialéctica, «sobre os postulados da razão pura prática».
(35) CRPr, Dialéctica, «do assentimento vindo de uma necessidade da razão
pura».
(36) CRPr, Introdução; CJ. § 91.
testemunho da existência de uma mais alta finalidade. Ora, nestes dois
últimos casos, vemos a imaginação assumir um papel fundamental: quer
ela se exerça livremente, sem estar sob a dependência de um conceito
determinado do entendimento; quer ela supere os seus próprios limites e se
sinta ilimitada, referindo-se também a Idéias da razão. Assim, a
consciência da moralidade, ou seja, o senso comum moral, não comporta
apenas crenças, mas também os atos de uma imaginação através dos quais
a Natureza sensível surge como apta a receber o efeito do supra-sensível.
A própria imaginação é pois, realmente, parte constituinte do senso
comum moral.

Interesse prático e interesse especulativo

«Pode atribuir-se a cada poder do espírito um interesse, isto é, um


princípio que contém a condição sob a qual este poder é posto em
exercício (37).» Os interesses da razão distinguem-se dos interesses
empíricos, devido a incidirem sobre objetos, mas só enquanto estes estão
submetidos à forma superior de uma faculdade. Logo, o interesse
especulativo incide sobre os fenômenos na medida em que formam uma
natureza sensível. O interesse prático incide sobre os seres racionais como
coisas em si, na medida em que formam uma natureza supra-sensível a
realizar.
Os dois interesses diferem em natureza, de sorte que a razão não
efetua progresso especulativo quando entra no domínio que lhe é aberto
pelo seu interesse prático. A liberdade como Idéia especulativa é
problemática, em si mesma indeterminada; quando recebe da lei moral
uma determinação prática imediata, a razão especulativa nada ganha em
extensão. «Ela ganha aí apenas no que respeita à garantia do seu
problemático conceito de liberdade, ao qual se dá então uma realidade
objetiva que, embora simplesmente prática, nem por isso deixa de ser
indubitável (38).» Na verdade, não conhecemos melhor do que
anteriormente a natureza de um ser livre; não temos qualquer intuição que
se lhe possa referir. Sabemos somente, pela lei moral, quê um ser assim
existe e possui uma causalidade livre. O interesse prático é de tal ordem
que a relação entre a representação e um objeto não forma um
conhecimento, antes designa algo a realizar. A alma e Deus, como Idéias
especulativas, não recebem igualmente da sua

____________________
(38) CRPr, Dialéctica, «da supremacia da razão pura prática».
(38) CRPr, Analítica, «da dedução dos princípios da razão pura prática.»

F K-4
determinação prática uma extensão do ponto de vista do conhecimento
(39).
Mas os dois interesses não estão simplesmente coordenados. É
evidente que o interesse especulativo está subordinado ao interesse
prático. O mundo sensível não apresentaria interesse especulativo se, do
ponto de vista de um interesse mais alto, não desse testemunho da
possibilidade de realizar o supra-sensível. E por este motivo que as Idéias
da própria razão especulativa não têm determinação direta que não seja
prática. Vemo-lo bem no que Kant denomina «crença». Uma crença é uma
proposição especulativa, mas que se não torna assertória senão pela
determinação que recebe da lei moral. Por isso, a crença não remete para
uma faculdade particular, antes exprime a síntese do interesse especulativo
e do interesse prático, ao mesmo tempo que a subordinação do primeiro ao
segundo. Donde a superioridade da prova moral da existência de Deus
sobre todas as provas especulativas. Pois, enquanto objeto de
conhecimento, Deus só é determinável indireta e analogicamente (como
aquilo de que os fenômenos tiram um máximo de unidade sistemática);
mas, enquanto objeto de crença, adquire uma determinação e uma
realidade exclusivamente práticas (autor moral do mundo) (40).
Um interesse em geral implica um conceito de fim. Ora, se é verdade
que a razão no seu uso especulativo não renuncia a encontrar fins na
natureza sensível que ela observa, estes fins materiais nunca representam
um objetivo final, o mesmo sucedendo com a dita observação da natureza.
«O fato de ser conhecido não pode conferir ao mundo qualquer valor; é
preciso supor nele um objetivo final que dê algum valor a esta própria
observação do mundo (41).» Objetivo final, na verdade, significa duas
coisas: ele aplica-se a seres que devem ser considerados como fins em si e
que, por outro lado, devem dar à natureza sensível um fim último a
realizar. O objetivo final é então necessariamente o conceito da razão
prática ou da faculdade de desejar sob a sua forma superior: só a lei moral
determina o ser racional como fim em si, visto que constitui um objetivo
final no uso da liberdade, mas ao mesmo tempo determina-o como fim
último da natureza sensível, porquanto ela nos ordena que realizemos o

_______________________
(38) CRPr, Dialéctica, «sobre os postulados da razão pura prática em geral».
(38) CJ, §§ 87 e 88.
(38) CJ, § 86.
supra-sensível unindo a felicidade universal à moralidade. «Se a criação
tem um fim último, não o podemos conceber de outro modo que não seja
em harmonia com o fim moral, que é o único a tornar possível o conceito
de fim... A razão prática não indica apenas o objetivo final, mas determina
ainda este conceito relativamente às condições sob as quais um objetivo
final da criação pode ser concebido por nós (42).» O interesse especulativo
só encontra fins na natureza porque, mais profundamente, o interesse
prático implica o ser racional como fim em si e também como fim último
desta própria natureza sensível. Em tal sentido, importa dizer que «todo o
interesse é prático, e o interesse mesmo da razão especulativa é apenas
condicionado e só é completo no uso prático» (43).

______________________
(42) CJ, § 88.
(43) CRPr, Dialéctica, «da supremacia da razão pura prática». (Cf. FMC, III:
«Um interesse é aquilo através do qual a razão se torna prática... O interesse lógico
da razão, que consiste em desenvolver os seus conhecimentos, nunca é imediato,
antes pressupõe fins aos quais se refere o uso desta faculdade.»)
Capítulo III

RELAÇÃO DAS FACULDADES NA CRÍTICA


DO JUÍZO

Há uma forma superior do sentimento

Esta pergunta significa: há representações que determinem a priori


um estado do sujeito como prazer ou dor? Uma sensação não é abrangida
por este caso: o prazer ou a dor que ela produz (sentimento) só pode ser
conhecido empiricamente. E o mesmo sucede quando a representação de
objeto é a priori . Invocar-se-á a lei moral como representação de uma
pura forma? (O respeito como efeito da lei seria o estado superior da dor,
o contenta-mento intelectual, o estado superior do prazer.) A resposta de
Kant é negativa (1). Pois o contentamento não é um efeito sensível nem
um sentimento particular, mas um «análogo» intelectual do sentimento. E
o próprio respeito só é um efeito na medida em que é um sentimento
negativo; na sua positividade, confunde-se com a lei como móbil, mais do
que dela deriva. Em regra, é impossível que a faculdade de sentir alcance a
sua forma superior, quando ela própria encontra a sua lei na forma inferior
ou superior da faculdade de desejar.

_____________
(1) CJ, § 12.
Que seria, então, um prazer superior? Ele não deveria estar ligado a
nenhum atrativo sensível (interesse empírico pela existência do objeto de
uma sensação) nem a nenhuma inclinação intelectual (interesse prático
puro pela existência de um objeto da vontade). A faculdade de sentir só
pode ser superior sendo desinteressada no seu princípio. O que conta não
é a existência do objeto representado, mas o simples efeito de uma
representação sobre mim. O mesmo é dizer que um prazer superior é a
expressão sensível de um juízo puro, de uma pura operação de julgar (2).
Esta operação apresenta-se primeiramente no juízo estético do tipo «é
belo».
Mas qual é a representação que, no juízo estético, pode ter como
efeito este prazer superior? Dado que a existência material do objeto
permanece indiferente, trata-se ainda da representação de uma pura forma.
Mas, desta vez, é uma forma de objeto. E esta forma não pode ser
simplesmente a da intuição, que nos refere a objetos exteriores
materialmente existentes. Na verdade, «forma» significa agora o seguinte:
reflexão de um objeto singular na imaginação. A forma é o que a
imaginação reflete de um objeto, por oposição ao elemento material das
sensações que este objeto provoca enquanto existe e age sobre nós.
Acontece por vezes a Kant perguntar: uma cor, um som, podem ser ditos
belos por si mesmos? Talvez o fossem se, em lugar de apreendermos
materialmente o seu efeito qualitativo sobre os nossos sentidos, fôssemos
capazes de refletir pela nossa imaginação as vibrações de que eles se
compõem. Mas a cor e o som são demasiado materiais e acham-se
demasiado impregnados nos nossos sentidos para se refletirem assim na
imaginação: são adjuvantes, mais do que elementos da beleza. O essencial
é o desenho, é a composição, os quais são precisamente manifestações da
reflexão formal (3).
A representação refletida da forma é causa, no juízo estético, do
prazer superior do belo. Devemos então verificar que o estado superior da
faculdade de sentir apresenta dois caracteres paradoxais, intimamente
ligados um ao outro. Por um lado, contrariamente ao que se passava no
caso das outras faculdades, a forma superior não define aqui nenhum
interesse da razão: o prazer estético é tão independente do interesse
especulativo como do interesse prático e define-se a si próprio como
inteiramente desinteressado. Por outro lado, a faculdade de sentir sob a sua

_______________
(3) CJ, § 9.
(3) CJ, § 14.
forma superior não é legisladora: toda a legislação implica objetos sobre
os quais ela se exerce e que lhe estão submetidos. Ora, não só o juízo
estético é sempre particular, do tipo «esta rosa é bela» (implicando a
proposição «as rosas são belas em geral», uma comparação e um juízo
lógicos) (4). Mas, sobretudo, ele nem sequer legisla sobre o seu objeto
singular, visto que permanece inteiramente indiferente à sua existência.
Kant recusa assim o emprego da palavra «autonomia.» para a faculdade de
sentir sob a sua forma superior: impotente para legislar sobre objetos, o
juízo só pode ser heautônomo, o que significa que legisla sobre si (5). A
faculdade de sentir não tem domínio (nem fenômenos nem coisas em si);
não exprime condições a que um género de objetos deve estar submetido,
mas unicamente condições subjetivas para o exercício das faculdades.

Senso comum estético

Quando dizemos «é belo», não queremos dizer simplesmente «é


agradável»: aspiramos a uma certa objetividade, a uma certa necessidade,
a uma certa universalidade. Mas a pura representação do objeto belo é
particular: a objetividade do juízo estético não tem, portanto, conceito ou
(o que vem a dar no mesmo) a sua necessidade e a sua universalidade são
subjetivas. Cada vez que intervém um conceito determinado (figuras
geométricas, espécies biológicas, idéias racionais), o juízo estético cessa
de ser puro ao mesmo tempo que a beleza deixa de ser livre (6). A
faculdade de sentir, sob a sua forma superior, não pode depender do
interesse especulativo, tal como não depende do interesse prático. É por
este motivo que só o prazer é admitido como universal e necessário no
juízo estético. Supomos que o nosso prazer é de direito comunicável ou
válido para todos, presumimos que cada qual deve experimentá-lo. Esta
presunção, esta suposição nem sequer é um «postulado», visto que exclui
todo o conceito determinado (7).
Contudo, tal suposição seria impossível se o entendimento não
interviesse de certa maneira. Vimos qual era o papel da imaginação: ela
reflete um objeto singular, do ponto de vista da

___________________
(7) CJ, § 8.
(7) CJ, Introdução, §§ 4 e 5.
(7) CJ, § 16 (pulcbritudo vaga).
(7) CJ, § 8.
forma. Procedendo assim, não se refere .a um conceito determinado do
entendimento. Mas refere-se ao próprio entendimento como à faculdade
dos conceitos em geral; refere-se a um conceito indeterminado do
entendimento. Quer dizer: a imaginação na sua liberdade pura concorda
com o entendimento na sua legalidade não especificada. Poderia afirmar-
se em rigor que a imaginação, aqui, «esquematiza sem conceito» (8). Mas
o esquematismo é sempre o ato de uma imaginação que já não é livre, que
se acha determinada a agir conformemente a um conceito do
entendimento. Na verdade, a imaginação faz algo diferente de
esquematizar: manifesta a sua liberdade mais profunda refletindo a forma
do objeto, «ela joga-se de certo modo na contemplação da figura», torna-
se imaginação produtiva e espontânea «como causa de formas arbitrárias
de intuições possíveis» (9). Eis, pois, um acordo entre a imaginação como
livre e o entendimento como indeterminado. Eis um acordo igualmente
livre e indeterminado entre faculdades. Devemos dizer acerca deste acordo
que ele define um senso comum propriamente estético (o gosto). Com
efeito, o prazer que supomos comunicável e válido para todos é apenas o
resultado deste acordo. Não se fazendo sob um conceito determinado, o
livre jogo da imaginação e do entendimento não pode ser intelectualmente
conhecido, mas apenas sentido (10). A nossa suposição de uma
«comunicabilidade do sentimento» (sem a intervenção de um conceito)
funda-se assim na idéia de um acordo subjetivo das faculdades, na medida
em que tal acordo forma também um senso comum (11).
Poderia crer-se que o senso comum estético completa os dois
precedentes: no senso comum lógico e no senso comum moral, ora o
entendimento ora a razão legislam e determinam a função das outras
faculdades; agora, seria a vez da imaginação. Mas não pode ser assim. A
faculdade de sentir não legisla sobre objetos; não há, portanto, nela uma
faculdade (no segundo sentido da palavra) que seja legisladora. O senso
comum estético não representa um acordo objetivo das faculdades (isto é:
uma submissão de objetos a uma faculdade dominante, a qual determinaria
ao mesmo tempo o papel das outras faculdades relativamente a estes
objetos), mas uma pura harmonia subjetiva onde a imaginação e o
entendimento se exercem

______________________
(8) CJ, § 35.
(9) CJ, § 16 e «nota geral sobre a primeira secção da analítica».
(10) CJ, § 9.
(11) CJ, §§ 39 e 40.
espontaneamente, cada qual por sua, conta. Por conseguinte, o senso
comum estético não completa os outros dois; funda-os ou torna-os
possíveis. Jamais uma faculdade assumiria um papel legislador e
determinante se, porventura, todas as faculdades juntas não fossem
primeiro capazes desta livre harmonia subjetiva.
Mas, então, encontramo-nos perante um problema particularmente
difícil. Explicamos a universalidade do prazer estético ou a
comunicabilidade do sentimento superior pelo livre acordo das faculdades,
Mas bastará presumir este livre acordo, supô-lo a priori ? Não deve ele,
pelo contrário, ser produzido em nós? Quer dizer: o senso comum estético
não deve ser objeto de uma gênese, gênese propriamente transcendental?
Tal problema domina a primeira parte da Crítica do juízo; a sua própria
solução comporta vários momentos complexos.

Relação das faculdades no Sublime

Enquanto permanecemos no juízo estético do tipo «é belo», a razão


não parece ter qualquer papel: só intervêm o entendimento e a imaginação.
Além disso, é encontrada uma forma superior do prazer, não uma forma
superior da dor. Mas o juízo «é belo» é apenas um tipo de juízo estético.
Devemos considerar o outro tipo, «é sublime». No Sublime, a imaginação
entrega-se a uma atividade de todo em todo diferente da reflexão formal.
O sentimento do sublime é experimentado diante do informe ou do
disforme (imensidade ou potência). Tudo se passa então como se a
imaginação fosse confrontada com o seu próprio limite, forçada a atingir o
seu máximo, sofrendo uma violência que a leva ao extremo do seu poder.
Decerto que a imaginação não tem limite enquanto se trata de apreender
(apreensão sucessiva de partes). Mas, na medida em que deve reproduzir
as partes precedentes conforme vai chegando às seguintes, tem
efetivamente um máximo de compreensão simultânea. Ante o imenso, a
imaginação experimenta a insuficiência deste máximo, «ela busca ampliá-
lo e recai sobre si mesma» (12). À primeira vista, atribuímos ao objeto
natural, ou seja, à Natureza sensível, essa imensidade que reduz à
impotência a nossa imaginação. Mas, na verdade, unicamente a razão nos
força a reunir num todo a imensidade do mundo sensível. Todo esse que é
a Idéia do sensível, tanto quanto este último tem como substrato algo

_____________________
(12) CJ, § 26.
de inteligível ou de supra-sensível. A imaginação aprende assim que é a
razão que a impele até ao limite do seu poder, forçando-a a confessar que
toda a sua potência nada é relativamente a uma Idéia.
O Sublime coloca-nos, pois, na presença de uma relação subjetiva
direta entre a imaginação e a razão. Mas mais do que um acordo, esta
relação é em primeiro lugar um desacordo, uma contradição vivida entre a
exigência da razão e a potência da imaginação. E por isso que a
imaginação parece perder a sua liberdade e o sentimento do sublime ser
uma dor mais do que um prazer. Porém, no fundo do desacordo, surge o
acordo; a dor torna possível um prazer. Quando a imaginação é posta na
presença do seu limite por alguma coisa que a supera por todos os lados,
ela mesma supera o seu próprio limite, é verdade que de maneira negativa,
representando-se a inacessibilidade da Idéia racional e fazendo desta
própria inacessibilidade algo de presente na natureza sensível. «A
imaginação, que fora do sensível nada encontra onde se situar, sente-se no
entanto ilimitada graças ao desaparecimento das suas balizas; e esta
abstração é uma apresentação do infinito, que, por til razão, só pode ser
negativa, mas que, todavia, alarga a alma (13).» Tal é o acordo —
discordante — da imaginação e da razão: não é apenas a razão que tem
uma «destinação supra-sensível» mas também a imaginação. Neste
acordo, a alma é sentida como a unidade supra-sensível indeterminada de
todas as faculdades; somos nós próprios referidos a um foco, como a um
«ponto de concentração» no supra-sensível.
Então, vê-se que o acordo imaginação-razão não é simples-mente
presumido: é verdadeiramente engendrado, engendrado no desacordo. Eis
porque o senso comum que corresponde ao sentimento do sublime se não
separa de uma «cultura», como movimento da sua gênese (14). E é nesta
gênese que aprendemos o essencial respeitante ao nosso destino. Com
efeito, as Idéias da razão são especulativamente indeterminadas,
praticamente determinadas. Tal é já o princípio da diferença entre o
Sublime matemático do imenso e o Sublime dinâmico da potência (um
põe em jogo a razão do ponto de vista da faculdade de conhecer, o outro,
do ponto de vista da faculdade de desejar) (15). De sorte que, no sublime
dinâmico, a destinação supra-sensível das nossas

__________________
(13) CJ, § 29, «Nota geral».
(14) CJ, § 29.
(15) CJ. § 24.
faculdades aparece como o pré-destino de um ser moral. O sentido do
sublime é engendrado em nós de tal maneira que ele prepara uma mais alta
finalidade e nos prepara a nós próprios para o advento da lei moral.

Ponto de vista da gênese

O difícil é achar o princípio de uma gênese análoga para o sentido do


belo, dado que no sublime tudo é subjetivo, relação subjetiva entre
faculdades; o sublime apenas se refere à natureza por projeção, e esta
projeção efetua-se sobre o que há de informe ou de disforme na natureza.
Também no belo nos encontramos diante de um acordo subjetivo; mas
este faz-se a propósito de formas objetivas, de tal modo que se coloca no
caso do belo um problema de dedução que se não colocava para o sublime
(16). A análise do sublime pôs-nos no caminho, visto que ela nos
apresentava um senso comum que não era apenas presumido, mas
engendrado. Todavia, uma gênese do sentido do belo coloca um problema
mais difícil, dado que requer um princípio cujo alcance seja objetivo (17).
Sabemos que o prazer estético é inteiramente desinteressado, já que
em nada concerne à existência de um objeto. O belo não é objeto de um
interesse da razão. O que não obsta a que ele possa estar sinteticamente
unido a um interesse racional. Suponhamos que é assim: o prazer do belo
não deixa de ser desinteressado, mas o interesse a que está unido pode
servir de princípio para uma gênese da «comunicabilidade» ou da
universalidade deste prazer; o belo não deixa de ser desinteressado, mas o
interesse a que está unido sinteticamente pode servir de regra para uma
gênese do sentido do belo como senso comum.
Se a tese kantiana é realmente esta, devemos indagar qual é o
interesse unido ao belo. Pensar-se-á, antes de mais, num interesse social
empírico, tão amiúde ligado aos objetos belos e capaz de engendrar uma
espécie de gosto ou de comunicabilidade do prazer. Mas é óbvio que o
belo apenas está ligado a um tal interesse a posteriori, não a priori (18).
Só um interesse da razão pode responder às exigências precedentes. Mas
em que pode consistir aqui um interesse racional? Ele não pode incidir

___________________
(16) CJ, § 3o.
(17) Daí o lugar da análise do Sublime na Crítica do Juízo.
(18) CJ, § 41.
sobre o próprio belo. Incide exclusivamente sobre a aptidão que a
natureza possui para produzir belas formas, ou seja, formas capazes de se
refletirem na imaginação. (E a natureza apresenta esta aptidão, até mesmo
onde o olho humano penetra demasiado raramente para as refletir
efetivamente: por exemplo, no fundo dos oceanos) (19). O interesse unido
ao belo não incide, pois, sobre a bela forma enquanto tal, mas sobre a
matéria empregue pela natureza para produzir objetos capazes de se
refletirem formalmente. Não causará espanto que Kant, tendo começado
por dizer que as cores e os sons não eram em si mesmos belos, acrescente
em seguida que eles são objeto de um «interesse do belo» (20). Além de
que, se procurarmos qual é a matéria-prima que intervém na formação
natural do belo, vemos que se trata de uma matéria fluida (o mais antigo
estado da matéria), da qual uma parte se separa ou evapora e da qual o
resto se solidifica bruscamente (cf. formação dos cristais) (21). O mesmo é
dizer que o interesse do belo não é parte integrante do belo nem do sentido
do belo, mas concerne a uma produção do belo na natureza, e pode nesta
qualidade servir de princípio em nós para uma gênese do próprio sentido
do belo.
Toda a questão reside nisto: de que espécie é esse interesse? Temos
até agora definido os interesses da razão por um género de objetos que se
achavam necessariamente submetidos a uma faculdade superior. Mas não
há objetos que estejam submetidos à faculdade de sentir. A forma.
superior da faculdade de sentir designa somente a harmonia subjetiva e
espontânea das nossas faculdades ativas, sem que uma destas faculdades
legisle sobre objetos. Quando apreciamos a aptidão material da natureza
para produzir belas formas, não podemos concluir daí a submissão
necessária desta natureza a uma das nossas faculdades, mas unicamente o
seu acordo contingente com todas as nossas faculdades em conjunto (22).
Mais ainda: procurar-se-ia em vão um fim da Natureza quando ela produz
o belo; a precipitação da matéria fluida explica-se de maneira puramente
mecânica. A aptidão da natureza apresenta-se assim como um poder sem
objetivo, apropriado por acaso ao exercício harmonioso das nossas
faculdades (23). O prazer deste exercício também é
________________
(19) CJ, § 30.
(20) CJ, § 42.
(21) CJ, § 58.
(22) CJ, Introdução, § 7.
(23) CL § 58.
desinteressado; o que impede que experimentemos um interesse racional
pelo acordo contingente das produções da natureza com o nosso prazer
desinteressado (24). Tal é o terceiro interesse da razão: define-se, não por
uma submissão necessária, mas por um acordo contingente da Natureza
com as nossas faculdades.

O simbolismo na natureza

Como se apresenta a gênese do sentido do belo? Parece certo que as


matérias livres da natureza, as cores, os sons, se não referem apenas a
conceitos determinados do entendimento. Eles extravasam o
entendimento, «dão que pensar» muito mais do que está contido no
conceito. Por exemplo, não referimos somente a cor a um conceito do
entendimento que se aplicaria diretamente a ela, referimo-la ainda a
qualquer outro conceito, que não tem à sua conta um objeto de intuição,
mas que se assemelha ao conceito do entendimento porque fixa o seu
objeto por analogia com o objeto da intuição. Estoutro conceito é uma
Idéia da razão, que apenas se assemelha ao primeiro, do ponto de vista da
reflexão. Assim o lis branco não é simplesmente referido aos conceitos de
cor e de flor, visto despertar a Idéia de pura inocência, cujo objeto não é
mais do que um análogo (reflexivo) do branco na flor-de-lis (25). Eis que
as Idéias são objeto de uma apresentação indireta nas livres matérias da
natureza. Esta apresentação indireta chama-se simbolismo e tem como
regra o interesse do belo.
Seguem-se duas conseqüências: o próprio entendimento vê os seus
conceitos alargados de maneira ilimitada; a imaginação encontra-se liberta
do constrangimento do entendimento que ela ainda sofria no
esquematismo e torna-se capaz de refletir livre-mente a forma. O acordo
da imaginação como livre e do entendimento como indeterminado já não
é, portanto, simplesmente presumido: é de certo modo animado,
vivificado, engendrado pelo interesse do belo. As livres matérias da
natureza sensível simbolizam as Idéias da razão; assim, elas permitem que
o entendimento se alargue, que a imaginação se liberte. O interesse do
belo atesta uma unidade supra-sensível de todas as nossas faculdades,
como um «ponto de concentração no supra-sensível», de que decorre o
livre acordo formal ou a harmonia subjetiva delas.
______________
(25) CJ, § 42.
(25) CJ, §§ 42 e 59.
A unidade supra-sensível indeterminada de todas as faculdades e o
acordo livre que daí deriva são o mais profundo da alma. Efetivamente,
quando o acordo das faculdades se acha determinado por uma de entre elas
(o entendimento no interesse especulativo, a razão no interesse prático),
supomos que as faculdades são, antes de mais, capazes de uma livre
harmonia (segundo o interesse do belo), sem a qual nenhuma destas deter-
minações seria possível. Mas, por outro lado, o acordo livre das faculdades
deve já fazer aparecer a razão como chamada a desempenhar o papel
determinante no interesse prático ou no domínio moral. É neste sentido
que a destinação supra-sensível de todas as nossas faculdades é o pré-
destino de um ser moral; ou que a idéia do supra-sensível como unidade
indeterminada das faculdades prepara a idéia do supra-sensível tal como
ela é pratica-mente determinada pela razão (como princípio dos fins da
liberdade); ou que o interesse do belo implica uma disposição para ser
moral (26). Como afirma Kant, o próprio belo é símbolo do bem (pretende
dizer que o sentido do belo não é uma percepção confusa do bem, que não
há qualquer relação analítica entre o bem e o belo, mas uma relação
sintética segundo a qual o interesse do belo nos dispõe a ser moral, nos
destina à moralidade) (27). Deste modo a unidade indeterminada e o acordo
livre das faculdades não constituem unicamente o mais profundo da alma,
mas preparam ainda o advento do mais alto, ou seja, a supremacia da
faculdade de desejar, e tornam possível a passagem da faculdade de
conhecer à faculdade de desejar.

O simbolismo na arte, ou o gênio

É verdade que tudo o que precede (o interesse do belo, a gênese do


sentido do belo, a relação do belo e do bem) só diz respeito à beleza da
natureza. Tudo assenta, de fato, no pensamento de que a natureza produziu
a beleza (28). É por isso que o belo na arte parece ser desprovido de relação
com o bem e o sentido do belo na arte não poder ser engendrado a partir
de um princípio que nos destina à moralidade. Donde a frase de Kant: é
respeitável aquele que sai de um museu a fim de se voltar para as belezas
da natureza...

___________________
(26) CJ, § 42.
(27) CJ, § 59.
(28) CJ, § 42.
A não ser que a arte se revele igualmente susceptível de se sujeitar, à
sua maneira, a uma matéria e a uma regra fornecidas pela natureza. Mas a
natureza, aqui, não pode proceder senão por uma disposição inata no
sujeito. O Gênio é precisamente a disposição inata pela qual a natureza dá
à arte uma regra sintética e uma rica matéria. Kant define o gênio como a
faculdade das Idéias estéticas (29). A primeira vista, uma Idéia estética é o
contrário de uma Idéia racional. Esta é um conceito a que nenhuma
intuição se ajusta; aquela, uma intuição a que nenhum conceito se adequa.
Mas, perguntar-se-á, é tal relação inversa suficiente para descrever a Idéia
estética? A Idéia da razão supera a experiência, quer por não ter objeto que
lhe corresponda na natureza (por exemplo, seres invisíveis) quer por fazer
de um simples fenômeno da natureza um acontecimento do espírito (a
morte, o amor...). A Idéia da razão contém, pois, algo de inexprimível.
Mas a Idéia estética supera todo o conceito porque cria a intuição de uma
natureza diferente da que nos é dada: outra natureza cujos fenômenos
seriam autênticos acontecimentos espirituais e os acontecimentos do
espírito, determinações naturais imediatas (30). Ela «dá que pensar», força
a pensar. A Idéia estética é, sem dúvida, a mesma coisa que a Idéia
racional: exprime o que nesta há de inexprimível. Assim se explica que ela
surja como uma representação «secundária», uma expressão segunda. Por
isso mesmo, acha-se bastante próximo do simbolismo (o gênio também
procede por alargamento do entendimento e libertação da imaginação) (31).
Mas, em vez de apresentar indiretamente a Idéia na natureza, exprime-a
secundaria-mente na criação imaginativa de uma outra natureza.
O gênio não é o gosto, mas anima o gosto na arte dando-lhe uma alma
ou uma matéria. Há obras que são perfeitas do ponto de vista do gosto,
mas que carecem de alma, isto é, de gênio (32). E que o próprio gosto não
passa do acordo formal de uma imaginação livre e de um entendimento
alargado. Permanece sombrio e morto, e somente presumido, se
porventura não remeter para uma instância mais alta, como para uma
matéria capaz justamente de alargar o entendimento e de libertar a
imaginação. O acordo da imaginação e do entendimento, nas artes, só é
vivi-ficado pelo gênio, e sem ele ficaria incomunicável. O gênio é um

__________________
(29) Cf, § 57, nota 1.
(30) CJ, § 49.
(31) Ibid.
(32) Ibid.
apelo lançado a outro gênio; mas, entre os dois, o gosto torna-se uma
espécie de médium; e ele permite esperar, quando o outro gênio ainda não
nasceu (33). O gênio exprime a unidade supra-sensível de todas as
faculdades, e exprime-a como viva. Fornece, portanto, a regra sob a qual
as conclusões do belo na natureza podem ser estendidas ao belo na arte.
Logo, não é apenas o belo na natureza que é símbolo do bem; é também o
belo na arte, sob a regra sintética e genética do próprio gênio (34).
A estética formal do gosto, Kant junta assim uma meta-estética
material, de que os dois principais capítulos são o interesse do belo e o
gênio, e que patenteia um romantismo kantiano. Designadamente, à
estética da linha e da composição, por conseguinte, da forma, Kant junta
uma meta-estética das matérias, das cores e dos sons. Na Crítica do Juízo,
o classicismo acabado e o romantismo nascente encontram um equilíbrio
completo.
Não devemos confundir as diversas maneiras como, segundo Kant, as
Idéias da razão são susceptíveis de uma apresentação na natureza sensível.
No sublime, a apresentação é direta mas negativa, e faz-se por projeção;
no simbolismo natural ou no interesse do belo, a apresentação é positiva,
mas indireta, e faz-se por reflexão; no gênio ou no simbolismo artístico, a
apresentação é positiva, mas secundária, e faz-se por criação de outra
natureza. Veremos mais adiante que a Idéia é susceptível de um quarto
modo de apresentação, o mais perfeito, na natureza concebida como
sistema de fins.

O juízo é uma faculdade?

O juízo é sempre uma operação complexa, que consiste em subsumir


o particular no geral. O homem do juízo é sempre um homem da arte: um
perito, um médico, um jurista. O juízo implica um verdadeiro dom, uma
queda (35). Kant foi o primeiro a saber colocar o problema do juízo ao
nível do seu tecnicismo ou da sua originalidade própria. Em textos
célebres, Kant distingue dois casos: ou o geral é já dado, conhecido, e
basta aplicá-lo, quer dizer, determinar o particular a que ele se aplica («uso
apodíctico da razão», «juízo determinante»); ou, então, o geral

____________________
(33) Ibid.
(34) Contrariamente ao § 42, o § 59 («da beleza, símbolo da
moralidade») vale tanto para a arte como pata a natureza.
(35) CRP, Analítica, «do juízo transcendental em geral».
constitui problema, e deve ele mesmo ser encontrado («uso hipotético da
razão», «juízo reflexivo») (36). Todavia, esta distinção é muito mais
complicada do que parece: deve ser interpretada, tanto do ponto de vista
dos exemplos como da significação.
Um primeiro erro seria crer que só o juízo reflexivo implica uma
invenção. Mesmo quando o geral é dado, há necessidade de «juízo» para
fazer a subsunção. Decerto que a lógica transcendental se distingue da
lógica formal, porquanto contém regras que indicam a condição sob a qual
se aplica um conceito dado (37). Mas estas regras não se reduzem ao
próprio conceito: para aplicar um conceito do entendimento, é preciso o
esquema, que é um ato inventivo da imaginação capaz de indicar a
condição sob a qual casos particulares são subsumidos no conceito. Deste
modo o esquematismo é já uma «arte», e o esquema, um esquema dos
«casos que obedecem à lei». Seria, pois, errôneo crer que o entendimento
julga por si mesmo: o entendimento não pode fazer dos seus conceitos
outro uso que não seja o de julgar, mas tal uso implica um ato original da
imaginação e também um ato original da razão (o que leva a que o juízo
determinante apareça, na Crítica da Razão pura, como um certo exercício
da razão). Todas as vezes que Kant fala do juízo como de uma faculdade,
é para marcar a originalidade do seu ato, a especificidade do seu produto.
Mas o juízo implica sempre várias faculdades e exprime o acordo destas
faculdades entre si. O juízo é dito determinante quando exprime o acordo
das faculdades sob uma faculdade também determinante, ou seja, quando
determina um objeto em conformidade com uma faculdade encarada antes
de mais como legisladora. Assim, o juízo teórico exprime o acordo das
faculdades que determina um objeto conformemente ao entendimento
legislador. De igual modo há um juízo prático, que determina se uma ação
possível é um caso submetido à lei moral: exprime o acordo do
entendimento e da razão, sob a presidência da razão. No juízo teórico, a
imaginação fornece um esquema em conformidade com o conceito do
entendimento; no juízo prático, o entendimento fornece um tipo
conformemente à lei da razão. E a mesma coisa dizer que o juízo
determina um objeto, que o acordo das faculdades é determinado, que uma
das faculdades exerce uma função determinante ou legisladora.
Importa, pois, fixar os exemplos correspondentes aos dois tipos de
juízos, «determinante» e «reflexivo». Seja um médico

____________________
(36) CRP, Dialéctica, Apêndice, «do uso regulador das idéias».
(37) CRP, Analítica, «do juízo transcendental em geral».

FK-65
que sabe o que é a febre tifóide (conceito), mas não a reconhece num caso
particular (juízo ou diagnóstico). Ter-se-ia tendência a ver no diagnóstico
(que implica um dom e uma arte) um exemplo de juízo determinante, visto
que se supõe o conceito conhecido. Mas, relativamente a um caso
particular dado, o próprio conceito não é dado: é problemático ou
absolutamente indeterminado. De fato, o diagnóstico é um exemplo de
juízo reflexivo. Se procuramos na medicina um exemplo de juízo
determinante, devemos antes pensar numa decisão terapêutica: aí, o
conceito é efetivamente dado em relação ao caso particular, mas o difícil é
aplicá-lo (contra-indicações em função do doente, etc.).
Precisamente, não há menos arte ou invenção no juízo reflexivo. Mas
esta arte é nele distribuída de outra maneira. No juízo determinante, a
arte está como que «escondida»: o conceito é dado, seja conceito do
entendimento seja lei da razão; há, pois, uma faculdade legisladora, que
dirige ou determina o contributo original das outras faculdades, de sorte
que este contributo é difícil de apreciar. Mas, no juízo reflexivo, nada é
dado do ponto de vista das faculdades ativas: só se apresenta uma matéria
bruta, sem ser, para falar em termos precisos, «representada». Todas as
faculdades ativas se exercem assim livremente em relação a ela. O juízo
reflexivo exprimirá um acordo livre e indeterminado entre todas as
faculdades. A arte, que permanecia escondida e como que subordinada no
juízo determinante, torna-se manifesta e exerce-se livremente no juízo
reflexivo. Não há dúvida de que podemos por «reflexão» descobrir um
conceito que já existe; mas o juízo reflexivo será tanto mais puro quanto
não houver conceito algum para a coisa que ele reflete livremente ou
quanto o conceito for (de uma certa maneira) alargado, ilimitado,
indeterminado.
Na verdade, juízo determinante e juízo reflexivo não são como que
duas espécies de um mesmo género. O juízo reflexivo manifesta e liberta
um fundo que permanecia escondido no outro. Mas já o outro não era
juízo senão por este fundo vivo. Sem o que não compreenderíamos como é
que a Crítica do Juízo pode intitular-se assim, embora apenas trate do
juízo reflexivo. É que todo o acordo determinado das faculdades, sob uma
faculdade determinante e legisladora, supõe a existência e a possibilidade
de um acordo livre indeterminado. É neste acordo livre que o juízo não só
é original (o que ele era já no caso do juízo determinante), como ainda
manifesta o princípio da sua originalidade. Segundo este princípio, as
nossas faculdades diferem em natureza, e todavia nem por isso deixam de
ter um acordo livre e espontâneo, que torna possível em seguida o seu
exercício sob a presidência de uma de entre elas, conforme uma lei dos
interesses da razão. O juízo é sempre irredutível ou original: motivo pelo
qual pode ser chamado «uma» faculdade (dom ou arte específica). Nunca
consiste numa única faculdade, mas no seu acordo, quer num acordo já
determinado por uma delas que desempenhe um papel legislador quer
mais profundamente num livre acordo indeterminado, que constitui o
objeto último de uma «crítica do juízo» em geral.

Da estética à teleologia

Quando a faculdade de conhecer é apreendida sob a sua forma


superior, o entendimento legisla nesta faculdade; quando a faculdade de
desejar é apreendida sob a sua forma superior, a razão legisla nesta
faculdade. Quando a faculdade de sentir é apreendida sob a sua forma
superior, é o juízo que legisla nesta faculdade (38). Acresce que este caso é
muito diferente dos outros dois: o juízo estético é reflexivo; não legisla
sobre objetos, mas somente sobre si mesmo; não exprime uma
determinação de objeto sob uma faculdade determinante, mas um acordo
livre de todas as faculdades a propósito de um objeto refletido. Devemos
perguntar se não há um outro tipo de juízo reflexivo ou se um livre acordo
das faculdades subjetivas se não manifesta de outro modo que não seja no
juízo estético.
Sabemos que a razão, no seu interesse especulativo, forma Idéias
cujo sentido é somente regulador. Quer dizer: elas não têm objeto
determinado do ponto de vista do conhecimento, mas conferem aos
conceitos do entendimento um máximo de unidade sistemática. Nem por
isso deixam de ter um valor objetivo, posto que «indeterminado»; pois não
podem conferir uma unidade sistemática aos conceitos sem emprestar uma
unidade semelhante aos fenômenos considerados na sua matéria ou na sua
particularidade. Esta unidade, admitida como inerente aos fenômenos, é
uma unidade final das coisas (máximo de unidade na maior variedade
possível, sem que se possa dizer até onde vai essa unidade). Tal unidade
final só pode ser concebida segundo um conceito de fim natural; com
efeito, a unidade do diverso exige uma relação da diversidade com um fim
determinado, conforme os objetos que referimos a essa unidade. No
conceito de fim natural, a unidade é sempre unicamente presumida ou

_____________
(38) CJ, Introd., 3 e 9.
suposta como conciliável com a diversidade das leis empíricas particulares
(39). Por tal motivo não exprime ela um ato pelo qual a razão seria
legisladora. Também o entendimento não legisla. O entendimento legisla
sobre os fenômenos, mas somente enquanto são considerados na forma da
sua intuição; os seus atos legislativos (categorias) constituem, pois, leis
gerais e exercem-se sobre a natureza como objeto de experiência possível
(toda a mudança tem uma causa..., etc.). Mas nunca o entendimento
determina a priori a matéria dos fenômenos, o pormenor da experiência
real ou as leis particulares deste ou daquele objeto. Estas só são
conhecidas empiricamente e permanecem contingentes relativamente ao
nosso entendimento.
Toda a lei comporta necessidade. Mas a unidade das leis empíricas,
do ponto de vista da sua particularidade, deve ser pensada como uma
unidade de tal ordem que apenas um entendimento diferente do nosso
poderia dá-la necessariamente aos fenômenos. Um «fim» define-se
precisamente pela representação do efeito como motivo ou fundamento da
causa; a unidade final dos fenômenos remete para um entendimento capaz
de lhe servir de princípio ou de substrato, no qual a representação do todo
seria causa do próprio todo enquanto efeito (entendimento-arquétipo,
intuitivo, definido como causa suprema inteligente e intencional). Mas
seria errado pensar que um tal entendimento existe na realidade ou que os
fenômenos são efetivamente produzidos desta maneira: o entendimento-
arquétipo exprime um carácter próprio do nosso entendimento, isto é, a
nossa impotência para determinarmos nós mesmos o particular, a nossa
impotência para concebermos a unidade final dos fenômenos segundo um
outro princípio que não o da causalidade intencional de uma causa
suprema (40). É neste sentido que Kant sujeita a noção dogmática de
entendimento infinito a uma profunda transformação: o entendimento
arquétipo já só exprime até ao infinito o limite inerente ao nosso
entendimento, o ponto em que este deixa de ser legislador no nosso
próprio interesse especulativo e pelo que respeita aos fenômenos. «Em
conseqüência da constituição particular das minhas faculdades de
conhecer, não posso, acerca da possibilidade da natureza e da sua
produção, julgar de outro modo que não seja imaginando uma causa
agindo por intenção (41).»

________________
(39) CJ, Introd. 5 (cf.. CRP, Dialéctica, apêndice).
(40) CJ, 77.
(41) CJ, 75.
A finalidade da natureza está, portanto, ligada a um duplo
movimento. Por um lado, o conceito de fim natural deriva das Idéias da
razão (na medida em que exprime uma unidade final dos fenômenos):
«Ele subsume a natureza numa causalidade somente concebível por razão
(42).» Só que ele não se confunde com uma Idéia racional, pois o efeito
conforme a esta causalidade encontra-se de fato dado na natureza: «Neste
aspecto, o conceito de fim natural distingue-se de todas as outras idéias
(43). Diferentemente de uma Idéia da razão, o conceito de fim natural tem
um objeto dado; diferentemente de um conceito do entendimento, não
determina o seu objeto. Na realidade, intervém para permitir que a
imaginação «reflita» sobre o objeto de maneira indeterminada, de tal
forma que o entendimento «adquire» conceitos em conformidade com as
Idéias da própria razão. O conceito de fim natural é um conceito de
reflexão que deriva das Idéias reguladoras: nele todas as nossas faculdades
se harmonizam e entram num livre acordo, graças ao qual refletimos sobre
a Natureza do ponto de vista das suas leis empíricas. O juízo teleológico é,
pois, um segundo tipo de juízo reflexivo.
Inversamente, a partir do conceito de fim natural determinamos um
objeto da Idéia racional. Sem dúvida, a Idéia não tem em si mesma um
objeto determinado; mas o seu objeto é determinável por analogia com os
objetos de experiência. Ora, esta determinação indireta e analógica (que se
concilia perfeitamente com a função reguladora da Idéia) só é possível na
medida em que os próprios objetos da experiência apresentam a unidade
final natural, relativamente à qual o objeto da Idéia deve servir de
princípio ou de substrato. Deste modo é o conceito de unidade final ou de
fim natural que nos força a determinar Deus como causa suprema
intencional agindo à maneira de um entendimento. Em tal sentido, Kant
insiste muito na necessidade de ir de uma teleologia natural para a teologia
física. O caminho inverso seria um mau caminho, assinalando uma «Razão
invertida» (a Idéia teria então um papel constitutivo e já não regulador, o
juízo teleológico seria tomado como determinante). Não encontramos na
natureza fins divinos intencionais; pelo contrário, partimos de fins que são
antes de mais os da natureza e acrescentamos-lhes a Idéia de uma causa
divina intencional como condição da sua compreensão. Não impomos fins
à natureza, «violenta e ditatorialmente»; pelo contrário, refletimos sobre a

_____________
(42) CJ. 74.
(43) CJ, 77.
unidade final natural, empiricamente conhecida na diversidade, para nos
elevarmos até à Idéia de. uma causa suprema deter-minada por analogia
(44). O conjunto destes dois movimentos define um novo modo de
apresentação da Idéia, último modo que se distingue dos que analisamos
anteriormente.
Qual é a diferença entre os dois tipos de juízo, teleológico e estético?
Devemos considerar que o juízo estético já manifesta uma verdadeira
finalidade. Mas trata-se de uma finalidade subjetiva, formal, excluindo
qualquer fim (objetivo ou subjetivo). A finalidade estética é subjetiva,
visto que consiste no livro acordo das faculdades entre si (45). Decerto que
ela põe em jogo a forma do objeto, mas a forma é precisamente o que a
imaginação reflete do próprio objeto. Trata-se, pois, objetivamente de uma
pura forma subjetiva da finalidade, excluindo todo o fim material
determinado (a beleza de um objeto não se avalia nem pelo seu uso, nem
pela sua perfeição interna nem pela sua ligação com um interesse prático
seja ele qual for) (46). Objectar-se-á que a Natureza intervém, como vimos,
pela sua aptidão material para produzir a beleza; neste sentido, devemos já
falar, a propósito do belo, de um acordo contingente da Natureza com as
nossas faculdades. Esta aptidão material é até para nós objeto de um
«interesse» particular. Mas tal interesse não faz parte do sentido do
próprio belo, se bem que nos dê um princípio segundo o qual este sentido
pode ser engendrado. Aqui, o acordo contingente da Natureza e das nossas
faculdades permanece pois, de certo modo, exterior ao livre acordo das
faculdades entre si: a natureza dá-nos unicamente a ocasião exterior «de
apreender a finalidade interna da relação das nossas faculdades
subjetivas» (47). A aptidão material da Natureza não constitui um fim
natural (que viria contradizer a idéia de uma finalidade sem fim): «Somos
nós que recebemos a natureza favoravelmente, ao passo que ela mesma
nos não faz favor algum (48).»
A finalidade, sob estes diferentes aspectos, é objeto de uma
«representação estética». Ora, vemos que, nesta representação, o juízo
reflexivo apela para princípios particulares, de vários modos: por um lado,
o acordo livre das faculdades como fundamento deste juízo (causa
formal); por outro, a faculdade de sentir como

_________________________
(44) CRP, Dialéctica, apêndice, «do objetivo final da dialéctica natural. — CJ,
§§ 68, 75 e 85.
(45) Donde, CJ, § 34, a expressão «finalidade subjetiva recíproca».
(46) CJ, §§ 11 e 15.
(47) CJ, § 58.
(48) Ibid.
matéria ou causa material, relativamente à qual o juízo define um prazer
particular como estado superior; de um terceiro modo, a forma da
finalidade sem fim como causa final; por último, o interesse especial pelo
belo, como causa fiendi segundo a qual é engendrado o sentido do belo
que se exprime de direito no juízo estético.
Quando consideramos o juízo teleológico, achamo-nos diante de uma
representação da finalidade completamente diferente. Trata-se agora de
uma finalidade objetiva, material, implicando fins. O que domina é a
existência de um conceito de fim natural, exprimindo empiricamente a
unidade final das coisas em função da sua diversidade. A «reflexão» muda
então de sentido: já não reflexão formal do objeto sem conceito, mas
conceito de reflexão pelo qual se reflete sobre a matéria do objeto. Neste
conceito, as nossas faculdades exercem-se livre e harmoniosa-mente. Mas,
aqui, o acordo livre das faculdades fica compreendido no acordo
contingente da Natureza e das próprias faculdades. De sorte que, no juízo
teleológico, devemos considerar que a Natureza nos faz realmente um
favor (e quando, da teleologia, regressamos à estética, consideramos que a
produção natural das coisas belas era já um favor da natureza a nosso
respeito) (49). A diferença entre os dois juízos consiste no seguinte: o juízo
teleológico não remete para princípios particulares (exceto no seu uso ou
na sua aplicação). Ele implica, sem dúvida, o acordo da razão, da
imaginação e do entendimento, sem que este legisle; mas esse ponto onde
o entendimento abandona as suas pretensões legisladoras faz plenamente
parte do interesse especulativo e permanece compreendido no domínio da
faculdade de conhecer. É por isso que o fim natural é objeto de uma
«representação lógica». Decerto que há um prazer da reflexão no próprio
juízo teleológico; não experimentamos prazer na medida em que a
Natureza é necessariamente submetida à faculdade de conhecer, mas
experimentamos algum na medida em que a Natureza se concilia de
maneira contingente com as nossas faculdades subjetivas. Mas, também
aqui, este prazer teleológico se confunde com o conhecimento: não define
um estado superior da faculdade de sentir tomada em si mesma, mas antes
um efeito da faculdade de conhecer sobre a faculdade de sentir (50).
Que o juízo teleológico não remeta para um princípio a priori
particular, é coisa que se explica facilmente. Na verdade,

_________________
(49) CJ, § 67.
(50) CJ, Introd., § 6.
ele é preparado pelo juízo estético e ficaria incompreensível sem esta
preparação (51). A finalidade formal estética «prepara-nos» para formar
um conceito de fim que se acrescenta ao princípio de finalidade, o
completa e o aplica à natureza; é a própria reflexão sem conceito que nos
prepara para formar um conceito de reflexão. Outrossim não há problema
de gênese a propósito de um senso comum teleológico; este é admitido ou
presumido no interesse especulativo, faz parte do senso comum lógico,
mas acha-se de certo modo encetado pelo senso comum estético.
Se considerarmos os interesses da razão que correspondem às duas
formas do juízo reflexivo reencontramos o tema de uma «preparação»,
mas num outro sentido. A estética manifesta um acordo livre das
faculdades, que se liga de uma certa maneira a um interesse especial pelo
belo; ora, este interesse predestina-nos a ser moral, logo, prepara o
advento da lei moral ou a supremacia do interesse prático puro. A
teleologia, por seu lado, manifesta um acordo livre das faculdades, desta
vez, no próprio interesse especulativo: «sob» a relação das faculdades tal
como ela é deter-minada pelo entendimento legislador, descobrimos uma
livre harmonia de todas as faculdades entre si, donde o conhecimento
extrai uma via própria (vimos que o juízo. determinante, no conhecimento
mesmo, implicava um fundo vivo que apenas se revela à «reflexão»).
Deve então pensar-se que o juízo reflexivo em geral toma possível a
passagem da faculdade de conhecer à faculdade de desejar, do interesse
especulativo ao interesse prático, e prepara a subordinação do primeiro ao
segundo, ao mesmo tempo que a finalidade toma possível a passagem da
natureza à liberdade ou prepara a realização da liberdade na natureza (52).

_________________
(51) CJ, Introd., § 8.
(52) CJ, Introd., §§ 3 e 9.
Conclusão

OS FINS DA RAZÃO

Doutrina das faculdades

As três Críticas apresentam um verdadeiro sistema de permutações.


Em primeiro lugar, as faculdades são definidas segundo as relações da
representação em geral (conhecer, desejar, sentir). Em segundo lugar,
como fontes de representações (imaginação, entendimento, razão).
Consoante consideramos esta ou aquela faculdade no primeiro sentido,
uma certa faculdade no segundo sentido é chamada a legislar sobre objetos
e a distribuir às outras faculdades a sua tarefa específica: é o caso do
entendimento na faculdade de conhecer, da razão na faculdade de desejar.
É verdade que, na Crítica do Juízo, a imaginação não tem acesso por sua
conta a uma função legisladora. Mas ela liberta-se, de sorte que todas as
faculdades entram em conjunto num livre acordo. As duas primeiras
Críticas expõem assim uma relação das faculdades determinada por uma
de entre elas; a última Crítica descobre mais profundamente um acordo
livre e indeterminado das faculdades, como condição de possibilidade de
toda a relação determinada.
Este acordo livre aparece de duas formas: na faculdade de conhecer,
como um fundo suposto pelo entendimento legislador; e para si mesmo,
como um germe que nos destina à razão

P K-73
legisladora ou à faculdade de desejar. Por isso, ele é o mais profundo da
alma, mas não o mais alto. O mais alto é o interesse prático da razão, o
que corresponde à faculdade de desejar, e que subordina a si a faculdade
de conhecer ou o próprio interesse especulativo.
A originalidade da doutrina das faculdades em Kant consiste no
seguinte: que a sua forma superior as não abstrai nunca da sua finitude
humana, tal como não suprime a sua diferença de natureza. E enquanto
específicas e finitas que as faculdades no primeiro sentido da palavra têm
acesso a uma forma superior e que as faculdades no segundo sentido têm
acesso ao papel legislador.
O dogmatismo afirmava uma harmonia entre o sujeito e o objeto e
invocava Deus (gozando de faculdades infinitas) para garantir esta
harmonia. As duas primeiras Críticas substituem-lhe a idéia de uma
submissão necessária do objeto ao sujeito «finito»: nós, os legisladores, na
nossa própria finitude (mesmo a lei moral é obra de uma razão finita). Tal
é a revolução copernicana (1). Mas, deste ponto de vista, a Crítica do Juízo
parece levantar uma dificuldade particular: quanto Kant descobre um livre
acordo sob a relação determinada das faculdades, acaso não reintroduz ele
simplesmente a idéia de harmonia e de finalidade? E isto de duas formas:
no acordo dito «final» entre as faculdades (finalidade subjetiva) e no
acordo dito «contingente» da natureza e das próprias faculdades
(finalidade objetiva).
Contudo, o essencial não reside aqui. O essencial é que a Crítica do
Juízo fornece uma nova teoria da finalidade, que corresponde ao ponto de
vista transcendental e se concilia perfeitamente com a idéia de legislação.
Esta tarefa é preenchida na medida em que a finalidade já não tem um
princípio teológico, mas, isso sim, a teologia um fundamento «final»
humano. Donde a importância das duas teses da Crítica do Juízo: o acordo
final das faculdades é objeto de uma gênese particular; a relação final da
Natureza e do homem é o resultado de uma atividade prática propriamente
humana.

Teoria dos fins

O juízo teleológico não remete, como o juízo estético, para um


princípio que sirva de fundamento a priori à sua reflexão.

____________________
(1) Cf. os comentários de Muillemin sobre a «finitude constituinte» em
L'béritage kantien et la révolution copernicienne.
Por conseguinte, deve ser preparado pelo juízo estético, e o conceito de
fim natural supõe antes de mais a pura forma da finalidade sem fim. Mas,
em compensação, quando chegamos ao conceito de fim natural, coloca-se
uma problema para o juízo teleológico, que se não colocava para o juízo
estético: a estética deixava ao gosto o cuidado de decidir que objeto devia
ser julgado belo; a teleologia, ao invés, exige regras que indiquem as
condições sob as quais se julga acerca de uma coisa segundo o conceito de
fim natural (2). A ordem de dedução é, pois, a que se segue: da forma da
finalidade ao conceito de fim natural (exprimindo a unidade final dos
objetos do ponto de vista da sua matéria ou das suas leis particulares); e do
conceito de fim natural à sua aplicação na natureza (exprimindo para a
reflexão que objetos devem ser julgados segundo este conceito).
Tal aplicação é dupla: ou aplicamos o conceito de fim natural a dois
objetos, dos quais um é causa e o outro efeito, de tal modo que
introduzamos a idéia do efeito na causalidade da causa (exemplo, a areia
como meio relativamente aos pinhais). Ou, então, aplicamo-lo a uma
mesma coisa como causa e efeito de si mesma, quer dizer, a uma coisa
cujas partes se produzem reciprocamente na sua forma e na sua ligação
(seres organizados, organizando-se eles próprios): desta maneira,
introduzimos a idéia do todo, não enquanto causa da existência da coisa
(«pois seria então um produto da arte»), mas enquanto fundamento da sua
possibilidade como produto da natureza do ponto de vista da reflexão. No
primeiro caso, a finalidade é externa; no segundo, interna (3). Ora, estas
duas finalidades têm relações complexas.
Por um lado, a finalidade externa por si mesma é puramente relativa
e hipotética. Para que ela deixasse de o ser, seria preciso que fôssemos
capazes de determinar um fim último; o que é impossível por observação
da natureza. Só observamos meios que são já fins relativamente à sua
causa, fins que são ainda meios relativamente a outra coisa. Somos assim
forçados a subordinar a finalidade externa à finalidade interna, isto é, a
considerar que uma coisa só é um meio na medida em que o fim para o
qual ela serve é igualmente um ser organizado (4).
Mas, por outro lado, é duvidoso que a finalidade interna não remeta
por seu turno para uma espécie de finalidade externa e não levante a
questão (que parece insolúvel) de um fim último.

__________________
(2) CJ, Introd., 8.
(3) CJ, §§ 63-65.
(4) CJ, § 82.
Efetivamente, ao aplicarmos o conceito de fim natural aos seres
organizados, somos conduzidos à idéia de que toda a natureza é um
sistema que segue a regra dos fins (5). A partir dos seres organizados,
somos remetidos para relações exteriores entre estes seres, relações que
deveriam cobrir o conjunto do universo (6). Mas, precisamente, a Natureza
só poderia formar um tal sistema (em vez de um simples agregado) em
função de um fim último. Ora, é claro que nenhum ser organizado pode
constituir um tal fim: nem sequer, ou sobretudo, o homem enquanto
espécie animal. E que um fim último implica a existência de alguma coisa
como fim; mas a finalidade interna nos seres organizados diz somente
respeito à sua possibilidade sem considerar se a sua própria existência é
um fim. A finalidade interna põe apenas a questão: porque é que certas
coisas existentes têm esta ou aquela forma? Mas deixa subsistir
inteiramente estoutra questão: porque existem coisas desta forma? Só
poderia ser dito «fim último» um ser de tal ordem que o fim da sua
existência estivesse em si mesmo; a idéia de fim último implica, portanto,
a de objetivo final, que excede todas as nossas possibilidades de
observação na natureza sensível, assim como todos os recursos da nossa
reflexão (7).
Um fim natural é um fundamento de possibilidade; um fim último é
uma razão de existência; um objetivo final é um ser que possui em si a
razão de existência. Mas o que é objetivo final? Só pode sê-lo aquele que
pode fazer-se um conceito de fins; só o homem enquanto ser racional pode
encontrar o fim da sua existência em si mesmo. Trata-se do homem
enquanto ser que procura a felicidade? Não, pois a felicidade como fim
deixa inteiramente subsistir a questão: porque é que o homem existe (sob
uma «forma» tal que ele se esforça por tomar a sua existência feliz) (8)?
Trata-se do homem enquanto ser que conhece? Sem dúvida, o interesse
especulativo constitui o conhecimento como fim; mas este fim nada seria
se, porventura, a existência daquele que conhece não fosse já objetivo
final (9). Ao conhecer, formamos somente um conceito de fim natural do
ponto de vista da reflexão, não uma idéia de objetivo final. É certo que,
com a ajuda deste conceito, somos capazes de determinar indireta e
analogicamente

____________________
(5) CJ, § 67. (É inexato crer que, segundo Kant, a finalidade externa se
subordina absolutamente à finalidade interna. O inverso é verdadeiro de uni outro
ponto de vista.)
(6) CJ, § 82.
(7) CJ, §§ 82, 84,
(8) CJ, § 86.
(9) Ibid.
o objeto da Idéia especulativa (Deus como autor inteligente da Natureza).
Mas «porque é que Deus criou a Natureza?» permanece uma pergunta
absolutamente inacessível a esta determinação. É neste sentido que Kant
recorda constantemente a insuficiência da teleologia natural como
fundamento de uma teologia: a determinação da Idéia de Deus à qual
chegamos por esta via dá-nos apenas uma opinião, não uma crença (10).
Em suma, a teleologia natural justifica o conceito de uma causa criadora
inteligente, mas unicamente do ponto de vista da possibilidade das coisas
existentes. A questão de um objetivo final no ato de criar (para quê a
existência do mundo e a do próprio homem?) ultrapassa toda a teleologia
natural e nem sequer pode ser concebida por ela (11).
«Um objetivo final não é mais que um conceito da nossa razão prática
(12).» Com efeito, a lei moral prescreve um objetivo sem condição. Neste
objetivo, é a razão que se toma a si mesma como fim, a liberdade que se
atribui necessariamente um conteúdo como fim supremo determinado pela
lei. À pergunta «o que é objetivo final?» devemos responder: o homem,
mas o homem como númeno e existência supra-sensível, o homem como
ser moral. “A propósito do homem considerado como ser moral, já se não
pode perguntar porque é que existe; a sua existência contém em si o fim
supremo (13)...» O fim supremo é a organização dos seres racionais sob a
lei moral, ou a liberdade como razão de existência contida em si no ser
racional. Aparece aqui a unidade absoluta de uma finalidade prática e de
uma legislação incondicionada. Esta unidade forma a «teleologia moral»,
na medida em que a finalidade prática é determinada a priori em nós
mesmos com a sua lei (14).
O objetivo final é, pois, determinável e determinado praticamente.
Ora, sabemos como, em conformidade com a segunda Crítica, esta
determinação ocasiona por sua vez uma determinação prática da Idéia de
Deus (como autor moral), sem a qual o objetivo final nem sequer poderia
ser pensado como realizável. De qualquer modo, a teologia apoia-se
sempre numa teleologia (e não o inverso). Mas, há bocado, elevávamo-nos
de uma teleologia natural (conceito de reflexão) a uma teologia física
(determinação especulativa da Idéia reguladora, Deus como autor

_______________
(10) CJ, §§ 85, 91 e «nota geral sobre a teleologia».
(11) CJ, § 85.
(12) CJ, § 88.
(13) CJ, § 84.
(14) CJ, § 87.
inteligente); se esta determinação especulativa se conciliava com a simples
regulação, é precisamente na medida em que era de todo em todo
insuficiente, permanecendo condicionada empiricamente e nada nos
dizendo acerca de um objetivo final da criação divina (15). Agora, pelo
contrário, vamos a priori de uma teleologia prática (conceito
praticamente determinante do objetivo final) a uma teologia, moral
(determinação prática suficiente da Idéia de um Deus moral como objeto
de crença). Não se pense que a teleologia natural seja inútil: é ela que nos
impele a procurar uma teologia, embora sendo incapaz de a fornecer
verdadeira-mente. Não se pense também que a teologia moral «completa»
a teologia física (nem que a determinação prática das Idéias completa a
determinação especulativa analógica). De fato, ela supre-a, segundo um
outro interesse da razão (16). É do ponto de vista destoutro interesse que
determinamos o homem como objetivo final, e objetivo final para o
conjunto da criação divina.

A história ou a realização
A última pergunta é: como se explica que o objetivo final seja
também fim último da natureza? Quer dizer: como se explica que o
homem, o qual só é objetivo final na sua existência supra-sensível e na
qualidade de númeno, possa ser fim último da natureza sensível? Sabemos
que o mundo supra-sensível deve, de uma certa maneira, ser unido ao
sensível: o conceito de liberdade deve realizar no mundo sensível o fim
imposto pela sua lei. Esta realização é possível sob duas espécies de
condições: condições divinas (a determinação prática das Idéias da razão,
que torna possível um Soberano bem como acordo do mundo sensível e do
mundo supra-sensível, da felicidade e da moralidade); e condições
terrestres (a finalidade na estética e na teleologia, como tornando possível
uma realização do próprio Soberano bem, ou seja, uma conformidade do
sensível com uma finalidade mais alta. A realização da liberdade é assim
também a efetuação do soberano bem: «União do maior bem-estar das
criaturas racionais no mundo com a mais alta condição do Bem moral nele
(17).» Neste sentido, o objetivo final incondicional é fim último da
natureza sensível, sob as condições que o estabelecem como
necessariamente realizável e devendo ser realizado nesta natureza.

___________________
(15) CJ, § 88.
(16) CJ, «nota geral sobre a teleologia».
(17) CJ, § 88.
Na medida em que o fim último é unicamente o objetivo final, ele é
objeto de um paradoxo fundamental: o fim último da natureza sensível é
um fim que esta natureza não pode bastar para realizar (18). Não é a
natureza que realiza a liberdade, mas o conceito de liberdade que se
realiza ou efetua na natureza. A efetuação da liberdade e do Soberano bem
no mundo sensível implica, pois, uma atividade sintética original do
homem: a História é esta efetuação, pelo que se não deve confundi-la com
um simples desenvolvimento da natureza. A idéia de fim último implica
sem dúvida uma relação final da natureza e do homem; mas esta relação é
somente tornada possível pela finalidade natural. Em si mesma e
formalmente, é independente da natureza sensível e deve ser estabelecida,
instaurada pelo homem (19). A instauração da relação final é a formação de
uma constituição civil perfeita: esta é o mais alto objeto da Cultura, o fim
da história ou o Soberano bem propriamente terrestre (20).
Tal paradoxo explica-se facilmente. A natureza sensível enquanto
fenômeno tem como substrato o supra-sensível. E apenas neste substrato
que se conciliam o mecanismo e a finalidade da natureza sensível, um
concernindo ao que é necessário nela como objeto dos sentidos, a outra, ao
que é contingente nela como objeto da razão (21). E, pois, uma manha da
Natureza supra-sensível o fato de a natureza sensível não bastar para rea-
lizar o que, não obstante, é o «seu» fim último; porque este fim é o próprio
supra-sensível enquanto devendo ser efetuado (isto é: ter um efeito no
sensível). «A Natureza quis que o homem tirasse de si mesmo tudo o que
supera o arranjo mecânico da sua existência animal e não participasse em
nenhuma outra felicidade ou perfeição senão a que ele mesmo criou para
si, independentemente do instinto, pela sua própria razão (22).» Assim, o
que há de contingente no acordo da natureza sensível com as faculdades
do homem é uma suprema aparência transcendental, que esconde uma
manha do supra-sensível. Mas, ao falarmos do efeito do supra-sensível no
sensível, ou da realização do conceito de liberdade, nunca devemos crer
que a natureza sensível como fenômeno esteja submetida à lei da
liberdade ou da razão. Uma tal concepção da história implicaria que os
acontecimentos fossem determinados pela razão, e pela razão tal como
existe

_________________
(18) CJ, § 84.
(19) CJ, § 83.
(20) Ibid. — É Idéia de uma história universal (IHU), prop. 5-8.
(21) CJ, § 77.
(22) IHU, prop. 3.
individualmente no homem enquanto númeno; os acontecimentos
manifestariam então um «desígnio racional pessoal» dos próprios homens
(23). Mas a história, tal como aparece na natureza sensível, mostra-nos
exatamente o contrário: puras relações de forças, antagonismos de
tendências, que formam um tecido tanto de loucura como de vaidade
pueril. E que a natureza sensível permanece sempre submetida às leis que
lhe são próprias. Mas se ela é incapaz de realizar o seu fim último, nem
por isso deve deixar de, conformemente às suas próprias leis, tornar
possível a realização de tal fim. E pelo mecanismo das forças e pelo
conflito das tendências (cf. «a insociável sociabilidade») que a natureza
sensível, no próprio homem, preside ao estabelecimento de uma
Sociedade, único meio no qual o fim último possa ser historicamente
realizado (24). Assim, o que parece um contra-senso do ponto de vista dos
desígnios de uma razão pessoal a priori pode ser um «desígnio da
Natureza» para assegurar empiricamente o desenvolvimento da razão no
âmbito da espécie humana. A história deve ser julgada do ponto de vista
da espécie, e não da razão pessoal (25). Há, pois, uma segunda manha da
Natureza, que não devemos confundir com a primeira (ambas constituem a
história). Segundo esta segunda manha, a Natureza supra-sensível quis
que, mesmo no homem, o sensível procedesse consoante as suas próprias
leis para ser capaz de receber finalmente o efeito supra-sensível.

_________________
(23) IHU, introd.
(24) IHU, prop. 4.
(25) IHU, prop. 2.
BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA

(Indicamos com um asterisco as obras que se apresentam particularmente como introduções à


leitura de Kant.)

Filosofia especulativa
Boutroux*, La philosophie de Kant (curso), Vrin.
Daval, La métaphysique de Kant, Presses Universitaires de France.
Vleeschauwer, La déduction transcendentale dans l'oeuvre de Kant,
Anvers-Paris.
Vuillemin, Physique et métaphysique kantiennes, Presses Universitaires
de France.

Filosofia prática
Alquié*, Introdução, edição Presses Universitaires de France, da
Critique de la raison pratique
— *La morale de Kant (curso), C.D.U.
Delbos, La philosophie pratique de Kant, Alcan.
Vialatoux*, La morale de Kant, Presses Universitaires de France.

Filosofia do juízo
M. Souriau, Le jugement réfléchissant dans la philosophie critique de
Kant, Alcan.
Filosofia da história

Delbos, Ibid.
Locroix, Histoire et mystère, Casterman.
Compilação de artigos (E. Weil, Ruyssen, Hassner, Polin...), La
philosophie politique de Kant, Presses Universitaires de France.

Os problemas kantianos no pós-kantismo

Delbos, De Kant aux postkantiens, Aubier.


Guéroult, L'évolution et la structure de la Doctrine de la Science chez
Fichte, Les Belles-Lettres.
Vuillemin, L'héritage kantien et la révolution copernicienne, Presses
Universitaires de France.
ÍNDICE
Capa - Contracapa

Introdução. — O MÉTODO TRANSCENDENTAL ................................9


A Razão segundo Kant ............................................................................9
Primeiro sentido da palavra faculdade ....................................................11
Faculdade de conhecer superior ..............................................................12
Faculdade de desejar superior .................................................................13
Segundo sentido da palavra faculdade ....................................................15
Relação entre os dois sentidos da palavra faculdade ...............................16

Capítulo I. — RELAÇÃO DAS FACULDADES NA CRITICA DA


RAZÃO PURA ........................................................................................19
A priori e transcendental .....................................................................19
A revolução copernicana ....................................................................21
A síntese e o entendimento legislador ................................................22
Papel da imaginação ...........................................................................25
Papel da razão .....................................................................................26
Problema da relação entre as faculdades: o senso comum ..................28
Uso legítimo, uso ilegítimo ................................................................31

Capitulo II. — RELAÇÃO DAS FACULDADES NA CRITICA DA


RAZÃO PRÁTICA .................................................................................35
A razão legisladora .............................................................................35
Problema da liberdade ........................................................................36
Papel do entendimento ........................................................................39
O senso comum moral e os usos ilegítimos ........................................42
Problema da realização .......................................................................45
Condições da realização .....................................................................47
Interesse prático e interesse especulativo ...........................................49
Capítulo III. —RELAÇÃO DAS FACULDADES NA CRITICA DO
JUÍZO ......................................................................................................53
Há uma forma superior do sentimento? ..............................................53
Senso comum estético ........................................................................55
Relação das faculdades no Sublime ....................................................57
Ponto de vista da gênese .....................................................................59
O simbolismo na Natureza .................................................................61
O simbolismo na arte, ou o gênio .......................................................62
O juízo é uma faculdade? ...................................................................64
Da estética à teleologia .......................................................................67
Conclusão. — OS FINS DA RAZÃO .......................................................73
Doutrina das faculdades ......................................................................73
Teoria dos fins ....................................................................................74
A história ou a realização ...................................................................78

BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA ....................................................................81


Impressão e acabamento
da
CASAGRAF— Artes Gráficas, Lda.
para
EDIÇÕES 70, Lda.
em
Agosto de 2000
A FILOSOFIA
CRÍTICA DE KANT
G . Deleuze situa-nos aqui no coração da «re-
volução coperniciana» de Kant : a faculdade de
conhecer como legisladora, a submissão ne-
cessária do objecto ao sujeito, o homem
verdadeiro legislador da Natureza.
Neste contexto, é importante o problema da
relação entre as três faculdades activas (imagi-
nação, entendimento, razão), que é analisado
nas três grandes Críticas .

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