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Jim Morrison O Xama Da Decada de Sessenta Rosangela Patriota

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HISTRIA PERFORMANCE POESIA: JIM MORRISON, O XAM DA DCADA DE 1960*

Rosangela Patriota** Universidade Federal de Uberlndia UFU


rpatriota@triang.com.br
RESUMO: Sob a perspectiva das experincias norte-americanas e tendo como eixo temtico o poeta e vocalista do The Doors, Jim Morrison, este artigo visa refletir sobre as possibilidades histricas e culturais que alimentaram o debate poltico e esttico da dcada de 1960. ABSTRACT: Under the perspective of the North American experiences and having as thematic axle the poet and vocalista of the The Doors, Jim Morrison, this article aims at to reflect on the historical and cultural possibilities that had fed the debate aesthetic politician of the decade of 1960. PALAVRAS-CHAVE: Jim Morrison Dcada de 1960 Histria & Linguagens KEYWORDS: Jim Morrison Decade of 1960 History & Languages

As pessoas precisam de Fios Escritores, heris, estrelas, dirigentes Para dar sentido vid O barco de areia de uma criana virado para o sol. Soldados de plstico na guerra suja em miniatura. Fortalezas. Navios de Guerra de Garagem. Rituais, teatro, danas Para reafirmar necessidades Tribais & memrias um chamamento para o culto, unindo acima de tudo, um estado anterior, um desejo da famlia & a magia certa da infncia. Poder, Jim Morrison

Imagem retirada do site: http://www.muzika.hr/images/Rubrika_21/20041 206_Jim_Morrison.jpg

Este artigo uma verso revisada do texto: Jim Morrison, o Poeta-Xam dos anos 60, originalmente publicado na Cultura Vozes, Petrpolis, v. 91, n. 2, p. 81-95, mar./abr. 1997. ** Professora do Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal de Uberlndia-MG. Doutora em Histria Social pela FFLCH-USP. Pesquisadora e coordenadora do Ncleo de Estudos em Histria Social da Arte e da Cultura (NEHAC).

Fnix Revista de Histria e Estudos Culturais Julho/ Agosto/ Setembro de 2005 Vol. 2 Ano II n 3 ISSN: 1807-6971 Disponvel em: www.revistafenix.pro.br

1960: Projetos e Perspectivas Multiformes


Esse perodo da histria do sculo XX, sem dvida, mudou o rosto da sociedade ocidental. Produziu movimentos que redimensionaram valores, idias, objetivos e, ao mesmo tempo, alavancou reaes conservadoras. Em verdade, sob a gide da expresso anos 60, esto agrupadas experincias dspares e, muitas vezes, contraditrias, que impedem a uniformizao deste universo. Nesse caleidoscpio, o enfoque sobre pases europeus revela o redimensionamento de temas, considerados polticos, e traz baila um novo olhar para assuntos como sexualidade, represso, instituies, poder, etc., posteriormente identificados com o movimento de Maio de 1968, tornaram-se smbolos de novas perspectivas para o mundo contemporneo. Porm, tal percepo vlida quando se considera pases europeus como Frana, Alemanha, Itlia, entre outros , organizados sob a gide da social-democracia, nos quais o advento do welfare state, aliado insero dos Partidos Comunistas no jogo parlamentar, contribuiu, de maneira significativa, para o abandono de propostas revolucionrias. Estas, concretamente, traduziram-se em aumento do padro de vida e adaptao s exigncias da sociedade de consumo. Por outro lado, se as referncias forem os pases que estiveram vinculados ao socialismo sovitico, a exemplo da Thecoslovquia e da Polnia, emergem claramente as insatisfaes com a burocracia, com o autoritarismo de suas organizaes polticosociais e os anseios de experincias socialistas pautadas em propostas democrticas e pluralistas. J no Brasil, existe uma srie de implicaes relativas ao termo anos 1960. De imediato, sob o enfoque do campo, outrora denominado esquerda, enfrenta-se uma grande discusso em torno da idia de revoluo, tendo o golpe de 1964 como marco divisor das mais diferenciadas orientaes, tanto no mbito estritamente poltico, envolvendo opes como resistncia democrtica ou luta armada, quanto em relao s manifestaes estticas e culturais, que organizaram suas discusses em torno do realismo crtico, e as inquietaes provenientes do que se denominou tropicalismo. Nesse contexto, estiveram presentes, como elementos inspiradores, idias e comportamentos identificados com a contracultura norte-americana.

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Essas preocupaes, muitas vezes, no foram devidamente aprofundadas, porque o combate ao Estado Autoritrio tornou-se a principal bandeira de luta e, ao mesmo tempo, possibilitou que manifestaes afinadas com a contracultura ou crticas ortodoxia da esquerda fossem compreendidas como despolitizadas. Assim, no universo poltico-cultural brasileiro, a expresso anos 1960 possui significados particulares, em sintonia com a conjuntura daquele momento histrico. Essa abrangncia de propostas tornou as experincias muito fluidas e evidentemente impossveis de serem alocadas em um nico conceito e/ou proposio. Apesar dessa ressalva, geralmente quando se remete idia de anos 1960, os acontecimentos que tiveram lugar nos Estados Unidos da Amrica podem ser considerados lapidares, pois foram provenientes das reivindicaes e crticas da Nova Esquerda, do movimento dos Direitos Civis, da luta contra a Guerra do Vietn, da descoberta da Cultura Oriental, das reflexes intelectuais como Herbert Marcuse, Hannah Arendt, Jrgen Habermas, das propostas embrionrias das universidades livres, alm da politizao do rock.

Estados Unidos da Amrica: um exemplo paradigmtico


Os Estados Unidos da Amrica possuem em sua histria contempornea momentos significativos para compreenso de aspectos constitutivos da atual poltica internacional, principalmente se se levar em considerao que os seus ltimos cinqenta anos foram repletos de conflitos e de contradies. De acordo com o socilogo norteamericano Jack Newfiel, a dcada de 1950 foi entre outras coisas uma folha em branco. Nesse perodo, o Macartismo foi o movimento poltico mais importante do pas, na medida em que colocou os liberais na defensiva, pois seus bancos de idias estavam vazios devido ao New Deal. Dessa feita, eles no tinham como discutir ou questionar os novos problemas do ps-guerra como revoluo anticolonial, guerra fria, proliferao nuclear, tecnologia e automatizao. Concomitante a esses acontecimentos, viveu-se a desestruturao do Partido Socialista e do Partido Comunista. Estes naufragaram diante da Guerra da Coria, da condenao dos Rosenberg, da aplicao da lei Smith (aprovada em 1940, que proibia a propaganda subversiva e as atividades conspiratrias), da revolta hngara e das

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revelaes dos crimes de Stlin. Em 1957, a seo juvenil do Partido Comunista Americano decidiu se dissolver. Em tais circunstncias, os radicais foram expulsos da vida pblica e os liberais fadados ao silncio, rompido com a vitria nas eleies para o Congresso em 1958. Nesse processo, a dcada de 1960 foi momento propcio para a retomada de uma srie de questes, iniciadas com a eleio de Kennedy, vitria esta que no imaginrio norteamericano, segundo Newfield:
[...] acelerou provavelmente o florescimento do novo radicalismo. Naquelas eleies a nao preferiu a vitalidade apatia, a aventura precauo, a esperana passividade. E esta deciso liberou as energias comprimidas durante uma dcada. [...] Kennedy proporcionou um refgio amistoso nova esquerda para que ela fosse se desenvolvendo, e foi partidrio de um certo idealismo social, representado pelos Corpos da Paz, que levou os estudantes a empreenderem a fundao do SNCC (Comit Coordenador de Estudantes No-Violentos) e do SDS (Estudantes em prol de uma Sociedade Democrtica).1
Retirada do site: http://www.aleph.it/andre/images/ jim_crop.jpg

P na Estrada: A Gerao Beat


Sob essas premissas, se do ponto-de-vista poltico-partidrio havia apatia e desinteresse, essa situao no pode ser generalizada para o conjunto da sociedade. Em verdade, essa constatao s se legitima na medida em que o universo polticopartidrio seja eleito como o nico e legtimo espao de atuao e, caso isso ocorra, perde-se uma dimenso significativa do debate social, pois, no mbito da histria norteamericana, se a dcada de 1950 revelava uma inoperncia poltica dos setores progressistas, sob a tica do espao bomio, da literatura, da poesia, das rodovias e dos beats, ela apresentou significados singulares. luz dessa singularidade, muito se falou sobre os beats, mas o que era ser beat? Para Jack Kerouac: [...] voltar aos antepassados, aos rebeldes, s bruxas, aos loucos.2 Evidentemente, essa proposio redimensionava a compreenso do universo social no qual estava inserido, ao reconhecer a existncia de outros agentes e de maneiras diferentes de perceber o prprio estar no mundo. Para Jack Newfiel, a
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NEWFIEL, Jack. Una minora proftica: La nueva izquierda norteamericana. Barcelona: Ediciones Martnez Roca, S.A., 1969, p. 32. 2 Ibid., p. 36.

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ausncia de uma interveno programtica contribuiu significativamente para que os beats se tornassem rebeldes sem causa, que reduziram a sua existncia social apatia3. No entanto, na avaliao de Russell Jacoby, para alm de um movimento e do exerccio de um fascnio pblico, os beats, principalmente com a publicao de Uivo de Allen Ginsberg (1956) e de P na Estrada de Jack Kerouac (1957), capturaram o esprito de uma poca, anunciaram a insatisfao e a revolta latente. Em suma:
Os beats, no entanto, so mais que uma lio sobre os riscos de prognsticos culturais. Eles so os ltimos bomios e os primeiros membros da contracultura dos anos 60. No relato sobre desaparecimento da boemia, os beats so os personagens desaparecidos. [...]. Os estudos sobre os anos 60 mencionam de passagem os beats, mas necessrio mais que uma meno passageira. No o marxismo e o maoismo revividos, mas a sexualidade, as drogas, o misticismo e a loucura dos anos 60 devem muito aos beats.4

Nesse sentido, sob a gide da hiptese de Russell Jacoby, pode-se afirmar que os acontecimentos da dcada de 1960 nos Estados Unidos da Amrica resultaram da confluncia desse conjunto de insatisfaes (Guerra do Vietn, orientalismo, Direitos Civis, etc.) e das vrias perspectivas de redimensionamentos histricos, no mbito da prpria idia de civilizao. E, nesse universo polifnico, se houve algum que simbolizou as tenses, a radicalidade e a impotncia deste perodo, esse algum foi James Douglas Morrison, ou melhor, Jim Morrison, O Rei Lagarto, poeta e vocalista do The Doors.

Jim Morrison: Poeta e Xam da Contracultura


Jim Morrison nasceu em 08 de dezembro de 1943, em Melbourne, Flrida. Filho de um oficial de alta patente na marinha americana, foi, na opinio do produtor musical Paul Rothchild, um intelectual renascentista sua maneira: Eu sou um homem
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Jack Newfiel, ao enfatizar em demasia o espao poltico-partidrio, e por acreditar que as transformaes passam fundamentalmente pelo campo institucional, no conseguiu encarar a gerao beat de uma maneira positiva. Pelo contrrio, de acordo com sua avaliao: exceo de Ginsberg e William Burroughs no possuam imaginao criadora. Na realidade, eram filhos da trivialidade. Em vez de buscarem transformar a sociedade, se limitaram a separar-se dela e a se instalarem em uma subcultura anti-social. Sem dvida, devido ao silncio das vozes dissidentes tradicionais, a gerao beat se converteu na nica opo para todos aqueles que no estavam de acordo com o status quo. Os beats foram rebeledes sem causa, mas sua rebelio foi a nica existente no pas. In: NEWFIEL, Jack. Una minora proftica: La nueva izquierda norteamericana. Barcelona: Ediciones Martnez Roca, S.A., 1969, p. 37. 4 JACOBY, Russel. Os ltimos Intelectuais: A Cultura Americana na Era da Academia. So Paulo: Trajetria Cultural/EDUSP, 1990, p. 77.

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de palavras. Como vocalista do conjunto musical The Doors, construiu uma trajetria singular e, fundamentalmente, deu ao cenrio do rock uma qualidade teatral. As apresentaes do The Doors transcendiam a expectativa de um mero entretenimento musical. Por seu comportamento, opinies e idias, aliados a uma voz personalssima e uma beleza incontestes, Morrison tornou-se figura emblemtica de um tempo em que se acreditou nas infinitas possibilidades de viver: no fazemos a prpria vida, ela mesma se faz. Difcil encontrar respostas que dem conta da complexidade que envolve o homem, o cantor e poeta Jim Morrison. Fruto de sua poca e de suas angstias, ele se envolveu profundamente com as questes de seu tempo: vivemos em uma poca em que para ser superstar preciso ser poltico ou assassino. Leitor vido, devorou a produo dos poetas beats e ficou fascinado por Dean, o heri sem destino de On the road de Jack Kerouac. De acordo com seus bigrafos (Jerry Hopkins e Daniel Sugerman) os livros lidos por Jim revelam muito de seu universo cultural e de suas expectativas para com o mundo. Alm dos poetas beats, Morrison sorveu a poesia de Rimbaud, os escritos de Norman O. Brown, Honor de Balzac, Jean Cocteau e Molire, juntamente com a produo dos filsofos existencialistas franceses. Entretanto, foi a obra do poetafilsofo Friedrich Nietzsche, em particular, as teorias sobre esttica, moralidade e dualidade apolnea-dionisaca que o marcaram definitivamente. Em seu ltimo ano de colgio, Jim comeou a guardar os seus apontamentos, e a noo romntica de poesia tornou-se mais presente em sua maneira de compreender o mundo. Talvez seja correto dizer que para Morrison o ser poeta se assemelhe compreenso de Rimbaud, exposta pelo poeta em uma carta a Paul Demeny:
um poeta torna-se um sonhador atravs de um longo, ilimitado e sistemtico desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; investiga-se a si prprio, consome dentro de si todos os venenos e preserva as suas quintessncias. Um tormento indescritvel, onde ir encontrar a maior f, uma fora sobrehumana, com que se torna, de entre todos os homens, o grande invlido, o grande maldito e o Supremo Cientista! Pois alcana o desconhecido! E que interessa se for destrudo no seu vo exttico por coisas inauditas e inominveis...5

HOPKINS, Jerry. & SUGERMAN, Daniel. Daqui ningum sai vivo. Lisboa: Assrio & Alvim, 1992, p. 29.

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A presena de Rimbaud no repertrio intelectual e potico de Jim Morrison foi assim revelado por Wallace Fowlie, em seu livro Rimbaud e Jim Morrison:
Essa histria importante para a narrativa que estou fazendo. O livro foi publicado em 1966. A capa trazia Rimbaud de Picasso e me lembrava da minha atividade em Nice e da generosidade de Henri Matarasso. No decorrer dos trs anos seguintes, de 1967 a 1969, recebi algumas cartas no mais do que cinco ou seis de pessoas que eu no conhecia. Uma dessas cartas, bastante curta, trazia a assinatura Jim Morrison. Sinto-me envergonhado em dizer que, em 1968, quando recebi aquele bilhete, no reconheci o nome. Na sala de aula, no dia seguinte, enquanto aguardava que os ltimos alunos tomassem seus lugares, perguntei casualmente: Vocs reconhecem o nome Jim Morrison? Meus alunos ficaram chocados com tamanha ignorncia. Voc no conhece o The Doors? Ele o vocalista. Ca fragorosamente no conceito de meus alunos naquele dia. Perdera prestgio. Para recuper-lo e me recompor, tomei da carta e disse: Me dem uma chance! Deixem que eu leia esta carta para vocs. Caro Wallace Fowlie, S queria agradecer por voc ter feito a traduo de Rimbaud. Eu precisava dela porque no leio to bem o francs... Sou cantor de rock e seu livro me acompanha nas turns. A classe estava muda e atenta a essa altura, e eu falei: Tem mais uma frase, um P.S. no final da pgina: Aquele desenho de Rimbaud na capa feito por Picasso fantstico.6

Esse relato bem-humorado revela uma fruio esttica cultivada desde a adolescncia. Aps a concluso do colgio, seus pais o inscreveram na Universidade de St. Petersburg, na Flrida. Nesta cidade, o seu refgio foi a galeria Renaissance, local que o atraiu pelas leituras de poesia, pelos concursos de msica folk e pela vida bomia. Fez cursos de filosofia, literatura, psicologia de massas. Atravs de caronas, chegou a Coronado para visitar os pais e, pela atitude, recebeu repreenses. Manifestou seu desejo de ficar em Los Angeles e estudar cinema na UCLA. No foi atendido. Voltou para a Flrida e concluiu as atividades escolares. Neste perodo, estudou histria da arte, do teatro e introduo ao teatro. Escreveu um ensaio sobre a pea de Samuel Beckett, Esperando Godot, construiu propostas cnicas para a montagem de Gata em Teto de Zinco Quente, de Tennessee Williams. Trabalhou como ator, em uma produo da
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FOWLIE, Wallace. Rimbaud e Jim Morrison: os poetas rebeldes. Rio de Janeiro: Eselvier/Campus, 2005, p. 26.

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universidade, na pea O Criado de Harold Pinter. Nessa trajetria, evidentemente, encontrou-se com os escritos de Antonin Artaud, que se tornaram fundamentais para ele. Findo o curso, Jim participou com seu pai de manobras da marinha no Oceano Pacfico. Pouco depois, no incio de 1964, tratou da documentao para a inscrio no meio do ano, no curso de cinema da UCLA, que, ao contrrio de Berkeley, no possua um alto ndice de politizao. Iniciou as atividades discentes no mesmo ano e foi contemporneo de Francis Ford Coppola, que significativamente realizou uma das mais belas homenagens a Morrison e ao The Doors, ao iniciar o seu notvel Apocalypse Now com imagens de uma floresta incendiada ao som de The End.
o fim, amigo querido, o fim, amigo nico, o fim dos planos que forjamos, o fim de tudo o que era firme, o fim sem apelo ou surpresa, o fim. Nunca mais te olharei nos olhos. V se imaginas o que vai ser de ns, ilimitados e libertos, desesperadamente necessitados da mo dum estranho num mundo desesperado? Perdidos num romano deserto de mgoas, com todas as crianas atacadas pela loucura, todas as crianas atacadas pela loucura, espera da chuva de Vero. perigoso passar ao p da cidade, segue a direito pela estrada real. Cenas mgicas dentro da mina de ouro; segue pela estrada do oeste, amor. [...] o fim, amigo querido, o fim, amigo nico, o fim. Custa-me deixar-te, mas nunca irs para onde eu for. O fim da risada e das doces mentiras, o fim das noites em que fizemos por morrer, o fim.7

Jim no fora um aluno de destaque em seu to sonhado curso de cinema, mas freqentava a praia de Venice, a meca da gerao beat e da bomia dos anos 1950, local em que viviam pintores e estudantes, a baixo custo, em grandes quartos de casas outrora
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MORRISON, Jim. O Fim. In: ______. Uma Orao Americana e outros escritos. Lisboa: Assrio & Alvim, 1992, p. 23.

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luxuosas. Nesse meio tempo, comeou a reunir um grupo de amigos, entre eles Dennis Jakob, que foi assistente de direo de Coppola em Apocalypse Now, e John DeBella, amigo de Ray Manzarek, estudante de cinema e msico da banda Nick and the Ravens. Passado algum tempo, Jim encontrou Manzarek em Venice Beach e o informou de que estava morando e escrevendo no terrao de Dennis Jakob. Ray interessou-se por seus poemas. Jim declamou os primeiros versos de Moonligth Drive, e obteve de Manzarek o seguinte comentrio: so as melhores letras que jamais ouvi. Vamos formar uma banda de rock and roll e fazer milhes de dlares.8 O poema que tanto entusiasmou Ray Manzarek, o tecladista do The Doors, dizia:
Vamos nadar at lua, vamos iados na mar, penetremos na noite em que a cidade para ocultar-se dorme. Esta noite vamos nadar, meu amor, o momento de chorarmos, estacionados junto ao mar, aps a viagem luz do luar. Vamos nadar at lua, vamos iados na mar, entreguemo-nos aos mundos que, enquanto esperam, nos lambem os corpos. No temos sada nem tempo de optar, caminhamos rio adentro na nossa viagem luz do luar. Vamos nadar at lua, vamos iados na mar, a tua mo agarra-me, mas eu no posso ser teu guia, fcil amar-te ao ver-te deslizar, escorregar por entre hmidas florestas durante a nossa viagem luz do luar.9

The Doors um emblema da contracultura


Jim Morrison entusiasmou-se com a proposta, mudou-se para a casa de Manzarek e comearam a trabalhar. Mais frente, conheceram John Densmore e Robby Krieger. Surgiu, assim, The Doors. O nome escolhido para o grupo revelava outra grande influncia de Morrison, os romnticos ingleses, em especial Willian Blake, que por meio de um livro de Aldous Huxley (As Portas da Percepo), inspirou o nome do conjunto.

HOPKINS, Jerry. & SUGERMAN, Daniel. Daqui ningum sai vivo. Lisboa: Assrio & Alvim, 1992, p. 64. 9 MORRISON, Jim. Viagem luz do luar. In: ______. Uma Orao Americana e outros escritos. Lisboa: Assrio & Alvim, 1992, p. 32.

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Aps uma srie de apresentaes, principalmente no Whiskey, os rapazes foram ouvidos Paul Rothchild, futuro produtor da maioria dos trabalhos da banda, que teve no disco de 1967 (LP, janeiro) a incluso de uma de suas mais importantes msicas: Light My Fire, de Robby Krieger. Iniciou-se, assim, uma trajetria de sucesso. Ganharam muito dinheiro, como havia previsto Manzarek. Porm, nesse percurso, havia um problema: Jim Morrison era uma alma beat que, ao mesmo tempo em que dava originalidade s apresentaes do grupo, no efervescente mundo do rock and roll, dionisicamente trabalhava as suas mscaras no palco:
ns respondemos mesma necessidade humana que a tragdia clssica [...] Por vezes deleito-me ao considerar a histria do rockn roll do mesmo modo que a origem do drama grego, [...] que originariamente era apenas um grupo de adoradores que danavam e cantavam. E depois, um dia, algum possesso saltou afastado da multido e ps-se a imitar um deus. A princpio eram apenas canto e movimento. Com o desenvolvimento das cidades, um nmero crescente de pessoas j no se dedicava seno a uma nica coisa, ganhar dinheiro, mas era necessrio continuar em contato com a natureza, de uma maneira ou de outra e ento comearam a ter atores que o ganhavam para elas. Penso que o rock preenche a mesma funo e poderia tornar-se uma espcie de teatro.10
Retirada de: http://imagecache2.allposters.com/ images/PEPH/jmici.jpg

Assim, na busca de um papel social para o rock, ele se atribuiu uma funo de suma importncia, a do xam, aquele que em estado de possesso conduz o ritual, na busca de recuperar a fonte da vida.11 A trajetria do The Doors estava se constituindo em um sucesso exemplar. Contudo, ao assistir ao espetculo do Living Theatre, Paradise Now, Morrison foi tomado por novas perspectivas. Como conseguir, em seus espetculos, a integrao palco e platia obtida pelo Living? Na seqncia dos acontecimentos transcorreu o show de Miami, no qual a performance de Morrison foi qualificada como atentado violento ao pudor. Em decorrncia disso, o vocalista foi preso, julgado e condenado.

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COLETIVO ROCK ON. Jim Morrison. 5. ed. Coimbra: Fora do Texto, 1993, p. 70-71. [...] no quadro de sua mitologia pessoal, Jim Morrison tinha acrescentado um outro elemento, retirado dos cultos dos ndios da Amrica Latina: o shamanismo. O shaman o feiticeiro que se pe em estado de transe, normalmente com a ajuda de drogas consideradas substncias divinas (cogumelos sagrados psilocibina; cactus peyote mescalina, etc.) no decorrer de cerimnias religiosas cujas existncia encontramos claramente nos Aztecas, desde a poca pr-colombiana. In: Ibid., p. 71.

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O ocorrido, por um lado, para The Doors, profissionalmente, foi uma lstima, pois a banda estava prestes a iniciar uma temporada que abarcaria o pas todo, que teve a maioria das apresentaes cancelada. De outro lado, em meio a esse turbilho de acontecimentos, comeou a emergir, explicitamente, o poeta Jim Morrison.

A Poesia de Jim Morrison


Grande parte dos bigrafos faz questo de revelar: a poesia sempre foi a grande obsesso de Jim:
Ouam, a verdadeira poesia no diz nada, apenas destaca as possibilidades. Abre todas as portas. As pessoas podem atravessar aquela que se lhes ajusta. ... e por isso que sinto pela poesia este apelo to forte porque eterna. Enquanto houver pessoas, elas podem lembrar-se de palavras ou combinaes de palavras. Mas nada pode sobreviver ao holocausto a no ser a poesia e as canes. [...]. Se a minha poesia pretende atingir alguma coisa, libertar as pessoas dos limites em que se encontram e que sentem.12

O incio da dcada de 1970 marcou a presena do poeta Jim Morrison no cenrio cultural norte-americano. Ele fez de seu tempo e da histria a matria-prima de sua poesia.
Sabem do febril progresso sob as estrelas? Sabem que ns existimos? Esqueceram porventura as chaves do Reino? J foram dados luz & esto vivos? Vamos reinventar os deuses & os mitos das idades Celebrar smbolos do mais fundo das antigas florestas (Esqueceram as lies da guerra pretrita) [...] Sabem que temos sido levados matana por almirantes plcidos & que gordos & calmos generais se tornam
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MORRISON, Jim. Auto-Entrevista. In: ______. Abismos (escritos inditos). 2. ed. Lisboa: Assrio & Alvim, 1994, p. 12-13.

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lascivos perante o sangue jovem [...] O gro criador dos seres concede-nos uma hora mais pra mostrarmos nossas artes & completarmos as vidas.13

Nessa metamorfose pblica, Morrison cruzou o Atlntico e fez de Paris o seu ltimo endereo. Nessa cidade, em 03 de junho de 1971, veio a falecer. A sua morte ficou envolta em mistrio. O atestado de bito revelou problemas cardacos. No entanto, outras verses falam de uma overdose, em um bar da cidade, que o deixou em coma e, nesse estado, fora levado para casa. Essa morte mal explicada deu origem a lendas acerca do xam dos anos 1960. Entre elas, encontra-se a seguinte:
[...] Jim teria sido visto, bem vivo, em qualquer parte do mundo. Este rumor fez-se sentir vivamente em New Orleans onde um romance bizarro foi mesmo (mal) escrito sob o seu nome. Reaparece sob a forma de uma espcie de banqueiro-hippy e o seu livro foi publicado por uma filial do Bank of America... Certamente que ele teria apreciado esta ltima homenagem do absurdo americano.14

Os Anos 1960: O que restou do sonho?


Com o recrudescimento da reao conservadora s perspectivas do paz e amor e da contracultura, essas manifestaes foram sendo paulatinamente derrotadas. Como smbolo dessa derrota esto as seguintes palavras de John Lennon, publicadas no jornal Rolling Stone, em dezembro de 1970: Eu acordei para isso tambm. O sonho acabou. As coisas continuam como eram, com a diferena que eu estou com trinta anos e uma poro de gente usa cabelos compridos.15 Ao lado da declarao de Lennon, os jovens, de ento, assistiam perplexos violncia nos episdios de Altamont, com ativa participao do grupo Hells Angels16, e a morte de dolos como Brian Jones (1969), Jimi Hendrix (1970), Janis Joplin (1970) e Jim Morrison (1971). O cenrio poltico e cultural anunciava, com ntida clareza, que o
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MORRISON, Jim. Uma Orao Americana. In: ______. Uma Orao Americana e Outros Escritos. Lisboa: Assro & Alvim, 1992, p. 113-114; 117; 119. 14 COLETIVO ROCK ON. Jim Morrison. 5. ed. Coimbra: Fora do Texto, 1993, p. 138. 15 PEREIRA, C. Alberto M. O que contracultura. 8. ed. So Paulo: Brasiliense, 1992, p. 51. 16 Este grupo era uma organizao direitista e extremamente violenta que surgiu na Califrnia, nos Estados Unidos, mas que se estendeu por vrios pases da Europa. Declaradamente fascistas, com um comportamento pautado pela intolerncia e autoritarismo, o grupo sempre chamou ateno pelo uso ostensivo de capacetes, susticas e medalhas sobre seus bluses de couro negro. In: Ibid., p. 72.

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incio da dcada de 1970 estaria sendo marcado por aquilo que Herbert Marcuse denominou de contra-revoluo. Para ele:
O Governo Nixon fortaleceu a organizao contra-revolucionria da sociedade em todas as direes. As foras da lei e da ordem foram transformadas em uma fora acima da lei. [...] Todo o peso da represso cai sobre os dois centros da oposio radical: as universidades e os militantes negros e pardos; a atividade no campus est sufocada; o Partido da Pantera Negra foi sistematicamente perseguido e caado, antes de se desintegrar em conflitos internos.17

Nas ltimas dcadas so visveis as vrias tentativas de desqualificar ou simplesmente sepultar essa riqueza de pensamentos e aes que compem os anos 1960. Porm, a despeito dessas iniciativas, que visam reafirmar que o sonho acabou, o rememorar de temas, propostas, agentes e lutas desse perodo constante. Nesse processo, Morrison sempre uma das lembranas recorrentes, seja por suas canes e poesias, seja por sua postura inconformista diante da realidade. Um exemplo disso :
[...] aquela horda de jovens, a maioria sequer nascida quando Morrison morreu, [...] que costuma pular os muros e invadir o cemitrio nas madrugadas, sempre munidos de potentes gravadores com as msicas de Morrison, garrafas de vinho barato e baseados de haxixe [...] especialmente nas belas noites de junho, aniversrio da morte de Morrison.18

Jim Morrison sempre um desafio, principalmente se levarmos em conta a sua concepo de que [...] a verdadeira poesia no diz nada, apenas destaca as possibilidades. Abre todas as portas.
medo da morte no Avio E a noite era aquilo que a Noite deveria ser Uma garota, uma garrafa, & um abenoado sonho Espalhei a minha semente pelo corao da nao. Injetei um grmen no sangue da veia psquica. Abrao agora a poesia do negcio & torno-me por um tempo um Prncipe da Indstria

17 18

MARCUSE, Herbert. Contra-revoluo e Revolta. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973, p. 32. SOTO, E. Jim Morrison no descansa em paz. Jornal do Brasil. So Paulo, 22 nov. 1996, p. 5. Caderno B.

Fnix Revista de Histria e Estudos Culturais Julho/ Agosto/ Setembro de 2005 Vol. 2 Ano II n 3 ISSN: 1807-6971 Disponvel em: www.revistafenix.pro.br

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Um lder natural, um poeta um Xam, c/ alma de palhao.

O que fao no meio da arena na Praa de Touros Todas as figuras pblicas lutando pela liderana [...] Estar bbado um bom disfarce. Bebo para poder falar aos idiotas. O que me inclui. [...] Adeus Amrica eu amei-te19

Morrison tornou-se um cone, mas os decnios posteriores reafirmaram valores e prticas que, nos idos dos anos 1960, pareciam definitivamente abolidas. Dessa maneira, atualmente, haveria lugar para Jim e seu xamanismo radical? Essa questo tanto mais candente em um tempo no qual
o que est em questo o declnio de uma viso utpica que um dia inspirou esquerdistas e liberais. O que se discute no propriamente que o ar mais puro, uma previdncia social ampliada ou uma democracia mais vigorosa sejam coisas ruins. O problema saber at que ponto um empenho por medidas nem to sensatas as mais subversivas e visionrias. O liberalismo pode preservar sua espinha dorsal com uma esquerda desenxabida? O radicalismo pode sobreviver depois de reduzido a um modus operandi? Uma esquerda que renuncia a qualquer plano ou esperana utpica pode resistir? A noo de utopia, comentava T.W. Adorno h alguns anos, desapareceu completamente da concepo do socialismo. Desta forma, o aparato, o modo, os meios da sociedade socialista assumiram todo o contedo possvel.20
Retirada do site: http://www.rockul.info/photo/ TheDoors/morrison.jpg

19

MORRISON, Jim. Na Estrada. In: ______. Abismos (escritos inditos). 2. ed. Lisboa: Assrio & Alvim, 1994, p. 191; 192; 193.

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Tempos difceis, com certeza! Situaes em que os acontecimentos passados soam to distantes em contraponto a um presente que terica e politicamente escapa a seus contemporneos. Diante do tempo, colocado em suspenso, experincias anteriores, muitas vezes, so retomadas e, com elas, as possibilidades histricas podem retornar. Nesse processo, revisitar os limites e as proposies de Jim Morrison sempre um convite ao inconformismo, ao exerccio da crtica, capacidade de indignao, imersos no sensvel universo de uma arte que buscou retirar da letargia os seus fruidores.

20

JACOBY, Russel. O fim da utopia: poltica e cultura na era da apatia. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 44-45.

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