Jorge de Sena
Jorge de Sena
Jorge de Sena
A todos os que tornaram exequível a concretização deste mini dossiê sobre Jorge de
Sena, os nossos agradecimentos.
Palavra especial de gratidão – que também queremos de incentivo – para o André
Almeida. Amavelmente solícito, de imediato, interrompeu as férias para responder ao
nosso pedido.
1 de Abril de 2010
Jorge de Sena por Jorge Fazenda Lourenço ~ Centro Virtual Camões
No começo das minhas memórias de infância, o Papagaio Verde era um animal fabuloso que me
recebia aos gritos, enquanto dava voltas no poleiro, trocando os pés, e me olhava de alto com um
olho superciliar, e de bico entreaberto. Quando comecei a vê-lo, via-o muito pouco, já que ele vivia
na "varanda da cozinha" que me era proibida por causa das torneiras, como a cozinha o era por
causa do lume. Ficávamos, quando eu conseguia iludir as vigilâncias, ou subornar o cordão sanitário,
os dois numa contemplação embebida: eu, de mãos nos bolsos do bibe de quadradinhos azuis e
brancos (que era o uniforme do meu presídio), e ele, com a gaiola pendurada alta, entreabrindo as
asas para um vôo um tanto ameaçador, com a cabeça de banda, e soltando uma espécie de
grunhido que culminava num arrepio que o eriçava todo. Que era brasileiro e fora trazido do Brasil,
eu sabia. Mas, antes de ser posto naquela varanda, onde parecia, numa casa triste e soturna, uma
nódoa insólita, obscenamente garrida, viajara muito. Vivera a bordo de navios, cheirara longamente
o mar, não a maresia ribeirinha, mas os ventos do largo, prenhes de fina espuma e de um ardor de
andanças.
Pedra Filosofal
António Ramos Rosa, no seu ensaio “Poesia,
Liberdade Livre” afirma que a poesia de
Jorge de Sena é “exercício espiritual e
exercício de linguagem, poesia de
conhecimento e de interrogação filosófica ou
metafísica, mas sempre dentro da mais
alta intimidade reflexiva que a alma
humana possa ter consigo mesma.”
A SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
ENVIANDO-LHE UM EXEMPLAR DE
«PEDRA FILOSOFAL»
1950
1.02.1972
J. H. Fragonard
“[…] Também em Creta a paz oferecida
ao peregrino será ilusória. Não houvesse
o brilho “indefectível” da “pequena luz”
“no meio de nós”, o brilho que ilumina a
ascensão libertadora do homem; não
houvesse o chão áspero da História onde
o nosso destino colectivo se joga, e,
individualmente, tudo teria o travo
amargo do fracasso. Mas a “luz” “brilha”,
e, para lá da amargura que em tudo nos
espreita, “há que resistir”, alargar “os
olhos/ até aos confins deste universo
inteiro”, penosamente erguer a
esperança que nem sordidez, nem
“injustiça”, “corrupção” ou “infâmia”
poderão abater.”
este mesmo fosse. Mas se um dia me esquecer de que não o dedo sujo,
tudo, espero envelhecer hei-de tomar em paz o meu café.
tomando café em Creta
com o Minotauro,
Jorge de Sena, de Metamorfoses
sob o olhar de deuses sem vergonha.
[…]
Goya, Os Fuzilamentos de 3 de Maio
CARTA A MEUS FILHOS sobre OS FUZILAMENTOS DE GOYA
Jorge de Sena
Esta cabeça evanescente e aguda,
Cabecinha romana de Milreu tão doce no seu ar decapitado,
do Império portentoso nada tem:
Nos seus olhos vazios não se cruzam línguas,
na sua boca as legiões não marcham,
na curva do nariz não há os povos
que foram massacrados e traídos.
É uma doçura que contempla a vida,
sabendo como, se possível, deve
ao pensamento dar certa loucura,
perdendo um pouco, e por instantes só,
a firme frieza da razão tranquila.
É uma virtude sonhadora: o escravo
que a possuía às horas da tristeza
de haver um corpo, a penetrou jamais
além de onde atingia; e quanto ao esposo,
se acaso a fecundou, não pensou nunca
em desviar sobre si tão longo olhar.
Viveu, morreu, entre as colunas, homens,
prados e rios, sombras e colheitas,
e teatros e vindimas, como deusa.
M.N.A. – retrato de Júlia [imperatriz] Apenas o não era: o vasto império
que os deuses todos tornou seus, não tinha
um rosto para os deuses. E os humanos,
para que os deuses fossem, emprestavam
o próprio rosto que perdiam. Esta
cabeça evanescente resistiu:
Jorge de Sena, Quinze Poetas Portugueses do Século XX nem deusa, nem mulher, apenas ciência
Selecção de Gastão Cruz de que nada nos livra de nós mesmos.
Submersa catedral inacessível! Como perdoarei
aquele momento em que do rádio vieste,
solene e vaga e grave, de sob as águas que "La Cathédrale Engloutie", de Debussy
marinhas me seriam meu destino perdido?
É desta imprecisão que eu tenho ódio:
nunca mais pude ser eu mesmo - esse homem parvo
que, nascido do jovem tiranizado e triste,
viveria tranquilamente arreliado até à morte.
Passei a ser esta soma teimosa do que não existe:
exigência, anseio, dúvida e gosto
de impor aos outros a visão profunda,
não a visão que eles fingem,
mas a visão que recusam:
esse lixo do mundo e papéis velhos
que sai dum jarrão exótico que a criada partiu,
como a catedral se iria em acordes que ficam Texto integral em
Triplov
na memória das coisas como um livro infantil
de lendas de outras terras que não são a minha.
FANTASIAS DE MOZART, PARA TECLA
foi possível que este homem alguma vez morresse? Jorge de Sena, de Arte de Música
Luís Cilia
o No casto promontório
o Hino do 1º de Abril
o Quando eu, amor
o Vilancete
o Agonia
o Soneto incompleto
o domínio
o exorcismo
o Variações populares
o Hai-Kai
Edith Piaf
A Piaf
6 de Outubro 64
de que se escalca auroma e tentavela. "[…] trata-se de uma experiência [...] para sugerir mais amplamente do
que a própria metáfora ambígua, com as suas fixações de sentido, o
Como superta e buritânea amela
poderia fazer. O que eu pretendo é que as palavras deixem de
se palquitonará transcêndia inana! significar semanticamente, para representarem um complexo
de imagens suscitadas à consciência liminar pelas associações
sonoras que as compõem. Eu não quero ampliar a linguagem
Que vúlcios defuratos, que inumana
corrente da poesia; quero destruí-la como significado,
sussúrica donstália penicela retirando-lhe o carácter mítico-semântico, que é transferido
para a sobreposição de imagens (no sentido psíquico e não
às trícotas relesta demiquela,
estilístico), compondo um sentido global, em que o gesto
fissivirão boíneos, ó primana! imaginado valha mais do que a sua mesma designação. [...] é
evidente que todas as palavras, radicais de diversas línguas,
etc., foram tratados com absoluto desrespeito, para com elas e
Dentívolos palpículos, baissai!
eles se fundirem palavras (ou verbos que são conjugados
Lingâmicos dolins, refucarai! gramaticalmente à portuguesa) sugestivas pelas associações
que suscitassem, em ouvidos, é claro, predominantemente da
Por manivornas contumai a veste!
língua portuguesa (embora o autor tenha feito a experiência
de que o funcionamento não é inoperante para outras pessoas
E, quando prolifarem as sangrárias, de outras línguas latinas, ou conhecedoras dessas línguas).”
Cadeira Amarela
No chão de tijoleira uma cadeira rústica,
rusticamente empalhada, e amarela sobre
a tijoleira recozida e gasta.
No assento da cadeira, um pouco de tabaco num papel
ou num lenço (tabaco ou não?) e um cachimbo.
Perto do canto, num caixote baixo,
a assinatura. A mais do que isto, a porta,
uma azulada e desbotada porta.
Vincent, como assinava, e da matéria espessa,
em que os pincéis se empastelaram suaves,
se forma o torneado, se avolumam as
travessas da cadeira como a gorda argila
das tijoleiras mal assentes, carcomidas, sujas.
Roubam-me Deus,
outros o Diabo
- quem cantarei?
roubam-me a Pátria;
e a Humanidade
outros ma roubam
- quem cantarei?
19/5/1971
Julho/Agosto 1967
Esse engenheiro-poeta é um homem que tem
a paixão da história... Mas de que é que ele não
tem paixão? Música, artes plásticas, de tudo ele
entende, tudo ele estuda, e como tem uma
memória de anjo, a sua conversa é repleta de
sabedoria e informação.
Manuel Bandeira
J.B. Martinho
Não. Ele é imortal por desejo vosso. Não compreendes que eu
teria a sua alma, logo, se fosse a alma dele o que eu
quisesse? Mas eu não quero essa alma. E sabes porquê?
Porque ele não a tem. Como posso eu querer o que não
existe? Eu só quero as coisas, ou aquilo que se torna coisa. O
que não existe não é comigo. [...] Sabes acaso como foi que
puderam prendê-lo? Quando, por momentos, ele se cansou, e
começou a ter alma ou isso a que chamam alma e eu me
entretenho a devorar.
Nas dores sofridas de uma língua nova, Do que fingis que não sabeis,
De combater, julgar, de penetrar Reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,
Em recessos de amor para que sois castrados. Tido por meu, contado como meu,
Suprimir-me, ignorar-me, aclamar até Que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
Outros ladrões mais felizes.. Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
Não importa nada: que o castigo Que um vosso esqueleto há - de ser buscado,
Será terrível. Não só quando para passar por meu, E para outros ladrões,
Vossos netos não souberem já quem sois iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.
Ficou olhando as chispinhas delicadas que a candeia fazia, como uma auréola à volta de um centro ardente. Se o
criado de Rui Dias lhe aparecesse, ou ele mesmo, diria que, noutro tempo, era mancebo, farto e namorado, querido e
estimado, e cheio de muitos favores e mercês de amigos e damas, com que o calor poético se aumentava, e que agora
não tinha espírito nem contentamento para nada... Seriam 365 versos, tantos quantos os dias do ano, como uma via
sacra da vida, 73 quintilhas como...
Levantou-se impelido por uma ânsia que lhe cortava a respiração, uma tontura que multiplicava a pequenina luz da
candeia. Apoiado à mesa, arrastou-se até à outra ponta, e daí deixou-se cair até à enxerga. Remexendo nela, tirou de um
canto umas folhas de papel, o tinteirinho, com a pena enfiada no anel, que se habituara, desde o primeiro embarque, a
guardar assim. De joelhos, com as dores neles e nas partes aumentando muito agudas e em picadas de que cerrava os
dentes, veio até à mesa, pousou nela o que trazia, e levantou-se. Ficou um momento, de olhos fechados, arquejando. Já
as palavras tumultuavam nele, confundidas com as outras, inúteis e mortas, da tradução que tentara. Eram como uma
tremura que o percorria todo de arrepios, com hesitações leves, concentrando-se em pequenas zonas da pele.
Debruçando-se da mesa a que se apoiava, puxou para o seu lado a cadeira, e caiu sentado nela. Sentia um suor frio
escorrer-lhe pela testa, e, ao abrir o tinteiro, viu que as costas das mãos brilhavam perladas. Uma onda de alegria o
inundou, em sacões ansiosos. Os olhos ardiam-lhe e era de lágrimas. Tudo falhara, tudo, e a própria poesia o
abandonara, receosa dos seus olhos penetrantes que viam o fundo das coisas. Era o poço com as formas flutuando. Mas
era um grande poeta, transformava em poesia tudo o que tocava, mesmo a miséria, mesmo a amargura, mesmo o
abandono da poesia. Tremendo todo, mas com a mão muito firme, começou a escrever... Sobre os rios que vão de
Babilónia a Sião assentado me achei... Riscou, desesperado. Recomeçou. Sobre os rios que vão por Babilónia me achei
onde sentado chorei as lembranças de Sião e quanto nela passei... E ficou escrevendo pela noite adiante.
Jorge de Sena ~ Carlos Peres Feio Jorge de Sena em carta a Guilherme de Castilho.
[quando Diogo Botelho, «contemplando D.
António através do coração», profere:]
In DNa55
Ode à Mentira
como sereis cruéis, como sereis injustas? esses e os outros, que, de olhar à escuta
Quem torturais, quem perseguis, e de sorriso amargurado à beira de saber-vos,
vos contemplam como coisas óbvias,
quem esmagais vilmente em ferros que
fatais a vós que não a quem matais,
inventais,
esses e os outros todos... - como sereis cruéis,
apenas sendo vosso gemeria as dores
como sereis injustas, como sereis tão falsas?
que ansiosamente ao vosso medo lembram
Ferocidade, falsidade, injúria
e ao vosso coração cardíaco constrangem.
são tudo quanto tendes, porque ainda é nosso
Quem de vós morre, quem de por vós a vida o coração que apavorado em vós soluça
lhe vai sendo sugada a cada canto a raiva ansiosa de esmagar as pedras
dessa encosta abrupta que desceis.
dos gestos e palavras, nas esquinas
Ao fundo, a vida vos espera. Descereis ao fundo.
das ruas e dos montes e dos mares
Hoje, amanhã, há séculos, daqui a séculos?
da terra que marcais, matriculais, comprais, Descereis, descereis sempre, descereis.
vendeis, hipotecais, regais a sangue,
Jorge de Sena, em Pedra Filosofal
Vila Adriana
Lisboa, 18 de Novembro de 1969
[…]
Palácio, o império em miniatura,
e sobretudo a solidão povoada A Vila Adriana é um dos poemas que prefiro, sobretudo
na belíssima evocação do Antinous – […].
de guardas, secretários, servidores
e gladiadores, e de uma sombra hercúlea, Creio que a beleza destes teus versos é serem uma
em que até mesmo escravos fossem livres querer total. Mas conjugada com um desejo de
grandeza e esplendor. Como alguém que reconhece a
e as almas fossem corpos só tementes
ruína e constrói à sua roda o palácio.[…]
de não salvar-se na vida o ser-se belo e jovem.
Em Sophia de Mello Breyner – Jorge de Sena
Correspondência 1959-1978
Jorge de Sena
CANTIGA DE ABRIL
de Portugal
Jorge de Sena
20 de Novembro de 1999
In Expresso,20 de Novembro de 1999
Grandes livros – episódio 11: “Sinais de Fogo” , Jorge de Sena (1/5)
Grandes livros – episódio 11: “Sinais de Fogo”, Jorge de Sena (2/5)
Grandes livros – episódio 11: “Sinais de Fogo”, Jorge de Sena (3/5)
Grandes livros – episódio 11: “Sinais de Fogo”, Jorge de Sena (4/5)
Grandes livros – episódio 11: “Sinais de Fogo”, Jorge de Sena (5/5)
Jorge de Sena – o escritor prodigioso – filme de Joana Pontes
Hoje não é um dia triste, por fim, tantos anos depois, a vontade de seu marido pôde ser cumprida e,
embora saibamos que a separação, ele aqui, a Mécia em Santa Bárbara, será dor sobre dor, a satisfação
do dever cumprido acabará convertendo-se em serena alegria, a que queremos viver consigo, que tanto
ama por haver amado tanto. O seu companheiro de toda a vida, o homem com quem dançou uma tarde e
a quem disse que não dançava com desconhecidos, sem saber que os escritores se dão a conhecer
imediatamente, porque manejam as palavras e as introduzem no nosso coração para sempre, esse
homem, querida Mécia, voltou à terra que sentia com desespero, e agora, todos os que sabemos o que
Portugal era para ele respiramos mais fundo, como se partilhássemos um verso ou um afã, ou talvez esse
desejo de transformar que os poetas semeiam.
Nós, querida Mécia, hoje, neste lado do Atlântico, somos a sua colheita, aprendemos de Jorge de Sena e
admiramos o trabalho constante, quotidiano, imortal que a Mécia realiza para que não nos esqueçamos
de quem nunca esqueceu nem a sua humanidade, nem o seu idioma, nem a sua cultura.
Obrigado, Mécia, pelo seu desmedido amor. E por ter-nos feito chegar a este dia, […].
Hoje todos somos um pouco Jorge de Sena, mas também somos Mécia de Sena, a Mécia que não se
rendeu e a quem, por isso mesmo, prestamos dever de gratidão.
Emocionadamente.
Jorge de Sena
Não muitos terão tido a vida inteira
Jorge de Sena
Não entristeço, pois. Apenas sou pergunta,
e, sendo eu, me esqueço ao perguntar.
Jorge de Sena
[…] à poesia, melhor do que a qualquer outra
forma de comunicação, cabe, mais do que
compreender o mundo, transformá-lo, […] o
«testemunho» é, na sua expectação, na sua
discrição, na sua vigilância, a mais alta forma
de transformação do mundo, porque nele, com
ele e através dele, que é antes de mais
linguagem, se processa a remodelação dos
esquemas feitos, das ideias aceites, dos Jorge de Sena ~ Vítor Miranda