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Jorge de Sena

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JORGE DE SENA

Lisboa, 1919 – Santa


Bárbara, Califórnia, 1978

André Almeida ~ 10º ano ~ E.S.A. António Arroio


A poesia, a obra, de Jorge de Sena pode e deve […] ser lida como uma «meditação sobre o
destino humano e sobre o próprio facto de criar linguagem». Uma inquirição do
significado da existência e da condição humana […]. Sobretudo porque, se se
podem apontar algumas preocupações ou temas maiores – A Morte; o Amor; o
Erotismo, a Sexualidade, a Renúncia Amorosa; o Tempo; o Divino, o Religioso e o
Profano; a Cultura e a História; a Poesia, a Linguagem e a Criação Estética;
Portugal; as Mãos e o Mar –, nenhum deles pode ser olhado isoladamente. Eles
como que entram por dentro uns dos outros, adquirindo significações novas
quando combinados ente si, […]

Jorge Fazenda Lourenço, O Essencial sobre Jorge de Sena

 A todos os que tornaram exequível a concretização deste mini dossiê sobre Jorge de
Sena, os nossos agradecimentos.
 Palavra especial de gratidão – que também queremos de incentivo – para o André
Almeida. Amavelmente solícito, de imediato, interrompeu as férias para responder ao
nosso pedido.

1 de Abril de 2010
Jorge de Sena por Jorge Fazenda Lourenço ~ Centro Virtual Camões
No começo das minhas memórias de infância, o Papagaio Verde era um animal fabuloso que me
recebia aos gritos, enquanto dava voltas no poleiro, trocando os pés, e me olhava de alto com um
olho superciliar, e de bico entreaberto. Quando comecei a vê-lo, via-o muito pouco, já que ele vivia
na "varanda da cozinha" que me era proibida por causa das torneiras, como a cozinha o era por
causa do lume. Ficávamos, quando eu conseguia iludir as vigilâncias, ou subornar o cordão sanitário,
os dois numa contemplação embebida: eu, de mãos nos bolsos do bibe de quadradinhos azuis e
brancos (que era o uniforme do meu presídio), e ele, com a gaiola pendurada alta, entreabrindo as
asas para um vôo um tanto ameaçador, com a cabeça de banda, e soltando uma espécie de
grunhido que culminava num arrepio que o eriçava todo. Que era brasileiro e fora trazido do Brasil,
eu sabia. Mas, antes de ser posto naquela varanda, onde parecia, numa casa triste e soturna, uma
nódoa insólita, obscenamente garrida, viajara muito. Vivera a bordo de navios, cheirara longamente
o mar, não a maresia ribeirinha, mas os ventos do largo, prenhes de fina espuma e de um ardor de
andanças.

Jorge de Sena, Homenagem ao Papagaio Verde.


Meus passos deixam sinais

Que a tarde, ténue, adejando,

Aos outros misturará

Na orla do mar azul.

Jorge de Sena, “Domingo”,

Pedra Filosofal
António Ramos Rosa, no seu ensaio “Poesia,
Liberdade Livre” afirma que a poesia de
Jorge de Sena é “exercício espiritual e
exercício de linguagem, poesia de
conhecimento e de interrogação filosófica ou
metafísica, mas sempre dentro da mais
alta intimidade reflexiva que a alma
humana possa ter consigo mesma.”
A SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

ENVIANDO-LHE UM EXEMPLAR DE

«PEDRA FILOSOFAL»

Filhos e versos, como os dás ao mundo?

Como na praia te conservam sombras de corais?

Como de angústia anoitecer profundo?

Como quem se reparte?

Como quem pode matar-te?

Ou como quem a ti não volta mais?

1950

Jorge de Sena, Peregrinatio ad loca infecta, 1969

Em Sophia de Mello Breyner – Jorge de Sena,


Correspondência 1959-1978
A diferença que há entre os estudiosos e os poetas
é que aqueles passam a vida inteira com o nariz num assunto
a ver se conseguem decifrá-lo, e estes
abrem um livro, lêem três páginas, farejam as restantes
(nem sequer todas) e sabem logo do assunto
o que os outros não conseguiram saber.

Por isso é que os estudiosos têm raiva dos poetas,


capazes de ler tudo sem ter lido nada
(e eles não leram nada tendo lido tudo).
O mal está em haver poetas que abusam do analfabetismo,
e desacreditam a gaya scienza.

1.02.1972

Jorge de Sena, em Visão Perpétua


Ao desconserto humanamente aberto
entendo e sinto: as coisas são reais
como meus olhos que as olharam tais
a luz ou treva que há no tempo certo.

De olhá-las muito não as vejo mais


que a luz mudável com que a treva perto
sempre outras as confunde: entreaberto,
menos que humano, só verei sinais.

E sinta que as pensei, ou que as senti


eu pense, ou julgue nos sinais que vi
ler a harmonia, como ali surpresa,

oculta que era para eu vê-la agora,


[…]

Jorge de Sena, de As Evidências


Como balouça pelos ares no espaço
entre arvoredo que tremula e saias
que lânguidas esvoaçam indiscretas!
Que pernas se entrevêem, e que mais
não vê o que indiscreto se reclina
no gozo de escondido se mostrar!
Que olhar e que sapato pelos ares,
na luz difusa como névoa ardente
do palpitar de entranhas na folhagem!
Como um jardim se emprenha de volúpia,
Torcendo-se nos ramos e nos gestos,
Nos dedos que se afilam, e nas sombras!

Jorge de Sena, de Metamorfoses

J. H. Fragonard
“[…] Também em Creta a paz oferecida
ao peregrino será ilusória. Não houvesse
o brilho “indefectível” da “pequena luz”
“no meio de nós”, o brilho que ilumina a
ascensão libertadora do homem; não
houvesse o chão áspero da História onde
o nosso destino colectivo se joga, e,
individualmente, tudo teria o travo
amargo do fracasso. Mas a “luz” “brilha”,
e, para lá da amargura que em tudo nos
espreita, “há que resistir”, alargar “os
olhos/ até aos confins deste universo
inteiro”, penosamente erguer a
esperança que nem sordidez, nem
“injustiça”, “corrupção” ou “infâmia”
poderão abater.”

In Colóquio / Letras nº 37. Maio 1977,


“Breve enquadramento da poesia de Teseu e a vitória sobre a criatura

Jorge de Sena”, J.B. Martinho


Em Creta, com o Minotauro
I

Nascido em Portugal, de pais portugueses,


e pai de brasileiros no Brasil,
serei talvez norte-americano quando lá estiver.
Coleccionarei nacionalidades como camisas se despem,
V
se usam e se deitam fora, com todo o respeito
necessário à roupa que se veste e que prestou serviço.
Eu sou mesmo a minha pátria. A pátria Em Creta, com o Minotauro,
de que escrevo é a língua em que por acaso de
Sem versos e sem vida,
gerações nasci. E a do que faço e de que vivo é esta
sem pátrias e sem espírito,
raiva que tenho de pouca humanidade neste mundo
quando não acredito em outro, e só outro queria que sem nada, nem ninguém,

este mesmo fosse. Mas se um dia me esquecer de que não o dedo sujo,
tudo, espero envelhecer hei-de tomar em paz o meu café.
tomando café em Creta
com o Minotauro,
Jorge de Sena, de Metamorfoses
sob o olhar de deuses sem vergonha.

[…]
Goya, Os Fuzilamentos de 3 de Maio
CARTA A MEUS FILHOS sobre OS FUZILAMENTOS DE GOYA

Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,


Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso. a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
É possível, porque tudo é possível, que ele seja à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo, foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam
de nada haver que não seja simples e natural. vivido,
Um mundo em que tudo seja permitido, ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer, Às vezes, por serem de uma raça, outras
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós. por serem de uma classe, expiaram todos
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
o que vos interesse para viver. Tudo é possível, de haver cometido. Mas também aconteceu
ainda quando lutemos, como devemos lutar, e acontece que não foram mortos.
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça, Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
ou mais que qualquer delas uma fiel aniquilando mansamente, delicadamente,
dedicação à honra de estar vivo por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Um dia sabereis que mais que a humanidade Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
não tem conta o número dos que pensaram assim, foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único, há mais de um século e que por violenta e injusta
de insólito, de livre, de diferente, ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
e foram sacrificados, torturados, espancados, que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e entregues hipocritamente à secular justiça, e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de Apenas um episódio, um episódio breve,
sangue.» nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo que nada nem ninguém
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
É isto o que mais importa - essa alegria.
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
não é senão essa alegria que vem
aquele instante que não viveram, aquele objecto
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez
que não fruíram, aquele gesto
alguém está menos vivo ou sofre ou morre
de amor, que fariam «amanhã».
para que um só de vós resista um pouco mais
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
à morte que é de todos e virá.
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
Que tudo isto sabereis serenamente,
que não é nossa, que nos é cedida
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
para a guardamos respeitosamente
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
em memória do sangue que nos corre nas veias,
ardentemente espero. Tanto sangue,
da nossa carne que foi outra, do amor que
tanta dor, tanta angústia, um dia
outros não amaram porque lho roubaram.
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -
não hão-de ser em vão. Confesso que
Lisboa, 25/6/1959
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos Jorge de Sena, em Metamorfoses
e uma amargura me submerge inconsolável.

Áudio – voz de Mário Viegas


 A cadência e a amplitude dos textos variam muito,
embora haja, ao longo de toda a obra, uma
tonalidade (musical, lexical, semântica, retórica) que
se torna familiar à medida que as leituras se
sucedem.

Fátima Freitas Morna, Poesia de Jorge de Sena

Jorge de Sena
Esta cabeça evanescente e aguda,
Cabecinha romana de Milreu tão doce no seu ar decapitado,
do Império portentoso nada tem:
Nos seus olhos vazios não se cruzam línguas,
na sua boca as legiões não marcham,
na curva do nariz não há os povos
que foram massacrados e traídos.
É uma doçura que contempla a vida,
sabendo como, se possível, deve
ao pensamento dar certa loucura,
perdendo um pouco, e por instantes só,
a firme frieza da razão tranquila.
É uma virtude sonhadora: o escravo
que a possuía às horas da tristeza
de haver um corpo, a penetrou jamais
além de onde atingia; e quanto ao esposo,
se acaso a fecundou, não pensou nunca
em desviar sobre si tão longo olhar.
Viveu, morreu, entre as colunas, homens,
prados e rios, sombras e colheitas,
e teatros e vindimas, como deusa.
M.N.A. – retrato de Júlia [imperatriz] Apenas o não era: o vasto império
que os deuses todos tornou seus, não tinha
um rosto para os deuses. E os humanos,
para que os deuses fossem, emprestavam
o próprio rosto que perdiam. Esta
cabeça evanescente resistiu:
Jorge de Sena, Quinze Poetas Portugueses do Século XX nem deusa, nem mulher, apenas ciência
Selecção de Gastão Cruz de que nada nos livra de nós mesmos.
Submersa catedral inacessível! Como perdoarei
aquele momento em que do rádio vieste,
solene e vaga e grave, de sob as águas que "La Cathédrale Engloutie", de Debussy
marinhas me seriam meu destino perdido?
É desta imprecisão que eu tenho ódio:
nunca mais pude ser eu mesmo - esse homem parvo
que, nascido do jovem tiranizado e triste,
viveria tranquilamente arreliado até à morte.
Passei a ser esta soma teimosa do que não existe:
exigência, anseio, dúvida e gosto
de impor aos outros a visão profunda,
não a visão que eles fingem,
mas a visão que recusam:
esse lixo do mundo e papéis velhos
que sai dum jarrão exótico que a criada partiu,
como a catedral se iria em acordes que ficam Texto integral em
Triplov
na memória das coisas como um livro infantil
de lendas de outras terras que não são a minha.
FANTASIAS DE MOZART, PARA TECLA

Entre Haydn e Chopin, aberto para o que um foi


e o outro poderia ter sido, havia neste homem uma vida oculta
da sua própria vida, das próprias formas a que fingia escravizar-se
alegremente, da mesma graça leve e melancólica que era o mais
que, em música, a imaginação e a sociedade permitiam
como consciência crítica da vida. Havia estranhamente
um sentimento do mundo, em que o homem devia ser
não apenas ele mesmo afirmadoramente, mas, mais do que isso,
devia ser, além da consciência de si mesmo, colectivamente
feliz. Um mundo em que a alegria não devia ser
só a nostálgica presença da felicidade sempre mais sonhada
que vivida, mas uma estrutura de se estar no mundo
consigo e com os outros. Nestas divagações
perpassa uma coisa estranha, inteiramente nova:
uma alma.
Que não é preexistente a nenhuma música,
e que nenhuma música é criada para exprimir.
Uma alma que podia parecer ao próprio músico
aquela que se perde ou que se ganha nos rituais ocultos
de aceitar-se a vida como sonho ascensional.
E que todavia era apenas o que não temos ainda meio de chamar
outra coisa que alma, não do mundo, não daquele homem,
mas a firmeza de reconhecer-se, através da criação
de formas que se multiplicam, a criação dela mesma
como a relação, o laço, o traço, o equilíbrio
entre um homem que é mais do que si mesmo
e um mundo que sempre outro se amplia de homens
felizes de que a música os não diga
mas os faça. Como 18/9/65

foi possível que este homem alguma vez morresse? Jorge de Sena, de Arte de Música
Luís Cilia

“Sinais de Sena – A poesia de Jorge de Sena”

o No casto promontório
o Hino do 1º de Abril
o Quando eu, amor
o Vilancete
o Agonia
o Soneto incompleto
o domínio
o exorcismo
o Variações populares
o Hai-Kai
Edith Piaf
A Piaf

Esta voz que sabia fazer-se canalha e rouca,


ou docemente lírica e sentimental,
ou tumultuosamente gritada para as fúrias santas do "Ça ira",
ou apenas recitar meditativa, entoada, dos sonhos perdidos,
dos amores de uma noite que deixam uma memória gloriosa,
e dos que só deixam, anos seguidos, amargura e um vazio ao lado
nas noites desesperadas da carne saudosa que não se conforma
de não ter tido plenamente a carne que a traiu,
esta voz persiste graciosa e sinistra, depois da morte,
como exactamente a vida que os outros continuam vivendo
ante os olhos que se fazem garganta e palavras
Quem tinha assim a morte na sua voz
para dizerem não do que sempre viram mas do que adivinham
e na vida. Quem como ela perdeu
nesta sombra que se estende luminosa por dentro
toda a alegria e toda a esperança
das multidões solitárias que teimam em resistir
é que pode cantar com esta ciência
como melodias valsando suburbanas
do desespero de ser-se um ser humano
nas vielas do amor
entre os humanos que o são tão pouco.
e do mundo.

6 de Outubro 64

Jorge de Sena, Arte de Música


PANDEMOS

Dentífona apriuna a veste iguana

de que se escalca auroma e tentavela.  "[…] trata-se de uma experiência [...] para sugerir mais amplamente do
que a própria metáfora ambígua, com as suas fixações de sentido, o
Como superta e buritânea amela
poderia fazer. O que eu pretendo é que as palavras deixem de
se palquitonará transcêndia inana! significar semanticamente, para representarem um complexo
de imagens suscitadas à consciência liminar pelas associações
sonoras que as compõem. Eu não quero ampliar a linguagem
Que vúlcios defuratos, que inumana
corrente da poesia; quero destruí-la como significado,
sussúrica donstália penicela retirando-lhe o carácter mítico-semântico, que é transferido
para a sobreposição de imagens (no sentido psíquico e não
às trícotas relesta demiquela,
estilístico), compondo um sentido global, em que o gesto
fissivirão boíneos, ó primana! imaginado valha mais do que a sua mesma designação. [...] é
evidente que todas as palavras, radicais de diversas línguas,
etc., foram tratados com absoluto desrespeito, para com elas e
Dentívolos palpículos, baissai!
eles se fundirem palavras (ou verbos que são conjugados
Lingâmicos dolins, refucarai! gramaticalmente à portuguesa) sugestivas pelas associações
que suscitassem, em ouvidos, é claro, predominantemente da
Por manivornas contumai a veste!
língua portuguesa (embora o autor tenha feito a experiência
de que o funcionamento não é inoperante para outras pessoas
E, quando prolifarem as sangrárias, de outras línguas latinas, ou conhecedoras dessas línguas).”

lambidonai tutílicos anárias,


Jorge de Sena, posfácio de Metamorfoses, seguido de Quatro
tão placitantos como o pedipeste. Sonetos a Afrodite Anadiómena

Jorge de Sena, de Quatro Sonetos a Afrodite


Anadiómena
Van Gogh

Cadeira Amarela
No chão de tijoleira uma cadeira rústica,
rusticamente empalhada, e amarela sobre
a tijoleira recozida e gasta.
No assento da cadeira, um pouco de tabaco num papel
ou num lenço (tabaco ou não?) e um cachimbo.
Perto do canto, num caixote baixo,
a assinatura. A mais do que isto, a porta,
uma azulada e desbotada porta.
Vincent, como assinava, e da matéria espessa,
em que os pincéis se empastelaram suaves,
se forma o torneado, se avolumam as
travessas da cadeira como a gorda argila
das tijoleiras mal assentes, carcomidas, sujas.

Depois das deusas, dos coelhos mortos,


e das batalhas, príncipes, florestas,
flores em jarras, rios deslizantes,
sereno lusco-fusco de interiores de Holanda,
faltava esta humildade, a palha de um assento,
em que um vício modesto – o fumo – foi esquecido,
ou foi pousado expressamente como sinal de que
o pouco já contenta quem deseja tudo.
Jorge de Sena, de Metamorfoses
Uma pequenina luz

Uma pequenina luz bruxuleante


não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta
une toute petite lumière
just a little light
una picolla... em todas as línguas do mundo

Uma pequena luz bruxuleante


brilhando incerta mas brilhando
aqui no meio de nós
entre o bafo quente da multidão
a ventania dos cerros e a brisa dos mares
e o sopro azedo dos que a não vêem
só a adivinham e raivosamente assopram.
Uma pequena luz
que vacila exacta
que bruxuleia firme
que não ilumina apenas brilha.
Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda.
Muda como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Brilhando indefectível.
Silenciosa não crepita não consome não custa
dinheiro.
Não é ela que custa dinheiro.
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
Não aquece também os que de frio se juntam.
como a exactidão como a firmeza
Não ilumina também os rostos que se curvam.
como a justiça.
Apenas brilha bruxuleia ondeia
Apenas como elas.
indefectível próxima dourada.
Mas brilha.
Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
Não na distância. Aqui
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
no meio de nós.
Tudo é pensamento realidade sensação saber:
Brilha .
brilha.
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva:
brilha. Jorge de Sena, de Fidelidade
Desde sempre ou desde nunca para sempre ou
não:
brilha.
Epígrafe para a arte de furtar

Roubam-me Deus,
outros o Diabo
- quem cantarei?

roubam-me a Pátria;
e a Humanidade
outros ma roubam
- quem cantarei?

sempre há quem roube


quem eu deseje;
e de mim mesmo
todos me roubam
- quem cantarei?

José Afonso canta Jorge de Sena,


roubam-me a voz
quando me calo,
Epígrafe para a arte de furtar ou o silêncio
mesmo se falo
- aqui del-rei!

Jorge de Sena, em Fidelidade


Noções de linguística

Ouço os meus filhos a falar inglês


entre eles. Não os mais pequenos só
mas os maiores também e conversando
com os mais pequenos. Não nasceram cá,
todos cresceram tendo nos ouvidos
português. Mas em inglês conversam,
não apenas serão americanos: dissolveram-se,
dissolvem-se num mar que não é deles.
Venham falar-me dos mistérios da poesia,
das tradições de uma linguagem, de uma raça,
daquilo que se não diz com menos que a experiência
de um povo e de uma língua. Bestas.
As línguas, que duram séculos e mesmo sobrevivem
esquecidas noutras, morrem todos os dias
na gaguez daqueles que as herdaram:
e são tão imortais que meia dúzia de anos
Jorge de Sena ~ Pedro Vieira as suprime da boca dissolvida
ao peso de outra raça, outra cultura.
Tão metafísicas, tão intraduzíveis,
que se derretem assim, não nos altos céus,
mas na caca quotidiana de outras.

Jorge de Sena, de Exorcismos


Um beijo em lábios é que se demora
e tremem no abrir-se a dentes línguas
tão penetrantes quanto línguas podem.
Mas beijo é mais. É boca aberta hiante
para de encher-se ao que se mova nela.
é dentes se apertando delicados.
É língua que na boca se agitando
irá de um corpo inteiro descobrir o gosto
e sobretudo o que se oculta em sombras
e nos recantos em cabelos vive.
É beijo tudo o que de lábios seja
quanto de lábios se deseja.

19/5/1971

Jorge de Sena, in Antologia Poética


Klimt, O Beijo
Amor, amor, amor, como não amam
os que de amor o amor de amar não sabem,
como não amam se de amor não pensam
os que de amar o amor de amar não gozam.
Amor, amor, nenhum amor, nenhum
em vez do sempre amar que o gesto prende
o olhar ao corpo que perpassa amante
e não será de amor se outro não for
que novamente passe como amor que é novo.
Não se ama o que se tem nem se deseja
o que não temos nesse amor que amamos,
mas só amamos quando amamos o acto
em que de amor o amor de amar se cumpre.
Amor, amor, nem antes, nem depois,
amor que não possui, amor que não se dá,
amor que dura apenas sem palavras tudo
o que no sexo é o sexo só por si amado.
Amor de amor de amar de amor tranquilamente
o oleoso repetir das carnes que se roçam
até ao instante em que paradas tremem
de ansioso terminar o amor que recomeça.
Amor, amor, amor, como não amam
os que de amar o amor de amar o amor não amam.
Amor, amor, amor, como não amam
os que de amar o amor de amar o amor não amam. Picasso, Os Amantes

Jorge de Sena, de Poesia


Sinais de fogo

Sinais de fogo, os homens se despedem,


exaustos e tranquilos, destas cinzas frias.
E o vento que essas cinzas nos dispersa
não é de nós, mas é quem reacende
outros sinais ardendo na distância
um breve instante, gestos e palavras,
ansiosas brasas que se apagam logo.

Jorge de Sena, em Visão Perpétua

Julho/Agosto 1967
Esse engenheiro-poeta é um homem que tem
a paixão da história... Mas de que é que ele não
tem paixão? Música, artes plásticas, de tudo ele
entende, tudo ele estuda, e como tem uma
memória de anjo, a sua conversa é repleta de
sabedoria e informação.
Manuel Bandeira

Uma das faces da vanguarda que precisamente


Sena espelha é a da incessante pesquisa, a da
insatisfação contínua. A do horror à fixação. […]
Esse gosto da pesquisa, uma sempre presente
capacidade de surpresa fazem com que a sua
poesia, ao contrário de muita que lhe é
contemporânea, chegue às novas gerações como
uma voz viva, uma voz da modernidade. Uma voz
que, mesmo quando se contesta, nunca deixa de
ser ponto de referência, de passagem.

J.B. Martinho
Não. Ele é imortal por desejo vosso. Não compreendes que eu
teria a sua alma, logo, se fosse a alma dele o que eu
quisesse? Mas eu não quero essa alma. E sabes porquê?
Porque ele não a tem. Como posso eu querer o que não
existe? Eu só quero as coisas, ou aquilo que se torna coisa. O
que não existe não é comigo. [...] Sabes acaso como foi que
puderam prendê-lo? Quando, por momentos, ele se cansou, e
começou a ter alma ou isso a que chamam alma e eu me
entretenho a devorar.

Jorge de Sena, O Físico Prodigioso


Desencontro

Só quem procura sabe como há dias


de imensa paz deserta; pelas ruas
a luz perpassa dividida em duas:
a luz que pousa nas paredes frias,
outra que oscila desenhando estrias
nos corpos ascendentes como luas
suspensas, vagas, deslizantes, nuas,
alheias, recortadas e sombrias.

E nada coexiste. Nenhum gesto


a um gesto corresponde; olhar nenhum
perfura a placidez, como de incesto,

de procurar em vão; em vão desponta


a solidão sem fim, sem nome algum -
- que mesmo o que se encontra não se
encontra.

Jorge de Sena, em Post-Scriptum


Ítaca
Quando partires de regresso a Ítaca.
deves orar por uma viagem longa,
plena de aventuras e de experiências.
Ciclopes, Lestrogónios, e mais monstros,
um Poseidon irado – não os temas, Deves orar por uma viagem longa.
jamais encontrarás tais coisas no caminho, Que sejam muitas as manhãs de Verão,
se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime
quando, com que prazer, com que deleite,
teu corpo toca e o espírito te habita.
entrares em portos jamais antes vistos!
Ciclopes, Lestrogónios, e outros monstros,
Em colónias fenícias deverás deter-te
Poseídon em fúria – nunca encontrarás,
se não é na tua alma que os transportes para comprar mercadorias raras:

ou ela os não erguer perante ti. coral e madrepérola, âmbar e marfim,

e perfumes subtis de toda a espécie:

compra desses perfumes quanto possas,

E vai ver as cidades do Egipto,

para aprenderes com os que sabem muito.


Terás sempre Ítaca no teu espírito,
que lá chegar é o teu destino último.
Mas não te apresses nunca na viagem.
É melhor que ela dure muitos anos,
que sejas velho já ao ancorar na ilha,
rico do que foi teu pelo caminho,
e sem esperar que Ítaca te dê riquezas.

Ítaca deu-te essa viagem esplêndida.


Sem Ítaca, não terias partido.
Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te.

Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu.

Sábio como és agora, senhor de tanta experiência,

terás compreendido o sentido de Ítaca.

Constantino Cavafy, 90 e Mais Quatro Poemas -


versão de Jorge de Sena
CAMÕES DIRIGE-SE AOS SEUS CONTEMPORÂNEOS

Podereis roubar-me tudo:

As ideias, as palavras, as imagens,

E também as metáforas, os temas, os motivos,

Os símbolos, e a primazia Terão de me saber melhor ainda

Nas dores sofridas de uma língua nova, Do que fingis que não sabeis,

No entendimento de outros, na coragem Como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,

De combater, julgar, de penetrar Reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,

Em recessos de amor para que sois castrados. Tido por meu, contado como meu,

E podereis depois não me citar, Até mesmo aquele pouco e miserável

Suprimir-me, ignorar-me, aclamar até Que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.

Outros ladrões mais felizes.. Nada tereis, mas nada: nem os ossos,

Não importa nada: que o castigo Que um vosso esqueleto há - de ser buscado,

Será terrível. Não só quando para passar por meu, E para outros ladrões,

Vossos netos não souberem já quem sois iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.

Jorge de Sena, de Metamorfoses


[…]

Ficou olhando as chispinhas delicadas que a candeia fazia, como uma auréola à volta de um centro ardente. Se o
criado de Rui Dias lhe aparecesse, ou ele mesmo, diria que, noutro tempo, era mancebo, farto e namorado, querido e
estimado, e cheio de muitos favores e mercês de amigos e damas, com que o calor poético se aumentava, e que agora
não tinha espírito nem contentamento para nada... Seriam 365 versos, tantos quantos os dias do ano, como uma via
sacra da vida, 73 quintilhas como...

Levantou-se impelido por uma ânsia que lhe cortava a respiração, uma tontura que multiplicava a pequenina luz da
candeia. Apoiado à mesa, arrastou-se até à outra ponta, e daí deixou-se cair até à enxerga. Remexendo nela, tirou de um
canto umas folhas de papel, o tinteirinho, com a pena enfiada no anel, que se habituara, desde o primeiro embarque, a
guardar assim. De joelhos, com as dores neles e nas partes aumentando muito agudas e em picadas de que cerrava os
dentes, veio até à mesa, pousou nela o que trazia, e levantou-se. Ficou um momento, de olhos fechados, arquejando. Já
as palavras tumultuavam nele, confundidas com as outras, inúteis e mortas, da tradução que tentara. Eram como uma
tremura que o percorria todo de arrepios, com hesitações leves, concentrando-se em pequenas zonas da pele.
Debruçando-se da mesa a que se apoiava, puxou para o seu lado a cadeira, e caiu sentado nela. Sentia um suor frio
escorrer-lhe pela testa, e, ao abrir o tinteiro, viu que as costas das mãos brilhavam perladas. Uma onda de alegria o
inundou, em sacões ansiosos. Os olhos ardiam-lhe e era de lágrimas. Tudo falhara, tudo, e a própria poesia o
abandonara, receosa dos seus olhos penetrantes que viam o fundo das coisas. Era o poço com as formas flutuando. Mas
era um grande poeta, transformava em poesia tudo o que tocava, mesmo a miséria, mesmo a amargura, mesmo o
abandono da poesia. Tremendo todo, mas com a mão muito firme, começou a escrever... Sobre os rios que vão de
Babilónia a Sião assentado me achei... Riscou, desesperado. Recomeçou. Sobre os rios que vão por Babilónia me achei
onde sentado chorei as lembranças de Sião e quanto nela passei... E ficou escrevendo pela noite adiante.

Araraquara, 27 de Março de 1964

Jorge de Sena, “SUPER FLUMINA BABYLONIS”, in Antigas e novas andanças do demónio


 Jorge de Sena, em entrevista de 1968: “Tenho
todavia escrito menos para o teatro do que poesia,
ficção ou crítica. A razão é muito simples.
Irrepresentado, e com as conhecidas dificuldades em
ter-se editor para o teatro, o incentivo é muito menor.”

 Enquanto esta gente for ao teatro como vai à


missa, mal vai a coisa.

Jorge de Sena ~ Carlos Peres Feio Jorge de Sena em carta a Guilherme de Castilho.
[quando Diogo Botelho, «contemplando D.
António através do coração», profere:]

- Senhor, que sabem eles de sinais?


Que sabe a ciência de sinais profundos
no coração gravados?...E Eu?...

Jorge de Sena, O Indesejado

In DNa55
Ode à Mentira

Crueldades, prisões, perseguições, injustiças,

como sereis cruéis, como sereis injustas? esses e os outros, que, de olhar à escuta
Quem torturais, quem perseguis, e de sorriso amargurado à beira de saber-vos,
vos contemplam como coisas óbvias,
quem esmagais vilmente em ferros que
fatais a vós que não a quem matais,
inventais,
esses e os outros todos... - como sereis cruéis,
apenas sendo vosso gemeria as dores
como sereis injustas, como sereis tão falsas?
que ansiosamente ao vosso medo lembram
Ferocidade, falsidade, injúria
e ao vosso coração cardíaco constrangem.
são tudo quanto tendes, porque ainda é nosso
Quem de vós morre, quem de por vós a vida o coração que apavorado em vós soluça

lhe vai sendo sugada a cada canto a raiva ansiosa de esmagar as pedras
dessa encosta abrupta que desceis.
dos gestos e palavras, nas esquinas
Ao fundo, a vida vos espera. Descereis ao fundo.
das ruas e dos montes e dos mares
Hoje, amanhã, há séculos, daqui a séculos?
da terra que marcais, matriculais, comprais, Descereis, descereis sempre, descereis.
vendeis, hipotecais, regais a sangue,
Jorge de Sena, em Pedra Filosofal
Vila Adriana
Lisboa, 18 de Novembro de 1969

De súbito, entre as casas rústicas, e a estrada Caríssimo Jorge


e o monte agreste, e o Tivoli, o invisível […]
oásis gigantesco.
É lindíssimo o Sete Sonetos de Visão Perpétua.
Ao sol que passa
[…]
um arvoredo esparso, os campos verdes e,
paredes, termas, anfiteatros, lagos Gostaria de citar esses versos um por um, mas são
muitos. E o que há neles, e especialmente neste livro,
e a paz serena e longa do Canopo
de pungente é serem um esforço para agarrar
onde como antes cisnes vogam.
qualquer coisa que se sabe não poder ser agarrada.

[…]
Palácio, o império em miniatura,
e sobretudo a solidão povoada A Vila Adriana é um dos poemas que prefiro, sobretudo
na belíssima evocação do Antinous – […].
de guardas, secretários, servidores
e gladiadores, e de uma sombra hercúlea, Creio que a beleza destes teus versos é serem uma

ao mesmo tempo ténue e flexível, construção de contradições, tão complicada e tensa


que é um milagre que se equilibre, mas que no
e em cuja fronte os caracóis se enredam
entanto toma e retoma o seu fio, e, percorrendo todos
os seus labirintos, regressa sempre ao interior de não
neste silêncio em ruína, as sombras descem frias
sei que gruta povoada de ressonâncias. É uma poesia
em contínuo estado de construção e destruição na
Mas para sempre o imperador está vivo vontade de enfrentar tudo e de dizer-te tudo. Uma
e o sonho imenso de um poder tranquilo dicção que a si mesma se quer impiedosa, por se

em que até mesmo escravos fossem livres querer total. Mas conjugada com um desejo de
grandeza e esplendor. Como alguém que reconhece a
e as almas fossem corpos só tementes
ruína e constrói à sua roda o palácio.[…]
de não salvar-se na vida o ser-se belo e jovem.
Em Sophia de Mello Breyner – Jorge de Sena
Correspondência 1959-1978
Jorge de Sena
CANTIGA DE ABRIL

Às Forças Armadas e ao povo

de Portugal

«Não hei-de morrer sem saber

qual a cor da liberdade»

Jorge de Sena

Painel de Azulejos ~ Aveiro


Qual a cor da liberdade?
Qual a cor da liberdade? Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
É verde, verde e vermelha. É verde, verde e vermelha.

Quase, quase cinquenta anos


Esses ricos sem vergonha, Quase, quase cinquenta anos
reinaram neste país,
esses pobres sem futuro, durou esta eternidade,
e conta de tantos danos,
essa emigração medonha, numa sombra de gusanos
de tantos crimes e enganos,
e a tristeza uma peçonha e em negócios de ciganos,
chegava até à raiz.
envenenando o ar puro. entre mentira e maldade.

Qual a cor da liberdade?


Qual a cor da liberdade? Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
É verde, verde e vermelha. É verde, verde e vermelha.

Tantos morreram sem ver


Essas guerra de além-mar Saem tanques para a rua,
o dia do despertar!
gastando as armas e a gente, sai o povo logo atrás:
Tantos sem poder saber
esse morrer e matar estala enfim, altiva e nua,
com que letras escrever,
sem sinal de se acabar com força que não recua,
com que palavras gritar!
por política demente. a verdade mais veraz.

Qual a cor da liberdade?


Qual a cor da liberdade? Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
É verde, verde e vermelha. É verde, verde e vermelha.

Essa paz de cemitério


Esse perder-se no mundo
toda prisão ou censura.
o nome de Portugal, 26-28(?)/4/1974
e o poder feito galdério,
essa amargura sem fundo,
sem limite e sem cautério, Obras de Jorge de Sena,
só miséria sem segundo,
todo embófia e sinecura. 40 anos de servidão
só desespero fatal.
In Expresso,

20 de Novembro de 1999
In Expresso,20 de Novembro de 1999
 Grandes livros – episódio 11: “Sinais de Fogo” , Jorge de Sena (1/5)
 Grandes livros – episódio 11: “Sinais de Fogo”, Jorge de Sena (2/5)
 Grandes livros – episódio 11: “Sinais de Fogo”, Jorge de Sena (3/5)
 Grandes livros – episódio 11: “Sinais de Fogo”, Jorge de Sena (4/5)
 Grandes livros – episódio 11: “Sinais de Fogo”, Jorge de Sena (5/5)
 Jorge de Sena – o escritor prodigioso – filme de Joana Pontes

A liberdade inteira no silêncio inteiro

de humildes assistirmos ao que somos

qual nascemos, qual somos, qual sorrimos

na esplendorosa ressonância de estar vivo,

à face de uma luz que morre ou de uma luz que nasce

Jorge de Sena, “O fim que não acaba”


Quem muito viu

Quem muito viu, sofreu, passou trabalhos,


mágoas, humilhações, tristes surpresas;
e foi traído, e foi roubado, e foi
privado em extremo da justiça justa;

e andou terras e gentes, conheceu


os mundos e submundos; e viveu
dentro de si o amor de ter criado;
quem tudo leu e amou, quem tudo foi –

não sabe nada, nem triunfar lhe cabe


em sorte como a todos os que vivem.
Apenas não viver lhe dava tudo.

Inquieto e franco, altivo e carinhoso,


será sempre sem pátria. E a própria morte,
quando o buscar, há-de encontrá-lo morto.

Jorge de Sena, de Peregrinatio ad loca infecta


Mécia de Sena

[...] No dia em que o Jorge chegava com o


ordenado eu fazia montinhos do dinheiro para os
pagamentos mais urgentes, contava e recontava,
para concluir sempre que. nem sequer chegava
para pagar tudo, quanto mais para sobreviver
trinta dias!
A primeira vez que tive com que viver até o mês
acabar foi em Junho de 1978. Essa tranquilidade
Jorge de Sena e Mécia de Sena minha a pagaste com a tua vida. Preferia passar
fome.

em As Escadas não têm Degraus 1


Querida Mécia,

Hoje não é um dia triste, por fim, tantos anos depois, a vontade de seu marido pôde ser cumprida e,
embora saibamos que a separação, ele aqui, a Mécia em Santa Bárbara, será dor sobre dor, a satisfação
do dever cumprido acabará convertendo-se em serena alegria, a que queremos viver consigo, que tanto
ama por haver amado tanto. O seu companheiro de toda a vida, o homem com quem dançou uma tarde e
a quem disse que não dançava com desconhecidos, sem saber que os escritores se dão a conhecer
imediatamente, porque manejam as palavras e as introduzem no nosso coração para sempre, esse
homem, querida Mécia, voltou à terra que sentia com desespero, e agora, todos os que sabemos o que
Portugal era para ele respiramos mais fundo, como se partilhássemos um verso ou um afã, ou talvez esse
desejo de transformar que os poetas semeiam.

Nós, querida Mécia, hoje, neste lado do Atlântico, somos a sua colheita, aprendemos de Jorge de Sena e
admiramos o trabalho constante, quotidiano, imortal que a Mécia realiza para que não nos esqueçamos
de quem nunca esqueceu nem a sua humanidade, nem o seu idioma, nem a sua cultura.

Obrigado, Mécia, pelo seu desmedido amor. E por ter-nos feito chegar a este dia, […].

Hoje todos somos um pouco Jorge de Sena, mas também somos Mécia de Sena, a Mécia que não se
rendeu e a quem, por isso mesmo, prestamos dever de gratidão.

Emocionadamente.

Em nome de todos, beijos, muito beijos fraternais.

Pilar del Río http://blog.josesaramago.org/especiales/sena


 Em 11 de Setembro de 2009, os restos mortais de
Jorge de Sena foram trasladados de Santa Bárbara,
Califórnia, onde estavam enterrados desde 1978, para
o cemitério do Prazeres em Lisboa, depois de
cerimónia de homenagem na Basílica da Estrela..

 A trasladação dos restos mortais do escritor Jorge de


Sena para Portugal é um acto “de reparação e de
reconciliação", embora o escritor "não precise de
glorificações póstumas". Afirmou o ensaísta Eduardo
Lourenço.

 Jorge de Sena – o regresso


Um Epílogo

Quando estes poemas parecerem velhos,

e for risível a esperança deles:

já foi atraiçoado então o mundo novo,

ansiosamente esperado e conseguido

- e são inevitáveis outros poemas novos,

sinal da nova gravidez da Vida

concebendo, alegre e aflita, mais um mundo novo,

só perfeito e belo aos olhos de seus pais.

E a Vida, prostituta ingénua,

terá, por momentos, olhos maternais.

Jorge de Sena, em Coroa da Terra

Jorge de Sena
Não muitos terão tido a vida inteira

esta febre de andar por vários mundos

buscando ansioso o nada nosso e deles

que ao menos nada finge em gente e coisas…

E não terão, portanto, na memória

o tanto haver partido para longe,

Jorge de Sena ~ Constança Lucas


para saberem que se parte sempre,

e não se volta nunca […]

Jorge de Sena, de 40 Anos de Servidão


TENDO LIDO ACERCA DE UM SEU LIVRO DE POEMAS,
QUE OFERECERA

Por que entristeço ao ler o que de meus


versos escrevem se não é de mim
que escrevem?
Será que chora em mim o que meus versos foram
antes de ser meus?
Por que pergunto, se já sei por quê?

Escuto longamente, leio, espero,


e o poema é voz de toda a gente, todos eles, que,
não se tendo ouvido, não a sabem sua.
E vêm chorar em mim o coração traído,
a música perdida em distracções urgentes,
umas palavras que ninguém falou.

Jorge de Sena
Não entristeço, pois. Apenas sou pergunta,
e, sendo eu, me esqueço ao perguntar.

Jorge de Sena, de Post-Scriptum


“os factos da linguagem, do pensamento e da
sociedade sempre me disseram muito mais,
enquanto factos, do que um gozo estético que, por
profissional que seja, não menos é, sem
interpretação deles, irresponsável".

Jorge de Sena
[…] à poesia, melhor do que a qualquer outra
forma de comunicação, cabe, mais do que
compreender o mundo, transformá-lo, […] o
«testemunho» é, na sua expectação, na sua
discrição, na sua vigilância, a mais alta forma
de transformação do mundo, porque nele, com
ele e através dele, que é antes de mais
linguagem, se processa a remodelação dos
esquemas feitos, das ideias aceites, dos Jorge de Sena ~ Vítor Miranda

hábitos sociais inconscientemente vividos, dos


sentimentos convencionalmente aferidos.

Jorge de Sena, «Prefácio da Primeira Edição»,


Poesia – I
Sobre Jorge de Sena [...] ainda está
quase tudo por dizer. A grandeza, a
complexidade e vastidão da sua obra –
ímpar na literatura portuguesa – não
deixam de atemorizar, tornando-a de
difícil abordagem, já que todas as
aproximações pecarão necessariamente
pelo reducionismo, inevitável quando se
tenta a aproximação a uma personalidade
enorme, e cuja incansável actividade se
estendeu
 por domínios tão variados e
heterogéneos, sem com isso perder
aquela coesão e permanente recorrência
interna que tão distintamente a
caracterizam e tornam inconfundível.

Margarida Braga Neves

 A Jorge de Sena – No chão da Califórnia

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