Profisses para mulheres

Virginia Woolf (Londres, 1882-1941) Virgnia Woolf leu esse texto para a Sociedade Nacional de Auxlio s Mulheres em 21 de janeiro de 1931. Foi publicado postumamente em A morte da mariposa, 1942. Quando a secretria de vocs me convidou para vir aqui, ela me disse que esta Sociedade atende colocao profissional das mulheres e sugeriu que eu falasse um pouco sobre minhas experincias profissionais. Sou mulher, verdade; tenho emprego; verdade; mas que experincias profissionais tive eu? Difcil dizer. Minha profisso a literatura; e a profisso que, tirando o palco, menos experincia oferece s mulheres. Pois o caminho foi aberto muito anos atrs por Fanny Burney, Aphra Behn, Harriet Martineau, Jane Austen, George Eliot 1 -; muitas mulheres famosas e muitas outras desconhecidas e esquecidas vieram antes, aplainando o terreno e orientando meus passos. Ento, quando comecei a escrever, eram pouqussimos os obstculos concretos em meu caminho. Escrever era uma atividade respeitvel e inofensiva. O riscar da caneta no perturbava a paz do lar. No se retirava nada do oramento familiar. Dezesseis pences bastam para comprar papel para todas as peas de Shakespeare se a gente for pensar assim. Um escritor no precisa de pianos nem de modelos, nem de Paris, Viena ou Berlim, nem de mestres e amantes. Claro que foi por causa do preo baixo do papel que as mulheres deram certo como escritoras, antes de dar certo nas outras profisses. Mas vamos minha histria ela simples. Basta que vocs imaginem uma moa num quarto, com caneta na mo. S precisava mover aquela caneta da esquerda para a direita das dez uma. Ento ela teve uma ideia que no fundo bem simples e barata enfiar algumas daquelas pginas dentro de um envelope, colar um selo no canto de cima e pr o envelope na caixa vermelha da esquina. Foi assim que virei jornalista; e meu trabalho foi recompensado no primeiro dia do ms seguinte um dia gloriosssimo para mim com uma carta de um editor e um cheque de uma libra, dez xelins e seis pences. Mas, para lhes mostrar que no mereo muito ser chamada de profissional, que no conheo muito as lutas e as dificuldades da via de uma mulher profissional, devo admitir que, em vez de gastar aquele dinheiro com po e manteiga, aluguel, meias, sapatos ou com a conta do aougueiro, sa e comprei um gato um gato lindo, um gato persa, que logo me criou srias brigas com os vizinhos. Existe coisa mais fcil que escrever artigos e comprar gatos persas com o pagamento? Mas esperem a. Os artigos tm de ser sobre alguma coisa. Os meus, se bem me lembro, era sobre um romance de um homem famoso. E, quando eu estava escrevendo aquela resenha, descobri que se eu fosse resenhar livros, ia ter de combater um certo fantasma. E o fantasma era uma mulher, e quando a conheci melhor, dei a ela o nome da herona de um famoso poema, O Anjo do Lar. 2 Era ela que costumava aparecer entre mim e o papel enquanto eu fazia as resenhas. Era ela que me incomodava, tomava meu tempo e me atormentava tanto que no fim matei essa mulher. Vocs, que so de uma gerao mais jovem e mais feliz, talvez no tenham ouvido falar dela talvez no saibam o quero dizer com Anjo do Lar. Vou tentar resumir. Ela era extremamente simptica, imensamente encantadora. Totalmente altrusta. Excelente nas difceis artes do convvio familiar. Sacrificava-se todos os dias. Se o almoo era frango, ela ficava com o p; se havia ar encarnado, era ali que ia se sentar em suma, seu feitio era nunca ter opinio ou vontade prpria, e preferia sempre concordar com as opinies e vontades dos outros. E acima de tudo nem preciso dizer ela era pura. Sua pureza era tida como sua maior beleza enrubescer era seu grande encanto. Naqueles dias os ltimos da rainha Vitria toda casa tinha seu Anjo. E, quando fui escrever, topei com ela j nas
Fanny Burney (1752 1840) escreveu romances e dirios; Aphra Behn (1640-89) foi poeta, romancista e dramaturga; e Harriet Martineau (1802-76) escreveu sobre um amplo leque de assuntos. 2 Poema de Coventry Patmore (1823-1896) que celebrava o amor conjugal e idealizava o papel domstico das mulheres.
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primeiras palavras. Suas asas fizeram sombra na pgina; ouvi o farfalhar de suas saias no quarto. Quer dizer, na hora em que peguei a caneta para resenhar aquele romance de um homem famoso, ela logo apareceu atrs de mim e sussurrou: Querida, voc uma moa. Est escrevendo sobre um livro que foi escrito por um homem. Seja afvel; seja meiga; lisonjeie; engane; use rodas as artes e manhas de nosso sexo. Nunca deixe ningum perceber que voc tem opinio prpria. E principalmente seja pura. E ela fez que ia guiar minha caneta. E agora eu conto a nica ao minha em que vejo algum mrito prprio, embora na verdade o mrito seja de alguns excelentes antepassados que me deixarem um bom dinheiro digamos, umas quinhentas libras anuais? -, e assim eu no precisava s do charme para viver. Fui para cima dela e agarrei-a pela garganta. Fiz de tudo para esgan-la. Minha desculpa, se tivesse que comparecer a um tribunal, seria legtima defesa. Se eu no a matasse, ela que me mataria. Arrancaria o corao de minha escrita. Pois, na hora em que pus a caneta no papel, percebi que no d pra fazer nem mesmo uma resenha ser ter opinio prpria, sem dizer o que a gente pensa ser verdade nas relaes humanas, na moral, no sexo. E, segundo o Anjo do Lar, as mulheres no podem tratar de nenhuma dessas questes com liberdade e franqueza; se querem se dar bem, elas precisam agradar, precisam conciliar, precisam falando sem rodeios mentir. Assim, toda vez que eu percebia a sombra de sua asa ou o brilho de sua aurola em cima da pgina, eu pegava o tinteiro e atirava nela. Demorou para morrer. Sua natureza fictcia lhe foi de grande ajuda. muito mais fcil matar um fantasma do que uma realidade. Quando eu achava que j tinha acabado com ela, sempre reaparecia sorrateira. No fim consegui, e me orgulho, mas a luta foi dura; levou muito tempo, que mais valia ter usado para aprender grego ou sair pelo mundo em busca de aventuras. Mas foi uma experincia real; foi uma experincia inevitvel para todas as escritoras daquela poca. Matar o Anjo do Lar fazia parte da atividade de uma escritora. Mas continuando minha histria: o Anjo morreu, e o que ficou? Vocs podem dizer que o que ficou foi algo simples e comum uma jovem num quarto com um tinteiro. Em outras palavras, agora que tinha se livrado da falsidade, a moa s tinha de ser ela mesma. Ah, mas o que ela mesma? Quer dizer, o que uma mulher? Juro que no sei. E duvido que vocs saibam. Duvido que algum possa saber, enquanto ela no se expressar em todas as artes e profisses abertas s capacidades humanas. E de fato esta uma das razes pelas quais estou aqui, em respeito a vocs, que esto mostrando com suas experincias o que uma mulher, que esto nos dando, com seus fracassos e sucessos, essa informao da maior importncia. Mas retomando a histria de minhas experincias profissionais. Recebi uma libra dez xelins e seis pences por minha primeira resenha, e comprei um gato persa com esse dinheiro. E a fiquei ambiciosa. Um gato persa uma coisa tima, disse eu; mas um gato persa no chega. Preciso de um carro. E foi assim que virei romancista pois muito estranho que as pessoas nos deem um carro se a gente contar uma histria para elas. E ainda mais estranho, pois a coisa mais gostosa do mundo contar histrias. muito mais agradvel do que escrever resenhas de romances famosos. Mas se pra atender secretria de vocs e lhes contar minhas experincias profissionais como romancista, preciso falar de uma experincia muito esquisita que me aconteceu como romancista. E, para entender, primeiro vocs tm de tentar imaginar o estado de esprito de um romancista. Acho que no estou revelando nenhum segredo profissional em dizer que o maior desejo de um romancista ser o mais inconsciente possvel. Ele precisa se induzir a um estado de letargia constante. Ele quer que a vida siga com toda a calma e regularidade. Enquanto escreve, ele quer ver os mesmos rostos, ler os mesmos livros, fazer as mesmas coisas um dia depois do outro, um ms depois do outro, para que nada venha a romper a iluso em que vive para que nada incomode ou perturbe os misteriosos movimentos de farejar e sentir ao redor, os saltos, as arremetidas e as sbitas descobertas daquele esprito to tmido e esquivo, a imaginao. Desconfio que seja o mesmo estado de esprito para homens e mulheres. Seja como for, quero que vocs imaginem escrevendo um romance em estado de transe. Quero que vocs imaginem uma moa sentada com uma caneta na mo, passando minutos, na verdade horas, sem molhar a pena no tinteiro. Quando penso nessa moa, a imagem que me ocorre algum pescando, em devaneios beira de um lago fundo, com um canio na mo. Ela 2

deixava a imaginao vaguear livre por todas as pedras e fendas do mundo submerso nas profundezas do nosso ser inconsciente. Ento vem a experincia, a experincia que creio ser muito mais comum com as mulheres do que com os homens que escrevem. A linha correu pelos dedos da moa. Um tranco puxou a imaginao. Ela tinha sondado as poas, as funduras, as sombras onde ficam os peixes maiores. E ento bateu em alguma coisa. Foi uma pancada forte. Espumarada, tumulto. A imaginao tinha colidido numa coisa dura. A moa foi despertada do sonho. E de fato ficou na mais viva angstia e aflio. Falando sem metforas, ela pensou numa coisa, uma coisa sobre o corpo, sobre as paixes, que para ela, como mulher, era imprprio dizer. E a razo lhe dizia que os homens ficariam chocados. Foi a conscincia do que diriam os homens sobre uma mulher que fala de suas paixes que a despertou do estado de inconscincia como artista. No podia mais escrever. O transe tinha acabado. A imaginao no conseguia mais trabalhar. Isso creio que uma experincia muito comum entre as mulheres que escrevem ficam bloqueadas pelo extremo convencionalismo do outro sexo. Pois, embora sensatamente os homens se permitam grande liberdade em tais assuntos, duvido que percebam ou consigam controlar o extremo rigor com que condenam a mesma liberdade nas mulheres. Ento, essas foram duas experincias muito genunas que tive. Foram duas das aventuras de minha vida profissional. A primeira matar o Anjo do Lar creio que resolvi. Ele morreu. Mas a segunda, falar a verdade sobre minhas experincias do corpo, creio que no resolvi. Duvido que alguma mulher tenha resolvido. Os obstculos ainda so imensamente grandes e muito difceis de definir. De fora, existe coisa mais simples do que escrever livros? De fora, quais obstculos para uma mulher, e no para um homem? Por dentro, penso eu, a questo muito diferente; ela ainda tem muitos fantasmas a combater, muitos preconceitos a vencer. Na verdade, penso eu, ainda vai levar muito tempo at que uma mulher possa se sentar e escrever um livro sem encontrar com um fantasma que precise matar, uma rocha que precise enfrentar. E se assim na literatura, a profisso mais livre de todas para as mulheres, quem dir nas novas profisses que agora vocs esto exercendo pela primeira vez? So perguntas que gostaria de lhes fazer, se tivesse tempo. Na verdade, insisti nessas minhas experincias profissionais, foi porque creio que tambm sejam as de vocs, embora de outras maneiras. Mesmo quando o caminho est nominalmente aberto quando nada impede que uma mulher seja mdica, advogada, funcionria pblica -, so muitos, imagino eu, os fantasmas e obstculos pelo caminho. Penso que muito bom e importante discuti-los e defini-los, pois s assim possvel dividir o trabalho, resolver as dificuldades. Mas, alm disso, tambm necessrio discutir as metas e os fins para quais lutamos, pelos quais combatemos esses obstculos tremendos. No podemos achar que essas metas esto dadas; precisam ser questionadas e examinadas constantemente. Toda a questo, como eu vejo aqui neste salo, cercada por mulheres que praticam pela primeira vez na histria no sei quantas profisses diferentes -, de importncia e interesse extraordinrios. Vocs ganharam quartos prprios na casa que at agora era s dos homens. Podem, embora com muito trabalho e esforo, pagar o aluguel. Esto ganhando suas quinhentas libras por ano. Mas esta liberdade s o comeo; o quarto de vocs, mas ainda est vazio. Precisa ser mobiliado, precisa ser decorado, precisa ser dividido. Como vocs vo mobiliar, como vocs vo decorar? Com quem vo dividi-lo, e em que termos? So perguntas, penso eu, da maior importncia e interesse. Pela primeira vez na histria, vocs podem fazer essas perguntas; pela primeira vez, podem decidir quais sero as respostas. Bem eu gostaria de ficar e discutir essas perguntas e respostas mas no hoje. Meu tempo acabou e paro por aqui.