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Oratio Meditatio - Tentatio.1

Para Nelso Weingrtner, em gratido por uma vida dedicada a cativar as novas geraes ao Evangelho e Confessionalidade Luterana

Introduo Uma das questes centrais da teologia a relao entre f e conhecimento, corao e razo, espiritualidade e cincia. Esta relao est posta pela natureza da prpria f, que no muda, mas deseja articular-se para tornar-se compreensvel, comunicvel e convincente (veja-se Salmo 116.10; 2 Corntios 4.13). O orar com o esprito vem acompanhado pelo orar com a mente (1Corntios 14.15, 19). O Shema Israel (Deuteronmio 6. 4-5), confirmado por Jesus como resumo dos mandamentos (Marcos 12. 29-30), prev o amor a Deus de todo corao, de toda alma, de todo entendimento, de toda fora. O amor a Deus inclui am-lo, portanto, com nossa compreenso racional, intelectual. A relao construtiva ou tenso criativa entre f e conhecimento, espiritualidade e cincia, corao e razo, emoo e intelecto constitutiva para a f crist e, portanto, para a teologia e para a educao teolgica. Durante mais de 1.000 anos de histria da f crist, esta relao permaneceu estvel. Apenas no sculo XII, com o reflorescimento da teologia latina, a cincia teolgica comea a distanciar-se da espiritualidade. Teologia, no sentido estrito, passa a ser apenas aquela elaborada nas universidades nascentes da alta Idade Mdia, a teologia escolstica. Apenas h poucas dcadas, a teologia vai novamente tomando conscincia de que ao lado da Teologia Escolstica, havia uma Teologia Monstica que seguia suas prprias regras e conjugava cincia e espiritualidade em seu labor teolgico2 . No momento em que cresce a autocrtica da prpria teologia quanto aos limites do mtodo acadmico e cientfico, especialmente quanto primazia do uso da razo no fazer teolgico, a redescoberta da Teologia Monstica suscita esperana quanto possibilidade de recuperar a relevncia da teologia para a vida e para a espiritualidade. No se trata, pois, de substituir uma pela outra, mas sim de reatar um dilogo construtivo. No intuito de contribuir no restabelecimento deste dilogo interrompido h sculos, apresentamos esta reflexo. Iniciamos, procurando aclarar o surgimento e as principais caractersticas destas duas formas de se fazer teologia no sculo XII, tipificando brevemente os seus
1 Palestra apresentada em setembro de 2012 no I Simpsio Internacional de Lutero organizado pela Faculdade Luterana de Teologia de So Bento do Sul/Brasil e pelo Departamento de Histria Eclesistica da Faculdade de Teologia da Friedrich Schiller Universitt de Jena/Alemanha. 2 Veja especialmente LECLERCQ, Jean. Wisenschaft und Gottverlangen. Zur Mnchstheologie des Mittelalters. Dsseldorf : Patmos Verlag, 1963. 339 p. BAYER, Oswald. Theologie (HST 1). Gterloh: Gterloher Verlagshaus, 1994. p. 55-105. BAYER, Oswald. Monastische und scholastische Theologie. In: LANDAU, Rudolf; SCHMIDT, Gnter R. Das allen Menschen geholfen werde... Festschrift fr Manfred Seitz. Stuttgart: Calwer Verlag, 1993. p. 11-16. BERGER, Klaus. Was ist biblische Spiritualitt? Gtersloh: Gtersloher Verlagshaus, 2003. p. 223-227.

2 mtodos de trabalho. A exposio da Teologia Monstica ocupa maior espao por ser o mtodo teolgico a ser redescoberto. Aps, apresentamos a anlise de um escrito de Lutero de 1539, intitulado Oratio-Meditatio-Tentatio: forma correta de se estudar teologia, no qual ele apresenta seu mtodo teolgico, elaborado a partir das premissas da Teologia Monstica, recebendo, porm, novos acentos a partir da teologia reformatria. Em seguida, expomos resumidamente como o binmio teologiaespiritualidade se desenvolveu historicamente no meio protestante-luterano. Encerramos esta seco demonstrando os esforos de Dietrich Bonhoeffer por uma formao teolgica capaz de manter unidos o estudo acadmico da teologia e a prtica da espiritualidade. Esta questo, alis, est subjacente em toda reflexo. Algumas teses conclusivas encerram o artigo. Teologia Monstica e Teologia Escolstica O sculo XII foi extremamente profcuo para a teologia. O continente europeu vivia tempos de paz e prosperidade econmica. A igreja, por sua vez, experimentava os benefcios da reforma gregoriana ocorrida no sculo anterior, promovendo a vida eclesistica e a renovao espiritual, visvel especialmente na criao de novas ordens religiosas e na reforma das existentes. Neste contexto, tambm a teologia tomou novo impulso. No sculo XII, cristalizam-se dois ambientes distintos de produo teolgica: a) os mosteiros e b) as scholae, escolas que surgem nas cidades ao lado das catedrais e que logo daro origem s universidades. A partir destes dois ambientes surgem dois modelos distintos de se fazer teologia: a teologia monstica, geralmente representada por Abades como Bernardo de Claraval, e a teologia escolstica, geralmente representada por telogos-filsofos como Pedro Abelardo. Teologia Escolstica Contexto do surgimento da Teologia Escolstica a preparao teolgica para o sacerdcio nas parquias. Aps o estudo das artes, desdobrado no trivium (gramtica, lgica e retrica) e no quadrivium (aritmtica, geometria, astronomia e msica), estudase teologia. Alm de denotar um determinado espao, o termo escolstico refere-se, pois, ao mtodo cientfico elaborado a partir da recepo das teses de Aristteles, especialmente pela utilizao do instrumental da lgica e da retrica aristotlica. Esta metodologia tambm aplicada Escritura, sacra pagina. A busca por conhecimento d-se pelo questionamento, pela questio. Assim, pesquisa-se a Escritura de forma neutra e objetiva como qualquer outra obra literria a partir das perguntas por autoria, autenticidade, datao, contexto histrico, motivao e objetivos. Para cada pergunta so arroladas autoridades e suas opinies, e do seu embate, a disputatio, estabelecem-se posies, solues e snteses, compiladas nas summas, tratados teolgico-escolsticos caracterizados pela sistematizao clara e pela lgica. A assimilao da filosofia aristotlica com sua cosmoviso sbria e profana significou marco decisivo no desenvolvimento da Teologia Escolstica. Como j aludimos acima, a Teologia Escolstica suplantou a Teologia Monstica a ponto de somente ela ser considerada teologia. Sendo desde suas origens teologia acadmica, ela parecia ter muitas vantagens sobre a vertente monstica: ela racional e estruturada; e, desde os primrdios, estava aberta ao profano, no precisando primeiro ser secularizada para adequar-se s exigncias do mtodo cientfico.

Teologia Monstica O estudioso beneditino Jean Leclercq intitulou do seguinte modo o ensaio no qual apresenta as caractersticas da teologia monstica: O amor s letras e o desejo de Deus3 . Este ttulo descreve perfeitamente o programa da Teologia Monstica: O desejo de conhecer e experimentar Deus, que vem ao encontro do ser humano em sua Palavra e leva o telogo a aprofundar-se na compreenso exata do texto da Escritura com o auxlio da gramtica e da filologia, porm, mantendo sempre uma atitude de orao e meditao. A teologia monstica acontece no ambiente do mosteiro. Alm do estudo das disciplinas do trivium e do quadrivium, os monges recebem formao espiritual individual sob a superviso mistaggica do Abade ou do respectivo diretor espiritual, sendo introduzidos na leitura e meditao da Escritura, na literatura patrstica e na liturgia. A Teologia Monstica pessoal e parte da busca por crescimento na f e aprofundamento da experincia espiritual. Motivao a santificao da vida na presena de Deus. O aprendizado vem de Deus e de seu Esprito e pedido em orao. Assim, a teologia atividade orante com consequncias para a vida de f, desembocando na santificao e na contemplao, envolvendo o ser humano de forma integral. A Teologia Monstica fundamenta-se em trs pilares: a Escritura, a tradio patrstica e a literatura clssica. A formao literria importante porque prepara para a exegese, que, por sua vez, est a servio da meditao da Escritura. Dentre as disciplinas do trivium, a gramtica a mais importante. A partir do estudo da literatura clssica, mas tambm a partir dos Salmos e dos comentrios bblicos, o telogo aprende a ler, escrever, compreender e interpretar textos. Assim, est pronto para envolver-se com o texto maior: a Escritura. A Lectio Divina Teologia Monstica totalmente teologia bblica e seu mtodo de trabalho a Lectio Divina4 , ocorrendo na interrelao de Lectio Meditatio Oratio - Contemplatio. Estes passos formam uma unidade inseparvel, envolvendo o ser humano integralmente. Mesmo que a disposio dos passos evoque a impresso de etapas subsequentes, imprescindvel ressaltar que a Teologia Monstica entendia todo seu fazer teolgico como orao. Guigo II, Abade da Grande Cartuxa, no escrito clssico sobre a Lectio
LECLERCQ, Jean. L`amour des lettres et le dsir de Dieu. Paris : Les Editions du Cerf, 1957. Utilizamos a traduo alem desta obra : LECLERCQ, Jean. Wisenschaft und Gottverlangen. Zur Mnchstheologie des Mittelalters. Traduo de Johannes e Nicole Stber. Dsseldorf : Patmos Verlag, 1963. 339 p. 4 Desde as origens, a lectio divina fazia parte da vida monstica. Na Regra de So Bento (480-547) o diaa-dia no mosteiro constava de tempos para as oraes litrgicas comuns, para o trabalho e para a lectio divina individual. Segundo a regra 48, que trata do trabalho manual cotidiano, as melhores horas do dia estavam reservadas para a lectio (As regras dos monges. So Paulo: Edies Paulinas, 1993. p. 113-115). Diz o texto desta regra: A ociosidade inimiga da alma. Devem, portanto, os irmos ocupar-se, em certos momentos, com o trabalho manual, e em outras horas fixas, aplicar-se leitura espiritual (Regra 48,1). Alm destas horas de leitura e meditao individual, havia a possibilidade de compartilhar impresses e dvidas surgidas na leitura individual. A instituio dos colquios que ocorriam antes ou depois das oraes vespertinas ou das noturnas, oportunizavam o compartilhar e o aprendizado mtuo (LECLERCQ, Jean. Weisen des Gebetes und der Kontemplation in der westlichen Kirche. In: Geschichte der christlichen Spiritualitt Bd. 1. Wrzburg: Echter, 1993. p. 418).
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4 Divina (1150) intitulado A Escada dos Monges, descreve o mtodo a partir dos degraus da referida escada: A leitura procura a doura da vida bem-aventurada, a meditao a encontra, a orao a pede, a contemplao a experimenta. A leitura ... leva boca o alimento slido, a meditao o mastiga e tritura, a orao consegue o sabor, a contemplao a prpria doura que regala e refaz5 . A lectio no era simplesmente a leitura muda das palavras. Lia-se formando as palavras com a boca e os lbios, em uma recitao em voz baixa. Surge, assim, a impresso vocal e acstica das palavras e frases da Escritura, indispensvel para impregnar profundamente o texto na memria. Este texto geralmente era uma palavra curta, mas cheia de suaves sentidos para o repasto da alma.6 Guigo a compara a palavra da Escritura a um cacho de uvas: a alma, depois de o examinar com cuidado, diz em si mesma: pode haver aqui algum bem, voltarei ao meu corao e tentarei, se possvel entender e encontrar esta pureza ... Desejosa de explicar mais plenamente ... comea a mastigar e a triturar essa uva, e a pe no lagar, enquanto excita a razo a procurar o que e como pode ser adquirida to preciosa pureza. Fica claro que a leitura , antes de tudo, atividade racional: a leitura o estudo assduo das Escrituras, feito com aplicao do esprito. Objetivo, portanto, compreender o que se l, aplicando ao texto bblico o que ele aprendeu no estudo da gramtica. A leitura estudiosa leva naturalmente meditao. Ambas praticamente se confundem : A meditao uma ao deliberada da mente, a investigar com a ajuda da prpria razo o conhecimento de uma verdade oculta.7 ideal que leitura e meditao permaneam relacionadas, como alerta Guigo: a leitura sem a meditao rida, a meditao sem a leitura errnea.8 A leitura recitativa sugeria a impresso que o texto estava sendo mascado, mastigado. Aqui se passa da lectio para a meditatio, que no se detm no exterior, no para na superfcie... mas penetra no interior, perscruta cada aspecto.9 semelhana do processo de alimentao e digesto, o alimento espiritual, o po da vida, tambm deveria ser mastigado, digerido, ou melhor, ruminado e, assim, degustado e saboreado com o paladar do corao. Meditatio, assim, passa a ser sinnimo de ruminatio. A denominao ruminatio vem da interpretao alegrica de Levtico 11.3 e Deuteronmio 14.6 que compara os que meditam continuamente a palavra com os animais puros que ruminam: todo o que tem unhas fendidas, e o casco se divide em dois, e rumina, entre os animais, esse comereis. Desde cedo, os monges apontaram a superioridade da ruminatio sobre outras formas meditao. Abbas Antonio, ou Santo Anto, patriarca do movimento monstico no deserto egpcio, usa a compara o camelo e o cavalo para descrever esta superioridade:
O camelo necessita de pouco alimento. Ele o conserva dentro de si at retornar ao estbulo. Ento deixa o alimento subir e novamente o mastiga, at que penetre em seus ossos e em sua carne. J o cavalo necessita de muito alimento; come em todo momento e perde logo o que acabou de comer. No sejamos, pois, como o cavalo, recitando em todo momento a palavra de Deus, mas deixando de viv-la. Sigamos o exemplo do camelo e recitemos toda a palavra da Escritura Sagrada, guardemo-la em ns at que a realizemos10 .
GUIGO II, Cartuxo. Carta sobre a vida contemplativa ou a escada dos monges. In: Lectio Divina: ontem e hoje. 2. ed. Juiz de Fora: Mosteiro de Santa Cruz, 1999. p.15. 6 GUIGO II, 1999, p. 15. 7 GUIGO II, 1999, p. 14. 8 GUIGO II, 1999, p.26. 9 GUIGO II, 1999, p. 16. 10 Apotegmata citado por RUPPERT, Fidelis. Meditatio-Ruminatio. Zu einem Grundbegriff christilicher Meditation. Erbe und Auftrag , Beuron, ano 53, p. 85, 1977.
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5 A palavra, portanto, deve ser guardada, memorada, para depois ser meditada, ruminada, at transformar-se em vida. No a quantidade importa, mas o tempo para ruminar e digerir bem. Transparece a diferena entre a meditao na forma integral da ruminatio, que lenta, regular, de pequenas pores da Escritura, que produz frutos com o tempo, e outra forma que no tem tempo, rpida, imediatista, inquieta e, por isso, fugaz e infrutfera. Fruto da ruminao, por sua vez, a alegria no Senhor, o regalar-se no sabor do alimento espiritual recebido. Guigo expressa sua admirao pela riqueza e abundncia dos frutos da meditao obtidos de uma s palavra bblica: Vs quanto licor emanou daquela pequena uva, quanto fogo nasceu de uma centelha, quanto se alargou na bigorna da meditao este pequeno pedao de metal ... Sinto como fundo o poo, mas no passo ainda de um novio rude, que mal cheguei a tirar algumas gotas.11 Do desejo de conhecer melhor, de receber o que se vislumbrou na meditao, brota a oratio. J no se trata mais de um conhecer na casca da leitura, mas no sabor da experincia12 . Assim, a orao irrompe na meditao quando esta se deparar com algum discernimento importante. Caracterstico desta orao que seus assuntos provm da interao com a Escritura. Neste sentido, a orao no contexto da lectio divina corresponde doutrina consensual sobre as caractersticas da orao: ela deveria ser pura, breve e frequente13 . A pureza da orao era assegurada quando acontecia livre de distraes. Isto, porm, no era possvel em um longo tempo de orao discursiva. Por isso, ela deve ser breve. Para compensar a brevidade, a orao deveria ser frequente. Dependendo do texto bblico e dos discernimentos da meditao, a orao poderia assumir vrias formas: petio, lamento, confisso, louvor, intercesso. Envolvida num ambiente de silncio exterior e interior, as pausas silenciosas da orao podiam desembocar na contemplatio, orao silenciosa, no racional ou discursiva, pura adorao na presena de Deus. A contemplao um descansar silencioso em Deus, sem palavras ou pensamentos, sem imagens ou sentimentos, unidade pura com Deus na profundeza da alma14 . Se na orao o ser humano atingido pela meditao da Palavra traz a Deus suas questes, na contemplao Deus que vem ao seu encontro: E o Senhor ... no espera a prece acabar. Pois, interrompendo o curso da orao, apressa-se em vir alma que o deseja ... Ele recria a alma fatigada, ... sacia a sua aridez ... e, embriagando-a, sbria a torna15 . Fica claro que a contemplao iniciativa de Deus. Neste degrau, o ser humano totalmente passivo, cabendo-lhe apenas receber e saborear a graa inesperada e rara. Esta graa tambm breve, pois o ser humano no pode suportar por muito tempo o esplendor da verdadeira luz. Assim, necessrio que ele desa suave e ordenadamente algum dos trs degraus pelos quais subira, e assim, alternadamente, ora em um ora em outro.16 Correspondncia com as razes bblicas da meditao A compreenso monstica da meditao como ruminao, lembra a concepo vterotestamentria. A palavra latina meditatio/meditari na Vulgata geralmente a traduo do hebraico haga. Para Emmanuel von Severus as grandes obras de Deus
GUIGO II, 1999, p. 17. GUIGO II, 1999, p. 18. 13 LECRERCQ, 1993, p. 414. 14 FREIDMANN, Edgar. Die Bibel beten. Lectio Divina heute. Mnsterschwarzach: Vier Trme Verlag, 1995. p. 23. 15 GUIGO II, 1999, p. 19. 16 GUIGO II, 1999, p. 27.
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6 em favor de Israel so objeto da haga, compreendida como orao lenta, reflexiva, repetida, contemplativa e ponderada, que muitas vezes tambm se expressa de forma audvel17 . Ela acontece atravs do movimento dos lbios e da boca, mas tambm movendo corao, mente e esprito. Para quem ouve, assemelha-se ao arrulho do pombo (Isaas 38.14; 59.11). O som da meditao um suave murmulho, tal o rudo suave da gua corrente ou do ramalhar das folhas18 . Na Septuaginta/LXX haga geralmente traduzida com meletanou melete que significa exercitar-se com afinco, estudar, conceber, mas tambm cuidar, tratar, guardar19 . No Novo Testamento, meletan aparece poucas vezes, apenas nos escritos tardios, como, por exemplo, em 1 Timteo 4.15: medita estas coisas, e nelas permanece. A ausncia nos sinticos e em Paulo tem sido atribuda ao desejo de se distanciar da espiritualidade farisaica que murmurava, meditava a Tor, mas no amava o prximo20 . Assim, h a tendncia de conceber a meditao sem os elementos corporais e acsticos. Quando a igreja crist rompe os limites do judasmo, adentrando ao mundo greco-romano, o termo meletan reaparece, especialmente a partir dos sculos III-IV, no movimento monstico. A importncia da rememorao e da imaginao Importantssimo no mtodo da Lectio Divina o fenmeno da rememorao, fruto da leitura recitativa, corporal e audvel. Espontaneamente o monge lembra de citaes e referncias bblicas e as associa mutuamente, geralmente pela simples semelhana acstica. Assim, cada palavra um gancho. Nele, esto penduradas outras palavras que se combinam entre si e formam a textura da exposio 21 . Aps anos e dcadas da prtica da Lectio Divina, o monge dispe de uma vasta concordncia bblica em sua memria, um tremendo auxlio para seu labor teolgico. Desta forma, o princpio hermenutico tipicamente monstico se impe: a exegese monstica interpreta a Escritura Sagrada pela prpria Escritura Sagrada22 . No admira, igualmente, a importncia central do texto literal. A memorizao dos textos tambm era necessria porque havia poucos exemplares da Escritura disposio dos mosteiros e nem todos os monges sabiam ler. capacidade de rememorao soma-se a capacidade imaginativa extraordinria do ser humano medieval. Ele capaz de transportar-se para dentro da cena bblica e participar dela, interagindo com os personagens, percebendo aes e emoes. Assim, o texto bblico no apenas depositrio de verdades abstratas, mas contm vida, vida eterna. O uso da exegese medieval A Vulgata, traduo latina do texto grego da Septuaginta, o texto de uso sobre o qual se constri o conhecimento bblico e tambm a meditao. Ponto de partida da interpretao so os comentrios dos pais da igreja, os expositores. Auxlios exegticos importantes so os lxicos, obras filolgicas que contm a etimologia de nomes de
17 VON SEVERUS, Emmanuel. Das Wort meditari im Sprachgebrauch der Heiligen Schrift. Geist und Leben, ano. 26, p. 365-375, 1953. 18 Martin Buber em sua traduo do Salmo 1.2, traduz haga com murmulhar: ber seiner Weisung murmelt tages und nachts!. In: Die Schriftwerke. Verdeutscht von Martin Buber gemeinsam mit Franz Rosenzweig. Gerlingen: Verlag Lambert-Schneider, 1976. p. 9. 19 VON SEVERUS, 1953, p. 367. 20 VON SEVERUS, 1953, p. 375. 21 LECLERCQ, 1963. p. 86. 22 LECLERCQ, 1963, p. 94.

7 pessoas e lugares bblicos. Compndios de cincias naturais contendo referncias sobre animais, minerais, plantas e cores oferecem conhecimento importante para a interpretao, especialmente para a explicao alegrica dos textos. Embora lanando mo das ferramentas cientficas disponveis para a exegese, a Teologia Monstica jamais se aproxima da Escritura como de algum outro escrito da literatura clssica. Ela no fonte de conhecimento ou objeto de pesquisa cientfica ela meio para a salvao eterna, pois transmite a obra divina de redeno e santificao do mundo ocorrida atravs de Cristo. Esta compreenso da autoridade da Escritura torna evidentes alguns dissensos fundamentais em relao Teologia Escolstica. O dissenso com a Teologia Escolstica A Teologia Monstica se afasta da Teologia Escolstica quando esta no coloca mais seu acento na gramtica, mas na lgica, quando a autoridade da Escritura e dos Pais da Igreja j no so mais suficientes, quando os filsofos passam a ditar os rumos da teologia, que passa a se expressar por meio de conceitos abstratos. Na Teologia Monstica a disputatio acontecia apenas no mbito das sete artes. J nas escolas clericais junto s catedrais, acontecia tambm em torno da Escritura, algo inadmissvel para a Teologia Monstica. Para ela, a disputa pelo prazer de disputar e no para procurar a verdade e submeter-se a ela, no passa de uma contenda de palavras (1 Timteo 6.4) que serve apenas para inflar o ego dos telogos, assim como distinguido em 1 Corntios 8.1: o saber ensoberbece; o amor edifica. Assim, segundo o parecer da Teologia Monstica, os telogos escolsticos desrespeitam a Palavra de Deus e a tratam como se fosse uma das sete artes e transformam a teologia em uma tcnica e um conhecimento entre outros. Este desrespeito considerado profanao dos mistrios de Deus. Anlise do escrito de Lutero uma forma correta de se estudar teologia23 Para iluminar a relao entre Teologia Monstica e Teologia Escolstica, trazemos o testemunho de algum que vivia em ambas teologias: Martin Lutero. Ele, enquanto monge, professor universitrio e pregador, respondia s perguntas clssicas da Teologia Escolstica com o instrumental da Teologia Monstica. Na tentativa de contribuir para o resgate da Teologia Monstica apresentamos Lutero como telogo monstico a partir de um de seus escritos tardios, o prefcio s suas obras em lngua alem de 1539, escrito tambm conhecido como uma forma correta de se estudar teologia. Contexto histrico24 Desde 1518 houveram publicaes de coletneas das obras de Lutero. Tratava-se de um pedido recorrente geralmente negado por Lutero por sobrecarga de trabalho e
WA 50, 657-661. Ainda no h uma traduo para o portugus. Apenas partes foram traduzidas. Para a anlise a seguir, utilizo minha prpria traduo. 24 Mais informaes em BRECHT, Martin. Martin Luther. Bd 3 - Die Erhaltung der Kirche: 1532-1546. Berlin: Evangelische Verlagsanstalt, 1990. p. 144-148. Veja-se tambm BAYER, Oswald. A teologia de Martin Lutero. Uma atualizao. So Leopoldo: Sinodal, 2007; STOLINA, Ralf. Gebet Meditatio Anfechtung. Wegmarken einer theologie experimentalis. In: Zeitschrift fr Theologie und Kirche, Tbingen, v. 98, p. 81-100, 2001.
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8 desinteresse do prprio reformador. Em 1528 foi publicada uma destas coletneas, aumentada em 1533, chamada de Catlogo ou Registro de todos seus livros e escritos. A edio aumentada de 1533 foi prefaciada pelo prprio Lutero. Neste prefcio ele expe que no tinha interesse em preservar sua obra literria, qual atribua apenas certa importncia histrica. Seu interesse exclusivo era a primazia da Escritura. Temia que os livros teolgicos ocupassem o lugar dela. Em 1537, por iniciativa de Wendelin Rihel, um editor de Estrasburgo, Lutero foi mais uma vez pressionado a consentir com a edio de uma nova coletnea. Rihel argumentava com a promoo da unidade evanglica que tal coletnea traria. Em julho de 1537 Lutero reagiu com reserva dizendo que apenas De Servo Arbitrio e os Catecismos mereceriam ser novamente publicados. Meses mais tarde, Lutero foi ainda mais enftico afirmando que os livros teolgicos sempre serviram para desviar a Igreja da Bblia. Novamente atribui apenas um significado histrico aos seus livros, por serem documentos de seu conflito com o Papa. A edio de Estrasburgo nunca foi levada a cabo. Editores de Wittenberg e Ausgburgo, porm, continuaram pressionando Lutero e acabaram realizando o projeto. Os organizadores foram Georg Rrer e Kaspar Cruciger, sendo que o primeiro foi liberado de suas funes diaconais junto comunidade de Wittenberg para dedicar-se organizao da coletnea. O Prncipe Eleitor contribuiu com o projeto continuando a pagar os proventos de Rrer. J em 1539 foi publicado um primeiro volume dos escritos em alemo com a interpretao das cartas do Novo Testamento. Lutero escreveu o prefcio cujo contedo iremos analisar. Logo no incio, ele repetiu as reservas j conhecidas: preferia ver seus livros e escritos esquecidos a fim de que no se perca com eles o tempo precioso a ser dedicado ao estudo da Escritura (WA 50, 657, 1-11). Justamente para promover este estudo, Lutero esmerou-se em traduzi-la para o alemo para que se escreva menos e se leia e estude mais a Escritura, bebendo-se, assim, da fonte pura e fresca. Importa que deixemos os apstolos e profetas estar no plpito e ns assentados a seus ps ouvindo o que dizem (WA 50, 657, 28-30). Como Lutero no conseguiu impedir a publicao da coletnea, consola-se com a certeza de que seus livros e escritos logo estaro esquecidos como os de todos os outros autores ao longo da histria da igreja. Recomenda a seus leitores que tomem cuidado para que esta leitura no atrapalhe o estudo da Escritura. Deseja que sigam o exemplo de Agostinho que no se deixava influenciar pelos livros dos pais ou dos santos mas estava exclusivamente sujeito Sagrada Escritura (WA 50, 657, 21-28). Se o Papa tivesse seguido o exemplo de Agostinho no teria se tornado o Anticristo e a Bblia teria permanecido no plpito. Lutero, entretanto, considera til e interessante que alguns de seus livros permaneam como testemunho histrico da obra realizada pela Palavra de Deus. Aprofundando sua reserva com relao tradio e teologia, afirma que os livros eclesisticos e teolgicos no devem ser o objeto primordial de estudo nem a norma para a conduta e a vida de f. Fica evidente, assim, que para Lutero, no crculo hermenutico composto de Escritura Tradio Eclesistica Interpretao, o peso recai totalmente sobre a Escritura, sendo que o fazer teolgico depende justamente do modo correto de se aproximar dela. As trs regras para o correto fazer teolgico Lutero aproveita a ocasio do prefcio para expor a sua viso e prtica acerca da forma correta de se estudar teologia (WA 50, 658, 29-30). No ttulo, a expresso rechte Weise, forma correta ou certa, talvez melhor traduzida como adequada, isto , correspondente ao objeto de estudo. Do texto que se segue, tambm possvel

9 depreender que studirn, estudar no se refere apenas ao tempo de formao teolgica, mas diz respeito a todo labor teolgico ao longo da vida do telogo. Ele apresenta sua forma de estudar e fazer teologia em contraposio com outras formas, que ele julga inadequadas. Para apresentar o seu mtodo, Lutero extrai do Salmo 119 trs regras: Oratio, Meditatio, Tentatio (WA 50, 659, 1-4). Alguns detalhes deste pargrafo chamam a ateno: a) O uso do Salmo 119, o salmo de exaltao Palavra de Deus, demonstra que para Lutero o fazer teologia trabalho com e na Escritura. As regras so as formas corretas de se relacionar com ela. b) Cada um dos termos considerado uma regra, ou seja, um conjunto de princpios e procedimentos obrigatrios que configuram o modo apropriado para se interagir com a Bblia e, por conseguinte, de se fazer teologia. c) A exposio das regras sistemtica e obedece a uma estrutura comum. Cada regra apresentada e explicada em dois pargrafos. No final do texto, Lutero retoma o Salmo 119 e comprova que suas regras correspondem ao testemunho bblico. d) as regras Oratio, Meditatio, Tentatio esto escritas em maisculo e em latim em meio a um texto em lngua alem. Isto evidencia que Lutero as considerava termos tcnicos conhecidos por todos por serem oriundos da tradio espiritual e teolgica da igreja. Suas regras, portanto, esto postas em relao com esta tradio. Lutero, porm, modifica a seqncia cannica tpica para a teologia monstica que consistia em Lectio Meditatio Oratio Contemplatio, a metodologia da Lectio Divina, como vimos. No mtodo apresentado por Lutero, a Lectio assimilada pela Meditatio; a Oratio e a Meditatio invertem a ordem; e a Contemplatio parece ser substituda pela Tentatio. As implicaes teolgicas e prticas destas modificaes veremos a seguir na apresentao das regras sugeridas por Lutero. A ORATIO Em primeiro lugar, deves saber que a Escritura Sagrada um livro tal que converte a sabedoria de todos os outros livros em insensatez porque nenhum deles ensina sobre a vida eterna, a no ser ela. Por isso, imediatamente deves desanimar em teu entendimento e razo. Pois, com eles no a alcanars, mas com tal arrogncia lanars a ti mesmo e a outros do cu (como aconteceu com Lcifer) para o abismo do inferno. Mas ajoelha-te em tua cela e pede com humildade e seriedade honestas a Deus que ele, atravs de seu amado Filho, te d seu Esprito Santo para que te ilumine, dirija e te conceda entendimento. Como vs no Salmo acima mencionado [119] que Davi sempre pede: ensina-me, Senhor, instrui-me, dirige-me, mostra-me e muitas palavras como essas. E ele, mesmo conhecendo bem o texto de Moiss e outros livros mais, o ouvia e lia diariamente, mesmo assim ele quer para tal o verdadeiro mestre da Escritura para que no caia sobre ela com a razo e se torne seu mestre. Pois da que surgem os sectrios que em sua presuno pensam que a Escritura lhes est sujeita e compreendida facilmente com a razo, como se fosse uma fbula de Marcolfo ou Esopo, porque acreditam no necessitar do Esprito Santo e da orao. (WA 50, 659, 5-21) Lutero inicia com um louvor Bblia como sendo o nico livro capaz de nos ensinar sobre a vida eterna. Neste sentido, ela se diferencia de todos os outros livros cujo contedo acessvel razo humana. Ela presta-se para discernir questes terrenas e temporais, mas no serve para compreender o que se relaciona salvao eterna.

10 Motivo desta incapacidade o pecado que, segundo Romanos 1.21-22, tornou o raciocnio humano nulo e o corao humano obscurecido e insensato, culminando na afirmao: no h Deus (Salmo 14.1). Quando o assunto a salvao eterna, a sabedoria humana contida em todos os outros livros transformada em insensatez, em loucura pela Escritura (1 Corntios 1.20). A atitude arrogante de procurar alcanar o cu com a razo e o entendimento humano provoca o desastre: a queda no abismo do inferno. A polmica contra uma teologia especulativa que se vale apenas da capacidade racional contundente. Quem se aproxima da Escritura apenas a partir de sua capacidade intelectual e deseja interpreta-la a partir de paradigmas hermenuticos humanos nada consegue. A Escritura no se deixa sujeitar. O resultado a formulao de interpretaes equivocadas que resultam em cismas e seitas. E o caminho da vida eterna, a justificao do pecador, no revelado. arrogncia e presuno de querer tornar-se mestre da Escritura, sujeitando-a prpria razo, Lutero contrape uma atitude de humildade: ...Mas ajoelha-te em tua cela e pede com humildade e seriedade honestas a Deus que ele, atravs de seu amado Filho, te d seu Esprito Santo para que te ilumine, dirija e te conceda entendimento. J mencionamos que Lutero modificou a sequncia dos passos ou degraus da Teologia Monstica medieval. A inverso de Meditatio e Oratio, porm, expressa com maior clareza a convico monstica de que todos os passos da lectio divina so orao. Ela tem a funo de orao preparatria e epicltica, pedindo pela iluminao e direo do Esprito Santo no processo de meditao e interpretao da Escritura. Lutero expressa, assim, que a ateno amorosa com a qual nos dirigimos a Deus a raiz da meditao. O telogo o orante que com sua orao preparatria ingressa no espao da graa divina, espao no qual espera receber ddivas divinas e no qual seu ser integral, e no somente seu intelecto, ser exposto ao agir divino. O espao fsico onde acontece a Oratio tambm importante: a cela monstica, Kmmerlein. Aludindo a Mateus 6.6, trata-se de um cmodo no qual possvel passar um tempo em orao e meditao sem ser perturbado. Por isso, na tradio monstica, a cela era o lugar preferencial da ascese, do exerccio, na qual o monge passava o tempo reservado para a meditao da Escritura e leitura espiritual. sabido que Lutero em sua vida ps-monstica, preservou a ritmo monstico de orao e trabalho. Na parte da manh, havia um tempo de cerca de trs horas de orao e meditao preservado das perturbaes da agenda diria25 . Trata-se, portanto, do perodo mais apropriado para o estudo e a concentrao. A MEDITATIO Em segundo lugar, deves meditar, isto : no somente com o corao, mas tambm exteriormente, atravs da recitao oral e da palavra literal no livro, repetir e comparar, ler e reler com reflexo e ateno dedicada o que o Esprito Santo quer dizer com ela. E tome cuidado para que no te entedies ou penses que tendo uma ou duas vezes lido, ouvido ou dito j seja suficiente e entendes tudo completamente. Da no sair nenhum telogo especial, e eles so como as frutas prematuras que caem antes de estarem meio maduras.

Alm deste exerccio espiritual pessoal, a espiritualidade de Lutero tambm possua formas familiares e comunitrias que deu origem s nove formas tradicionais da espiritualidade luterana: o culto, os sacramentos batismo, confisso e santa ceia, a poimnica fraterna, o hino evanglico (hinrio), a leitura bblica, a orao (livros de oraes), o Catecismo Menor (doutrina elementar). Veja BUTZKE, Paulo. Espiritualidade. In: Dicionrio Brasileiro de Teologia. So Paulo: ASTE, 2008. p. 387-391.

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11 Por isso vs no mesmo Salmo como Davi sempre enaltece, queira ele falar, compor, declamar, cantar, ouvir, ler, dia e noite e sempre, mas nada seno a Palavra de Deus e os mandamentos. Pois Deus no quer te dar o seu Esprito sem a palavra externa, nisto podes te orientar, pois ele no te ordenou em vo escrever, pregar, ouvir, cantar, declamar etc exteriormente. (WA 50, 659, 22-35) A compreenso de Meditatio Em nosso texto, Lutero no explica o que ele entende por meditao. As poucas passagens sobre o tema em sua vasta obra, sugere que sua compreenso e sua prtica inseria-se no que era consensual na igreja de sua poca. Uma definio clara e precisa sobre sua compreenso de meditao encontramos na Preleo de 1513 sobre os Salmos, no comentrio do Salmo 1.2: meditari in lege Domini die ac nocte/Vulgata:26
Mesmo que os animais paream ter alguma imaginao e ponderao (imaginari et cogitari), a meditao caracterstica humana. Pois, sua fora est na reflexo racional. No entanto, meditao e reflexo so diferentes. Meditao reflexo perseverante, profunda e atenta. propriamente um ruminar no corao. Por isso, meditao significa, ao mesmo tempo, ir ao centro ou ser movido pelo centro ou pelo mais ntimo. Quem, portanto, no seu mago pondera, sonda e reflete, este medita.

Duas distines fundamentais chamam ateno: 1) Meditao atividade reflexiva, intelectual, que, no entanto, ocorre no mago do ser humano, ocorre no corao. Tratase, pois, de um transitar com o texto entre razo e corao; 2) Meditao um relacionamento intensivo com algo externo ao ser humano a Palavra da Escritura. A partir de Lutero, meditao sempre meditao da Escritura. As indicaes prticas para a Meditatio Voltemos ao texto de 1539. Nas poucas frases em que Lutero explica a Meditatio, observamos as indicaes para a prtica e a motivao teolgica. Ao modificar a seqncia tradicional da Teologia Monstica, ele inclui a Lectio na prpria Meditatio: deves meditar, isto : no somente com o corao, mas tambm exteriormente, atravs da recitao oral e da palavra literal no livro, repetir e comparar, ler e reler com reflexo e ateno dedicada o que o Esprito Santo quer dizer com ela. Ao propor a recitao oral das palavras do texto bblico, Lutero prope a ruminatio, assim como j foi descrita na prtica monstica. Ao descrever a meditao como repetio e comparao, o ler e reler, deixam claro que ele contava com o fenmeno da rememorao. Outro aspecto importante para a meditao ressaltado por Lutero que sua prtica deve ser contnua, regular, assdua27 . Trata-se, pois, de um exerccio asctico (do grego
o texto com as anotaes de Lutero para a preleo de 1513 encontra-se em WA 3, 19, 24-34; o mesmo texto revisado para publicao datado de 1516, encontra-se em WA 55 II 1, 11, 26-12,10 a traduo deste que oferecemos. 27 O carter do exerccio regular tambm ressaltado por Lutero quando ele prope a meditao do contedo do Catecismo: Quanto minha pessoa digo o seguinte: tambm sou doutor e pregador e, na verdade, to erudito e experiente quanto todos aqueles presunosos, seguros de si. Mesmo assim, procedo como uma criana a quem se ensina o catecismo: de manh, e sempre que tiver tempo, leio e repito, palavra por palavra, o Pai-Nosso, os Dez mandamentos, o Credo, alguns Salmos etc. Preciso continuar lendo e estudando diariamente, e ainda assim no me saio como gostaria, precisando continuar sendo criana e aluno do catecismo. E assim permaneo de bom grado. (...) Pois, (...) aqueles textos so proveitosos enquanto forem lidos diariamente, exercitados em pensamento e pronunciando as palavras.
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12 askein, exercitar) que exige disciplina e pacincia. Quem se aproxima do texto com pressa e se contenta com uma compreenso superficial, jamais chegar a ser um bom telogo. Aquele, porm, que com pacincia, diligncia e regularidade de dia e de noite e sempre aguarda o Esprito Santo falar atravs da palavra da Escritura poder vir a s-lo. O objetivo deste processo lento de sondagem da palavra literal da Escritura chegar percepo do que o Esprito Santo quer dizer com ela. Atravs de seu escrito Uma singela forma de orar para um bom amigo 28 (1535), dedicado ao seu amigo Pedro Barbeiro, possvel se ter uma viso mais clara da prtica meditativa de Lutero. Neste texto, ele apresenta o seu mtodo pessoal de meditao para textos do Catecismo (Mandamentos, Pai Nosso, Credo) e textos bblicos. Este mtodo29 , intitulado Coroazinha Qudrupla ou Trana de Quatro Cordes, consistia basicamente na meditao e orao do texto a partir de quatro perguntas aplicadas alternadamente ao texto: a) O que eu aprendo? (doctrina); b) pelo que tenho a agradecer? (gratiarum actio); c) o que tenho a confessar? (confessio) e d) pelo que quero pedir? (oratio). A meditao se d, portanto, pela alternncia entre reflexo cognitiva e orao, desembocando, se o Esprito Santo o conceder, na fala do prprio Deus. Neste momento devem silenciar os pensamentos e as oraes: Quando vem tais pensamentos ricos e bons, deve-se ... ouvi-los em silncio ... pois ali esta pregando o prprio Esprito Santo. E uma palavra de sua pregao melhor que mil oraes nossas. Assim ... aprendi mais em uma s orao do que poderia ter conseguido com muita leitura e reflexo.30 Aqui Lutero descreve a transio para a contemplao, na qual Deus se revela e o ser humano silencia. Contemplatio experincia passiva que depende unicamente da graa divina, jamais fruto de mtodos humanos.31 Motivao teolgica da Meditatio Ao relacionar reflexo interior com a palavra exterior da Escritura, Lutero tem uma inteno teolgica que ele expressa na frase: Pois Deus no quer te dar o seu Esprito sem a palavra externa (WA 50, 659, 32-33). Aqui nos confrontamos com uma das teses fundamentais da pneumatologia de Lutero: o Esprito Santo, em sua liberdade, decidiu agir atravs dos meios externos da Palavra da Escritura e dos Sacramentos. Contra os entusiastas de sua poca, ele acentua estes meios exteriores, apontando os perigos de uma revelao privada e subjetiva como algo no controlvel pela comunidade e fadada a desembocar em cismas e heresias. A palavra externa atravs da qual dado o Esprito Santo corresponde palavra literal. A referncia palavra literal remete a fundamentos da hermenutica de Lutero. A interpretao parte do seu sentido literal-histrico, sendo que os demais sentidos, o alegrico-espiritual, o moral-tropolgico e o anaggico-escatolgico, embora ainda utilizados, perdem sua importncia. O acento na palavra literal partia das teses hermenuticas fundamentais de que a) a palavra se interpreta a si mesma e b)
Pois o Esprito Santo est presente nesta leitura, neste falar e pensar. Ele sempre acrescenta uma nova luz, uma nova intuio, de modo que a gente acaba gostando e assimilando cada vez mais... LUTERO, Martinho. Catecismo Maior do Dr. Martinho Lutero. Trad. Walter Schlupp. So Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concrdia, 2012. p. 19. 28 LUTERO, Martinho. Uma forma singela de orar, para um bom amigo. In:_________. Obras Selecionadas. So Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concrdia, 1995. V. 5, p. 132-148. 29 Veja BUTZKE, Paulo Afonso. Aspectos de uma espiritualidade luterana para nossos dias. In: Estudos Teolgicos, v.43, n.2. p.117-120, 2003. 30 LUTERO, 1995. V. 5, p. 138. 31 Destarte fica claro porque Lutero, apesar de contar com a experincia mstica da contemplao, no a inclui nas regras do fazer teolgico.

13 que ela clarssima na sua funo de revelar a Cristo atravs do Evangelho. Assim, o sentido espiritual j est no literal. Consequncia que exegese e meditao no se excluem pelo contrrio. A exegese leva meditao e a meditao leva exegese. Por um lado, do trabalho exegtico com a gramtica, filologia, histria, etc, podem surgir discernimentos meditativos importantes. Por outro, do contnuo ler, reler e comparar da meditao pode-se chegar a discernimentos exegticos importantes. Essencial, no entanto, perceber que o Esprito Santo assume o papel de intrprete, no s das Escrituras, mas a partir dela, de toda minha existncia. A TENTATIO Em terceiro lugar, h a Tentatio, provao. Ela a pedra de toque, ela te ensina no somente saber e compreender, mas tambm a experimentar quo justa e verdadeira, doce, agradvel, poderosa, consoladora a Palavra de Deus, sabedoria sobre toda sabedoria. Neste sentido, vs que Davi no mencionado Salmo muitas vezes lamenta acerca de todo tipo de inimigo, prncipes e tiranos sacrlegos, acerca de espritos enganadores e sectrios, que ele tem que sofrer pelo fato de meditar, isto : relacionar-se com a Palavra de Deus (como foi dito) de diferentes formas. Pois assim que a Palavra de Deus brilhar atravs de ti, o diabo ir te fustigar e fazer de ti verdadeiro doutor e atravs de suas provaes te ensinar a procurar e amar a Palavra de Deus. Pois eu mesmo tenho muito a agradecer a meus papistas que eles, atravs dos ataques do diabo me atingiram, ameaaram e amedrontaram de tal maneira que me tornei um telogo relativamente bom, que de outro jeito no teria me tornado. E no que diz respeito ao que lucraram comigo, lhes concedo de corao honra, vitria e triunfo, pois assim eles o quiseram. (WA 50, 660, 1-16) A Tentatio ocupa o lugar onde tradicionalmente estava a Contemplatio, o ponto alto do exerccio espiritual, a experincia do saborear a presena e o encontro com Deus. Ao modificar a tradio, Lutero afirma que a experincia da presena e do encontro com Deus se d na Tentatio, na provao. Como compreender isto? No h como negar: quem medita, sofre. Lutero se v na situao do salmista e denomina concretamente seus inimigos: prncipes e tiranos sacrlegos e espritos enganadores e sectrios. Por um lado, portanto, esto os entusiastas, os evanglicos radicais, e por outro, o Papa romano e seus seguidores como o Rei Ferdinando, o Duque Jorge da Saxnia ou o Duque Henrique de Braunschweig. Todos impedem o livre curso do Evangelho. Ao falar de Tentatio, provao, Lutero no se volta primeiramente para as questes interiores que afligem a alma, mas para o exterior, para o que aflige o ser humano, a sociedade e o Reino de Deus. Perceber estruturas sociais e polticas como anti-divinas fruto da Meditatio: assim que a Palavra de Deus brilhar atravs de ti, o diabo ir te fustigar, atravs do discernimento da situao social e poltica e do sofrimento de algum atingido existencialmente. Quem medita a Palavra colocado atravs dela no horizonte da histria da salvao, em meio a acontecimentos escatolgicos e apocalpticos. Por isso, a meditao no acontecimento privado, particular acontecimento pblico e universal. Por tudo isso, o que acontece na meditao, no pode ser resumido ao saber e compreender trata-se de experincia com a Palavra de Deus, de que ela ... justa e verdadeira, doce, agradvel, poderosa, consoladora ... sabedoria sobre toda sabedoria (WA 50 660, 2-4). Interessante que Lutero utiliza termos tpicos com os quais a tradio da mstica crist descrevia o que ocorria na Contemplatio. Esta

14 experincia, porm, no se d mais no silncio do mosteiro, mas no dia-a-dia da vida social, profissional e familiar do cristo que medita e vive a Palavra de Deus. Em outras palavras: o cristo est continuamente exposto Tentatio. E justamente ela a pedra de toque, ou seja, a aferio com a qual possvel avaliar a qualidade da Palavra de Deus. Assim, a Tentatio no serve para avaliar e provar a f do ser humano, mas o poder da Palavra justamente em situaes de tentao e provao.32 Por isso, quem medita sofre esta experincia com a Palavra como uma experincia passiva, paralela justia passiva que justifica o pecador pela graa divina. Esta experincia que me impacta integralmente, pois, no qualquer experincia a experincia com a Palavra de Deus. Esta passividade tambm compreende o fato de que no sou eu que interpreto a Palavra com instrumentos e mtodos teolgicos mas ela que interpreta minha vida e a situao do mundo. Teologia, neste sentido, o exerccio passivo de permitir que o autor da Escritura julgue minha vida, atingindo- me pela sua palavra como lei e como evangelho, ou seja, mostrando meu pecado e perdio e revelando-me Cristo e sua obra salvfica. Neste sentido, a Tentatio tambm lembra que teologia no sentido evanglico sempre teologia da cruz, que o escndalo da cruz (Gl 5.11)) no cessou e que trazemos as marcas de Jesus (Gl 6.17) em nossa vida. Tentar evitar a Tentatio e a cruz pode, assim, significar tornar-se inimigo da cruz de Cristo (Fl 3.18). A concluso do prefcio Aps discorrer sobre as trs regras, Lutero volta ao assunto que deu origem ao seu escrito: a publicao de seus livros. Se as trs regras forem praticadas, o resultado ser a valorizao da Palavra de Deus acima de todos os outros escritos, tanto os da tradio quanto os dos inimigos e tambm os prprios: No irs desprezar somente os livros dos teus adversrios, mas tambm os teus prprios, no escrever e no ensinar, quanto mais tempo, menos os apreciars. Se tu chegaste at aqui, ento espere consolado que comeaste a te tornar um verdadeiro telogo (WA 50, 660, 24-26), apto para ser mestre da igreja de Cristo. Quem, ao contrrio, atravs de obras teolgicas, busca honra prpria desafiado por Lutero: ...pega nas tuas orelhas e se pegaste direito irs encontrar um par de grandes, compridas e speras orelhas de burro. Se quiseres, podes adorn-las com guizos para que, onde quer que andares, sejas ouvido e te apontem o dedo e digam: vejam, vejam, a vai o animal requintado que sabe escrever livros excelentes e pregar de forma brilhante (WA 50, 660, 35ss). Por ter a Escritura como objeto de estudo, cabe ao telogo humildade e ao autor da Escritura, o prprio Deus pertence toda a honra. Teologia e Espiritualidade Desenvolvimento histrico A partir do exposto, depreendemos que, para Lutero, teologia a reflexo e a expresso do relacionamento com Deus possibilitado pelo Esprito Santo que, valendo-se prioritariamente da meditao orante da Escritura, leva o ser humano experincia da f em meio s ambiguidades da vida. Assim, teologia acontece em meio prtica da espiritualidade e de suas formas tradicionais (orao, meditao da Escritura, culto, sacramentos etc). Para definir o relacionamento adequado de teologia e espiritualidade importante observar que Lutero, no obstante sua veemente crtica ao carter meritrio
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BAYER, 1994. p. 101.

15 da ascese monstica, ele continuou a praticar, ao longo de toda sua vida, as formas e os exerccios aprendidos no tempo de seu noviciado. No entanto, a partir de sua nova viso teolgica determinada pela compreenso da justificao por graa e f, ele liberta as formas e os exerccios da tradio espiritual, posicionando-os no horizonte da liberdade crist. Alm disso, atravs de muitos escritos especficos, os disponibilizou a todos os cristos para que sustentassem a vivncia de seu sacerdcio em meio vida cotidiana. Nos anos que se seguiram Reforma, apesar das disputas em torno da pureza da nova doutrina, tpicas para o tempo da Ortodoxia, a relao construtiva entre teologia e espiritualidade, constatada especialmente na centralidade da Escritura e seu uso espiritual a partir das regras Oratio Meditatio Tentatio estabelecidas por Lutero, permaneceu inalterada. Os grandes telogos luteranos desta poca - um exemplo tpico Johann Gerhardt (1582-1637) - conseguiam unir o labor teolgico cientfico, publicando obras teolgicas relevantes, e a preocupao com a espiritualidade, publicando tambm obras voltadas para a prtica da f. No momento em que a teologia luterana passa a ser absorvida por disputas teolgicas internas, a relao com a espiritualidade se retrai. Assim, o dficit de espiritualidade na teologia protestante inicia j no sculo XVII, em virtude do estabelecimento de uma mentalidade tipicamente luterana de disputa e controvrsia33 . Sem respaldo teolgico, a espiritualidade exila-se na piedade pessoal que, paulatinamente, vai perdendo a noo dos exerccios que ligavam a praxis pietatis Escritura, abandonados tambm em virtude de um anti-catolicismo crescente. O Pietismo surgiu como movimento de renovao teolgica e eclesistica no final do sculo XVII. A vertente luterana tinha como preocupao central a vivncia da espiritualidade crist baseada na Palavra de Deus. Phillip Jakob Spener, August Hermann Francke, Johann Albrecht Bengel e Gerhard Tersteegen, apenas para citar alguns dos representantes principais, sugerem a reforma do estudo da teologia baseada no aprendizado e na vivncia das formas elementares da praxis pietatis luterana, especialmente a introduo s regras de Lutero acerca do correto fazer teolgico, oratio meditatio tentatio.34 Para os petistas luteranos permanecia vlido o axioma de Lutero: A orao, a meditao e a provao so as trs partes que fazem o verdadeiro telogo35 . Enquanto isso, nas universidades, o distanciamento entre teologia e espiritualidade torna-se rompimento definitivo quando a razo passa a ser o nico fundamento de toda cincia, inclusive da teologia. Segundo Hugo Grotius, o direito natural deveria valer etsi deus non daretur como se Deus no existisse36 . Este axioma atesta passa a ser fundamento de todos os mtodos cientficos. Consequncia foi a adoo da metodologia atesta tambm na teologia, especialmente na exegese. Observa-se, igualmente, grande otimismo quanto ao desenvolvimento cultural. A teologia liberal,
RUHBACH, Gerhard. Theologie und Spiritualitt. Gttingen: Vandenhoeck und Ruprecht, 1987. p. 153 34 BAYER, Oswald. Lutherischer Pietismus. Oratio, Meditatio, Tentatio bei Ausgust Herrmann Francke. In: BEUTEL, Albrecht; RIEGER, Reinhold. Religise Erfahrung und wissenschaftliche Theologie. Festschrift fr Ulrich Kpf. Tbingen : Mohr Siebeck, 2011. p. 1-12. 35 FRANCKE, August Hermann. Einfltiger Unterricht, Wie man die Heilige Schrift zu seiner wahren Erbauung lesen solle. Halle, 1731. p. 18-19. Disponvel em: http://digitale.bibliothek.uni-halle.de/ id/3276322. Acesso em: 30.01.2013. Este escrito, simples e direto, dirigia-se a leigos interessados em meditar a Escritura. J o escrito Methodus Studii Theologici oferece a mesma introduo a telogos profissionais. Chama ateno que a apresentao da meditatio ocupa 162 pginas da obra. Espiritualidade e Teologia continuavam unidos. 36 Citado por ZIMMERLING, Peter. Evangelische Spiritualitt. Wurzeln und Zugnge. Gttingen: Vandenhoeck und Ruprecht, 2003. p. 17.
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16 inclusive, via no desenvolvimento da cultura a chegada do reino de Deus. Para a maioria dos telogos protestantes, a espiritualidade e a mstica eram fenmenos tipicamente catlicos e diametralmente contrrios f protestante, cuja caracterstica maior era a concentrao na tica. A reao barthiana e sua teologia dialtica aprofundou o preconceito. Dietrich Bonhoeffer e a experincia em Finkenwalde Uma luz nesta escurido foi acesa por Dietrich Bonhoeffer que, na formao teolgica ilegal no Seminrio da Igreja Confessante em Finkenwalde,37 do qual era diretor, tentou novamente ligar teologia e espiritualidade a partir do estudo de teologia e da vida em comunho38 dos estudantes. Uma carta datada de 19.09.1936 e endereada justamente a Karl Barth39 , ainda pode nos inspirar hoje:
O trabalho no Seminrio me traz muita alegria. Trabalho cientfico e trabalho prtico esto muito bem interligados. Penso que, no geral, as mesmas perguntas que me movem h algum tempo tambm so feitas pelos jovens telogos que vem ao Seminrio... No fazemos ideia de quo vazios, quo exauridos a maioria dos irmos chega ao Seminrio. Vazios tanto no que diz respeito aos conhecimentos teolgicos e especialmente aos conhecimentos bblicos, quanto tambm em relao sua vida pessoal. Em uma reunio a nica na qual participei voc, estimado Professor, falou seriamente aos estudantes sobre sua disposio de, por vezes, deixar de lado todas as prelees e, invs disso, visitar cada estudante em sua moradia e perguntar-lhe, como o velho Tholuck: como est a tua alma? Esta dificuldade at agora no est sanada, tambm no pela Igreja Confessante. H muito poucos que reconhecem esta tarefa junto aos jovens estudantes como uma tarefa eclesistica e se desincumbem dela. Na verdade, porm, todos esperam por isso. Eu no sei ao certo como faz-lo, mas eu indico o cuidado mtuo dos irmos, e isto me parece ser o mais importante. Certo que tanto o trabalho teolgico quanto uma real comunho fraterna s pode se desenvolver atravs de uma vida (comunitria) determinada pela concentrao matutina e vespertina em torno da Palavra e pelo tempo estritamente reservado orao... A acusao que isto seja legalismo no me atinge. O que h de legalismo no fato de um cristo desejar aprender o que orao e investe boa parte de seu tempo neste aprendizado? Recentemente, um dos principais lderes da Igreja Confessante me disse: para a meditao ns agora no temos tempo, os candidatos deveriam aprender a pregar e a catequisar. Ora, isto total desconhecimento da realidade do atual estudante de teologia e desconhecimento infame de como se prepara uma prdica ou uma catequese. As perguntas que hoje nos so feitas como toda seriedade pelo jovens telogos so: como apendo a orar? Como aprendo a ler a Escritura? Ou ns conseguimos auxililos nisto ou no conseguiremos auxilia-los de nenhuma maneira. No possvel pressupor nada! E dizer que se algum no sabe isto ento no deveria querer ser telogo, significaria excluir a maioria desta profisso. Que estas questes somente tem o seu direito quando, paralelamente, ao mesmo tempo! realmente se faz trabalho teolgico, exegtico e dogmtico srio, me perfeitamente claro. Seno todas estas questes
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Esteve em atividade de 1935 a 1039, quando foi fechado pela Gestapo, polcia nazista. Bonhoeffer relata a experincia feita em seu escrito Vida em Comunho (BONHOEFFER, Dietrich. Vida em comunho. 3. ed. revisada So Leopoldo: Sinodal, 1997. 95 p. Outro fruto das prelees em Finkenwalde o livro Discipulado (BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado. So Leopoldo: Sinodal, 1980. 196 p.). As duas obras so complementares e testemunham a unidade entre teologia e espiritualidade na obra de Bonhoeffer. 39 Barth havia expressado incompreenso para a tentativa de Bonhoeffer de introduzir os estudantes de teologia na vida espiritual, especialmente na meditao da Escritura, percebendo na experincia um indefinvel cheiro monstico veja: BONHOEFFER, Dietrich. Illegale Theologen-Ausbildung: Finkenwalde 1935-1937. Mnchen: Chr.Kaiser Verlag, 1996. p. 249-253.

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receberiam um falso direcionamento. Mas, por nada neste mundo vou me fazer de surdo a estas perguntas, este meu objetivo!40

Algumas ponderaes finais Lutero precisa ser redescoberto como modelo de integrao entre Teologia Monstica e Teologia Escolstica, ou seja, acadmica. Alm de sistematizar e citar Lutero referente s diferentes loci teolgicos, a teologia necessita redescobrir suas regras acerca do correto fazer teolgico, ou seja, redescobrir o seu mtodo de fazer teologia. Como dito acima, uma teologia acadmica centrada na apreenso racional da realidade no consegue responder aos mltiplos e complexos desafios existenciais, sociais, culturais e polticos de nosso tempo. Necessita buscar a relao construtiva com a Teologia Monstica para gerar discernimentos teolgicos relevantes, posicionamentos ticos pertinentes e atuao promotora da vida. Isto no significa misturar os mtodos ou dilulos, mas valoriz- los e correlacion- los de forma adequada. A redescoberta da Teologia Monstica nos dar a oportunidade de manter unidas a teologia do corao e a teologia da razo, espiritualidade e trabalho cientfico. Se a cincia teolgica deseja ser, ao mesmo tempo, cincia e teologia, mantendo unidos o amor a Deus e sua compreenso intelectual41 , ento deve encontrar meios de relacionar construtivamente disputatio e meditatio. Manter apenas a disputatio leva a teologia para um cientificismo estril, vazio, desconectado da realidade, distante de sua origem e alvo: o Deus da vida e da histria. A redescoberta da Teologia Monstica, igualmente, nos dar oportunidade de valorizar a categoria da experincia, to importante para ela. O telogo monstico vive uma experincia responsorial - de conhecimento de Deus e de conhecimento de si mesmo e do mundo - mediado pelo relacionamento intensivo com a Escritura. Alis, a redescoberta da Teologia Monstica recolocar a Escritura no centro da teologia e da espiritualidade, o ganho maior deste processo. Da mesma forma, ser necessrio recuperar no estudo da teologia a iniciao s disciplinas e formas elementares da tradio espiritual da igreja crist especialmente, a orao e a meditao da Escritura, conforme vimos. At a dissoluo completa do binmio teologia-espiritualidade, ocorrida nos sculos XVIII e XIX, esta funo mistaggica era realizada pela disciplina da Ascese Evanglica 42 , presente nos currculos das faculdades de teologia protestantes. Hoje, em tempos nos quais a socializao religiosa praticamente inexistente, esta iniciao s formas e exerccios da tradio espiritual vital para o futuro da igreja e da misso. Por isso, ao lado da formao acadmica e da formao pastoral, deve haver
BONHOEFFER, 1996, p. 236-238. Neste contexto importante lembrar que a ortodoxia luterana distinguiu (sem separar!) entre as duas dimenses da f. Por um lado, h a dimenso subjetiva, o ato existencial da f (fides qua creditur), que se expressa na confiana, consagrao, entrega da vida a Deus como converso pessoal diria. Por outro, h a dimenso objetiva, a adeso aos contedos da f e sua reflexo racional (fides quae creditur). Ambos aspectos constituem a f crist. Sempre que foram separados, a espiritualidade, a vivncia da f, sofreu prejuzo. 42 Defino a disciplina teolgica da Ascese Evanglica como uma sub-disciplina da Teologia Prtica que se ocupa com a vida de f e suas diferentes formas histricas, oferecendo formao espiritual no mbito do estudo da teologia. Veja a histria desta disciplina bem como seu atual renascimento em RASCHZOK, Klaus. Evangelische Aszetik. Zur Wiederentdeckung einer Disziplin der akademischen Praktischen Theologie und ihrer Forschungs- und Lehrgestalt. In: KUNZ, Ralph; KOHLI RICHENBACH, Claudia (Org.). Spiritualitt im Diskurs. Spiritualittsforschung in theologischer Perspektive. Zrich: TVZ, 2012. p. 13-36.
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18 espao para a formao espiritual, visando, alm da competncia teolgica e da competncia prtica, a competncia espiritual43 . Mas, juntamente com Bonhoeffer, preciso deixar claro: No o isolamento no monastrio, mas profunda concentrao para o servio ao mundo o objetivo44 .

A competncia espiritual esperada deveria contemplar: a capacidade de refletir e compreender a prpria biografia espiritual como teografia; a capacidade de dar forma prpria vida de f atravs da prtica dos exerccios e formas elementares da tradio espiritual crist; a capacidade didtica e mistaggica de introduzir pessoas nas formas elementares da espiritualidade crist; a capacidade de acompanhar pessoas em sua biografia espiritual; a capacidade de discernir teologicamente concepes e ofertas advindas do mercado religioso atual e orientar a comunidade de f com segurana. 44 BONHOEFFER, 1996, p. 77.

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