2012 CesarHenriquedaRochaArrais
2012 CesarHenriquedaRochaArrais
2012 CesarHenriquedaRochaArrais
Faculdade de Comunicao
Programa de Ps-Graduo em Comunicao
Csar Henrique R. Arrais
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e
Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Dissertao a ser defendida no dia 09 de maro de 2012
como requisito para obteno do Grau de Mestre em
Comunicao e Sociedade.
Orientadora: Profa. Dra. Selma Regina Nunes Oliveira
Braslia
2012
Para Belle.
Pelo amor, companheirismo, motivao e pacincia.
E para o Kurt tambm.
Pela alegria gratuita.
Para Belle.
Pelo amor, companheirismo, motivao e pacincia.
E para o Kurt tambm.
Pela alegria gratuita.
4
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
AGRADECIMENTOS
A
gradeo aos meus pais, Ivaniza e Luiz, pelo incentivo de sempre. Aos meus irmos, Alessandra e
Alan, por compartilhar conhecimentos e experincias. Tambm aos meus sogros, Joo e Regina, aos
meus cunhados e aos meus sobrinhos, que nunca deixaram de me motivar.
Sou muito grato pacincia e ateno da minha orientadora Selma Regina, bem como dos outros pro-
fessores que sempre estiveram dispostos a me ajudar: Tnia Montoro, Luis Martino, Susana Dobal, Lavina
Ribeiro, Sara Almarza, Gustavo Castro, Joo Lanari. Alm dos mestres e amigos Mauro Guitini e Ciro Mar-
condes, com seus toques sinceros e preciosos. No posso esquecer dos funcionrios da PPG-FAC e do chefe
de Servio de Registros de Ps-Graduo, Dinuar da Rocha, que foram muito atenciosos para com minhas
inmeras demandas.
Tambm agradeo ao meu chefe e amigo Hussein Ali Kalout, que, alm de dividir seu vasto conhecimento
acerca das questes do Oriente Mdio, viabilizou a licena capacitao que foi imprescindvel para que esta
dissertao fosse finalizada.
Agradecimento especial ao diretor de programao da Cinemateca de Tel Aviv, Pinchas Schatz, ao chefe
de pesquisa da Cinemateca de Jerusalm, Costel Safirman, e gerente de Cinema Israelense da mesma ins-
tituio, Nirit Eidelman, por me ajudarem a entender melhor a funo do cinema no Estado Judeu e pelas
indicaes de filmes e livros. Tambm no posso esquecer das atenciosas bibliotecrias que me atenderam na
Universidade de Tel Aviv.
Minha gratido a Leonardo Moreira, Ana Ceclia Langruber, Tatiana Lasneaux, Thiago Subtil e Daniele
Marinho pela ajuda na manuteno da minha sanidade fsica e mental.
Por ltimo tenho de expressar minha gratido para com meus queridos amigos Guga, Mariana, Otto, Ana
Rita, Felipe, Pezo, Rodrigo, Krishna, Beto, Andra, Scheila, Lampreia, Flvia, e, em especial, as amicssimas
Al Barreto e Thaisinha Farias que muito me ajudaram no acabamento do trabalho.
Ns gostamos da no-fco porque vivemos
em tempos fctcios
Michael Moore
Ns gostamos da no-fco porque vivemos
em tempos fctcios
Michael Moore
6
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
RESUMO
Uma reflexo acerca da linguagem e das estratgias narrativas no cinema documentrio contemporneo o
objetivo deste projeto de pesquisa. A investigao realizada a partir da anlise do filme israelense Valsa com
Bashir (2008), que se tornou um marco na histria da no-fico ao radicalizar tendncias que h dcadas vi-
nham se constituindo de forma marginal aos postulados clssicos dessa cinematografia, encarnados, sobretudo,
no estilo cinema direto e cinma vrit. A obra do diretor Ari Folman prope um mergulho na memria de seus
personagens, construindo-se a partir de suas subjetividades. Consegue, assim, trazer para o discurso realista
caracterstico do documentrio elementos pouco usuais como sonhos, alucinaes e reminiscncias carregadas
de traumas e culpas. Mais que isso, Valsa com Bashir d vida a tais elementos intangveis, representando-os
na realidade imagtica por meio da tcnica da animao, estruturando uma histria em que o mundo ftico
e o mundo da imaginao misturam-se e revezam-se de forma catica. Tudo isso tendo como pano de fundo
um dos mais infames episdios das seis dcadas de embate entre israelenses e palestinos na Terra Santa: o
massacre de Sabra e Chatila durante a Guerra do Lbano em 1982. Ao expor a dor dos ex-combatentes e ao re-
conhecer a tragdia palestina, Valsa com Bashir aproxima-se de parte expressiva da cinematografia produzida
atualmente em Israel, que caracteriza-se por apresentar vises alternativas acerca do conflito.
Palavras-Chave:
Documentrio Memria Subjetividade Animao Israel/Palestina
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Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
ABSTRACT
A reflection about the language and the narrative strategies of the contemporary documentary cinema is
the purpose of this project. The research is carried out from the analysis of the Israeli full-length film Waltz
with Bashir (2008), which became a milestone in the nonfiction history by radicalizing tendencies which had
been constituted on the borderline of the classical postulates of the nonfiction cinematography for decades,
embodied, especially, in styles like the direct cinema and the cinma vrit. The film directed by Ari Folman
comes up with an excursion throughout the depths of characters memories, building up its storyline through
their subjectivities. Thereby, it brings unusual elements like dreams, hallucinations and recollections replete of
trauma and guilt to the documentarys realistic discourse. More than that, Waltz with Bashir gives life to these
intangible elements, depicting it on the imagery reality through animation techniques, structuring a story where
the factual world and the imaginary one mix and switch among themselves chaotically. All this considering as
background one of the most infamous episodes of the six decades of clashes between Israelis and Palestinians
in the Holy Land: the massacre of Sabra and Chatila during the Lebanon War in 1982. By exposing the former
soldiers pain and recognizing the Palestinian tragedy, Waltz with Bashir approaches to significant part of the
current cinematography produced in Israel, characterized by presenting alternative points of view about the
Israel-Palestine conflict.
Key-Words:
Documentary Memory Subjectivity Animation Israel/Palestine
10
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
SUMRIO
Introduo ...................................................................................................................... 10
Roteiro Metodolgico .................................................................................................... 16
Documentrio: Um Conceito em Aberto ........................................................................ 21
Documentrio x Fico .................................................................................................. 26
Realismo e Imagem Fotogrfica .................................................................................... 35
A Subjetividade Invade o Realismo ............................................................................... 47
A Animao no Documentrio ....................................................................................... 65
Valsa com Bashir e a Simbiose Animao-Subjetividade .............................................. 74
Trauma, Culpa e Redeno: o Novo Cinema Israelense ................................................ 95
Consideraes Finais .................................................................................................... 123
Bibliografia .................................................................................................................. 129
Anexo: Sequncias de Valsa com Bashir ..................................................................... 142
INTRODUO
12
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
uma tragdia de nossos dois povos. Como posso explicar no meu in-
gls pobre? Creio que os rabes tm os mesmos direitos que os judeus
e creio que uma tragdia da histria um povo que refugiado fazer
novos refugiados. No tenho nada contra os rabes... eles so iguais
a ns. Eu desconheo que ns, judeus, tenhamos causado esta tragdia
mas aconteceu.
Shlomo Green, judeu refugiado dos nazistas, ao saber que sua casa
em Israel fora tomada de uma famlia palestina em 1948.1
2 Apud Fisk, 2007: 41.
Folman em seu sonho alusivo ao massacre de Sabra e Chatila em 1982.
13
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
O
trauma, o esquecimento, a recordao. No necessariamente na ordem apresentada, so esses trs
fenmenos fisiolgicos e existenciais, conexos ao funcionamento da memria humana, que so
representados e norteiam a histria contada no documentrio Valsa com Bashir (Ari Folman, Israel,
2008, 86 min). A obra, que ganhou repercusso internacional ao abrir a mostra competitiva do Festival de
Cannes de 2008, ganhar o Globo de Ouro de Melhor Filme em Lngua Estrangeira em 2009, e ser indicado ao
Oscar nas mesmas categoria e ano, o corpus dessa investigao que almeja exprimir uma reflexo acerca do
cinema documentrio na contemporaneidade.
O filme retrata a saga do diretor e protagonista Ari Folman em busca das memrias desaparecidas de sua
mente sobre a primeira Guerra do Lbano. O conflito foi iniciado em 1982 com a invaso do Exrcito israelen-
se ao pas vizinho com o objetivo de neutralizar o poderio blico da Organizao pela Libertao da Palestina
(OLP), que l mantinha clandestinamente sua base de operaes comanda pelo cone mor da causa dos rabes
aptridas, o egpcio Yasser Arafat.
Oficialmente finalizada em 1985, alm de conturbar a tnue organizao scio-politica do Lbano, onde
diferentes faces religiosas e tnicas vivem sob tenso, e de destruir parte expressiva da infra-estrutura do
pas, a guerra ficou marcada por conta de um macabro episdio intimamente relacionado ao bloqueio mental
vivenciado por Ari Folman ento um jovem soldado de 19 anos.
O tal episdio inicia-se em meio aos conflitos, quando Bashir Geymael, em 19 de agosto daquele ano, foi
eleito presidente do Lbano. Bashir era filho de Pierre Geymael, histrica figura da poltica nacional, funda-
dor das Falanges Libanesas, em 1936 quando o pas estava sobre controle da Frana. Criada sob inspirao
da organizao do partido Nazista na Alemanha, as falanges funcionavam como uma milcia composta, na
maioria, de cristos maronitas grupo tnico-religioso de grande poder econmico e de tendncia poltica
de extrema-direita, que vivia s turras com mulumanos sunitas, xiitas, drusos, armnios, srios e refugiados
palestinos (Fisk, 2007: 107 -109)
Aliados s foras invasoras israelenses, os cristos maronitas sofreram um abalo inesperado quando seu
jovem e aclamado lder, ento com 35 anos de idade, morreu num atentado bomba na sede das Falanges no
bairro de Achrafieh, distrito cristo de Beirute, menos de um ms aps ser eleito, em 14 de setembro. A fria
pelo assassinato foi imediata e incontrolvel, e a sede de vingana recaiu contra os rivais de Israel na guerra:
os palestinos.
A morte de Bashir foi atribuda OLP, mas a revanche foi consumada em dois dos smbolos do exlio pa-
lestino desde a Nakba catstrofe, referente vitria de Israel na Guerra da Independncia (1948-9)- : os
campos de refugiados de Sabra e Chatila. Os milicianos cristos maronitas, com armamentos e uniformes is-
raelenses, alm do apoio ostensivo dos aliados, invadiram a rea e protagonizaram um espetculo de horrores.
Foram dois dias de carnificina, 16 e 17 de setembro, sob os olhos coniventes do exrcito de Israel.
Execues sumrias de famlias inteiras, estupros e torturas. A populao da rea, composta de refugiados
sem atuao guerrilheira junto OLP, foi sadicamente atacada. Mulheres, grvidas, idosos e crianas. Nin-
gum foi poupado, conforme pode-se conferir nos 114 segundos finais de Valsa com Bashir. As estimativas de
mortos variam de 800 at 3,5 mil pessoas. A Assemblia Geral das Naes Unidas (ONU) classificou o massa-
14
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
cre como um ato de genocdio
1
. Nunca foram esclarecidas as condies do assassinato de Bashir Geymael,
tampouco apontado os reais responsveis.
Foi por presenciar e apoiar o massacre, lanando sinalizadores cor laranja que iluminavam as noites em que
os milicianos cometiam os assassinatos, que Ari Folman bloqueou suas memrias. Memrias estas j povoa-
das, desde os 6 anos de idade, pelas histrias de um genocdio de magnitude bem mais expressiva, o Holocaus-
to - afinal seus pais eram sobreviventes do infame campo de concentrao de Auschwitz.
E a partir desse contexto que constri-se a narrativa de Valsa com Bashir. Focada nos fenmenos da me-
mria, e tendo o massacre de Sabra e Chatila e, consequentemente, o conflito Israel-Palestina como pano
de fundo, a histria mostra como Folman vai em busca da memria coletiva para efetivar sua recordao. O
diretor-protagonista recorre orientao de especialistas o psiclogo e amigo Ori Sivan e a catedrtica em
estresse ps-traumtico, Zahava Solomon , ao relato de ex-companheiros de guerra Carmi Caan, Boaz
Rein, Shmel Frenkel -, a um ex-soldado selecionado pela produo dentre outros cem Ronny Dayag -, a seu
comandante durante o massacre Dror Harazi -, e ao jornalista Ron Ben Yshai, que cobriu a guerra do Lbano
in loco e chegou a Sabra e Chatila logo aps o massacre.
Se os elementos apresentados j seriam suficientes para fazer de Valsa com Bashir motivo de uma inves-
tigao acadmica, outras so as caractersticas da obra que instigaram a realizao deste projeto. A primeira
delas o fato de a narrativa der sido quase que inteiramente construda com base na subjetividade dos perso-
nagens. parte as explicaes mais didticas dos especialistas, todos os demais relatos so focados nas remi-
niscncias, muitas vezes desconexas, nas emoes e nas alucinaes. Sem contar os dois sonhos, inicialmente
de Boaz Rein e, depois, do prprio Folman, que compem a mola-mestra do enredo da obra.
Para o cinema documentrio, uma linguagem historicamente caracterizada pela objetividade e pela misso
de apresentar a realidade de uma maneira fidedigna, altamente subversiva a iniciativa de estruturar uma
histria baseada nas imprecises, paranias e viagens das mentes dos personagens. O mais surpreendente
que os elementos da subjetividade ganham vida, so representados com toda sua carga de onirismo em Valsa
com Bashir.
E a maneira escolhida pela equipe do filme para trazer realidade imagtica aquilo que se passava na ca-
bea dos personagens uma afronta ainda maior aos cnones do documentrio. Foi a animao, aquele tipo de
imagem completamente construda que a anttese da transparncia realista da imagem fotogrfica. Embora
utilizada h tempos enquanto acessrio nas narrativas no-ficcionais, realizar um documentrio em longa-
-metragem praticamente todo animado foi a ousadia maior de Valsa com Bashir, uma radicalizao de uma
tendncia que vinha aos poucos se afirmando desde anos 1990 mas que tambm encontra antepassados nos
primrdios da histria do cinema.
Essa simbiose entre narrativa subjetiva e linguagem animada permitiu que Valsa com Bashir criasse uma
histria na qual o espectador imerso num ambiente surreal, no qual a realidade ftica e o onirismo da mem-
ria entrelaam-se e revezam-se de uma maneira catica, jamais vista antes na no-fico. Ao mesmo tempo,
pode-se observar na obra elementos clssicos da linguagem documental, como o uso de narrao expositiva a
Voz de Deus da qual fala Bill Nichols (2005:53) -, as reencenaes estilo docudrama, as entrevistas com e
1 Resoluo A/RS/37/123 da Assemblia Geral das Naes Unidas, A Situao no Oriente Mdio, de 16 de dezembro de 1982. Texto
disponvel em HTTP://www.un.org/documents/ga/res/37/a37r123.htm.
15
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
sem a interveno direta do diretor-protagonista, e a utilizao de uma sequncia de imagens de arquivo que
acaba sendo crucial para o desfecho da narrativa.
No toa a dificuldade de crticos, acadmicos e jurados de festivais em categorizar o filme israelense.
Emblemtica nesse sentido a declarao do cineasta norte-americano Brett Morgen, autor do documentrio
com animao Chicago 10 e membro da Seo de Documentrios da Academy of Motion Pictures Arts and
Sciences. Morgen, convidado para participar da seleo de documentrios para um festival, recebeu instrues
que admitiam o uso de animaes e reencenaes, com a ressalva de que os membros do comit organizador
sentiriam-se livres para eliminar filmes no caso do uso excessivo desses artifcios
2
(Apud Adams, 2009: 24).
Morgen, embora concorde que a incluso de animaes torne mais complicada as categorizaes, achou
absurdas as instrues do comit do festival. Eles te obrigavam a fazer uma lista de quantos minutos eram de
animao e reencenao, e explicar cada uma de suas funes. (...) Isso ridculo
3
(Ibdem). Certamente Valsa
com Bashir teria extrema dificuldade em passar por tal crivo.
Ao optar pela animao e o foco na subjetividade, Folman deliberadamente bateu de frente com a longa
tradio do cinema documentrio que privilegiava a objetividade das narrativas e a fidelidades das histrias
apresentadas por meio da transparncia da imagem fotogrfica. O diretor at fez piada com essa questo no
prprio filme, quando apresentava uma fotografia sua da poca de soldado a Ronny Dayag (sequncia 6), per-
guntando se este o reconheceria dos tempos de guerra. Diante da negativa de Dayag, Folman emenda: Nem
eu mesmo me reconheo.
O diretor-protagonista categrico ao rejeitar acusaes de que um filme animado simplesmente no tem
condies de tratar sobre a realidade, de represent-la, tal como se presume num documentrio. Digamos que
eu tivesse feito o filme com uma cmera de vdeo. No fim, o que voc veria seriam imagens construdas em pi-
xels, feitas de pontos e linhas. (...) Ento o que mais real, uma imagem em pixels ou uma imagem desenhada
na qual algum trabalhou por muito tempo?
4
(Ibdem: 26).
Por outro lado, embora a obra israelense seja uma verdadeira ode ao uso da animao de forma a viabilizar
a incluso dos elementos onricos da memria no discurso documental, Valsa com Bashir de forma alguma re-
jeita a fora realstica da imagem fotogrfica. Tanto que esse tipo de imagem que conclui o filme e d sentido
s razes pelas quais Ari Folman teve suas memrias do massacre de Sabra e Chatila bloqueadas por mais de
duas dcadas.
Mais que isso, so as terrveis cenas de dezenas de refugiados palestinos mortos que confirmam a respon-
sabilidade do Estado de Israel para com quela carnificina embora o filme apresente tal responsabilidade de
forma subsidiria. Ao reconhecer o flagelo desse povo aptrida, Valsa com Bashir conecta-se a vrias outras
obras do cinema israelense, especialmente a partir dos anos 2000, em que as complexidades do conflito Israel-
-Palestina, com todas as repercusses dentro da sociedade do Estado Judeu, so desnudadas de uma maneira
que raramente se conseguir ver na mdia tradicional. s vezes em reportagens da britnica BBC.
Ari Foman produziu em sua carreira de diretor trabalhos que tratam da vida e fantasia dos jovens (Santa
Clara, 2006), da dificuldade dos judeus de se libertar das memrias do Holocausto (Made in Israel, 2001), e da
2 TRADUO LIVRE. Todas as referncias a obras escritas em lngua estrangeira foram traduzidas de forma livre por este pesquisador
para dar melhor continuidade e legibilidade dissertao. Sempre que tais referncias aparecerem, o texto, tal como escrito em sua
lngua original, estar disponvel em nota de rodap: ... feel free to downgrade in the event of excessive use of these devices.
3 They make you list how many minutes are animated and reenacted, and explain each usage. () Its ridiculous.
4 Lets say I would have done this with a video camera. In the end what you would see is pixilized picture consisting of dots and lines.
() So what is more real a pixilized image or a drawn image that someone worked on for a long time?
16
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
necessidade de tudo na vida ser tratado pelo vis psicolgico na atualidade (In Treatment, 2005) produo
que foi adaptada pela TV americana e apresentada no Brasil pelo canal HBO em 2008 com o nome de Em
Terapia (Klawans, 2008: 36). Alm disso, o diretor trabalhou com animao para a TV israelense na srie
documental The Material that Love is Made of (2004).
Em Valsa com Bashir, Folman parte de um mix de suas experincias anteriores para contar parte de
sua prpria histria, de uma maneira bastante original e performtica caracterstica principal do new
documentary contemporneo segundo Stella Bruzzi (2006: 1 e 9). Com isso, afastou-se dos postulados
clssicos de transparncia e objetividade do documentrio. Tampouco respeitou regras de imparcialidade e
de ouvir verses conflitantes como aquelas que os jornalistas reivindicam cumprir. Mas, mantendo-se fiel
ao indispensvel vnculo com o mundo histrico, Folman alcanou aquilo que autores atuais como Dave
Saunders exaltam como o grande diferencial de parte da produo no-documental de hoje: explorar o
filme documentrio como uma prtica artstica
5
(2010: 5).
5 ... to explore the documentary film as artistic practice.
ROTEIRO METODOLGICO
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Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
... a pesquisa deve se conduzir dentro de um determinado campo da
cincia a que o objeto ou assunto da pergunta pertence e luz de algum
quadro terico de referncia e de suas predies, quadro terico este
que deve ser selecionado em funo de sua adequao a pergunta que
se tem.
Lcia Santaella
1
A
investigao empreendida neste projeto de pesquisa est delimitada nos domnios dos fenmenos da cul-
tura e da comunicao de massa, campos intrnsecos rea cientfica da Comunicao, como observa
Vassallo de Lopes (2009:13), j que trata da anlise de um produto cultural que um dos smbolos da era
das mdias massivas industrializadas: o cinema, mais especificamente, o cinema documentrio.
Trata-se de uma pesquisa qualitativa cuja metodologia, por conta da complexidade do estudo, demandou
uma mescla de abordagens: a abduo, que busca uma teoria, e a induo, que busca fatos (Santaella,
2010: 79). A metodologia primeiramente abdutiva modalidade predominante na Comunicao segundo
Muniz Sodr (Apud Santaella, 2010: 80) em funo da inspirao da pesquisa ter surgido a partir de um insi-
ght ao assistir o corpus do estudo, o filme Valsa com Bashir, e associ-lo com o que viria a ser o objeto pesqui-
sado: o cinema documentrio contemporneo. Ainda na abduo, importante notar a explicao de Santaella:
Quanto abduo, o mais original dos tipos de raciocnio ou argumen-
to, ela se refere ao ato criativo de se levantar uma hiptese explicativa
para um fato surpreendente. o tipo do raciocnio atravs do qual a
criatividade se manifesta no apenas na cincia e na arte, mas tambm
na vida cotidiana. Quando nos confrontamos com algo que nos sur-
preende, para o qual no temos resposta ou explicao, a abduo
o processo atravs do qual uma hiptese ou conjectura aparece como
uma possvel resposta ao fato surpreendente. (Ibdem: 77)
O fato surpreendente foi assistir ao filme Valsa com Bashir sem saber previamente que se tratava de um
documentrio. Convencendo-se aps breve reflexo, tendo a obra j sido vista, que se tratava sim de uma no-
-fico, questionamentos instigantes no tardaram a aflorar: mas como pode um documentrio ser animado,
j que esse tipo de filme teria de apresentar a realidade, tal como filmada? Pode uma histria no-ficcional ser
contada majoritariamente por meio de incurses nas subjetividades emersas das memrias dos personagens? A
investigao terica e um passeio pela histria do documentrio forneceram respostas adequadas s dvidas.
A pesquisa tambm teve de caminhar para caminhos indutivos, aqueles nos quais o real considerado
como algo opaco: os fatos no se exprimem a priori. Para que se possa ver algo, ser necessrio explor-los,
analis-los, impregnar-se dos mesmos e, depois, distanciar-se deles. (Alami, Desjeux, Moussaoui, 2010: 31). O
que o real opaco demonstrava era a existncia de um filme israelense que mostrava a fragilidade e os traumas
de soldados do exrcito tido como um dos mais poderosos e bem treinados do mundo. Alm de assumir, ainda
que indiretamente, a responsabilidade por um dos inmeros flagelos impostos s populaes palestinas.
O contraste da mensagem do filme com a realidade do conflito apresentada, quase sempre, pela mdia
internacional era to gritante que ensejava um inqurito para saber se era uma iniciativa isolada ou se o ci-
nema israelense poderia ter se tornado uma arena onde vozes contrrias beligerncia contnua estariam se
1 2010: 73
19
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
expressando para dentro e fora do pas. O indutivo aquele que parte de premissas particulares em direo a
premissas gerais e cuja aproximao dos fenmenos caminha, assim, para planos cada vez mais gerais (San-
taella, 2010: 87).
Alm das abordagens citadas, h de se ressaltar tambm que a pesquisa, alm de qualitativa, analtica,
aquela que faz anlises interpretativas dos dados e extrai concluses (Ibdem: 92). Dentro dessa linha, a pes-
quisa abarca duas subdivises: a comparativa e a histrico-crtica, aquela que tenta reconstruir o passado para
melhor compreender os fenmenos (Ibdem: 93).
Baseado nas abordagens e nas tipologias de pesquisas, o mtodo empregado na investigao foi a anlise
flmica, a mais apropriada para dar conta das intenes comunicativas
2
(Vilches, 2007: 30 e 31) de Valsa
com Bashir. Para tanto, utilizou-se como arcabouo terico referncias do campo dos estudos do audiovisual,
mais conhecido pela denominao em ingls Film Studies. Procurou-se empreender a investigao luz das
reflexes de pensadores do cinema que tratassem das questes mais estritamente formais, como a linguagem
e as conceituaes, e tambm das vertentes culturais, focando na relao das obras com seus ambientes scio-
-polticos. Buscou-se aportes em autores mais clssicos da rea de cinema Bazin, Buuel, Denos, Kracauer,
Stam e tambm naqueles especializados na rea do documentrio: Nichols, Barsam, Plantinga, Carrol.
Como se trata de um estudo acerca de uma obra dos anos 2000, tambm foi necessrio recorrer a auto-
res mais contemporneos, como Ramos, Gauthier, Bruzzi, Wells, Saunders, Winston, Ward e Aufderhei-
de. Alm disso, pesquisa ensejou a busca por tericos do cinema israelense como Shoat, Yosef, Kronish
e Schweitzer. Isso sem falar em autores das reas da Psicologia, Histria e Sociologia imprescindveis
para a compreenso das questes acerca da memria, subjetividade, trauma e culpa que permearam toda
a investigao.
Tendo o documentrio israelense como o ponto de partida e o ponto de chegada da anlise (Vanoye e
Goliot-Lt, 2009: 15), o estudo procurou entender a significao da obra por meio da relao entre forma e
mensagem. O plano do significante se converte no plano da expresso; e o plano do significado se converte
no plano do contedo
3
(Vilches, 2009: 30). No caso, a forma entendida como o hibridismo entre os cdigos
do documentrio, da fico e da animao. J o contedo compreendido como a narrativa expressa por meio
da subjetividade e suas conexes com a atual valorizao da memria individual e a realidade representada
pelo novo cinema israelense.
O estudo da expresso, demandou anlises intertextuais e textuais. As intertextuais, dentro das citadas
abordagens histrico-crticas e comparativa, procuraram entender a(s) controversa(s) conceituao(es) do
filme documentrio e demonstrar como Valsa com Bashir, em que pese no respeitar muitos dos cnones desse
outro cinema, no pode ser excludo de tal arcabouo. Tambm foi preciso fazer um sobrevo na histria do
documentrio para compreender como questes confrontadas pelo filme israelense reivindicao de mostrar
a verdade/realidade, mnima mediao e manipulao das imagens captadas, venerao da transparncia da
imagem fotogrfica, prevalncia do discurso da objetividade e o repdio subjetividade foram tratadas por
tericos e realizadores ao longo do tempo. Tal volta ao passado procurou seguir o postulado metodolgico de
Vanoye e Goliot-Lt, que entendem ser parte fundamental da anlise flmica decifrar a genealogia do filme,
2 las intenciones comunicativas.
3 ... El plano del significante se convierte em plano de la expresin, y el plano del significado se convierte em plano del contenido.
20
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
situ-lo num contexto, numa histria. E, se considerarmos o cinema como arte, situar o filme em uma his-
tria das formas flmicas (2009: 23).
J a questo das especificidades em si da linguagem de Valsa com Bashir, a subjetividade e o uso ani-
mao, foram analisadas de uma forma que combinou tanto a intertextualidade, por meio da analogia com
obras que foram desbravando esses caminhos ao longo da histria do documentrio, como a textualidade
em si, investigando a estratgia narrativa da obra e sua correlao com o momento que, de acordo com
os autores da Histria e da Sociologia consultados, as narrativas individuais, centradas nas memrias das
pessoas, adquiriram grande valor no entendimento dos fatos em detrimento s grandes narrativas histri-
cas oficiais, que encontram-se em xeque.
A anlise textual de Valsa com Bashir demandou uma decomposio da obra de forma a compreender o uso dos
elementos isoladamente, da maneira como so perceptveis a olho nu ao se tomar o filme em sua totalidade (Vanoye,
Goliot-Lt: 2009, 15). Como ressalta a acadmica portuguesa Manuela Penafria, esse exerccio de decomposio tem a
misso de explicar/ esclarecer o funcionamento do filme, bem como propor-lhe uma interpretao (2009: 1).
Esse procedimento tambm vai de encontro com a proposta de Diane Rose, que prega o empreendimento
de uma argumentao terica que seja crtica em cada ponto de desenvolvimento da pesquisa, uma vez que:
... Os meios audiovisuais so um amlgama complexo de sentidos, ima-
gens, tcnicas, composio de cenas, sequncias de cenas e muito mais. ,
portanto, indispensvel levar essa complexidade em considerao, quando
se empreende uma anlise de seu contedo e estrutura. (2002: 343)
A decomposio levada a cabo em Valsa com Bashir procurou dividir o filme em sequncias, respeitando a
definio dada por Susan Hayward:
A sequncia normalmente composta de cenas, todas elas relacionadas
mesma unidade lgica de signifcao. Por essa razo, a durao de
uma sequncia equivalente continuidade visual e/ou narrativa de
um episdio dentro do flme (sequncias podem ser como os captulos
dentro de um romance). profcuo, quando se estuda um flme, estar
apto a segment-lo, desde que isso d ao estudante ou espectador o
senso de sua estrutura formal assim como as relaes entre as sequn-
cias. (...) Em mdia, um flme tem vinte e trs ou vinte e quatro sequn-
cias se for um flme mainstream ou de Hollywood; o cinema europeu
tende para nmeros menores (entre onze e dezoito).
4
(2006: 348)
Em Valsa com Bashir foram identificadas 16 sequncias. Ao longo do trabalho, as referncias a determina-
das cenas e dilogos ser remetida sequncia a qual faz parte. Por isso, no fim da pesquisa haver um anexo
com um quadro identificando cada uma dessas sequncias, fornecendo seu tempo exato de incio e trmino
bem como uma brevssima descrio do que se passa no fragmento.
Por fim, a questo da subjetividade conexa ao trauma - dentro da realidade de Israel e de sua produo
cinematogrfica - ser tambm abordada por meio de uma anlise contextual que procure a correspondncia
entre as formaes discursivas cinemticas e extra-cinemticas
5
, j que anlises textuais e intertextuais no
4 A sequence is normally composed of scene, all relating to the same logical unit of meaning. For this reason, the length of a sequence
is equivalent to the visual and/or narrative continuity of an episode within a film (sequences can be likened to chapters within a no-
vel). It is useful when studying film to be able to segment out a film into sequences since this gives the student or spectator a sense of
the formal structure of the film as well the relations between the sequences. () On average a film has twenty-three or twenty-four
sequences if it is mainstream or Hollywood film; European cinema tends towards a lower number (eleven to eighteen).
5 ... the correspondence between cinematic and extracinematic discursive formations.
21
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
exaurem a significao da obra (Shoat, 2010: 7). Como ressalta Ella Shoat, filmes so informados pelos seus
ambientes culturais, moldados pela histria e influenciados pelos eventos
6
(Ibdem:8).
A imprescindibilidade de uma abordagem contextual, fora das singularidades da obra em si, tambm
endossada por Manuela Penafria que entende o filme como resultado de um conjunto de relaes e constran-
gimentos nos quais decorrem a sua produo e a sua realizao, como sejam o seu contexto social, cultural,
poltico, econmico, esttico e tecnolgico (2009: 07).
No caso de Valsa com Bashir, o contedo, a mensagem transmitida pelo filme no pode ser analisada sem
que se faam as necessrias conexes com: a realidade scio-poltica israelense; a questo a do conflito inter-
minvel com a Palestina, bem como a tragdia vivida pelos palestinos nos territrios ocupados e nas dezenas
de campos de refugiados como Sabra e Chatila; a importncia do cinema na conformao da identidade do
Estado Judeu; e qual o papel desempenhado pelo filme de Ari Folman e seus contemporneos em termos cul-
turais e polticos.
6 Films are informed by their ambient cultures, shaped by history, and inflected by events.
DOCUMENTRIO:
UM CONCEITO EM ABERTO
23
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Pode ser que a verdade no seja o objetivo, talvez ela seja o caminho
Chris Marker
1
D
ocumentrio. Filme de no-fico. Cinema do Real. Cine-Verdade. Discursos da Sobriedade. Cine-
ma que reivindica mostrar a verdade. Cinema argumentativo. Filme pedaggico. Cinejornal. Filme
entediante. Um outro cinema. Um filme de fico como nenhum outro. Fices da realidade. Filme
de assero pressuposta...
Exemplos de nomenclaturas para esse tipo de cinematografia so abundantes na literatura especializada.
A tarefa de conceituar o documentrio at que no parece ser, em princpio, algo muito complexo. Qualquer
pessoa sente-se capaz de explicar o que um documentrio citando algum que j tenha visto. Ou fazendo o
contraste evidente com os filmes de fico.
O fato que conceituar, definir, o que o documentrio e por extenso a no-fico um exerccio
complicado, mas imperioso para qualquer projeto de pesquisa que vise uma anlise dessa cinematografia. No
toa difcil encontrar qualquer publicao que trate do assunto que no tenha um captulo introdutrio ques-
tionando quais so as caractersticas e limites estilsticos intrnsecos ao documentrio. Caso extremo o livro
do acadmico brasileiro Ferno Pessoa Ramos, que taxativo logo no ttulo: Mas afinal... o que mesmo
documentrio? (2008).
1 Apud Gauthier, 2008:6.
Primeiro documentrio animado. Tcnica deu vida s subjetividades dos personagens.
24
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Tarefa das mais enfadonhas na viso de Plantinga, para quem definir gneros do cinema pode degenerar
numa compartimentao acadmica, aquele exerccio pedante no qual os eruditos classificam filmes em cate-
gorias sintticas, apenas para descobrir os filmes que excedem e escapam destas categorias
2
(1997:7).
No entanto, a quantidade de denominaes que abriga-se sobre o guarda-chuva do termo documentrio
revela a dificuldade para se estabelecer parmetros que situem com alguma estabilidade esse tipo diferente
de cinema perante realizadores, produtores, divulgadores, crtica, espectadores e, obviamente, pesquisadores
da rea dos Film Studies. Ainda mais num momento da contemporaneidade marcado pela intertextualidade,
disperso e difuso de conceitos e linguagens a tal ps-modernidade, exaustivamente analisada por autores
como David Harvey
3
.
A prevalncia do cinema direto e do cinma-vrit enquanto modelo supremo dessa cinematografia que
reivindica mostrar a verdade a partir dos anos 1950, fechando o conceito e o status de documentrio para as
alternativas aos cnones do estilo fly on the wall, mobilizou pesquisadores que se dedicaram legitimao
esttica e institucional de outras experincias no campo da no-fico.
Desde os anos 1990 que tais estudiosos trataram de rejeitar as restries impostas pelo objetivismo das
classificaes em favor de tornar o documentrio um conceito aberto. Pesquisadores como Carl Plantinga,
Stella Bruzzi, Paul Ward e David Saunders apuseram-se abertamente s iniciativas de busca das essncias da
no-fico. Sobretudo se tal busca prope-se a delimitar o documentrio como o filme que mostra a realidade
ou a verdade.
A definio cunhada por John Grieson depois de assistir ao filme Moana (1926), de Robert Flaherty, con-
sagrou o documentrio como a interpretao criativa da realidade/verdade
4
. Rejeitada inclusive pelos cate-
drticos do cinema direto, incomodados com a amplitude supostamente exagerada da definio, a iniciativa de
Grieson de distinguir o documentrio de outros tipos de filmes factuais actualits, newsreel, cinejornais
tida como a primeira tentativa de se encapsular esse tipo diferente de cinematografia (Ward, 2005:6). Ainda
que muito menos restrita do que parece numa primeira leitura, tal como defende Brian Winston, estudioso do
pensamento do patrono do documentrio britnico, esta tentativa de estabelecimento de um conceito fechado
continua sendo alvo da hostilidade dos pesquisadores contemporneos.
At o clssico e referencial trabalho de Bill Nichols, Representing Reality (1991), no qual conceitua qua-
tro categorias de documentrio expositivo, observacional, interativo e reflexivo (Ibdem: 32) -, foi atacado
como sendo cronolgico e estanque. Bruzzi foi enftica na crtica contra o que chamou de construo (ou
imposio) de uma rvore genealgica que procura explicar a evoluo do documentrio ao longo de linhas
progressivas e lineares
5
(2002:3). Cabe lembrar, no entanto, que o prprio Nichols, em trabalhos posteriores,
tenha deixado claro sua viso de que o documentrio seria um conceito confuso (fuzzy concept) com fronteiras
2 defining films may degenerate into academic pingeon-holing, that pedantic exercise whereby scholars assing films to synthetic
categories, only to find that actual films exceed and escape those categories.
3 Para mais sobre esse assunto, ver a obra A Condio Ps-Moderna de David Harvey.
4 Neste trabalho os termos realidade e verdade sempre aparecero conjuntamente quando se referirem ao termo em ingls actually,
tal como na definio cunhada por Griseon, pois a palavra admite ambas tradues. H autores que se referem frase de Grieson
como interpretao criativa da realidade/verdade creative interpretation of actually e outros como o tratamento criativo da
realidade creative treatment of actually.
5 ... the construction (or imposition) of a family tree that seeks to explain the evolution of documentary along linear, progressive lines.
25
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
difusas (blurred boundaries) (1994). Para Plantinga, o conceito de documentrio algo negociado por meio
das relaes entre discurso e prtica
6
(1997: 9).
J Stella Bruzzi entende que o filme que pretende representar a realidade de forma pura, transparente,
condenado ao fracasso, dado que uma meta inalcanvel (2006: 6). A pesquisadora defende que a identidade
do documentrio no fixa, mas fluida e obtida a partir de uma produtiva e dialtica relao entre o filme, a
realidade que ele representa e o espectador
7
(Ibdem: 7).
A objeo ao essencialismo e ao objetivismo, entretanto, no conseguiu invalidar a necessidade da catego-
rizao como ferramenta indispensvel para se realizar uma anlise acerca do filme de no-fico. Por mais
que defendam o conceito aberto, os pesquisadores no podem prescindir da classificao para examinar seus
objetos de estudo. Como pontua Plantinga:
Categorias so fundamentais para o pensamento, a percepo, a ao
e o discurso. Quando percebemos algo como um tipo de coisa, esta-
mos categorizando. Categorias tambm possibilitam a argumentao.
Sem um entendimento claro das categorias que usamos, nos arriscamos
a pensar confusa e despropositadamente. Rejeitar a categorizao
rejeitar a comunicao, o entendimento e a experincia signifcativa.
Um caminho mais prudente seria trabalhar com um entendimento mais
sutil e complexo de como as categorias funcionam. Se fzermos assim,a
caracterizao do flme de no-fco se torna sugestiva e esclarecedo-
ra em vez de artifcial e restritiva.
8
(1997:8)
A presente pesquisa no ir fugir do exerccio da categorizao. At porque o filme estudado, Valsa com
Bashir, no permite tal fuga. No se pretende aqui inclu-lo em alguma categoria estanque. Longe disso. Mas
o confrontamento das caractersticas do filme com o pensamento terico acerca das especificidades da no-
-fico levar a situ-lo no contexto da produo contempornea, no qual as fronteiras difusas preconizadas
por Nichols parecem cada vez mais alargadas.
Valsa com Bashir desafia a ontologia do documentrio clssico ao perverter e negar algumas de suas ca-
ractersticas fundamentais: a imagem fotogrfica transparente e minimamente manipulada e captao direta
do som. Mais que isso, o filme israelense tem seu enredo construdo a partir das experincias individuais, sub-
jetivas e emocionais dos personagens algo bem distante dos preceitos tradicionais da realidade objetivista.
Embora apresentado como o primeiro documentrio de animao da histria na premire do Festival de
Cannes em 2008, o filme de Ari Folman no deixou de causar estranheza queles que tiveram de categoriz-lo.
Isso fica sintomtico nas premiaes conquistadas pelo longa-metragem. Foram 15 no total
9
, mas apenas uma
de melhor documentrio justamente a concedida pela International Documentary Associations.
6 ... is negotiated though the relationships between discourse and practice.
7 ... its identity is not fixed but fluid and stems from a productive, dialectical relationship between the text, the reality its represents
and the spectator.
8 Categories are fundamental to though, perception, action, and speech.When we see something as a kind of thing, we are catego-
rizing. Categories also enable reasoning. With an unclear understanding of the categories we use, we risk confusion of thought ().
To reject categorization is to reject communication, understanding, and meaningful experience. A more prudent course would be to
operate with a more subtle and complex understanding of how categories function. If we do this, the characterization of nonfiction
film becomes suggestive and enlightening, rather than artificial and controlling.
9 Informao presente no site oficial do filme: www.waltzwithbashir.com
26
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Nas duas mais notrias premiaes das quais participou, o Globo de Ouro e o Oscar, ambos em 2009, Valsa
com Bashir foi indicado como melhor filme de lngua estrangeira logrando o trofu no primeiro caso. Alm
disso, o longa ganhou prmios de melhor produo independente, melhor animao, melhor direo de arte,
trilha sonora e tambm de melhor filme em festivais por todo o mundo.
Nem mesmo o Guia Anual de Cinema de Israel publicado pela cinemateca de Jerusalm classifica Valsa
com Bashir como um documentrio. Em que pese o sucesso da obra, que inclusive levou seis estatuetas no
Ophir Israeli Academic Awards de 2009 principal premiao do cinema israelense -, o filme acabou no
includo no anurio, que dividido entre longas-metragem e documentrios. Ele no inteiramente um
documentrio. Tem partes que sim... preferimos no coloc-lo no anurio, at porque o filme j era bastante
conhecido dentro e fora de Israel, explicou a diretora de pesquisa da cinemateca, Nirit Eidelman, em conversa
com este pesquisador no ltimo ms de setembro.
Segundo o diretor-protagonista do filme, conseguir financiamentos em fundaes de fomento a document-
rios tambm foi tarefa durssima em funo de Valsa com Bashir no ser reconhecido como tal. Enfim, embora
em outras esferas exista um reconhecimento institucional do filme israelense enquanto um documentrio, o
radicalismo esttico e narrativo de Valsa com Bashir demanda uma compreenso mais precisa, ainda que no
definitiva, do que vem a ser o filme de no-fico. S assim ser possvel compreender os caminhos deste
outro cinema que possibilitaram o surgimento de experincia to alternativa como a da obra israelense tida
como sem equivalentes na contemporaneidade, talvez nica em seu gnero
10
, como definiu Fabien Gaffez
para o peridico francs Positif (julho/agosto de 2008: 128).
Nos itens que seguem, Valsa com Bashir ser analisado luz do pensamento terico que procurou especifi-
car as caractersticas deste outro cinema, geralmente em contraste com a fico. A compresso das inovaes
estticas e de linguagem do filme, assim como de seu vnculo com o real, com o mundo histrico, demanda
uma reflexo acerca dos 116 anos de histria da no-fico. Como diz Guy Gauthier, um sobrevo histrico
se impem. Para ficar claro: um sobrevo, j a histria do documentrio ainda est por ser escrita
11
(2008: 11).
10 ... peut-tre unique em son genre.
11 ... un survoul historique simpose. Nous disons bien: um survol, car lhistoire du documentaire reste crire.
DOCUMENTRIO X FICO
28
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Todos os grandes flmes de fco tendem ao documentrio, assim
como todos os grandes documentrios tendem fco.
Jean-Luc Godard
1
A
ntes de entrar na discusso propriamente dita sobre o binarismo entre documentrio e fico, cabe
efetuar uma considerao acerca das noes de documentrio e no-fico utilizados comumente
como sinnimos, tal como ser feito neste projeto. Ao idealizar o termo, Grieson procurou diferen-
ciar as produes melhor elaboradas, inclusive quelas nas quais havia reencenao de eventos, dos filmes
informativos estilo newsreel, que ele considerava por demais tediosos. Da o grande valor que dava criati-
vidade. A definio griesoniana, que exclua boa parte da produo no-ficcional da poca, somada a outra
delimitao, marcada pelo vnculo com a realidade/verdade, no permitia que experincias mais abstratas e
poticas desfrutassem do status de documentrio.
Plantinga pontua que ambos termos so ambguos em relao classificao desse outro cinema que ora
se analisa. Embora mais inclusivo que documentrio, o termo no-fico tampouco mostra-se adequado para
classificar determinados filmes, que s desconfortavelmente conseguem se encaixar na categoria
2
(1997:12).
Entretanto, Plantinga refere-se ao termo no-fico em seus estudos, ainda que seja fervoroso defensor da no-
o de conceito aberto.
Bill Nichols restringe a nomenclatura documentrio aos filmes que mantm elo com o mundo histrico,
propondo argumentos, perspectivas e interpretaes acerca de processos e eventos. Ao mesmo tempo ele res-
salta que documentrio enquanto conceito no ocupa um territrio fixo
3
(1991:12). Outro autor, Richard M.
Barsam, escreveu a histria crtica do cinema de no-fico (Non-Fiction Film: A Critical History) entre 1895
e 1985, e fez a seguinte considerao logo no prefcio:
... o cinema de no-fco inclui o documentrio, o flme factual, certos
flmes etnogrfcos e flmes de explorao, flmes de propaganda de
guerra, cinma vrit, cinema direto e flmes de arte; mas no inclui
flmes experimentais, abstratos e animaes.
4
(1992: prefcio)
Ou seja, pela definio de Barsam, um estudo clssico escrito em 1974, Valsa com Bashir sequer poderia
postular o status de no-fico, quanto mais de documentrio algo com qual este estudo no poderia estar de
acordo. Seguindo a dica de Plantinga, para quem as tentativas de diferenciao so sempre falhas (1997:12),
este projeto de pesquisa no vai focar nas distines entre os termos, tarefa que seria exaustiva e de relevncia
questionvel para este estudo, e utilizar documentrio e no-fico como equivalentes nas referncias a esse
outro cinema, tal como acontece amplamente na crtica e na academia.
1 Apud Gauthier, 2008: 6
2 ... where certain films fit the category only uncomfortably.
3 Documentary as a concept or practice occupies no fixed territory.
4 ... the nonfiction films includes the documentary, the factual film, certain ethnographic films and films of exploration, the wartime
propaganda film, cinma vrit, direct cinema, and films on art; but it does not include experimental, abstract, or animated films.
29
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Feita a ressalva, a diferenciao que por ora realmente interessa a entre o documentrio e a fico. Ini-
cialmente, vale conferir o seguinte verbete elaborado por Jaques Aumont e Michel Marie para o Dicionrio
Terico e Crtico do Cinema:
A oposio documentrio/fco uma das grandes divises que estrutura
a instituio cinematogrfca desde as suas origens. (...) Designa-se por
documentrio uma montagem cinematogrfca de imagens visuais e sono-
ras apresentadas como reais e no-fctcias. O flme documental apresen-
ta quase sempre um carter didtico ou informativo, que visa sobretudo
restituir aparncias de realidade, mostrar as coisas e o mundo tal como
so. (...) Pressupe-se que o flme documentrio tenha como mundo de re-
ferncia o mundo real. O que signifca que o mundo representado existe
para alm do flme e que isso verifcvel. (...) A evoluo das formas do
cinema demonstra que as fronteiras entre documentrio e fco nunca so
fxas e que variam consideravelmente de uma poca para a outra e de uma
produo nacional para a outra. (2008:80)
A sntese concebida por Aumont e Marie revela com preciso as dificuldades de precisar por definir entre o
documentrio e a fico. So diversos os binarismos que alimentam a anttese entre os termos: filme que parte
da realidade x filme que parte da imaginao; foco no argumento x foco no entretenimento; fidelidade/trans-
parncia x inveno/fabricao; filme social e poltico x filme para dar lucro; objetividade x subjetividade;
histria x fbula; verdade x mentira.
As oposies, embora revelem caractersticas fundamentais dos dois tipos de cinema, no resistem cons-
tatao inequvoca de que os gneros fazem um intercmbio incessante entre suas linguagens, cdigos e
processos de produo a crescente hibridizao das formas
5
do qual fala Ward (2005:29). A grande
quantidade de documentrios com uma aura ficcional, bem como de fices em estilo documental, levou a
um fenmeno oposto ao do binarismo. Ou seja, a constatao de que todas as produes cinematogrficas so
ficcionais tambm de que todas as produes so representaes da realidade, mantendo um vnculo, ainda
que simblico e conotativo, com o mundo histrico.
Como enfatiza Guy Gauthier, esta uma discusso terica rica em debates mltiplos, jamais resol-
vidos, mais ou menos durveis, algumas vezes produtivos
6
(2005:5). O sem nmero de estudos que
identificam as caractersticas estticas, estilsticas e estratgicas intrnsecas ao documentrio, por mais
vlidos e teis que sejam, acabam fragilizados perante o fenmeno do hibridismo. Nenhuma obra con-
clusivamente ficcional ou no-ficcional com base em seus atributos textuais ou lingusticos, sentencia
Nol Carroll (2005: 77).
A alternativa contempornea de diferenciar documentrio de no-fico levar as reflexes para alm das
questes estruturais. Dentro da noo de conceito aberto, o documentrio tem sido estudado mais recente-
mente por meio de anlises de cunho filosfico, tico e moral, nas quais so levadas em considerao as inten-
es dos realizadores, o contexto em que a obra produzida e divulgada, o compromisso com a assertividade
e o engajamento do pblico em, mais do que identificar os elementos no-ficcionais, predispor-se em crer na
autenticidade e fidelidade ao real daquilo que est sendo apresentado. O filsofo e terico norte-americano
Nol Carroll um dos cones dessa linhagem de pensamento.
5 ... the increased hybridisation of the form
6 ... est riche em dbats multiples, jamais rsolus, plus ou moins durables, quelquefois productifs.
30
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Os tericos do cinema esto corretos ao apontar as sobreposies es-
tilsticas entre o cinema fccional e o no-fccional. Mas equivocam-se
ao tornar este fato como indicativo da inexistncia de uma distino
entre a fco e a no-fco (...). O seu erro de carter lgico. Pre-
sumem que, se no h diferenas estilsticas entre os flmes fccionais e
no-fccionais, ento no existe diferena alguma. Mas trata-se de um
grosseiro non sequitur, porque no previram a possibilidade da existn-
cia de outras diferenas que no estilsticas ou formais, em funo das
quais pode-se traar a distino. (Ibdem:78)
Valsa com Bashir, enquanto exemplo desse hibridismo no cinema contemporneo, suscita reflexes neste
mbito filosfico preconizado por Carroll e seguido por outros tericos como Plantinga, Bruzzi e Patricia Auf-
derhaide. Entretanto, este estudo no pode abrir mo das proposies mais pragmticas elaboradas por Nichols
tambm por Gauthier para compreender o filme israelense sob o ponto de vista institucional, dos processos
de produo e tambm das estruturas. Acredita-se que, no contexto da presente anlise, ambas tendncias te-
ricas so complementares e permitiro conceituar com mais preciso a obra ora estudada.
O discurso da sobriedade
Boa parte das reflexes de Bill Nichols sobre o documentrio procurou evidenciar esta cinematografia
como sendo uma legtima fonte de conhecimento, apresentando situaes e eventos reconhecveis dentro da-
quilo que partilhado como experincia comum das pessoas. Um bom documentrio estimula discusses
sobre o seu tema, no sobre si prprio (...) ... filmes documentrios levantam uma rica variedade de questes
historiogrficas, legais, filosficas, ticas, polticas e estticas
7
, (1991:X).
Nesse sentido, o autor entende que o documentrio um tipo de expresso que tem parentesco com outras
formas no-ficcionais do que ele chama de discursos da sobriedade
8
(Ibdem:4), quais sejam: economia, po-
ltica, diplomacia, educao, religio, entre outros. So todos discursos que, segundo ele, mantm uma relao
direta, imediata e transparente com o mundo histrico e a experincia comum, atuando, na maioria das vezes,
como veculos de dominao e conscincia, poder e conhecimento, desejo e vontade.
Assim, Nichols contrasta o documentrio e a fico utilizando metforas psicanalticas: A fico estaria no ter-
reno do ID, caracterizando-se pelo irracional, desejos inconscientes e significados latentes. J o documentrio fun-
cionaria no mbito do Ego e do Superego, ou seja, acerca das questes sociais sobre as quais somos conscientes.
Nichols entende que o documentrio no oferece um caminho cnico direto ao inconsciente tal como a fico e, ao
mesmo tempo, teria a capacidade de tornar imageticamente tangvel as retricas, ideologias e utopias.
Usando a analogia de Nichols, pode-se dizer que Valsa com Bashir um filme estruturado no mbito do ID,
j que seu tema principal a memria, tendo seu enredo organizado em torno dos traumas, sonhos, alucinaes
e sentimentos dos personagens, todos representados imageticamente com o poderoso auxlio da animao. Por
outro lado, o filme israelense no deixa de atuar no mundo social consciente, j que procura explicar didati-
camente os fenmenos relacionados memria e, mais que isso, apresenta a realidade pouco conhecida dos
7 A good documentary stimulates discussions about its subject, not itself. () documentary films raise a rich array of historiogra-
phic, legal, philosophic, ethical, political, and aesthetic issues.
8 ... discourse of sobriety...
31
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
soldados israelenses membros do exrcito conhecido como mais bem preparado do mundo, o Israeli Defense
Forces (IDF) -, com seus traumas, culpas e angstias de, no caso, terem participado de forma auxiliar do mas-
sacre de civis palestinos nos campos de refugiados de Sabra e Chatila em Beirute.
Retornando ao pensamento de Nichols, apesar de no ter dvidas quanto ao vnculo do documentrio com os tais
discursos da sobriedade o que lhe conferiria, inclusive, um status de superioridade moral perante a fico -, o autor
reconhece que o filme no-ficcional acaba por no ser encarado no mesmo nvel de seriedade dos demais discursos,
que so geralmente expressados por meio de ensaios, livros, relatrios ou revistas cientficas.
O problema residiria no fato de que o documentrio construdo por imagens. Por mais que se consiga, por meio
da imagem fotogrfica e da captao do som direto, replicar com fidelidade aquilo que representa, o documentrio
nunca deixou de ser visto com desconfiana. As imagens podem fascinar, mas tambm distraem. O poder produtivo
e interpretativo vive nas palavras
9
, (1991:5) afirma Nichols.
Alm dessa misso ontolgica que aproxima o documentrio dos discursos da sobriedade, Nichols elenca
outras distines que, em tese, o separaria da fico. Uma delas est no processo de trabalho dos realizadores:
o diretor do documentrio tem menos controle sobre aquilo que filma. Segundo Bordwell e Thompson (Apud
Nichols, 1991:13), tipicamente, o diretor do documentrio controla apenas algumas variveis da preparao,
da filmagem e da montagem (...), enquanto outras (ex. cenrio, luz, comportamento dos personagens) so pre-
sentes mas geralmente incontrolveis.
10
Nichols discorda desse argumento, j que entende existir um controle muito sofisticado dos realiza-
dores do documentrio, muitas vezes caracterizado por uma no-interveno que permite que a equipe
praticamente no seja notada caso clssico do cinema direto e do cinma vrit. Sem contar que produ-
es contemporneas, cujo objetivo no transmitir uma realidade transparente, tm tanta interveno do
realizador quanto nas obras de fico.
Seja por meio de reencenaes, manipulao de imagens de arquivo, gravaes em estdio com luz e
som ajustados -, parte da produo contempornea mantm os processos de filmagem e montagem sob estrito
controle. o caso de Valsa com Bashir. Alm do diretor ser o protagonista do filme, o que assegura um imenso
poder de interveno, a obra marcada por reencenaes de todas as cenas onricas, referentes subjetividade
dos personagens, e tambm de duas entrevistas com Ori Sivan e Carmi Caan nas quais os personagens
no quiseram ser filmados e foram interpretados por atores profissionais. Todas as cenas foram gravadas em
estdio. Sem contar a animao, feita sem o auxlio da rotoscopia, o que garantiu total controle sobre a luz,
cores e cenrios apresentados, bem como sobre o movimento dos personagens.
O que o documentarista no consegue controlar inteiramente o seu assunto bsico: a histria
11
, lembra
Nichols (Ibdem: 14). Tal premissa tambm vale para Valsa com Bashir. Embora tenha havido um controle
na seleo dos entrevistados que auxiliaram no processo de recuperao das memrias de Ari Folman, o fato
desencadeador do trauma, tanto dele como de outros personagens, imutvel: o massacre de refugiados pales-
tinos nos campos de Sabra e Chatila.
9 Images may fascinate but they also distract. Productive and interpretative power resides in words.
10 Typically, the documentary filmmaker controls only certain variables of preparation, shooting, and assembly (...) whereas others
(e.g., setting, lighting, behavior of the figures) are present but often uncontrolled.
11 What the documentarist cannot fully control is his or her basic subject: history.
32
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Outra diferenciao apontada por Bill Nichols de ordem contextual: o documentrio, para ser considera-
do como tal, deve ter o reconhecimento da comunidade de praticantes/realizadores e tambm das instituies
como associaes, comits de premiao, fundos de financiamento, patrocinadores, escolas de cinema, crtica
miditica e rgos reguladores so eles que estabelecem os padres e regras que determinam, socialmente, o
que deve ou no ser considerado (Ibdem: 14 e 15).
Embora, como j frisado, Valsa com Bashir tenha suscitado um amplo debate internacional sobre os limites
da no-fico, no por falta de reconhecimento institucional que a obra deixar ser um documentrio. Afinal,
foi laureado, junto de O equilibrista (Man in the Wire), com o prmio de melhor filme de 2008 pela Associao
Internacional de Documentrio (International Documentary Association). Sem contar a legitimidade conferida
por algumas das mais importantes revistas acadmicas na rea de Films Studies, tais como a Cahiers du Cine-
ma, a Positif, a Sight&Sound, a Filmcomment, a Widescreen Journal e a Documentary Magazine.
A diferena de estrutura interna outro parmetro de distino estabelecido por Nichols. De acordo com o
autor, o documentrio, geralmente, segue uma lgica informativa para a representao do caso ou argumento
acerca do mundo histrico, seguindo o que ele chama de padro soluo/problema: estabelece-se um assunto
ou problema, mostrando as questes de fundo relativas; apresenta-se a extenso da complexidade e diferentes
pontos de vista; prope-se uma soluo ou um caminho para tal. Nichols entende que a prioridade do documen-
trio dar forma ao argumento que est sendo proposto (Ibdem: 18-21).
J a fico teria seu como foco estrutural na ao dos personagens, conforme a continuidade da trama, o
que lhe permitiria mais agilidade e a possibilidade de lapsos temporais e espaciais. O documentrio, por outro
lado, teria de localizar tempo e espao de forma intermitente, dando preferncia cronologia dos fatos a no
ser que o argumento proposto demande o contrrio.
Esse um caso no qual Valsa com Bashir se aproxima mais da fico do que do documentrio. Embora
apresente um problema a perda de memria do diretor-protagonista e um caminho para soluo recorrer
memria coletiva para reconstituir os eventos obscurecidos pelo trauma de guerra -, a continuidade do filme
dada conforme as aes do protagonista, o que faz com que o argumento seja pontuado de forma errtica. A
cronologia subvertida em praticamente todas as sequncias, j que as representaes do mundo fsico e do
mundo dos fenmenos da memria revezam-se e entremeam-se incessantemente.
Outros elementos diferenciadores apontados por Nichols, como o predomnio da objetividade sobre a subjetividade, o
uso de atores e o papel do pblico, sero analisados nos outros itens que trataro especificamente dessas questes.
Filme de Assero Pressuposta
Os defensores do conceito aberto para a classificao do cinema documentrio, muitas vezes com uma
certa m vontade, reconhecem a importncia dos estudos, como os de Nichols, que elencaram as caractersti-
cas que surgiram no mbito da no-fico tanto os internos como os externos para efetuar suas anlises.
indiscutivelmente uma base terica no pode ser ignorada.
Entretanto, o foco predominante desde o final do sculo passado compreender o filme de no-fico no
contexto da era ps-moderna, no qual o documentrio tornou-se inerentemente fluido e instvel
12
, como diz
12 ... inherently fluid and unstable...
33
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Bruzzi (2002:1). Assim, o hibridismo de cdigos, linguagens e estilos, bem como o questionamento dos su-
postos vnculos com a realidade, acabam levando as anlises conceituais muito mais para o campo da tica, no
qual a responsabilidade do documentarista em ser assertivo nas suas proposies seria elemento crucial para se
criar um contexto para a compreenso do documentrio enquanto tal.
Nesse sentido, a simples reivindicao de apresentar a realidade/verdade torna-se absolutamente insuficien-
te. Tal especificidade do documentrio, encarnada na clebre conceituao de Grieson o tratamento criativo
da realidade/verdade - desconstruda de forma eloquente pelo cineasta indiano Satyajit Ray:
A questo que imediatamente surge da defnio : O que realida-
de? Certamente no apenas o que constitui os aspectos tangveis da
existncia cotidiana. Sutilezas e complexidades das relaes humanas,
as quais foram tratadas por muitos dos melhores flmes de fco, so
tambm tanto parte da realidade quanto os outros aspectos investiga-
dos pelos documentaristas. At fbulas, mitos e contos de fada tm suas
razes na realidade. (...) Portanto, em certo sentido, fbulas e mitos
tambm so interpretaes criativas da realidade. Na verdade, todos
os artistas em todos os ramos da arte no-abstrata so engajados na
mesma busca que Grieson designou como exclusivos dos realizadores
de flmes documentrios.
13
(Apud Plantinga, 1997:12 e 13)
Portanto, se os estilos so compartilhados, se todas as produes comungam razes na realidade, a diferena
entre o documentrio e a fico se dar no mbito da intencionalidade do realizador, na forma como o filme
divulgado e na maneira como recebido. o que Bruzzi designa como a relao dialtica entre o texto (o
filme), a realidade representada e o espectador
14
(2002:7).
Nol Carroll entende que a impossibilidade de se diferenciar a fico do documentrio uma questo de ordem
filosfica. Inspirado no modelo de inteno-resposta de Paul Grice, Carroll defende que o documentrio seja enten-
dido conforme suas propriedades relacionais capitaneadas pela inteno autoral: a inteno do autor, cineasta ou
emissor de uma estrutura de signos com sentido, de que o pblico imagine o contedo da histria em questo com
base em seu reconhecimento de que assim que o emissor pretende que ele responda (2005:81).
Seguindo o argumento, tem papel crucial neste entendimento a indexao do filme enquanto documentrio,
bem como a ampla divulgao dessa informao. A indexao do filme no meramente uma inferncia do
espectador, mas uma propriedade ou elemento do texto dentro do seu contexto histrico
15
, avalia Plantinga
(1997:19). Assim, o realizador prescreve e encoraja o comportamento desejado do espectador para assistir
filme o que no garante que a resposta almejada ser alcanada.
A assertividade do realizador, tanto no marketing do filme como, obviamente, na construo dos argumen-
tos apresentados na obra, tambm sero fundamentais para circunscrever um filme enquanto documentrio.
Essa postura combinada com a experincia cinfila prvia do pblico, que o habilite a apreender o documen-
trio, vai gerar o tal engajamento do espectador. Carroll prope o seguinte silogismo:
13 The question that immediately arises from the definition is: What is reality? Surely it is not only what constitutes the tangible as-
pects of everyday existence. Subtle and complex human relationships, which many of the best fiction films deal with, are also as much
a part of reality as those other aspects generally probed by documentary makers. Even fables and myths and fairy tales have their roots
in reality. () Therefore, in a sense, fables and myths are also creative interpretations of reality. In fact, all artists in all branches of
non-abstract art are engaged in the same pursuit that Grieson has assigned to the makers of documentary films.
14 ... dialetical relationship between the text, the reality it represents and the spectator.
15 The films ndex is not merely an inference by the spectator, but a property or element of the text within its historical context.
34
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
...uma estrutura de signos com sentido x no-fccional apenas se o
emissor s apresent-la ao pblico a com a inteno de que a no
imagine supositivamente x, como resultado de seu reconhecimento da
inteno de s. Ou seja, uma no-fco x tal quando apresentada
por um autor ao pblico com a inteno de que este reconhea que
no est obrigado a entreter o contedo proposicional da estrutura de
signos com sentido no-assertivo. (2005:86)
Saindo da lgica e entrando na seara da tica, a questo da assertividade ganha ainda maior relevo. Ser
assertivo enunciar uma proposio como sendo verdadeira
16
. Ou seja, ele compromete-se com o pblico
assegurando a autenticidade e a fidelidade ao mundo histrico real representado. Todas as escolhas formais
do realizador produzem apelos persuasivos ao pblico sobre a correo, a boa f e a razoabilidade deste
realizador
17
, ressalta Aufderheide (2007:25).
Com isso, estabelece-se um pacto com o pblico, que vai assistir ao filme disposto a acreditar na veracidade
das informaes apresentadas, esperando que os realizadores prezem sua probidade, conforme os padres de
evidncia e argumentao apropriados ao assunto em pauta (Carroll, 2005: 101). Entretanto, Carroll lembra
a possibilidade de dissimulao do cineasta, de ele trair a confiana daqueles que engajaram-se em acreditar
nas representaes da obra.
Da porque o filsofo define o documentrio como um filme de assero pressuposta. Ou seja, por mais
a indexao seja bem divulgada, e que postura assertiva revele-se no filme, o mximo que o pblico pode
fazer pressupor que trata-se de um assunto apresentado de forma fidedigna realidade representada. Carroll
reconhece que sua teoria no assegura que averiguao de se um filme ou no de assero pressuposta o
documentrio. Mas inegvel que suas ferramentas lgicas mostram-se apropriadas para o estudo desse tipo
16 Definio proposta pelo dicionrio Michaelis de Lngua Portuguesa.
17 Filmmakers formal choices all make persuasive claims to the viewer about the accuracy, good faith, and reasonableness of the
filmmaker.
Anunciado como um documentrio, filme propunha uma bad trip de cido.
35
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
de cinematografia, j que permitem efetuar a distino no contexto cultural e histrico em que os filmes foram
produzidos e vistos
18
(Plantinga, 1997:20).
Apresentado no Festival de Cannes de 2008, onde teve sua primeira exibio como o primeiro documen-
trio animado da histria, Valsa com Bashir investiu pesadamente no marketing que lhe dava tal distino - o
que foi fundamental para bem sucedida carreira internacional do filme de Ari Folman. Em que pese a animao
e a estrutura narrativa pouco convencional para a no-fico, a indexao do filme enquanto documentrio foi
defendida de forma peremptria pelo diretor, que reivindicou como verdadeiros os depoimentos dos soldados
participantes da Guerra do Lbano, a maioria calcados em elementos subjetivos e que ganharam vida por meio
da animao, j que para Folman a histria no poderia ter sido contada de outra maneira, pois ele a encarava
como uma onda errada de cido onda errada de cido (bad acid trip) (Apud OHeir).
18 ... in the cultural and historical context in which they are produced and viewed.
REALISMO E
IMAGEM FOTOGRFICA
37
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
O flme traz o mundo material para o jogo; indo para alm do teatro e
da pintura, pela primeira vez coloca aquilo que existe em movimento.
Sigfried Kracauer
1
A
s imagens cinematogrficas no-ficcionais comearam a ser veiculadas no cinema cerca de trs
dcadas antes do termo documentrio ser cunhado e definido por John Grieson. Aconteceu em 28
de dezembro de 1895 no Salo Indiano do Grand Caf da Boulevard dos Capuchinhos, em Paris.
Foi na exibio de Larriv dun train a la Ciotat, de autoria de Auguste e Louis Lumire a primeira sesso
pblica de cinema da histria. Na tela, uma cena banal do cotidiano, a chegada de um trem numa estao, era
apresentada de uma forma to realista, convincente, que parte do pblico saiu correndo para o fundo da sala
temendo ser atropelado.
Conforme explica Barsam, o cinema nasceu como no-fico, apresentando de forma indita cenas do
cotidiano, inaugurando uma nova forma de olhar ao permitir que as pessoas enxergassem a realidade a sua
volta por outros ngulos, observando detalhes que antes passavam desapercebidos. A inveno, em que pese
apresentar fatos passados, j ocorridos, proporcionava uma sensao de simultaneidade com o tempo presente
em funo de representar o movimento em si. As imagens cinticas, que registravam sequncias temporais
e faziam o espao se mover, no apenas confirma o processo humano da viso, como tambm altera a relao
psicolgica do espectador com o mundo visvel enquanto projetado numa tela
2
(1992:6).
1 2007:VII.
2 Their kinetic images, which Record temporal sequences and make space move, not only confirm the process of human vision, but
also alter the spectators psychological relationship to the visible world as projected on a screen.
Realismo do trem chegando estao
assustou pblico que assistia primeira
sesso de cinema da histria.
38
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
A linguagem cinematogrfica se desenvolveu no-ficcionalmente em seu incio. Depois que o encanta-
mento com as cenas cotidianas se dissipou, o foco da produo transferiu-se para a reproduo de grandes
acontecimentos, eventos e solenidades, dando origem aos chamados actualits e newsreel. Foi s na virada
do sculo XIX para o XX que o cinema caminhou rumo fico, a partir das obras poticas e fantsticas de
George Mlis pai da cinematografia ficcional de acordo com Guy Gauthier (2005:19).
A ecloso do cinema no fim do sculo XIX foi uma resposta tecnolgica ao furor pelo realismo que carac-
terizava aquele perodo, quando o racionalismo iluminista chegava ao seu auge com a predominncia da indus-
trializao, do cientificismo e de doutrinas sociolgicas como o positivismo filosfico de Auguste Comte. Fritz
Novotony explica como este esprito tomou de assalto as diferentes formas de expresso:
... as mudanas radicais na estrutura da sociedade; a perturbao dos
poderes secular e eclesistico na Europa como consequncia da Re-
voluo Francesa, um evento que afetou a histria em todo o mundo;
o subsequente incio da sociedade democrtica e das novas formas de
individualismo; a consequente e fundamental mudana na relao do
artista com a sociedade (...). A relevncia desta nova situao, envol-
vendo a destruio de todos os elos com o passado e a emergncia de
uma nova liberdade para a arte e os artistas individuais, em parte b-
via: havia sido aberto o caminho para um novo olhar sobre o mundo.
1
(Apud Barsam, 1992: 13)
A nsia em representar o mundo como um fenmeno visvel, o mais prximo possvel da natureza em si (Ib-
dem: 13 e 14), tornou-se meta de diferentes correntes artsticas da poca. De acordo com Barsam, a busca pelo
realismo orientou o trabalho de pintores franceses como Eugne Delacroix, Edgar Degas, Gustave Courbet e
at de Claude Monet. Na literatura, tal obsesso estava expressa nas pginas das duas correntes em voga na
poca: o Realismo (Gustave Flaubert, Victor Hugo, Honor de Balzac Machado de Assis no Brasil) e o Na-
turalismo, cujo expoente mor era o poeta mile Zola no Brasil, o cone do movimento foi Alusio Azevedo.
Mas a corrida pela reproduo translcida da realidade j havia ganhado contornos obsessivos ainda nos
anos 1830, quando, a partir da inveno do daguerretipo, surgiu a fotografia, o processo fsico e qumico que
d a natureza a habilidade de reproduzir a si mesma
2
, como caracterizou seu inventor, Louis-Jacques Mand
Daguerre. A revoluo na maneira de se olhar as coisas desencadeada pela fotografia estabeleceu, conforme
Trachtenberg, o primeiro parmetro para se arbitrar o que realidade (Apud Barsam, 1992:9).
O j citado mile Zola assim expressou o seu fascnio: na minha viso, voc no pode afirmar ter visto
realmente alguma coisa at que voc tenha fotografado-a
3
(Ibdem:9). Antes dos irmos Lumires levarem a
cabo a primeira sesso de cinema, houve um sem nmero de tentativas de se inventar maquinrios capazes de
potencializar a vocao realstica da fotografia dando-lhe movimento.
4
1 ... the radical changes in the structure of society; the disturbance of secular and ecclesiastical power on the Continent as a result
of French Revolution, an event which affected the history of the whole world; the subsequent beginnings of a democratic society and
a new form of individualism; the consequent fundamental change in the relationship of the artist to society (). The significance of
this new situation, involving the destruction of all links with the past and the emergence of a new freedom for art and the individual
artist, is in part obvious: it opened the way for a new view of the world.
2 a physical and chemical process which gives Nature the ability to reproduce herself.
3 In my view, you cannot claim to have really seen something until you have photographed it.
4 Detalhamento sobre este tema pode ser obtido na prpria obra de Barsam, Non-Fiction Film A Crtical History (1992), e em Machado,
Arlindo. Pr-Cinemas & Ps-Cinemas. Campinas: Papirus, 2007.
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Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
A imagem fotogrfica e a realidade no mediada
O efeito realidade da fotografia, consubstanciado no fato de ser alcanado por meio de um processo
qumico que se d mecanicamente num aparato industrializado, no apenas exerceu encantamento como
alimentou infindveis debates entre realizadores, acadmicos e crticos sobre qual seria a vocao, a mis-
so ontolgica, das ento emergentes expresses artsticas: a fotografia e o cinema.
A crena na transparncia absoluta da imagem fotogrfica sempre esteve alicerada na aparente constatao de
que tratava-se de um processo puramente mecnico, apartado da interferncia humana, que alcanava a equiva-
lncia sem brechas entre as imagens e as coisas, como descreve Andr Rouill (2009: 161). A possibilidade de a
fotografia ter uma funo que v alm da documental, permitindo ao fotgrafo expressar sua subjetividade de forma
a ultrapassar os limites do registro, ainda um debate inconcluso, por mais que soe anacrnico.
No cinema, o vnculo realista da imagem fotogrfica suscitou debates apaixonados entre os que louvavam a
possibilidade de exatido matemtica e a preciso inimaginvel
5
(Gay-Lussac apud Kracauer, 1997:4) das re-
presentaes, e os que viam na manipulao das imagens um caminho para representar os fenmenos da mente
humana. Em seu artigo Ontologia da Imagem Fotogrfica, Andr Bazin celebrou a fotografia enquanto expresso
dotada de maior credibilidade, por conta de sua objetividade essencial, diferente das artes plsticas que para ele
se contentavam em alcanar um pseudo-realismo por meio da iluso das formas (2008: 123 - 125).
Para Bazin, mais que um aperfeioamento tcnico e material, a fotografia causara uma revoluo psicolgi-
ca, j que satisfazia a obsesso de realismo do homem justamente por excluir esse mesmo homem do processo
mecnico de reproduo.
Esta gnese automtica subverteu radicalmente a psicologia da imagem.
A objetividade da fotografa confere-lhe um poder de credibilidade ausente
de qualquer obra pictrica. Sejam quais forem as objees do nosso espri-
to crtico, somos obrigados a crer na existncia do objeto representado,(...)
quer dizer, tornado presente no tempo e no espao. A fotografa se bene-
fcia de uma transferncia da realidade da coisa para a sua reproduo.
O desenho o mais fel pode nos fornecer mais indcios acerca do modelo;
jamais ele possuir, a despeito do nosso esprito crtico, o poder irracional
da fotografa, que nos arrebata a credulidade. (Ibdem: 125 e 126)
O alemo Sigfried Kracauer foi outro a postular que a natureza da fotografia e do filme era revelar a realidade fsica, o mundo
em volta de ns. Kracauer no tinha dvidas que a inovao esttica do cinema era a impessoalidade, a fato de deixar intacto
aquilo representado. O realismo, para ele, seria a propriedade especfica do meio, situando-o no plo oposto pintura. Em termos
de interesse esttico, deve-se perseguir a tendncia realista sob qualquer circunstncia
6
, avalia o autor (1997:13).
Embora lamentasse que muitas das experincias consideradas artsticas no cinema fossem justamente aquelas
que pervertiam as especificidades do meio, Kracauer no rejeitava a possibilidade de iniciativas cinematogrficas
mais abstratas e hbridas com as outras artes. Para ele, mesmo as produes mais alternativas aproveitavam-se das
caractersticas da imagem fotogrfica para passar a impresso de verdade. Ainda que George Mlis no tenha ti-
5 mathematical exactness..., unimaginable precision
6 In an aesthetic interest, that is, he must follow the realistic tendency under all circumstances.
40
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
rado proveito da habilidade da cmera de registrar e revelar o mundo fsico, ele progressivamente criou suas iluses
com a ajuda das tcnicas peculiares do meio
7
(Ibdem:32).
Realismo e transparncia: a ontologia do documentrio
A discusso sobre a ontologia da imagem fotogrfica, embora ainda viva - como demonstra Rouill -, arrefeceu desde
a segunda metade do sculo XX, sobretudo pelo sem nmero de manipulaes e efeitos visuais empregados no cinema
de fico. Mas no documentrio tal controvrsia nunca foi superada. Mais que isso, questo da transparncia imagtica
somavam-se outras como os limites no uso da reencenao, a manipulao das imagens e o respeito cronologia dos fatos
representados. O efeito verdade, o vnculo estrito realidade, tinha ainda vrios outros pr-requisitos na no-fico.
Entretanto, tais questionamentos no recaam sobre as obras no-ficcionais dos primrdios do cinema. O fascnio com
o realismo da imagem projetada na tela poca era tamanha que neutralizava quaisquer contestaes sobre a veracidade
daquilo que era representado. A imagem era real demais, no poderia mentir. No demorou para que o cinema fosse apro-
priado pelos estados nacionais, interessados no uso do potencial informativo da imagem em movimento para fins polticos.
Tal movimento se deu, sobretudo, durante as guerras. O financiamento ostensivo de tais produes para fins de
propaganda poltica colocavam a veracidade daquilo que estava sendo representado em segundo plano. As primeiras
experincias nesse sentido aconteceram na guerra entre Estados Unidos e Espanha pelo controle de Cuba, em 1898.
De acordo com Barsam, boa parte das cenas de combate, como a tomada do Monte San Juan, foram reencenadas em
estdio e apresentadas como verdadeiras, tudo com vistas a potencializar o efeito dramtico e, consequentemente, o
poder de persuaso do filme perante o pblico norte-americano (Barsam, 1992: 31 e 32).
O sucesso de tal estratgia incentivou uma verdadeira escalada de produes no-ficionais de vis poltico. Tal
movimento atingiu seu auge durante a I Guerra Mundial, quando os aliados EUA, Frana e Reino Unido, utilizaram-
-nas ostensivamente. s precrias captaes no campo de batalha somavam-se produes em estdio que dramati-
zavam o embate, mostrando o herosmo das tropas aliadas e a iniqidade dos alemes principal nao do Eixo, no
qual tambm lutavam a Itlia, a Turquia e o Imprio Austro-Hngaro. Sanders e Taylor descreveram a estratgia:
O uso de flmes e fotografas para fns de propaganda proporcionavam
uma iluso de realidade num tempo em que a crena geral era de
que a cmera no mentia. (...) As imagens apresentadas eram, de fato,
cuidadosamente encenadas. Enquanto s vezes havia algumas poucas
imagens aparentemente realistas de soldados feridos no front, sempre
existiam cenas dirigidas em estdio que visavam mostrar a fadiga
acompanhada de alegria. Os ferimentos pareciam recentes e rara-
mente eram mostradas imagens e um soldado aliado morto, enquanto
alemes mortos eram apresentados com freqncia. Somente as aes
das tropas e as vitrias dos Aliados eram exibidas. (...) A inteno de
retratar uma moral alta era bvia, convencer a populao civil, tanto
internamente como nos pases aliados e membros do Imprio, de que
seus esforos eram vlidos e estavam produzindo efeitos visveis no
7 Yet even though Mlis did not take advantage of the cameras ability to record and reveal the physical world, he increasingly
created his illusions with the aid of techniques peculiar to the medium.
41
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
front de batalha.
8
(Apud Barsam, 1992: 33)
J no final da Guerra, o general alemo Erich Ludendorff, escreveu em seu dirio: A guerra demonstrou
a superioridade da fotografia e do filme como meios de informao e persuaso. Infelizmente, nossos inimi-
gos utilizaram-se de sua vantagem sobre ns neste campo de forma to incisiva que nos infligiram grandes
estragos
9
(Apud Barsam, Ibdem:37). O fato que a I Guerra Mundial foi fundamental para consolidar a
produo de no-fices, j que estimulou a criao de diversos rgos estatais e fundaes que passaram a
financiar esse tipo de cinematografia, colaborando decisivamente para o seu desenvolvimento.
Finda a Guerra e suas imagens aberrantes de carnificina, o cinema no-ficcional entrou numa outra fase
na qual as produes tornaram-se mais elaboradas e criativas. Foi a poca dos filmes de explorao e dos
primeiros filmes etnogrficos, que diferenciavam-se das produes factuais estilo newsreel e actualits pela
maior sofisticao narrativa e de montagem. Foram tais produes que inspiraram John Grieson a criar o termo
documentrio o tratamento criativo da realidade/verdade.
cone deste tipo de cinematografia para alguns autores, primeiro documentarista propriamente dito da
histria (Ibdem: 46) foi o norte-americano Robert Flaherty. A maneira de observar e captar a vida das popu-
laes nativas, sempre buscando representar a dignidade humana em seus confrontos contra a natureza, tornou-
-se paradigma nas produes no-ficcionais.
O aporte da obra de Flaherty para o desenvolvimento da esttica realista no poupou o pioneiro de crticas
por conta de seus mtodos de trabalho, que inclua o pagamento de nativos para representarem a si prprios
Nanook, protagonista do clssico Nanook of the North (1922) recebeu para seguir as orientaes do diretor
-, a predileo por mostrar o lado mais extico em detrimento da verdadeira condio de vida das populaes
representadas e, o pior, apresentar como correntes rituais que j no eram mais praticados pelos povos.
Em Moana (1926), o ritual de passagem ao mundo adulto pelo qual foi submetido o nativo polinsio que repre-
sentava o protagonista, ttulo do filme, um sangrento e angustiante processo de tatuagem, era algo que no era mais
praticado por aquela populao. Flaherty teve de pagar para obter tal cena, que foi apresentada como o rito que todo
polinsio tem de passar para ter o direto de chamar a si mesmo de homem
10
(Apud Barsam, 1992: 51).
Richard Barsam entende que Flaherty estava mais preocupado em construir uma histria, imaginada por ele
prprio, baseada na vida dos nativos, do que mostrar a realidade em si daqueles povos. O que no diminuiu o
valor inestimvel da contribuio do diretor para o aprimoramento de equipamentos e tcnicas para filmagens
fora de estdio. A aparncia realstica, contudo, no necessariamente produz um filme realista
11
(Ibdem:54).
8 The use of films and photographs for propaganda purposes provided an illusion of reality at a time when it was generally believed
that the camera could not lie. () The images presented were, in fact, carefully staged. While there were often several apparently
quite realistic camera shots of wounded soldiers at the front, they were usually staged-managed in order to show fatigue being accom-
panied by cheerfulness. Wounds were always freshly dressed and there were rarely pictures of Allied dead, although dead Germans
did feature more often. Only Allied troops in action or Allied victories were exhibited. () The intention of portraying high morale was
obvious, namely to convince the civilian population at home, in allied and Imperial countries that their efforts were worthwhile and
producing visible effects at the front line.
9 The war has demonstrated the superiority of the photograph and film as means of information and persuasion. Unfortunately, our
enemies have used their great advantage over us in this field so thoroughly that they inflicted a great deal damage.
10 There is a rite through every Polynesian must pass to win the right to call himself a man.
11 A realistic look, however, does not necessarily make a realist film.
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Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Na esteira da obra de Flaherty, os filmes etnogrficos e antropolgicos ganharam popularidade, geraram lu-
cros e acabaram por consolidar o tipo de documentrio que Bill Nichols classifica como expositivo (1991:34
e 2005:48). Tal cinematografia, como diz Susan Hayward, tinha a meta de ser a mais objetiva possvel dentro
de seu cientificismo
12
(2006:121). No por outro motivo, esse documentrio era marcado pelo tom didtico
das narraes estilo Voz de Deus.
Autorizada pelo suposto lastro cientfico do filme, esse tipo de narrao fora-de-campo quase sempre soava
como arrogante (Nichols, 2005: 48). Tal tom era perfeitamente condizente com o tipo de pensamento em voga,
poca, nas naes centrais do chamado mundo Ocidental. Era a consolidao da imagem eurocntrica, um
tipo de discurso imagtico que reforava um sentimento de superioridade ontolgica da Europa em relao s
raas inferiores degradadas, como explicam Robert Stam e Ella Shoat (2006: 45).
No era apenas a supremacia ocidental perante os outros povos do mundo que era legitimada
pelo cientificismo dos filmes etnogrficos. Para Bill Nichols, tal cinematografia tambm reforava
a superioridade dos homens sobre as mulheres, dos brancos sobre todos os demais, do conhecimento
experimental sobre o conhecimento tcito, alm de criar uma viso extremada do diferente, do outro
das terras longnquas, que variava entre a inocncia pueril do nativo e o erotismo e a selvageria dos
povos ditos no-civilizados (1994:65).
O estilo expositivo, do qual o filme etnogrfico apenas um exemplo, vigorou at os anos 1950 como para-
digma na produo documental. Esse cinema, que tinha a funo primordial de educar, era o que John Grieson
proclamava como o documentrio em si, e essa foi a orientao por ele adotada no comando da unidade de ci-
nema da GPO (General Post Office), no Reino Unido, e na National Film Board no Canad. Apesar de resultar
em clssicos como Night Mail (1936) e de estruturar a produo de documentrios em diversos pases, o estilo
expositivo obteve mais sucesso nas escolas e TVs estatais do que nos cinemas.
12 In so doing it aims to be as objective as possible in its scientificness.
Nanook em Nanook of the
North (1922): nativo rece-
beu dinheiro para obedecer
as orientaes de Flaherty.
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Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Cinema direto e o triunfo do realismo transparente
Foi na segunda metade da dcada de 1950 que o documentrio renovou seu flego criativo. Sob influncia
direta da nova esttica realista desenvolvida pelo neo-realismo italiano (Gauthier, 2008:21) e pelo movimento
Free Cinema no Reino Unido (Saunders, 2010: 58-61) ambos no ps II Guerra Mundial -, surgiram os dois
movimentos que redefiniram o documentrio e cujos cnones, mesmo sob a contundncia das crticas de aca-
dmicos e realizadores, permanecem como paradigmas at hoje: o cinema direto e o cinma vrit.
Ambos os estilos apesar de comumente citados como sinnimos, tm suas distines so fruto das ino-
vaes tecnolgicas no maquinrio do cinema poca. Realizar filmagens tornou-se uma tarefa mais simples
com o surgimento de cmeras mais leves, que dispensavam o trip e podiam ser utilizadas sobre os ombros, e
do gravador de fita magntica porttil, o que permitia a captao de som de forma sincrnica aos acontecimen-
tos filmados (Saunders, 2010:58 e Barsam, 1992: 300 - 302).
Drew revoluciona o documen-
trio com o estilo direto: Mayles
dormindo e a intimidade do casal
Kennedy em Primrias (1960).
44
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Com equipes menores e praticamente sem restries de mobilidade, mudou a relao entre o diretor e os
personagens do documentrio. Assim nasceu um novo approach com a realidade, que ficou pejorativamente
conhecido como fly on the wall (mosca na parede).
O flme ideal ento se tornou uma possibilidade: ele poderia ser feito
em qualquer lugar, e no apenas mais num ambiente controlado como
os estdios; no precisava de mais luz do que aquela disponvel (...);
podia captar o som ao mesmo tempo em que ocorria na realidade, sem
a necessidade de ser recriado em estdio.
13
(Barsam, 1992: 302)
A obsesso em representar uma percepo direta da realidade, no mediada, levou os realizadores dessa escola
a renegarem muitas das tradies do filme documentrio estabelecidas at ento. Segundo Winston, a novidade le-
vou a se questionar se toda a produo anterior ao cinema direto poderia ainda ser classificada como documentrio
(2000:25). Narrao em off, reencenaes in loco ou em estdio, didatismo, no respeito cronologia dos fatos, uso
de trilha sonora, de grficos ou de animaes, passaram a ser medidas abominadas pela nova tendncia.
O filme fundador do cinema direto nos Estados Unidos Primrias Kennedy e a campanha presidencial
de 1960 (Primary, EUA, 1960, 53 min). A obra foi dirigida por Robert Drew com o auxlio de outros reali-
zadores que se destacariam no estilo, como Richard Leacock e Albert Maysles -, jornalista que entendia que
o estilo de narrao no documentrio e nos programas jornalsticos da TV era uma espcie de continuao da
linguagem do rdio, s que com o suporte de imagens (Salles, 2005:28).
Em Primrias, a equipe de Drew acompanhou cinco dias de campanha dos dois pr-candidatos do Partido
Democrata presidncia dos EUA Hubert Humprey e John F. Kennedy - no estado de Wisconsin. A presena
constante da cmera e a tentativa de tornar-se invisvel perante o personagem levou Drew a alcanar feitos
como captar a imagem de Humprey dormindo no carro e mostrar, pela primeira vez, a intimidade do casal John
e Jackeline Kennedy para o pblico norte-americano.
Na Frana, Jean Rouch foi o pioneiro do estilo cinema vrit. Tal escola comungava com o cinema direto
o objetivo de mostrar uma realidade sem mediaes. Entretanto, no havia a pretenso dos realizadores de
passarem desapercebidos diante dos fatos captados. Como diz Barsam, os documentaristas agiam como pro-
vocadores das discusses suscitadas frente s cmeras (1992: 303 e 304). A inteno, segundo Gauthier, era
fazer um cinema sem atores, o que ele batizou como non-star system (2008:9).
Exemplo acabado do cinema vrit o filme Crnica de um Vero (Cronique dun t, Frana, 1961, 85
min). Nele, Rouch e o socilogo Edgar Morin vo s ruas de Paris perguntar a diferentes categorias de pessoas
migrantes, trabalhadores, estudantes - se elas so felizes. Desta maneira, conseguiram elaborar um retrato
original da sociedade francesa da poca. O cinema direto encontrou sua verdade nos eventos disponveis para
a cmera. O cinema vrit era comprometido com um paradoxo: que circunstncias artificiais pudessem trazer
a verdade oculta para a superfcie
14
(Erik Barnouw apud Barsam, 1992:304).
O fato que seja o cinema vrit, mais focado na realidade do banal, seja o cinema direto, que priorizava
grandes acontecimentos poltico-sociais e artsticos, redefiniram o gnero documentrio e influenciaram
profundamente no apenas o cinema como a TV. A prevalncia de sua linguagem acabou por colocar em xeque
13 The ideal film thus became a possibility: it could be made anywhere, not just in the controlled studio environment; would require
no more than available light, and thus avoid the theatrical look of much studio lighting; would have the option to record reality either
in color or in journalistic black and white; and would record sound as it occurred in actually, not as it was recreated in the studio.
14 Direct cinema found its truth in events available to the camera. Cinma vrit was committed to a paradox: that artificial circu-
mstances could bring hidden truth to the surface.
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Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
iniciativas posteriores que no seguissem a cartilha da transparncia total da realidade. No por outro motivo,
o estilo acabou sendo alvo da ira de realizadores e pesquisadores da rea de cinema, sendo taxado de ingnuo,
utpico, superficial, arrogante, e da por diante. Sobre isso, pondera Joo Moreira Salles:
Pode ser. Mas o que a grande maioria esquece que, at a chegada
da turma de Drew (e, honra seja feita, de Jean Rouch na Frana), o
documentrio estava em coma profundo. Respirava artifcialmente, por
meio do uso indiscriminado de recursos extra-imagem: locuo, car-
telas, trilha. A pssima ideia de que o flme no-fccional seria antes
de tudo um instrumento para ilustrao de hordas desinformadas fez o
gnero agonizar em salas vazias. Era de esperar, pois ningum gosta
de aula no solicitada. (2005: 31)
O cinema direto e o novo paradigma do documentrio
O cinema direto e o cinma vrit ainda desfrutavam do prestgio causado pelo novo approach realstico
quando, em 1964, o pesquisador Peter Graham sentenciou na revista Film Quaterly: (a escola observacional)
no apresenta a verdade, mas a verdade deles. Quanto antes estiver enterrada e esquecida, melhor
15
(Apud
Saunders, 2010: 69). Provavelmente esta foi a primeira crtica contundente ao estilo direto. Mas, ao contrrio
do que desejava Grahan, tal escola no foi esquecida, muito menos enterrada.
A possibilidade de captar imagens e sons dos fatos, como se a cmera no estivesse ali, deu origem a outros
cnones do cinema direto. A idealizao da transparncia estrita passou a condenar todo tipo de manipulao
da imagem. Para Albert Maysles, num certo sentido, editar uma fico, porque, na verdade, voc est colo-
cando as coisas juntas, est tirando as coisas do lugar
16
(Apud Plantinga, 1997: 10).
J Jean-Louis Commoli entendia que todas as manipulaes geravam um coeficiente de no-realidade
no documentrio, um tipo de aura ficcional que se atraca nos fatos e eventos filmados
17
(Ibdem: 10). Mais
15 (The observational school) present not the truth but their truth. The term cinma vrit, by postulating some kind of absolute
truth, is only a monumental red herring. The sooner it is buried and forgotten, the better
16 In a sense, editing is a fiction, really, because youre putting it together, youre taking things out of place.
17 coefficient of non-reality, a kind of fictional aura attaches itself to the filmed events and facts.
Crnicas de um Vero (1961):
marco do estilo cinma vrit.
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Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
do que problemas retricos saber o que documentrio ou no a prevalncia da linguagem transparente
como paradigma absoluto criou tambm problemas legais.
O pesquisador britnico Brian Winston entende que, alm da questo da transparncia, o sucesso do cine-
ma direto na TV acabou por vincular a no-fico s regras do jornalismo, o que permitiu ao documentrio
estabelecer uma reivindicao mais forte de realismo do que era possvel anteriormente
18
(Winston, 2006:
22). Isso, de acordo com o autor, levou a imposio de uma srie de amarras aos realizadores, j que crticos
da imprensa e, pior, reguladores passaram a exigir que os documentaristas respeitassem a tica jornalstica de
no interveno e de estrita observao
19
(Ibdem).
O caso estudado por Winston da srie The Connection, exibido em 1998 pelo Channel 4, conceituado
canal estatal britnico especializado em no-fices. O documentrio tratava da atuao das mulas, pessoas
a servio dos cartis colombianos que levavam cocana do pas sul-americano para o Reino Unido geralmen-
te engolindo cpsulas com a droga. O fato de ter sido filmado em diferentes etapas, mas apresentado como
se fosse um caso nico, alm de a produo ter utilizado uma pessoa conhecida do diretor Marc De Beaufort
como personagem, provocou uma avalanche de crticas.
A imprensa, especialmente o jornal The Guardian, acusou a srie de ser uma falsificao (fakery)
e chegou a prever o afundamento do Channel 4 (Ibdem:10). O escndalo gerou uma sanha reguladora
no Reino Unido. Tanto que o Independent Television Comission (ITC) rgo fiscalizador da radio-
difuso britnica - instalou uma investigao (Painel) que, tendo o cinema direto como parmetro
principal e partindo do princpio de que qualquer notcia, independente da forma, deve ser apresen-
tada com a devida preciso e imparcialidade
20
(Ibdem:11), concluiu que a srie no havia seguido
parmetros de estrita confiabilidade, e imps uma multa de dois milhes de libras ao Channel 4 com
o objetivo de prevenir que novas fraudes fossem veiculadas. Segue um trecho do relatrio do ITC:
O Painel sabe que as cenas nos documentrios nem sempre so
aquilo que aparentam ao pblico e que alguns documentaristas ge-
nuinamente acreditam ser autorizados para editar a realidade. A
despeito disso, este Painel frme em seu ponto de vista de que as
cenas retratando a jornada das mulas no deveriam ser apresen-
tadas daquela maneira. Este programa, que reivindica ser srio,
deveria ter optado sem hesitao pela estrita confabilidade; falhou
em fazer isso, ento assaltou a credibilidade e causou desiluso nos
espectadores.
21
(Apud Winston, 2006: 19)
Brian Winston viu tanto nas crticas como nos resultados do Painel uma imposio da superioridade dos cnones do ci-
nema direto, uma variao simplista da ideia do sculo XIX de que a cmera no mente ou, igualmente ingnuo, de que
ela capaz de oferecer uma estrita confiabilidade
22
(Ibdem: 19). Para o autor, a investida contra The Connections abriu
18 allowed documentary to lay a stronger claim on the real than was possible previously
19 A journalistic ethic of non-intervention and strict observation..
20 must be presented with due accuracy and impartiality
21 The Panel knows that scenes in documentaries are not always what they seem to viewers and that some documentary-makers ge-
nuinely believe that they are entitled to edit reality. Notwithstanding this, the Panel is firmly of the view that the scenes depicting the
mules journey should not have been presented in this way. This avowedly serious programme should have opted without hesitation for
strict reliability; that it failed to do so attacks trust and causes disillusion in viewers.
22 is a simple variant on the nineteenth-century idea that the camera does not lie or, equally nave, that it is capable of offering
strict reliability.
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Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
um perigoso precedente, j que a multa foi imposta sem que fosse provado que o documentrio tenha causado qualquer
espcie de dano, apenas baseado na suposio de que o pblico poderia estar sendo enganado.
A noo de que o documentrio tivesse de seguir esse dogma que mistura as regras do jornalismo com procedi-
mentos do cinema direto fez outra vtima, ainda mais clebre: Michael Moore. Seu estilo jocoso e seu ativismo de
esquerda geraram uma srie de inimigos na imprensa especialmente naquela alinhada com o Partido Republicano
nos Estados Unidos que utilizaram-se das imprecises cronolgicas do filme Roger e Eu (Roger and Me, EUA,
1989, 90 min) para desacredit-lo e estigmatiz-lo como um demagogo
23
e um fomentador de polmicas profissio-
nal (Saunders, 2010:20).
Ao contar a histria de como a transferncia da fbrica da General Motors de sua cidade natal, Flint (Michi-
gan), para instalaes no exterior, Moore focou nas consequncias para a populao e para a economia local.
No falou em detalhes que o processo havia demorado alguns anos entre outras imprecises. A reao foi
agressiva e tinha como mote principal a acusao de que Moore havia empreendido um inacreditvel desvio
na forma do documentrio
24
(Schultz apud Saunders, 2010:20).
Como observa Winston, nenhum dos crticos de Moore jamais questionou se ele havia deturpado a situao
subjacente em Flint
25
(2006:36). O pesquisador v nesse tipo de iniciativa, a cobrana desmedida de fidelidade ao
factual, uma forma de censurar os documentaristas, de tolher sua criatividade e seus impulsos artsticos. Para ele,
tais questionamentos ticos e morais recaem sobre o documentrio, um segmento menor no audiovisual, de forma
muito mais incisiva do que em outros produtos ligados ao mainstream miditico (Ibdem:39).
Nessa mesma linha de pensamento, Patrcia Aufderheide ainda mais contundente. Ela entende que os
documentrios na atualidade Brave New Films se contrapem deliberadamente contra a mdia e seu
entendimento status quo da realidade
26
(2007:6). Os ataques aos documentrios so estimulados pelo fato dos
realizadores se proporem a preencher os buracos na cobertura da mdia mainstream, batendo de frente com
muitos dos interesses das prprias empresas jornalsticas e de seus parceiros, procurando atuar como a voz do
pblico, s que de maneiras distintas. Afinal, como ressalta a autora, os documentaristas se consideram con-
tadores de histrias e no jornalistas
27
(Ibdem:1-7).
23 gonzo demagogue
24 an incredible shift in the documentary form.
25 And none of Moores critics has ever argued that he remotely misrepresented the actual underlying situations in Flint.
26 On the margins of mainstream media, slightly off-killer from status-quo understandings of reality
27 most documentary filmmakers consider themselves storytellers, not journalists.
Roger e Eu (1989): Micheal
Moore acusado de desres-
peitar as regras do docu-
mentrio.
A SUBJETIVIDADE
INVADE O REALISMO
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Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Do desejo do sonho participam o gosto e o amor pelo cinema.
Robert Denos
1
O
inegvel sucesso do cinema direto, sobretudo na televiso, explica em parte o crescimento do docu-
mentrio enquanto negcio. De acordo com Aufderheide, a indstria da no-fico chegou a movi-
mentar US$ 4,5 bilhes em 2004 (2007:4). Mais que isso, a linguagem do cinema direto deu origem
a um sem nmero de produes que se tornaram cargo-chefe de emissoras do mundo todo.
Exemplo de maior xito da apropriao da esttica fly on the wall o programa Big Brother, desenvol-
vido pela corporao holandesa Endemol e licenciado para 40 pases atualmente, 12 edio brasileira
est no ar. O legado do cinema direto tambm est presente em grande parte dos realities shows que se
tornaram febre mundial a partir da virada do sculo. Sem contar o uso do estilo documentrio em produ-
es ficcionais. Exemplo de grande sucesso nesse sentido a srie The Office produzida primeiramente
pela BBC no Reino Unido e refilmada desde 2005 pela norte-americana NBC no qual o cotidiano de
um escritrio de vendas de papel captado como se fosse um documentrio direto, alm da incluso de
entrevistas que soam como depoimentos reais.
Mas o cinema direto no nico responsvel pela popularizao do documentrio. Tambm nos anos 1960,
paralelamente consolidao do estilo vrit, desenvolveu-se a produo das fices dramticas realistas
2
(Paget apud Winston, 2006: 24), ou simplesmente docudrama. Reencenaes de eventos prvios era do cine-
ma, ou de situaes no captadas, tal tcnica caiu nas graas dos produtores de no-fico.
Para Winston, o surgimento do docudrama, inclusive, ajudou a consolidar a idia de transparncia da re-
alidade do cinema direto, j que colocava qualquer espcie de reencenao ou reconstruo fora do escopo
de verdade que os cnones daquele estilo pregavam o que uma negao dos fundamentos do filme
documentrio
3
(Ibdem:25).
Patricia Aufderheide entende que a indstria do documentrio televisivo se consolidou utilizando uma
mescla tcnicas que inclui o clssico cinema expositivo voz de Deus, o uso em larga escala das reen-
cenaes, o depoimento de especialistas (Talking heads) e, sempre que possvel, o uso do cinema direto,
sobretudo de arquivos. Segundo Aufderheide, um executivo do History Channel, durante um encontro
com produtores de TV, explicou o porqu do uso reiterado dessa frmula na TV: Fazemos assim porque
barato e funciona (2007:18).
Para a autora, a popularizao dos canais de no-fico consolidou uma srie de clichs sobre o que um
documentrio normal no imaginrio do pblico.
1 2008: 317
2 realistic dramatic fictions.
3 directly denying one of the documentarys foundations.
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Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Um documentrio parece o qu? A maioria das pessoas carrega dentro
de si uma noo tosca do que o documentrio. Para muitos, no um
tipo de flme legal. Um documentrio normal geralmente signifca um
flme com uma sonora narrao voz de Deus, argumentos analticos
em vez de uma histria com personagens, sequncias de especialistas
fermentados por algumas entrevistas de populares na rua, estoque de
imagens que ilustram o ponto de vista do narrador (...), talvez uma pe-
quena animao educacional e musica conceituada. Uma combinao
de elementos quase sempre lembrada de forma pouco afetuosa. Era
muito interessante, no como um documentrio normal, uma res-
posta comum a uma experincia gratifcante no cinema.
4
(Ibdem: 10)
Esses tipos de filmes srios, que pretendem-se portadores da verdade ou que moldam a percepo da re-
alidade, como diz Aufderheide (Ibdem: 5) so os que fazem a indstria da no-fico um negcio lucrativo.
Por outro lado, representam o anti-modelo, a anttese de parte expressiva da produo contempornea, muito
mais voltada para o desenvolvimento artstico desse tipo de cinema, contando histrias da realidade, mas no
reivindicando verdades totalizantes e supostamente definitivas.
The new documentary
Valsa com Bashir certamente um dos representantes mais emblemticos da nova safra de documentrios
que muitos dos pesquisadores classificam como o novo documentrio (the new documentary). Focado na
subjetividade dos personagens, com todas as incertezas e ambigidades de suas memrias, e sem postular re-
presentar uma verdade objetiva e transparente at por se tratar de uma animao o filme israelense, de uma
forma um tanto quanto extremada, rene muitas das caractersticas desse novo documentrio.
O personalismo, o hibridismo e a diversidade tanto esttica quanto temtica so as marcas do tal novo
documentrio (Saunders, 2010: 70), cujos realizadores rejeitam peremptoriamente ser confundidos com con-
tabilistas da verdade. A rejeio aos cnones do cinema direto dos grandes motivadores do documentrio
contemporneo. Para Winston (2006: 25), houve uma verdadeira renascena (renaissance) na no-fico, que
ficou marcada pelo lanamento do filme A Tnue Linha da Morte (The Thin Blue Line, EUA, 1988, 85 min),
do cineasta, filsofo e ex-policial Errol Morris.
Morris lanou mo de vrios recursos estilsticos h tempos renegados pelos prceres do cinema direto e
pela ctedra obsessiva pela verdade objetiva. O diretor revisitou o caso da morte de um policial no final dos
anos 1970 na cidade de Dallas, Texas, que levou condenao a morte de Randall Adams. O diretor criou uma
narrativa cclica, mostrando depoimentos dos diferentes envolvidos no caso investigadores, advogados, tes-
temunhas, promotores, jornalistas que cobriram o caso, alm dos dois envolvidos no crime no para construir
uma nova verso dos fatos, mas para evidenciar as contradies e falhas do processo que condenou Adams.
Ao utilizar repetidas reencenaes do crime para ilustrar os diferentes depoimentos sobre o caso, junto
da musica fantasmagrica de Philip Glass e o vai-e-vem de das falas dos envolvidos, Morris consegue
4 What does a documentary look like? Most people carry inside their heads a rough notion of what documentary is. For many of them,
it is not a pretty picture. A regular documentary often means a film that features sonorous, voice-of-God narration, an analytical
argument rather than a story with characters, head shots of experts leavened with a few people-on-the-street interviews, stock images
that illustrate the narrators point of view (), perhaps a little educational animation, and dignified music. This combination of ele-
ments is not usually remembered fondly. It was really interesting, not like a regular documentary, is a common response to a pleasant
theatrical experience.
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Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
criar uma narrativa que, pouco a pouco, vai deixando claro as razes que levaram a polcia a aceitar a
verso do outro envolvido no caso, corroborada por testemunhas, David Harris que, na realidade, era o
verdadeiro executor do policial.
O impacto do filme de Morris foi tamanho que Randall Adams acabou absolvido pela Suprema Corte ame-
ricana em 1989 e David Harris executado judicialmente na cadeira eltrica, embora por outro crime. Ou seja,
desafiando a obsesso realista do cinema direto e sem a arrogncia dos filmes expositivos, Morris atingiu a
verdade por caminhos alternativos, mais subjetivos, alcanando as contradies por meio das entrevistas que
acabaram colocando em xeque a verso endossada pela policia poca.
Foi por empregar um estilo altamente personalista de investigao, sem compromisso com os cnones ob-
servacionais, que Winston atribuiu a Morris o pioneirismo no que ele chamou de renascena do documentrio.
Uma assertiva de Morris ilustra bem seu pensamento sobre tema:
Eu acredito que o cinma vrit retrocede a realizao de document-
rios em vinte ou trinta anos. Ele v o documentrio como uma subesp-
cie de jornalismo... No h razo para que os documentrios no sejam
pessoais como as fces e tragam a marca daqueles que o fzeram. A
verdade no garantida por estilo ou expresso. Ela no garantida
por nada.
5
(Apud Arthur, 1993: 127)
Essa atitude de negao ao cinema direto abriu as portas para uma srie de experimentaes no campo da
no-fico, distanciando-o da objetividade metafsica das regras jornalsticas e aproximando-o da ambiguidade
e rebeldia da arte. Como diz Saunders, a linguagem do documentrio foi se tornando crescentemente multi-
5 I believe cinma-vrit set back documentary filmmaking twenty or thirty years. It sees documentary as sub-species of journalism
Theres no reason why documentaries cant be as personal as fiction filmmaking and bear de imprint of those who made them. Truth
isnt guaranteed by style or expression. It isnt guaranteed by anything.
Reencenaes e narrativa cclica: Morris d novo flego ao documentrio com A Tnua Linha da Morte (1988).
52
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
-referencial, reflexiva, idiomtica, reconstrutiva, autobiogrfica, pessoal, polmica, autoral e performativa
6
(Saunders, 2010: 70). Michael Chanan entende tal fenmeno como um desvio crucial no idioma do documen-
trio, quase uma ruptura epistemolgica, na qual a velha idia de objetividade vista como ingnua e fora de
moda, alm de ser revogada pela assertividade da identidade subjetiva do realizador dentro do prprio texto do
filme
7
(Apud Saunders, 2010: 70).
Embora A Tnue Linha da Morte seja encarada como um marco da retomada criativa e artstica do do-
cumentrio, os embries que ensejaram a tal ruptura epistemolgica postulada por Chanan e tambm por
Nichols, datam de muito antes. As inovaes experimentais, conforme Aufderheide, esto presentes nos filmes
de sinfonias sobre cidades das dcadas de 1920 e 1930, cujo cone mor a obra de Walther Ruttmann Berlim:
a sinfonia da metrpole (Berlin: die Sinphonie der Grosstadt, 1927, 65 min).
Segundo Aufderheide, o filme de Ruttmann absolvia elementos de movimentos artsticos como o surre-
alismo e o futurismo e a inteno do autor seria permitir s pessoas ver de uma maneira qual no estavam
acostumadas, j que, inspirado na obra do russo Dziga Vertov, acreditava no poder do documentrio de ser um
olho na sociedade de uma maneira que transcendia o poder da observao humana
8
(2007: 15).
As experincias como a Ruttmann, empreendendo uma juno da no-fico com os conceitos vanguardis-
tas dos movimentos artsticos do incio do sculo XX, buscavam oferecer um ponto de vista profundamente
pessoal do realizador acerca da realidade apresentada. Esse estilo pico, mais focado na abstrao artstica
do que na inteno de informar ou exibir uma realidade de forma objetiva, est presente em obras como a do
brasileiro, radicado na Frana, Alberto Cavalcanti, autor de Rien que les Heures (Frana, 1930, 45 min), sobre
Paris, e na do holands Joris Ivens, realizador de Chuva (Regen, Holanda, 1929, 12 min), no qual apresenta de
forma bastante particular a cidade de Amsterdam ambos exemplos de filmes sinfonia (Nichols, 2005: 138).
Nessa mesma linha experimental esto obras de Luis Buuel como Um co andaluz (Un chien andalou,
Frana, 1928), feito em parceria com Salvador Dal, e a Idade de Ouro (Lge DOr, Frana, 1930), filmes
que, segundo Nichols, do a impresso de uma realidade documental, mas povoam essa realidade com
personagens que surpreendidos em desejos incontrolveis, com mudanas abruptas de tempo e espao e com
mais enigmas do que respostas(Ibdem: 140). Exemplo mais atual dessa tendncia a obra de Godfrey Reg-
gio Koyaanistiqatsi (EUA, 1982, 86 min), um pico ecolgico que usava as tcnicas pioneiras dos filmes de
sinfonia de cidades para produzir um comentrio histrinico sobre os efeitos da devastao humana sobre a
Terra
9
(Aufderheide, 2007: 15).
A ousadia pioneira desses realizadores abriu o caminho para o documentrio estar mais prximo da
arte. No toa que, com a ascenso do cinema direto e a prevalncia dos cnones realistas subsidirios s
regras do jornalismo, tais obras vanguardistas, como quase toda produo anterior aos anos 1960, tiveram
questionadas sua validade, sua credibilidade enquanto documentrios (Winston, 2006: 25) por no obser-
var os preceitos da objetividade.
6 is thus increasingly cross-pollinated, reflexive, idiomatic, reconstructive, autobiographical, personal, polemical, authorial and
performative.
7 a crucial shift in the documentary idiom, almost an epistemological break, in which the old idea of objectivity is seen as nave
and outmoded, and is revoked by asserting the subjectivity identity of the filmmaker within the (text) of the film.
8 The power of documentary to be an eye on society in a way that transcended the power of human observation.
9 techniques pioneered by city symphony films to make an histrionic commentary on mankinds devastating effect on the earth.
53
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Nesses trabalhos, as convenes do documentrio regular esto em
grande parte ausentes. Nenhum narrador nos diz para onde ir; ne-
nhum especialista assegura autoridade; a realidade ordinria deli-
beradamente distorcida para que ns a vejamos diferentemente; trilhas
sonoras so utilizadas para propostas diferentes que dar deixa para
as emoes relacionadas histria. Padres de claro e escuro, o som
hipntico da musica repetitiva, o aspecto de objetos do mundo natural
projetados em muitas vezes o seu tamanho, alm de outros artifcios
que nos deslocam para fora dos nossos hbitos visuais. Esses experi-
mentos ampliaram largamente o repertrio de enforques formais para
os realizadores de documentrio. Ao mesmo tempo, esses experimentos
forneceram um contraste agudo s convenes mais comuns, aquelas
transmitidas pela televiso.
10
(Aufderheide, 2007: 17 e 18)
Os experimentalismos artsticos foram classificados por Nichols como documentrios poticos a
quinta de suas categorizaes: uma forma de representar a realidade em uma srie de fragmentos, im-
presses subjetivas, atos incoerentes e associaes vagas (2005: 140). Por outro lado, o autor acredita
que tais filmes no seguiam a tradio do documentrio de representar o mundo histrico. Por mais que
retirassem desse mundo histrico a matria prima de suas obras, seu foco seria a representao de um
mundo da imaginao do artista (Ibdem: 139).
A tarefa de expressar o personalismo do realizador, usando e abusando de recursos estticos, muita vezes
estranhos noo de transparncia ontolgica da imagem fotogrfica to cara ao cinema direto, e a mesmo
tempo tratar do mundo histrico, ainda que de forma ambgua, foi o desafio encarado por muitos documentaris-
tas na segunda metade do sculo XX e que culminou com as produes ora denominadas new documentary,
surgidas, sobretudo, aps o chamado renascimento encarnado por A tnue linha da morte.
A guinada subjetiva no documentrio
Se enquanto forma e expresso autoral, o documentrio j havia adotado a subjetividade desde as expe-
rincias abstratas da dcada de 1920, a construo das histrias por meio da subjetividade dos personagens
representados, e, assim mesmo, alcanar um realce no vnculo com o tal mundo histrico, foi um passo
dado mais adiante. A necessidade de se contar uma histria de forma totalizante, representando a verdade
de maneira inequvoca, no tolerava a dubiedade e a incerteza das narrativas pessoais. A subjetividade,
em vez de realar o impacto do documentrio, poderia, na verdade, comprometer sua credibilidade
11
,
como diz Nichols (1991: 29 e 30).
Pegando carona na pedagogia, o conceito de subjetividade trata de um tipo de conjuno de sistemas psi-
colgicos que atuam na individuao do homem, mas que no esto desvinculados de sua insero histrica
e cultural. De acordo com Susana Ins Molon, estudiosa do russo Lev Vygostski terico referencial sobre o
funcionamento da subjetividade -, a subjetividade manifesta-se, revela-se, converte-se, materializa-se e ob-
10 In all these works, the conventions of regular documentary are largely absent. No narrator tells us what is going on; no experts
provide authority; ordinary reality is deliberately distorted so that we will see it differently; soundtracks are used for other purposes
than cueing story-linked emotions. Patterns of light and dark, the hypnotic sound of repetitive music, the sight of objects from the
natural world projected at many times their size, and other devices shock us out of our visual habits. These experiments have greatly
expanded the repertoire of formal approaches for documentary filmmakers. At the same time, these experiments provide a sharp con-
trast to the most common conventions, those usually used in broadcast television.
11 Subjectivity, rather than enhancing the impact of a documentary, may actually jeopardize its credibility
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Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
jetiva-se no sujeito. Ela um processo que no se cristaliza, no se torna condio nem estado esttico, e nem
existe como algo em si, abstrato e imutvel. permanentemente constituinte e constituda. Est na interface do
psicolgico e das relaes sociais (Molon, 2003: 68).
Voltando a Nichols, o vinculo do documentrio com o mundo histrico e com os discursos da sobriedade,
no abria espao para a subjetividade. Na maioria dos casos, os atores sociais que falam com a cmera no fa-
lam sobre si prprios, mas sobre eventos, assuntos ou tpicos nos quais eles possuem especial conhecimento
12
(1991:29). Ou seja, a objetividade seria o nico caminho para apresentar o mundo do jeito que o mundo havia
escolhido para ser representado.
Ela (a objetividade) adota a postura de neutralidade inocente frente
s artimanhas de indivduos, instituies e sistemas sociais, enquanto
tambm prescreve uma das pedras fundamentais de profsses como o
jornalismo e certas formas de etnografa, antropologia, sociologia e
realizao de documentrios.
13
(Ibdem: 128)
A necessidade de apresentar, por meio da objetividade, a verdade e no apenas uma verdade, retardou a
entrada do documentrio no universo de fragmentao e incerteza que caracteriza a ps-modernidade. Ape-
sar de a cultura do sculo XX nos ter dado um mundo rico em ambigidade, indeterminao, subjetividade e
dvida, um mundo ps-freudiano, ps-einsteiniano, radicalmente diferente do mundo cartesiano, newtoniano
que prevaleceu da Renascena at a I Guerra Mundial, este no o mundo que o documentrio geralmente
representa
14
(Ibdem: 115).
A prevalncia do objetivismo, viva ainda hoje, como j abordado, no impediu que o documentrio aden-
trasse ao movimento que Beatriz Sarlo caracteriza como guinada subjetiva(2007:18), marcado por uma
mudana drstica no entendimento do que vem a ser o tal mundo histrico. Trata-se do perodo em que as
grandes narrativas histricas, com suas linearidades e grandes feitos, passaram a ser questionadas em face
da emergncia dessa histria menos total, mais baseada nas memrias de diferentes atores sociais do que nos
documentos fsicos do passado que, embora continuem cruciais, passam a ser submetidos crtica sobre suas
origens e sobre as intenes daqueles que os produziram.
Tal movimento conhecido como nova histria, que tem no francs Jacques Le Goff um de seus expoentes.
O interesse da memria coletiva e da histria j no se cristaliza exclusivamente sobre os grandes homens, os
acontecimentos, a histria que avana depressa, a histria poltica, diplomtica, militar. Interessa-se por todos
os homens... (2003: 531).
Beatriz Sarlo entende que os sujeitos, sobretudo aqueles negligenciados pelas narrativas oficiais, passaram
a adquirir uma nova importncia e seus relatos, por mais centrados que sejam na subjetividade de suas experi-
ncias individuais, passam a ter valor representativo na caracterizao dos fatos histricos. A voz e o corpo dos
indivduos que viveram na carne os fatos comeam a ser valorados enquanto verdade.
12 In most cases social actors who speak to the camera will not speak of themselves but of events, issues, or topics of which they
have special knowledge.
13 It adopts a posture of innocent neutrality in the face of the wiles of individuals, institutions, and social systems while also providing
one of the foundation stones for professions like journalism and certain forms of ethnography, anthropology, sociology, and documen-
tary filmmaking.
14 Although twentieth-century culture has given us a world rich in ambiguity, indeterminacy, subjectivity, and doubt, a post-Freudian,
post-Einsteinian world radically different from the Cartesian, Newtonian world that prevailed from Renaissance to world War I or so,
this is not the world that documentary usually represents.
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Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Vivemos uma poca de forte subjetividade e, nesse sentido, as prerro-
gativas do testemunho se apoiam na visibilidade que o pessoal adqui-
riu como lugar no simplesmente de intimidade, mas de manifestao
pblica. Isso acontece no s entre os que foram vitimas, mas tambm
e fundamentalmente nesse territrio de hegemonia simblica que so
os meios audiovisuais. Se h trs ou quatro dcadas o eu despertava
suspeitas, hoje nele se reconhecem privilgios que seria interessante
examinar. (...) No se trata simplesmente de uma questo da forma do
discurso, mas de sua produo e das condies culturais e polticas que
o tornam fdedigno. (2007: 20 e 21)
Essa verdade principiada no sujeito, em suas experincias, d origem a uma nova noo de realismo, que
passa a abarcar os aspectos que, por intangveis e incomensurveis, no eram levados em considerao outrora.
Sarlo v o incio deste movimento com o fim da I Guerra Mundial. Baseada no pensamento de Walter Benja-
min, a autora argentina fala de soldados que voltaram do combate emudecidos, incapazes de relatar as vivn-
cias extremadas que abateram fulminantemente o minsculo e frgil corpo humano (Apud Sarlo, 2007: 25).
Para Beatriz Sarlo, essas vivncias limites, que transcendem a capacidade de entendimento racionalizada, colocaram
em xeque o positivismo histrico e sua tendncia reificao das experincias ao transform-las num fato (Ibdem: 28 e
29). Ou seja, no haveria mais como compreender, tornar mais inteligvel, um evento importante do passado sem levar em
considerao a subjetividade daqueles participaram, mesmo no sendo figuras centrais, daquele fato histrico.
Tal tendncia acabou ganhando legitimidade inconteste a partir do fim da II Guerra Mundial e a emer-
gncia dos testemunhos dos sobreviventes do Holocausto ou Shoah, como chamam os judeus. Falar
sobre a realidade dos campos de concentrao, da matana sistemtica e industrializada, do horror em
nvel antes jamais experimentado pela humanidade, conferia um valor de verdade aos relatos. Tratava-se
de uma questo moral, pois seria uma leviandade abjeta duvidar daqueles que viveram, e sobreviveram,
quela realidade inacreditvel.
Como dizia o escritor judeu italiano Primo Levi, tambm sobrevivente do Holocausto, era impossvel para
os sobreviventes no falar daquela experincia: o sujeito que fala no escolhe a si mesmo, mas foi escolhido
por condies tambm extratextuais (Sarlo, 2007: 35). Para Sarlo, so essas condies extratextuais, externas
a vontade do sujeito, que conferem legitimidade ao relato subjetivo em primeira pessoa.
O relato dos sobreviventes do Holocausto, para Sarlo, acabou tornando-se paradigma de testemunhos da-
queles que vivenciaram situaes extremadas como massacres e torturas. Em casos como os das ditaduras
latino-americanas, entre os anos 1960 e 1980, e do regime de apartheid da frica do Sul, o testemunhal em
primeira pessoa serviu de modelo para o funcionamento das comisses de verdade criadas para distender os
nimos exaltados de sociedades profundamente dividas e traumatizadas (Ibdem: 46 e 47).
Para o alemo Andreas Huyssen, o poder retrico dos relatos dos sobreviventes judeus se converteu numa ten-
dncia mundial da era ps-moderna. o que ele chama de globalizao do discurso do Holocausto (2001:12):
precisamente a emergncia do Holocausto como uma fgura de lin-
guagem universal que permite memria do Holocausto comear a
entender situaes especfcas, historicamente distante e politicamente
distintas do evento original. No movimento transnacional dos discur-
sos de memria, o Holocausto perde sua qualidade de ndice histrico
especfco e comea a funcionar como uma metfora para outras hist-
rias e memrias. (Ibdem:13)
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Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
O empreendimento de analogias do Holocausto para com outros massacres e genocdios foi uma tendncia
inclusive abarcada por Valsa com Bashir, que, por meio da animao, promoveu uma intertextualidade ima-
gtica que comparou o massacre de palestinos nos campos de Sabra e Chatila ocupao nazista do Gueto de
Varsvia em 1942 assunto que ser melhor explorado mais adiante.
Mas tambm o Holocausto o episdio motivador da obra tida por autores como Saunders e Nichols como
marco na mudana de rumos do cinema documentrio. Foi em 1955, dez anos aps o fim da II Guerra Mundial
e cinco antes da emergncia do cinema direto, que o cineasta francs Alain Resnais produziu e lanou o cls-
sico Noite e Neblina (Nuit et Bruillard, Frana, 1955, 32 min).
Resnais enfrentou todo o potencial de censura de uma Frana ainda culpada por seu papel colaboracionista
do regime nazista para construir um documentrio que, de uma maneira nada convencional, explicita a insani-
dade racionalista que levou soluo final do extermnio. A justaposio de imagens de arquivo com filmagens
do campo de Auschwitz abandonado hoje funciona um museu no local serve para ilustrar a narrativa escrita
pelo poeta e sobrevivente judeu Jean Cayrol.
A narrao feita pelo ator Michel Busquet no tem a eloquncia pedaggica da tradicional voz de Deus,
tampouco o tom indignado e acusatrio de muitas das produes que objetivavam criminalizar os alemes por
embarcarem na aventura totalitria de Hitler. A histria contada de uma forma neutra, nada engajada, o que,
junto da trilha de Hans Eisler, cria o clima de pesadelo que, aos poucos, incute uma sensao de profundo mal-
-estar na audincia.
O texto de Cayrol mostra como todo aquele horror era fruto no de uma monstruosidade deliberada, mas
de um pensamento racional, que buscava a eficcia to tpica do pensamento iluminista. A narrativa foca o
dia-a-dia do campo de concentrao, a rotina de fome, doena, humilhao e a espera do momento da morte.
Mostra tambm como o campo era planejado tal como uma cidade feita para funcionar a pleno vapor, alm de
falar sobre como os agentes nazistas atuavam ali como trabalhadores que seguiam ordens, e no como carras-
cos embora o fossem.
A placidez com que o texto descreve o horror contrasta com a fora das imagens dos corpos empilhados, dos ossos,
das feridas obtidas em experincias mdicas, dos perfis magrrimos dos prisioneiros famintos, dos cadveres rumo
aos fornos ou s valas comuns. Como diz Willian Rothman, trata-se de uma jornada alegrica at o centro da regio
onde o horror indescritvel est por ser descoberto
15
(Apud Saunders, 2010: 137).
As cenas em que Resnais mostra o detalhe dos tetos das cmaras de gs, com as marcas das unhas dos prisioneiros
desesperados frente morte eminente, provoca um verdadeiro clmax de mal-estar em quem assiste a obra. Por fim,
ao mostrar os discurso dos oficiais e kapos judeus recrutados para ajudar os nazistas dizendo no serem os res-
ponsveis por aquele horror, Resnais, com a ajuda de Cayrol, chega ao objetivo final de Noite e Neblina: mostrar que
qualquer pessoa, qualquer sociedade, qualquer governo, estaria suscetvel a, em nome de ideais polticos lastreados
pelo racionalismo cientfico, cometer o mesmo absurdo.
O pesadelo de 32 minutos, carregado de onirismo pelo texto de Cayrol e pela musica de Eisler, no tem um
final definido, no prope uma soluo ou fechamento (Ibdem: 149). a subjetividade que d o tom do filme
que, como define Saunders, uma misso absolutamente intelectual ao corao do inexorvel, maldade
adormecida que tem de ser descoberta por cada um de ns
16
(Ibdem: 138).
15 an allegorical journey into the heart of a region in which unspeakable horrors are to be discovered.
16 an absolutely intellectual mission into the headlands of inexorable, eternally dormant evil that must be discovered by each of us.
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Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Noite e Neblina foi pioneiro ao abrir o caminho que permitiu a juno da subjetividade com o discurso
ontologicamente realista do documentrio, sem que isso caracterizasse um contra-senso que comprometesse
sua credibilidade e seu vinculo, ainda que difuso, com o mundo histrico. As experincias que atuariam nos
limites da fronteira do conceito de documentrio sucederam-se de forma marginal ao mainstream desse tipo
de cinema, caracterizado pelo estilo direto e suas variaes e tambm pela frmula barata e eficiente con-
sagrada pelos canais de TV especializados, at o ponto de virada representado por A Tnue Linha da Morte.
Foram essas novas experincias documentais que, segundo Nichols, levam a fora da histria, da memria
e do conhecimento ao nvel da experincia imediata e da subjetividade individual. Como um texto poderia res-
taurar a magnitude que caracteriza a experincia vivida quando s poderia fazer representaes dentro daquilo
que circunscreve os seus limites? (do documentrio)
17
(1994:16).
Dave Saunders, mais radical, entende que Noite e Neblina inaugurou uma fase no documentrio que carac-
teriza-se pelo desejo de realizadores de ir para alm dos cnones iniciais de Grieson o tratamento criativo
da realidade/verdade e de superar de vez a paranoia da imagem transparente, cronolgica e no mediada do
cinema direto e do cinma vrit.
pode-se argumentar que a histria e a epistemologia da no-fco
nunca precisou ser dependente do entendimento simplista de ser um
fac-smile da vida real, da propaganda, dos escorregadios ideais do
jornalismo ou dos modelos de Hollywood de contar histria. Realida-
de, especialmente a memria como realidade, obviamente constitui-se
mais como um labirinto de controvrsias tormentosas do que uma es-
trutura concreta baseada em condensaes tipo preto-no-branco, em
concluses foradas ou em modelos maniquestas estilo o bem contra
o mal: em cada acontecimento, notvel ou aparentemente trivial, exis-
tem as contradies espreita, a emoo, a subjetividade, a concesso
e a complicao muitas vezes inexplicveis, domnios nebulosos da
contemplao potica e reinos nos quais o fardo recai sobre a arte
para fazer um pequeno sentido do nosso mundo profundamente falho
no nvel da alma.
18
(2010:136)
O desvio na linguagem do documentrio
A emergncia de filmes como Noite e Neblina foi consolidando o que Nichols designa como desvio de
propores epistemolgicas no estilo, na linguagem e na esttica do documentrio. Em vez de sugerir totali-
dade e concluso, conhecimento e fato, explicaes sobre o mundo social e seus mecanismos motivadores, o
termo documentrio passou a estar associado incompletude e incerteza, reminiscncia e sensao, imagens
dos mundos pessoais e de suas construes subjetivas
19
(1994:1).
17 These films bring the force of the history, memory, and knowledge down to the level of immediate experience and individual sub-
jectivity. How does a text restore that order of magnitude which characterizes lived experience when it can only make representations
of what lies beyond its bounds?
18 Contra Grieson, it might be argued that history and epistemology in non-fiction never need be reliant upon easily understood facsi-
miles of real life, propaganda, the slippery ideals of journalistic factuality, or the storytelling tropes of Hollywood. Reality, especially
memory-as-reality, of course constitutes a maze of thorny issues rather than a concrete framework based on black-and-white conden-
sations, shoehorned conclusions, or Manichean templates of Good against Bad: in every event, newsworthy or seemingly trivial, lurks
contradiction, emotion, subjectivity, compromise and complication.
19 A shift of epistemological proportions has occurred., fullness and conclusion, knowledge and fact, explanations of the social
world and its motivating mechanisms., incompleteness and uncertainty, recollection and impression, images of personal worlds and
their subjective construction.
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Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Noite e Neblina (1955): Resnais usa
a subjetividade para narrar a hist-
ria de um horror indescritvel.
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Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Ainda que obscurecido pelo sucesso das formas mais tradicionais de no-fico, o documentrio,
marginalmente, acabou alinhando-se s tendncias desta era to presente e ao mesmo tempo to difcil
de compreender que a ps-modernidade. Passou a tratar de temas que enfatizavam o caos da vida mo-
derna com os quais seria impossvel lidar nos parmetros do pensamento racionalista. Como demonstram
produes contemporneas como Valsa com Bashir, Tarnation e My Winnipeg, a vocao realista do do-
cumentrio teve de ceder e entrar em harmonia com as imposies do tempo cultural e histrico que im-
punha a total aceitao do efmero, do fragmentrio, do descontnuo e do catico, alm do pluralismo
e da autenticidade de outras vozes (Harvey , 2009: 49-53).
A assertiva seguinte de Tnia Pellegrini sintetiza o impacto deste tempo ps-moderno nas diferentes formas
de expresso, e que o documentrio, ainda que relutante, houve de aderir.
A objetividade da narrativa, isto , a ideia de que ela conta-se por si
mesma, sem a interveno de um narrador, expresso tpica do re-
alismo, que no vai resistir ao enfraquecimento das vises totalizantes
e universais, substitudas aos poucos pela fragmentao, novo trao a
caracterizar a viso de mundo moderna. O rompimento da cronologia,
a fuso dos planos e dos tempos de conscincia, os deslocamentos es-
paciais baseados na interpenetrao do real e do onrico alteram ra-
dicalmente as estruturas narrativas e a organizao da prpria frase,
que chega a abdicar de seus nexos lgicos, reduzindo-se enumerao
catica de fragmentos... (Pellegrini, 2003:29)
Ou seja, demorou, mas aquilo que j acontecia no cinema desde os tempos de Mlis no campo ficcional,
passou a sobrevir tambm no documentrio. Mesmo que tardiamente, esse outro cinema chegou ao encontro
do pensamento de realizadores que, como Luis Buuel, entendiam ser o filme um meio, um instrumento sem
paralelo para exprimir o mundo dos sonhos, da imaginao, do instinto (2008: 336). Smbolo do movimento
surrealista no campo do audiovisual, Buuel acreditava ser vocao do cinema expressar a vida subconsciente.
O artista espanhol, embora reconhecesse o aporte estilstico promovido pelo neo-realismo, defendia ar-
dorosamente o cinema enquanto meio de representao do misterioso, do fantstico e do desconhecido. A
realidade neo-realista incompleta, oficial, sobretudo racional: as produes so absolutamente desprovidas
de poesia, de mistrio, de tudo o que completa e amplia a realidade tangvel (Ibdem: 337).
O pensamento de Buuel que poderia ser mais uma das crticas cunhadas contra o cinema direto est
presente em inmeras das iniciativas vanguardistas de documentrios produzidos a partir dos fins dos anos
1960. Esse mergulho no subconsciente ganhou mltiplas direes e autorizou o documentrio a experimentar o
hibridismo tanto com os cdigos da fico quanto entre as diferentes tcnicas documentais de forma a, mais
que transparecer uma realidade fidedignamente, pretender ampliar a compreenso sobre esta mesma realidade,
mas de maneiras personalistas, irnicas, sdicas, ambguas e tambm panfletrias.
Os argentinos Octvio Getino e Fernando Solanas, em La hora de los hornos (Argentina, 1970, 260 min)
criaram uma no-fico que junta a potncia sonora percussionista da conga, um esquema catico de apresen-
tao de caracteres com mensagens esquerdistas e um arsenal de imagens de arquivo da realidade argentina
entre os anos 1950 e 1960 para pregar abertamente a revoluo. Uma critica agressiva contra as oligarquias
locais, o colonialismo e a cultura ocidental, a obra pretende ser porta-voz do sentimento de angstia e revolta
do proletariado e campesinato argentinos espcies de vivas dos ureos tempos do governo de Domin-
gos e Eva Pern. Sua originalidade vai alm do formato panfletrio e da edio gil e fragmentada. O filme
60
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
prope sem constrangimentos uma postura golpista contra as elites argentinas. Existe outra alternativa para a
libertao?
20
, questionam os autores. (Apud Saunders, 2010: 72).
Outra obra caracterstica da entrada do documentrio na ps-modernidade Atomic Caf (Jane Loader, Kevin
Rafferty e Pierce Rafferty, EUA, 1982, 86 min). Primeiramente pela temtica que smbolo preponderante deste pe-
rodo: o risco latente de uma catstrofe nuclear entre os anos 1950 e 1980. Segundo pela construo de uma narrativa
catica e fragmentada, na qual sucedem-se trechos de vdeos de treinamentos das foras armadas americanas, produ-
es destinadas a preparar a populao sobre como proceder diante um ataque de bomba atmica, newsreel demoni-
zando o comunismo, entrevistas polmicas e beligerantes de polticos, publicidades de produtos desenvolvidos para
sobreviver a catstrofe como modelos de bunkers e roupas anti-radiao -, alm de um sem numero de referncias
que demonstram o quanto o temor nuclear estava impregnado na cultura americana da poca, tornando a bomba
quase que um cone pop.
s cenas de arquivo juntam-se msicas animadas e ingnuas, sobretudo folks, que constroem o clima de
absurdo apresentado pelo filme. O resultado um retrato aterrador do perodo da Guerra Fria, de como o medo,
o delrio, a desinformao e o oportunismo tomaram de assalto a conscincia da sociedade norte-americana, o
que ajudou a alimentar a retrica belicista que, ainda hoje, pauta boa parte da classe poltica e empresarial do
pas. Um tipo de humor negro cataclsmico que s encontra paralelo na obra-prima de Stanley Kubrick Doutor
Fantstico (Dr. Strangelove or: How I learn to stop worrying and Love the bomb, EUA, 1964, 93 min).
Outro caminho percorrido pelo documentrio nesta era de guinada subjetiva foi o dos filmes que explora-
vam as diversas nuances das memrias dos personagens geralmente figuras que participaram subsidiariamen-
te dos bastidores de grandes fatos histricos. Sem grandes requintes de produo, investiram nas entrevistas
longas e com poucas interrupes no estilo histria oral -, permitindo ao entrevistado observaes e divaga-
es que, se no apresentam novas verses dos fatos, agregam detalhes, banalidades, sensaes e emoes que
ajudam a compreender a dinmica, o ambiente, o zeitgeist da poca representada.
Um dos trabalhos notveis nesse sentido o documentrio alemo Eu fui a secretria de Hitler (Im Toten
Winkel Hitlers Sekretrin, Andre Heller e Othmar Schimireder, Alemanha, 2002, 87 min.). A obra resultado
de trs longas entrevistas com Traudl Junge, umas das secretrias particulares de Adolf Hitler entre 1942 e
1945, sendo em que na ltima delas a personagem comenta as gravaes feitas anteriormente. Sem apoio de
msica nem de imagens de arquivo, a obra mergulha na memria daquela senhora que chegou a auxiliar do
fhrer fortuitamente e que acabou carregando uma culpa insuportvel por ter participado, ainda que de maneira
to marginal, da escalada de crimes contra a humanidade empreendida pelo Reich.
Junge, que por mais de 50 anos se calou sobre o assunto, revela todo seu mal-estar por ter admirado a figura
de Hitler, gentil e comedida na intimidade. A ex-secretria confessa que passou a ter at um sentimento pater-
nal por aquele homem o fato de seu pai ter abandonado o lar durante sua infncia explica o porqu. Alm
de refletir sobre sua culpabilidade por ter sido auxiliar do fhrer, Traudl revela uma srie de impresses, de
informaes aparentemente banais sobre aquele homem que virou sinnimo da infmia humana.
Sua figura andrgina e a evidente falta de erotismo em sua relao com Eva Braun, a vergonha de mos-
trar suas pernas feias e branquelas, o temor de ter um filho que no brilhasse tanto quanto o pai gnio,
o fato de nunca t-lo ouvido falar a palavra amor, a forma velada como tratava a questo dos judeus, a
20 Are there other alternative for liberation?
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Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
obsesso ideolgica e o pouco caso para com os seres humanos, o vinculo com a divina providncia por
ter sobrevivido a um atentado.
Ao explicar as esquisitices do fhrer, Traudl Junge remonta o ambiente de delrio, negao e arrogncia
desesperada que imperava no bunker s vsperas da derrota final para as tropas soviticas. A descrena que
foi tomando conta de todos ao finalmente cair a ficha de que a derrocada frente aos russos era eminente. O
sentimento de traio e abandono frente ao suicdio de Hitler.
O filme, de maneira bastante simples, capta a catarse daquela senhora ao tratar de seu passado pes-
soal, cheio de emoes e ambiguidades. Conseguiu, como postula Sarlo, alcanar o nvel de manifes-
tao pblica, de tornar-se um documento acerca da II Guerra Mundial. No toa, os depoimentos de
Junge serviram de base para o roteiro do filme mais emblemtico poca das celebraes dos 50 anos
do final do conflito: A Queda: as ltimas horas de Hitler (Der Untergang, Bernd Eichinger, Alemanha,
Itlia, ustria, 2005, 155min).
O documentrio consegue ir to a fundo nas memrias e emoes de Traudl Junge que se converteu
num verdadeiro processo de terapia psicolgica para a personagem. Interessante a informao agregada
por Andr Heller nos crditos finais do filme. Ele conta que na noite de estreia do filme no Festival de
Berlim, Junge, bastante debilitada e s vsperas da morte, lhe telefonou e confidenciou: Estou comean-
do a conseguir me perdoar.
Bomba atmica como cone pop de um perodo: Atomic Caf (1982) representa o zeitgeist da Guerra Fria.
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Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Essa vertente psicolgica, em busca de efeitos teraputicos, foi outra das tendncias desenvolvidas pelo
cinema documentrio contemporneo. Transformar a pesquisa e a realizao de um filme numa forma de se
compreender melhor e libertar-se de angstias existenciais foi justamente a estratgia utilizada por Ari Folman
para narrar Valsa com Bashir. S que, em vez de um denso relato sobre suas vivncias traumticas, o diretor
utilizou-se da memria coletiva para contar sua histria de uma forma estilizada na qual o carter onrico dos
sonhos, lembranas e alucinaes ganharam relevo fundamental.
Dois filmes deste incio de sculo XXI, anteriores Valsa com Bashir, tambm procuraram explorar a
subjetividade de seus protagonistas-diretores de uma forma completamente estilizada, usando e abusando de
recursos grficos, encenaes e imagens de arquivo. So dois filmes que no tm um episdio histrico mar-
cante como pano de fundo tal como o massacre de Sabra e Chatila em Valsa com Bashir -, nem tratam de
algum trauma especfico, mas que mergulham de cabea na memria subjetiva de seus personagens, o que
torna impossvel saber se o que se fala ali verdade ou no resta crer nas intenes dos diretores.
Um desses filmes o canadense My Winnipeg (Canad, 2007, 80 min). Nesta espcie de autobiografia
alucinatria
21
(Scott apud Saunders, 2010: 153), o diretor Guy Maddin conta sua verso bem pessoal da histria de
sua cidade natal, Winnipeg, capital do glido e inspito estado de Manitoba, regio central do Canad. Bem diferente
das experincias vanguardistas de sinfnicas dos anos 1920 e 1930, Maddin deliberadamente mistura suas neuroses,
21 ... hallucinatory autobiography...
Traudl Junge revela suas lembranas como secretria de Adolf Hitler: Emoes, sensaes e subjetividade.
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Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
especialmente a relao com sua me, com fatos reais e factoides acerca deste local, onde a neve e a escurido so
constantes na maior parte do ano, para construir o que ele mesmo chamou de um doc-fantasia.
Para mostrar minha Winnipeg, eu tinha que me mostrar tambm
22
(Apud Saunders, 2010: 153), avaliou o
diretor. Quase que inteiramente em preto e branco, o filme procura reproduzir o clima soturno do local, onde a
media de sonmbulos seria dez vezes maior que em qualquer outro lugar do mundo. O documentrio cons-
trudo como se fosse um passeio de trem pela cidade, dentro do qual o prprio Maddin e os demais passageiros
nunca esto nem inteiramente acordados nem dormindo. Junto da narrao desconexa do diretor, que varia do
fantasmagrico ao agressivo-desesperado, o documentrio consegue fazer o pblico tambm se sentir sonm-
bulo, sem saber ao certo o que acontece de fato e o que se passa apenas nos sonhos do diretor.
As ligaes conturbadas com a me representada pela atriz Ann Savage vo e voltam o tempo inteiro.
Bem como a relao ambgua com a cidade, da qual ele parece querer fugir e no consegue. A narrativa catica,
repleta de encenaes e fragmentos de arquivo, resulta em sequncias inteiramente onricas que confundem
enquanto revelam
23
, como diz Saunders, e no oferecem garantias de veracidade histrica (Ibdem: 153). No
h nenhuma celebrao cidade, e sim uma exaltao subjetiva da interao do homem com o seu ambiente.
My Winnipeg, neste sentido, mais desafiador s convenes do cinema documentrio que o prprio Valsa
com Bashir. Para Dave Saunders, ao brincar com a ontologia realista da no-fico, Maddin oferece algo mais
desafiante e talvez, paradoxalmente, um trabalho mais imerso na verdade da cidade e de seus efeitos psico-
22 To show my Winnipeg, I had to show myself.
23 ...confounds as it reveals...
Maddin sonolento em trem que circula durante My Winnipeg (2007): Doc-Fantasia.
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Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
lgicos do que uma crnica de livro
24
(Ibdem: 153). Questionado sobre se realmente acha que My Winnipeg
um documentrio, Maddin contou a resposta dada a ele por sua filha sobre a mesma questo: Claro que um
documentrio um documentrio sobre voc
25
(Apud Saunders, 2010: 158).
O outro filme que segue a linha teraputica Tarnation (EUA, 2003, 88 min), de Jonanthan Cauoette. A
obra centrada na relao familiar do diretor, especialmente com sua me, Renn, ex-modelo infantil que
passou a vida entre idas e vindas de hospitais psiquitricos, onde foi submetida a tratamentos de eletrochoque.
Extremamente performtico, o documentrio mostra um sem numero de cenas feitas pelo diretor desde os 11
anos, quando ganhou sua primeira cmera VHS. So entrevistas com os avs, que o criaram, imagens da cena
gay americana que frequentava, de seus amigos e namorados, alm de performances artsticas Caouette viria
a ser ator - e cenas de puro exibicionismo diante da cmera. Tudo isso editado de forma frentica, tendo como
fio condutor os caracteres que aparecem relatando pontualmente episdios da vida do diretor-protagonista.
O filme empreende uma investigao imagtica sobre o passado de Cauoette e revela uma famlia que se deses-
truturou atormentada pelas doenas mentais e, mais que isso, pela submisso s prescries da medicina psiquitri-
ca. Repleto de elementos pop e underground, uma verdadeira ode esttica dos anos 1980, o documentrio tem uma
linguagem catica muito prxima do videoclipe (estilo MTV), alm de lanar mo de efeitos e manipulaes das
imagens de arquivo, o que reala de forma contundente a subjetividade do diretor. O clima do filme o da apresen-
tao de um dirio pessoal, muitas vezes engraado, outras chocantes, quase sempre perturbador.
Caouette foi acusado de explorar a famlia em benefcio prprio. Afinal, filmava a av em avanado est-
gio de esquizofrenia, a me sob o efeito de fortes medicaes e atormentava o av senil com questionamentos
sobre as razes que o levaram a aceitar os reiterados tratamentos que degradaram a personalidade de Renn.
O diretor se defende afirmando que as filmagens eram um mecanismo de defesa pessoal, uma forma de me
dissociar dos horrores que estavam em volta de mim
26
(Apud Saunders, 2010: 187).
Pode-se at interpretar o filme como um exerccio egosta do diretor que queria apenas se vingar da famlia por
seu passado conturbado - ver a me ser estuprada, abandono, surras dos pais adotivos, tentativas de suicdio. Pode-se
tambm enxergar uma tentativa desesperada de recuperar um amor entre me e filho abortado pelas circunstn-
cias. O fato que Caouette consegue, tanto na forma como na temtica de Tarnation, expor suas verdades interiores,
purgar a necessidade desesperada de contar sua histria como forma de aceitar a si prprio. Ou, como diz Aufderhei-
de, responder ao desafio de se localizar socialmente na realidade ps-moderna
27
(Apud Saunders, 2010: 189).
24 to offer something altogether more challenging and maybe, paradoxically, a work more immersed in the truth of the city and
its psychological effects than any by-the-book chronicle.
25 of course it is a documentary its a documentary about you.
26 Filming was also a way to control and defend myself against my environment and dissociate myself from the horrors around me.
27 ... a response to the challenge of social location in postmodern society.
65
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Caouette usa imagens filmadas desde sua infncia para contar
a perturbadora histria de sua famlia em Tarnation (2003)
A ANIMAO
NO DOCUMENTRIO
67
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
a animao revela-se um mediador crvel do relacionamento entre a
percepo (como uma coisa vista), a interpretao (como uma coisa
entendida) e a criatividade (como uma coisa reelaborada enquanto
expresso material).
Paul Wells
1
O
cinema, tal qual a fotografia, nasceu em meio a uma nsia pelo realismo, pela representao no-
-mediada, automatizada, das coisas em seu estado original, assim como so na natureza. Mas, no
tardou muito para que essa ontologia da transparncia da imagem fotogrfica fosse transgredida. A
manipulao das imagens por meio de efeitos especiais e mesmo a criao de imagens sem vnculos indiciais
com a realidade tornaram-se prticas comuns e contriburam decisivamente para a expanso das possibilidades
artsticas e mercadolgicas do cinema.
Foi George Mlis que introduziu o uso da animao no cinema ao dar vida Lua em seu em seu antolgico
Viagem Lua (Voyage dans la Lune, Frana, 1902, 8 min). Por meio de truques fotogrficos e da tcnica de
stop-motion, Mlis fez a Lua resmungar ao ser atingida pelo foguete dos expedicionrios que protagonizavam
o filme (Hayward, 2006: 20). Seis anos depois, outro francs, mile Cohl, um cartunista profissional, criou o
primeiro filme completamente animado: Fantasmagorie (Frana, 1908). Foram 700 frames desenhados mo
que resultaram num curta de um minuto e dezessete segundos.
Sem uma histria narrativa e sem trilha sonora, o filme resume-se a mostrar animaes bem simples, com-
postas a partir de linhas (stick figures) que resultam em bonecos, objetos e animais em constante movimento e
transfigurao uma das cenas mais marcantes a transformao de um elefante numa casa. A novidade, de
acordo com Hayward, fez do filme um grande sucesso e acabou por influenciar outros cartunistas a embarca-
rem na aventura de dar movimento aos seus desenhos.
A tcnica de Cohl de criar os desenhos em linhas (stick figures) foi adaptada pelo norte-americano Winsor
McCay para antropomorfizao de animais. Assim McCay que viria a ser pioneiro no uso da animao em
linguagem de no-fico transferiu para as telas seu personagem Genie, the Dinosaur (EUA, 1914, 12 min),
que j fazia sucesso nas tirinhas de jornais. No ano seguinte foi a vez do Gato Flix se transformar personagem
de cinema pelas mos de Otto Messmer.
Animais e criaturas com caractersticas e trejeitos humanos popularizaram as animaes, o que levaram-as
a se tornar o principal produto cinematogrfico, e depois televisivo, de uma gigante fundada em 1923: a Walt
Disney Productions. Foi a companhia do Mickey Mouse e do Pato Donald que melhor aperfeioou a rotosco-
pia, tcnica desenvolvida por Dave Fleicher em 1920 que permitia que os desenhos fossem feitos sobre ima-
gens de cenas capturadas da realidade (live action), o que deixava os personagens movimentando-se e agindo
como seres humanos, aumentando significativamente o aspecto realista das criaturas animadas (Ibdem: 21).
1 2002: 38.
68
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Winsor McCay usa a animao pela primeira vez
na no-fico: The Sinking of Lusitania (1918).
No toa a Walt Disney Productions responsvel pelo primeiro cartoon com som sincronizado (Steamboat Willie,
1928, a primeira apario de Mickey Mouse) e tambm pela primeira animao em longa-metragem, totalmente colorida
e sonorizada: Branca de Neve e os Sete Anes (Snow White and the Seven Dwarfs, EUA, 1937, 83 min).
J a hibridizao das animaes com cenas captadas (live action), depois da experincia pioneira de M-
lis no incio do sculo, desenvolveu-se a partir da filmagem de King Kong (Ernest Schoedask, EUA, 1933,
100 min), no qual o boneco de um gorila fazia s vezes de protagonista gigante. Antes de ser tornar tendncia
dominante nos anos 2000, o hibridismo da animao com o filme fotogrfico ganhou grande impulso com as
inovaes tecnolgicas nos anos 1970 e teve como marco o longa-metragem Uma Cilada para Roger Rabbit
(Who Framed Roger Rabbit, Robert Zemeckis, 1988, 104 min).
Se as animaes e efeitos especiais foram fundamentais para a consolidao de gneros cinematogrficos
ficcionais, para o desenvolvimento artstico e tecnolgico do cinema, bem como na multiplicao dos lucros
da indstria do entretenimento, no documentrio a histria bem diferente. Como diz Paul Ward, h tempos
a animao tem sido associada subjetividade, interioridade e a uma inerente manipulao e construtibili-
dade que o documentrio parece evitar
2
(Ward, 2005: 3).
No que esse outro cinema tenha rejeitado categoricamente qualquer tipo de manipulao por meio de anima-
es ou efeitos especiais. Pelo contrrio, a no-fico sempre utilizou-se dessas tcnicas, s que de forma acess-
ria, complementando as informaes e/ou argumentos expostos por meio da imagem fotogrfica e pela narrao,
a voz de Deus. Entretanto, o primeiro filme a ser considerado um documentrio de animao data de 1918, obra
do j citado cartunista norte-americano Winsor McCay (Saunders, 2010: 167).
Em The Sinking of Lusitania (EUA, 1918, 8 min), McCay inaugura uma tendncia que persiste at hoje nas
hibridizaes entre animao e documentrio: a representao animada de eventos que no foram filmados ou
que tm escassas imagens ou ainda que tenham custos proibitivos de reencenao. No caso, McCay contou a
histria do ataque de submarinos alemes ao navio Lusitania, que seguia da Inglaterra para os Estados Unidos
em maio de 1915.
O filme representa com alta carga de dramaticidade o ataque e o desespero dos dois mil passageiros que
estavam a bordo a trilha sonora d o clima de angstia que a obra tenta retratar. Alm das imagens construdas
2 Animation has been long associated with subjectivity, interiority and inherent manipulation or contructedness that documentary
appears to eschew.
69
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
por meio dos desenhos, h o uso intensivo de caracteres com mensagens explicativas, sobretudo acusaes
pela no misericrdia dos alemes, e tambm de fotografias dos inmeros figures norte-americanos que
morreram na tragdia, entre eles banqueiros, esportistas, teatrlogos, filsofos e milionrios. So pouco mais
de oito minutos de uma narrativa intensa de um episdio crucial para os rumos da I Guerra Mundial que, de
outra forma, poderia no ter existido naquela poca, dado os gastos necessrios para se filmar uma tragdia de
tal magnitude com os recursos cinematogrficos disponveis ento.
tambm no perodo da I Guerra Mundial que um dos usos clssicos da animao na no-fico passa a ser dis-
seminado. Foi na srie de 15 filmes de curta-metragem Kineto War Maps (1914-1916), dos britnicos Charles Urban
e F. Percy Smith, que se inaugurou a tendncia de se a mostrar mapas animados, no caso mostrando os avanos das
tropas aliadas durante o conflito. Tal tradio, que podemos ver diariamente nos canais de TV a cabo como o History
Channel e o Discovery Channel, tornou-se ainda mais utilizada na II Guerra Mundial (Ward, 2005: 83), quando era
pea fundamental de propaganda poltica, sobretudo para manter confiante o pblico interno das naes em conflito.
At o prprio estdio Disney, engajadssimo na campanha norte-americana contra o nazi-facismo, produziu um
hbrido entre animao e documentrio poca: Victory Through Air Power (James Algar, EUA, 1943, 70 min),
mesclando personagens animados bem ao estilo Disney com cenas reais (live action).
A serventia das animaes para dar suporte aos argumentos dos filmes documentrios foi logo percebida pelo
grande patrono deste tipo de cinema: o britnico John Grieson. Ele viu como as imagens animadas ajudavam a dar
mais vida e dinamismo aos filmes de cunho didtico e informativo, encaixando-se perfeitamente no seu conceito de
que o documentrio o tratamento criativo da realidade. Por isso Grieson criou em 1939, quando transferiu-se
para o Canad, a diviso especial de animao do National Film Board para apoiar a produo no-ficcional (Ra-
mos, 2008: 73) mas que ganhou vida prpria anos depois.
A animao encontra a subjetividade no documentrio
Antes disso, um discpulo de Grieson na Inglaterra poca em que dirigia a unidade de documentrios da
GPO (General Post Office), o neozelandes Len Lye, inovou ao utilizar a animao para dar um tom surrealista
aos filmes institucionais dos correios. Lye, que viria a desenvolver grande carreira como animador, criou em
Len Lye usa a animao para
dar tom surrealista a Trade
Tatoo (1935).
70
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
1937 o filme Trade Tatoo (UK, 1937, 5 min), uma compilao de cenas de outros documentrios da GPO nas
quais ele introduziu cores sobre as imagens originais por meio da tcnica de color optical printing, que permite
fotografar novamente os frames sobrepondo-os sobre os elementos estilsticos.
Com aspiraes abstratas e experimentais, o filme abusa do uso de cores berrantes e das mudanas de ritmo
ditadas pela msica. Imagens do comrcio e da indstria britnica sucedem-se de uma forma frentica, o que
era completamente incomum para a poca, com o intuito de passar o pensamento expresso em caracteres de
que o ritmo do comrcio mantido pelas correspondncias. O resultado lisrgico da produo de pouco mais
de cinco minutos contrasta com a simplicidade da mensagem publicitria que recomenda postagens antes das
duas da tarde. Apesar de ser encarado como uma experincia avant-garde, Paul Ward entende que o filme pode
ser claramente lido como um documentrio, no qual as tcnicas de animao so usadas de forma criativa
para dar vida a atividades comuns do cotidiano
3
(2005: 83).
O uso da animao na no-fico s voltaria a ganhar impulso nos anos 1970, j que a obstinao realista
do cinema direto, com sua averso s manipulaes da imagem, relegou essa tcnica ao mnimo uso possvel
geralmente para creditar personagens. Pode-se dizer que a animao uma espcie de anttese do cinema
direto, encontram-se em polos opostos dentro do arcabouo de tcnicas e estilos abarcados pelo documentrio.
A animao representa um dos mais explcitos desafos aos modelos
simplistas do que o documentrio e pode ser, simplesmente porque
no se pode ter um flme animado que no seja algo completamente
criado. O processo de produo frame-by-frame signifca que a ani-
mao o mais intervencionista dos modos; e, alguns podem argu-
mentar, que este nvel de interveno (aliados com, por vezes, nveis
surpreendentes de expressividade e experimentao) impede uma
adequada representao do real o que deveria ser uma das caracte-
rsticas defnidoras do documentrio.
4
(Ibdem: 85)
Ou seja, como pontua Gunnar Strom, o termo documentrio animado pode ser visto como uma
contradio
5
(Apud Ward, 2005: 88), dada a aparente incompatibilidade entre a imagem fotogrfica, que
mostraria a realidade transparente, e a animao, cujas caractersticas intrnsecas no se prestariam para
tal. Para Ferno Pessoa Ramos, alimentar tal contradio ter uma viso tosca do que vem a ser o docu-
mentrio. Animao e documentrio so campos que caminham de mos dadas, ressalta o pesquisador
brasileiro (2008: 72).
De acordo com Ward, foi o movimento feminista britnico que, nos anos 1970, atentou para as possibilida-
des da animao para tratar de temas da realidade social. Cineastas como Candy Guard, Joanna Quinn e Caroli-
ne Leaf, no faziam exatamente documentrios animados, mas utilizavam a tcnica para realar as mensagens
de seus filmes que, como comenta Irene Kotlarz, tinham a inteno mais de provocar a discusso do que de
entreter
6
(Apud Ward, 2005: 84).
3 can clearly be read as a documentary, bring life to this apparently everyday activity.
4 Animation represents one of the clearest challenges to simplistic models of what documentary is and can be, quite simply because
you cannot have an animated film that is anything less than completely created. The frame-by-frame production process means that
animation is the most interventionist of modes; and, some woulf argue, this level of intervention( allied with, as we shall see, often
startling levels of expressivity and experimentation) means that it cannot adequately represent the real which shoul be one of the
defining features of documentary.
5 the term animated documentary may seem like a contradiction.
6 ... the films were intended to provoke discussion rather than simply to entertain.
71
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Webb animou ilustraes feitas por cinco autistas para contar suas histrias em A is for Autism (1992).
72
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Tambm foi com fins de ativismo poltico que surgiu o Leeds Animation Workshop, uma cooperativa de
amigas, ainda hoje atividade
7
, que especializou-se em tratar de questes sociais sob o ponto de vista feminino.
Os temas vo da necessidade de assistncia especializada s crianas na primeira infncia, como no filme de
estreia do grupo, Who Needs Nurseries? We Do (UK, 1978, 11 min), at a relao entre os esteretipos midi-
ticos e a violncia contra a mulher em Give Us a Smile (UK, 1983, 13 min).
A iniciativa do grupo de Leeds, reintroduzindo a animao na linguagem no-ficcional com o objetivo de
criar obras de utilidade pblica, sobretudo na rea da sade, ganhou seguidores que acabaram por iniciar o
desenvolvimento da tendncia que alcanaria o auge nos anos 2000, sobretudo pelo reconhecimento interna-
cional de Valsa com Bashir: o uso da animao para representar a subjetividade - as especificidades daquilo
que passa na cabea dos personagens - no documentrio.
Foi para tratar de temas mdicos, sobretudo problemas neurolgicos e psiquitricos, que o documen-
trio comeou a passear imageticamente, utilizando-se da animao, nas memrias, pensamentos e emo-
es dos personagens levados tela. Experincia pioneira nesse sentido o filme A is for Autism (UK,
1992, 11 min), de Tim Webb.
Aps passar um ano convivendo com cinco autistas britnicos de diferentes idades, bem como com suas
famlias, Webb desenvolveu um filme colaborativo sob a superviso de especialistas da rea de sade. Cada um
dos autistas fez desenhos acerca de seus pensamentos e sentimentos. Webb animou as ilustraes e mesclou-as
com imagens capturadas referentes a algumas das obsesses dos doentes, como os movimentos de discos LP
nas vitrolas e o abrir e fechar de portas e torneiras.
Sem seguir uma linearidade e misturando os depoimentos dos cinco personagens, cobertos por suas prprias
ilustraes em vida, Webb procura reproduzir as singularidades daquilo que se passa na cabea dos doentes,
suas emoes e vises de mundo. Seu sentimento de no-pertencimento junto a outras crianas, o isolamento
na escola, a incompreenso daquilo que diziam as professoras, a dificuldade de concentrao, a disperso, a
no comunicabilidade, os pensamentos obsessivos como um deles que adorava nmeros e aparece em toda a
narrativa fazendo uma contagem que chega at mil.
A estratgia de Webb leva a obra a ter um tom completamente humanista, muito mais preocupado em
mostrar as especificidades da vida de um autista, sobre o seu prprio ponto de vista, do que em fazer um tra-
tado mdico sobre o assunto. Alcana-se o pensamento dessas pessoas a partir da animao da subjetividade
expressa por eles mesmos em seus desenhos. O fato autismo no ser uma coisa mas sim um espectro de
desordens (da branda a severa) faz da subjetividade individual expressa na sequncia de animaes (...) um
modo altamente apropriado de represent-la
8
(Ward, 2005: 93).
A partir da, surgiram outras obras no Reino Unido utilizando o hbrido entre animao e documentrio para
representar o pensamento de pessoas com problemas mdicos ou limitaes fsicas. Em Feeling Space (UK,
1999, 10 min), o cineasta escocs Iain Piercy conta a histria de dois cegos de nascena em suas jornadas di-
rias na cidade de Glasgow. A animao utilizada para reproduzir as sensaes dos cegos no espao urbano,
como eles pensam ser os prdios e as paisagens da capital escocesa, como eles se localizam espacialmente. A
7 www.leedsanimation.org.uk
8 The fact that autism is no tone thing but rather is a spectrum of disorders (from mild to severe) makes the subjectivised, indivi-
dual strands of different animation technique () a highly appropriate mode for representing it.
73
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
animao funciona como uma maneira de visualizar (ironicamente) algo que, de outra maneira, estaria restrito
simplesmente ao nvel verbal
9
(Ward, 2005: 92).
Um trabalho mais ousado neste sentido o do cineasta Andy Glinne que, em 2003, produziu a srie de
documentrios animados Animated Minds (UK, 2003, seis episdios de aproximadamente trs minutos cada).
A partir do depoimento de portadores de doenas psiquitricas sndrome do pnico, esquizofrenia, obsesso-
-compulsiva, depresso manaca, psicose, anorexia, bipolaridade -, Glynne tenta reproduzir o universo mental
dessas pessoas, utilizando elementos da realidade, como manchetes de jornal e cenas live action, fundidos de
maneira fragmentria e catica com sequncias abstratas e nonsense. No caso da esquizofrenia, usa vozes para
dar vida aos pensamentos do personagem que diz ser orientado pela sua prpria mente a se automutilar.
Assim, procura alcanar a angstia, a opresso e o sofrimento dessas pessoas, que muitas vezes no com-
preendem e no conseguem explicar os males que as afligem.
Obviamente, se poderia fazer um documentrio live-action sobre
essas afies e incluir o testemunho de pessoas envolvidas. Mas
o uso da animao que interessante neste caso, j que consegue
perfeitamente traar os contornos de processos mentais to inst-
veis e rapidamente condensveis que esto fora de alcance para a
imagem live-action. A animao o modo perfeito de comunicar
que existem mais coisas na nossa experincia coletiva do que aquilo
que os olhos podem ver.
10
(Ward, 2005: 91)
Saindo da seara dos problemas fsicos e mentais, a animao tambm passou a ser usada para representar
as memrias, reminiscncias e experincias, especialmente as traumticas, de personagens retratados pela no-
-fico. Uma das experincias mais marcantes nesse sentido foi o filme Ryan (Canad, 2004, 13 min), de Chris
Landreth, laureado com o Oscar de melhor animao em curta-metragem naquele ano. Landreth criou uma
narrativa hiper estilizada a partir de tcnicas de animao 3-D que ele batizou de realismo psicolgico
9 The animations functions as a way to visualise (ironically enough) something that would otherwise remain at the purely verbal level.
10 Obviously, one could make a live-action documentary about this affliction and include testimony of the person involved. But it is
the use of animation that is interesting, as it can perfectly trace the contours of such a shifting and rapidly condensed thought process
in a way that is out of reach for live action. Animation is the perfect way in which to communicate that there is more to our collective
experience of things than meets the eye.
Landreth utiliza a animao para representar a realidade
intangvel de Ryan Larkin em Ryan (2004).
74
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
para contar a histria de um outrora famoso animador canadense, Ryan Larkin, alm de sua prpria realidade
envolta pelo temor do bloqueio criativo.
O cineasta se autorretrata, bem como os demais personagens, menos com as caractersticas fisiolgicas humanas
e mais exaltando seu estado de esprito, o que alcanado com o realce da animao. Landreth se apresenta com pe-
daos do crebro faltando bem como com tiras coloridas que amarram sua cabea, numa aluso s suas dificuldades
momentneas de criar. Larkin apresentado como um homindeo em avanado estgio de degradao.
O filme consiste num dilogo entre o autor e Larkin, bem como entrevistas com sua ex-esposa e seu ex-produtor.
Alm disso so mostrados trechos das obras de sucesso de Larkin no comeo dos anos 1970 e tambm montagem
com fotografias tanto da vida do personagem como do realizador. Depois de passar brevemente pelo sucesso ful-
minante com a produo de animaes tidas como revolucionrias, que o levaram a ser indicado ao Oscar, o filme
trata de explicar a decadncia artstica do animador, ligada a traumas familiares e o abuso de cocana e lcool.
O lado autobiogrfico do filme revela-se quando Landreth prope a Larkin que volte a produzir artisti-
camente e que largue o lcool. quando entra em cena a me do realizador, Brbara, uma dependente que
morreu sucumbindo ao alcoolismo. Landreth parece insistir em salvar Larkin como forma de se redimir pelo
acontecido com a me. Essa obra, que de forma to criativa representa do esplendor artstico degradao
humana, termina com uma cena de Larkin pedindo esmolas em sua cidade natal, Montreal. Vemos o ser Ryan,
o homem Ryan, na singularidade de sua ao no tempo, sobrevivendo na expresso de seu rosto velho, com-
parado imagem de seu rosto jovem, por detrs das diversas camadas de distores digitais que a sensvel arte
de Landreth sobrepe (Ramos, 2008: 75 e 76).
Outra experincia de animao vinculada subjetividade, desta vez indo para o plano mais social e poltico,
o filme Slaves (Slavar, Sucia, 2008, 15 min), dos cineastas suecos Hanna Heilborn e David Aronowitsch.
Desenhado a partir do depoimento de dois jovens que foram sequestrados no Sudo para trabalhar como escra-
vos assistindo ao assassnio dos pais em meio ao processo de captura -, o filme utiliza a animao computa-
dorizada para criar uma linguagem visual saturada, que reala o clima desrtico e o sol africano.
A animao passeia da entrevista propriamente dita para os traumas, memrias e sonhos dos dois
jovens. Mesmo buscando uma estilizao que mantivesse poucos vnculos com as imagens fotogr-
ficas da realidade, a obra consegue deixar os personagens extremamente expressivos, cativantes. A
violncia a que os jovens foram submetidos no representada imageticamente, mas reflete-se nos
olhares dos garotos. Como aponta Beige Luciano Adams, este filme um sublime exemplo do que
a animao pode alcanar na no-fico
11
(2009: 23).
11 The film is sublimely sensitive example of what animation can accomplish in nonfiction.
Animao utilizada para re-
presentar lembranas de duas
crianas sudanesas escraviza-
das em Slaves (2008)
VALSA COM BASHIR E A
SIMBIOSE ANIMAO-
-SUBJETIVIDADE
76
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
O cinemaparece ter sido inventado para expressar a vida subconsciente,
to profundamente presente na poesia; porm, quase nunca usado com
este propsito
Luis Buuel
1
A
animao possivelmente a mais importante forma criativa do sculo XXI
2
(Wells, 2002:
1). A assertiva do pesquisador britnico Paul Wells, embora seja uma viso pessoal, d conta
do status artstico alcanado pela animao neste incio de milnio. Um tipo de expresso
herdeira direta dos postulados inovadores de movimentos culturais revolucionrios esttica e politicamente do
sculo passado, como o surrealismo e o expressionismo, que se tornou uma linguagem universalmente com-
preendida e utilizada no mundo globalizado.
A animao, seja como arte, como abordagem, como esttica ou como
aplicao, informa diferentes aspectos da cultura visual, dos flmes de
longa-metragem s sries de horrio nobre; da televiso e dos cartoons
da internet at as funes de apresentao no mbito das novas tecno-
logias da comunicao. Em suma, a animao est em todo lugar. a
forma pictrica onipresente da era moderna.
3
(Ibdem: 1)
Dado o reconhecimento de seu valor artstico pela crtica e academia, bem como o fato de ser intrinseca-
mente uma forma moderna em termos histricos, estticos e tecnolgicos (Ibdem: 30), a animao naturalmen-
te acabou por avanar sobre o outrora arredio terreno do cinema documentrio. S que, neste incio de milnio,
deixou de fazer s vezes de acessrio e complemento dos argumentos para tornar-se elemento fundamental na
constituio das obras, tendo um papel decisivo na ampliao das possibilidades estilsticas e narrativas desse
tipo de cinematografia. Mais que isso, acabou por alargar o entendimento sobre o que vem a ser a tal realidade/
verdade to cara s representaes no-ficcionais.
Se a animao j fertilizava experimentos de no-fico em curtas desde a ltima dcada do sculo passado,
tal como visto anteriormente, nos anos 2000 acabou por se tornar fonte de estmulo criatividade no mbito
dos documentrios de longa-metragem. Antes da emergncia de um documentrio animado propriamente dito
honraria que Valsa com Bashir reivindica para si -, foram muitos e variados os usos da animao nos filmes
contemporneos.
Alguns bem triviais, como fez Jos Padilha em nibus 174 (Brasil, 2002, 150 min) ao apresentar a reali-
dade de um presdio tpico do Rio de Janeiro com a imagem escurecida tal como se fosse um negativo no
revelado. Alm de impossibilitar a identificao dos detentos e das instalaes correcionais, afinal o objetivo
era mostrar uma realidade comum a todo sistema prisional brasileiro, o efeito de escurecer a imagem colabo-
rou para realar a representao do espao infernal e ftido no qual os condenados amontoam-se uns sobre os
outros espera da recuperao que lhes permitir reinsero na sociedade.
1 2008: 336
2 Animation is arguably the most important creative form o f the twenty-first century.
3 Animation as an art, an approach, an aesthetic and an application informs many aspects of visual culture, from feature-length films
to prime-time sit-coms; from television and web cartoons to display functions on a range of new communications technologies. In short,
animation is everywhere. It is the omnipresent pictorial form of modern era.
77
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
J o cineasta israelense Avi Mograbi crtico custico e irnico da sociedade e do governo do Es-
tado judeu recorreu animao para criar uma mscara que foi aplicada permanentemente sobre o
rosto de um ex-soldado, personagem principal do documentrio Z32 (Israel, 2008, 81 min). No filme, o
ex-combatente, estimulado pela namorada, que tambm aparece com o rosto coberto virtualmente, con-
fessa, com profundo mal-estar, ter participado uma emboscada para assassinar dois policiais palestinos
como represlia a ataques de msseis vindos dos territrios ocupados. A mscara poupa a identidade dos
personagens e, por seu semblante debochado, corrobora com a atmosfera de humor negro caracterstica
dos documentrios nada convencionais de Mograbi.
Utilizar um fragmento de animao em meio ao filme para dar uma explicao num tom humorstico tambm
foi estratgia comum nessa nova fase do cinema documentrio. o caso do performtico Super Size Me: A Dieta do
Palhao (Super Size Me, EUA, 2004, 100 min), no qual, em meio saga do diretor-protagonista Morgan Spurlock
para demonstrar os efeitos nocivos de se comer trs combos do McDonalds tamanho super size por dia, introdu-
zida uma animao de menos de 30 segundos mostrando o processo industrial que leva confeco de um nugget.
Com uma esttica e linguagem em estilo comdia infantil, tipo Tom e Jerry, o fragmento mostra que galinhas enve-
Padilha usa distorce imagens
de encarcerados num presdio
do Rio de Janeiro em O nibus
174 (2002).
Mscara virtual em soldado israe-
lense que confessa assassinato de pa-
lestinos em Z32 (2008).
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Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
lhecidas e com peitos aumentados por meio de anabolizantes so utilizadas quase que integralmente pele, ossos,
midos no processamento da iguaria antes de ser frita e vendida ao consumidor.
Mas o caso mais notrio do uso de uma animao engraadinha em meio a um documentrio de temtica
sria o de Tiros em Columbine (Michael Moore, Bownling for Columbine, EUA, 2002, 120 min). O fragmento
de cerca de trs minutos, intitulado The Brief History of the USA, foi realizada por Matt Stone e Trey Parker,
criadores da debochada e difamatria srie de cartoons South Park que se passa no estado norte-americano
do Colorado, mesmo onde se localiza a escola Columbine, cujo massacre promovido por estudantes nos anos
1990 foi o motivador do multipremiado longa de Michael Moore.
Com o mesmo tom custico caracterstico de South Park, a animao, narrada por uma simptica bala de
fuzil, relata a longa tradio norte-americana de amor pelas armas. Conta como pistolas e fuzis fazem parte da
identidade do pas desde os tempos da colnia e como o direito constitucional de estar armado moldou muito
da mentalidade e do jeito de ser da sociedade permanentemente com medo daqueles que, supostamente,
ameaavam seus valores democrticos e de livre iniciativa.
O uso das animaes jocosas em meio no-fico tem sido uma estratgia recorrente na atualidade, ser-
vindo tanto para compensar a ausncia de material de arquivo como para tornar os documentrios mais atra-
tivos e divertidos. Essa foi a inteno da cineasta Anat Baron em seu filme Beer Wars (EUA, 2009, 89 min),
que trata da destruio das pequenas cervejarias artesanais norte-americanas pelas gigantes multinacionais da
indstria cervejeira como a Budweiser, a Miller e a Coors. Baron, que tambm protagoniza o filme, justificou
da seguinte maneira o uso de uma sequncia animada:
Eu realmente no tinha nenhum material de arquivo e estava entediada
com a maneira como isso (o uso de arquivos) sempre feito (...) no se
tratou de uma licena criativa porque eu estava contando a minha his-
tria (...) foi uma oportunidade de fazer um flme muito mais divertido
de assistir. Animao te permite dar saltos no tempo, e foi isso o que eu
fz.
4
(Apud Adams, 2009: 23)
4 I didnt really have any archival materials and I was bored with the way its always been done. () I wasnt taking any creative
license because I was telling my story. () was an opportunity to make this part of the film, to open it up, but also to make it a lot
more fun to watch. Animation allows you to jump through time, and thats what I did.
Animao cmica mostra como produzido um nugget em Super Size Me (2004).
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Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Mas no foi s para fins humorsticos que a animao passou a ser utilizada ostensivamente nesse novo
documentrio do sculo XXI. A tcnica tambm foi largamente empregada para tratar de eventos dramticos
e violentos, seja para suprir a ausncia de arquivos como acontece desde The Sink of Lusitania -, seja para
criar uma linguagem estilstica prpria obra. Esta ltima foi a opo adotada pelo cineasta Brett Morgen em
seu filme Chicago 10 (EUA, 2007, 110 min), que conta a histria do julgamento sete manifestantes indiciados
como lderes dos distrbios durante a conveno do Partido Democrata em Chicago no ano de 1968.
O episdio um dos maiores smbolos da rebeldia e do esprito da contracultura nos Estados Unidos dos anos
1960. Tambm cone da represso do Estado contra uma gerao paz e amor que mostrava cada vez mais ousadia
em seus protestos. Enquanto os tumultos foram fartamente documentados, o julgamento dos sete jovens membros
do Youth International Party, o Yippie no pode ser filmado por questes legais. Baseado nas atas das sesses
na corte do estado de Illinois, Morgen recriou o julgamento, com seu ambiente moralista no qual a Justia parecia
empenhada em utilizar os indiciados para dar o exemplo perante as crescentes manifestaes que varriam o pas
foi uma farsa, um circo
5
(Apud Adams, 2009: 22), como classificou o prprio cineasta.
Morgen, entretanto, no se ateve em utilizar a animao apenas para recriar a sesso de julgamento, mas
tambm a usou para representar o evento histrico em si em meio as entrevistas e algumas imagens de arquivo.
Foram dois os motivos, segundo o prprio: ter um maior controle sobre como o episdio inicial era represen-
tado, fugindo das verses miditicas altamente tendenciosas contra os manifestantes; tambm para construir
uma narrativa que captasse, visualmente, o esprito dos jovens da poca, marcado pelo colorido das roupas
hippies e pelo consumo de drogas alucingenas, como o LSD, cujos efeitos levavam os doides a terem
viagens no melhor estilo surrealista (Ibdem: 22).
J os cineastas Michael Tucker e Petra Epperlein recorreram animao com o intuito claro de dar uma atmos-
fera de graphic novel ao documentrio The Prisioner or: How I Planned to Kill Tony Blair (Alemanha, EUA, 2006,
72 min). Inspirados na obra da maior autoridade mundial no gnero, Frank Miller, os realizadores desenharam
mo, com caneta e tinta, 150 ilustraes, posteriormente colorizadas em computador, que foram utilizadas em meio
s imagens de arquivo e aos depoimentos do jornalista iraquiano Younis Khatayer Abbas.
5 ... the trial as sort of a farce, a three-ring circus.
Em estilo South Park, a histrica relao entre as armas e os EUA em Tiros em Columbine (2002).
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Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
O documentrio conta como Abbas, ex-prisioneiro poltico do regime de Saddan Hussein e entusiasta da
invaso norte-americana que levou derrubada do ditador, acabou sendo preso junto com seus irmos durante
uma festa sob a acusao de estarem planejando o assassinato do ento primeiro-ministro britnico Tony Blair
um dos idealizadores da ofensiva militar contra o Iraque junto com George W. Bush e seu squito de fal-
ces. O jornalista acabou encarcerado no malfadado e famigerado presdio de Abu Ghraib, onde foi vtima de
torturas, cujas imagens viriam a ganhar o mundo, durante cerca de trs anos.
A dupla de diretores intencionava que essa estranha histria de incriminar um iraquiano por conta
de uma tese absurda, usando da tortura para arrancar-lhe uma confisso, no ficasse impessoal de-
mais. Por isso recorreram aos quadrinhos apesar de aparecerem com frequncia, as imagens no
tm movimento j que, como pontua Adams, pretendiam utilizar-se da tradio dos comics que
trata a jornada do heri numa linguagem do bem e mal, claro e escuro, enquanto circundavam a por-
nografia de Abu Ghraib
6
(Ibdem: 23).
A Guerra ao Terror, no Iraque no Afeganisto, e o estilo graphic novel tambm entraram em comunho
no documentrio Operation Homecoming: Writing the Wartime Experience (EUA, 2007, 81 minutos). O di-
retor Richard Robbins utilizou diferentes estratgias para dar forma imagtica aos escritos memoriais de 11
soldados norte-americanos que haviam servido em ambos fronts de batalha no Oriente Mdio. Um dos relatos
era do soldado Colby Buzzel, que contava o pavor de ter sofrido uma emboscada de terroristas iraquianos
em Bagd na qual por pouco no perdeu a vida.
6 The illustrations, according to the filmmakers, are meant to draw on comic traditions that threat the heros journey in a language
of good and evil, light and dark, while circumventing the pornography of Abu Ghraib.
Brett Morgen recriou julgamento dos manifestantes responsabilizados por tumul-
tos em Chicago 10 (2007).
81
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Robbins optou em transformar em imagens o relato de Buzzel por meio de um fragmento estilo graphic novel de cerca
de sete minutos, j que entendeu que a simples narrao dos fatos era incapaz de exprimir a experincia de estar quase
morto. A animao ressalta os semblantes de dio dos iraquianos, bem como o medo absoluto de Buzzel. As imagens so
quase todas estticas, tambm numa tentativa de reproduzir o estilo dos quadrinhos, mas o uso de diferentes angulaes e
movimentos de cmera d a dinmica demandada pela cena de ao relatada. O diretor explicou assim sua opo:
Num nvel mais esttico, existe o caminho em que as representaes
mais literais de certas coisas so menos potentes do que aquelas abs-
tratas porque ns nos tornamos por demais imunes. Se voc comea a
apresentar uma sequncia real de violncia real, pessoas sofrendo, as
pessoas acabam no escutando. Isso constrange na sua habilidade de
escutar a histria. Eu sempre estive muito consciente de tentar criar
visuais que permitissem o som da voz das pessoas sobressair e no
competir com a imagem.
7
(Apud Adams, 2009: 24)
Animao d vida subjetividade em Valsa com Bashir
Se o novo milnio viu florescer uma profcua relao entre os postulados ontolgicos do cinema documen-
trio e as infinitas possibilidades criativas e artsticas da animao, foi no final da primeira dcada do sculo
XXI que tal relao ganhou uma dimenso sem precedentes, um verdadeiro casamento, cuja estabilidade
oferece novos caminhos para a no-fico ao mesmo tempo em que pe em xeque as convices de crticos,
acadmicos, curadores e jurados de festivais.
Enquanto os documentrios com animao ajudavam a alavancar a popularidade deste outro cinema e se
tornavam cada vez mais comuns, foi da incgnita cinematografia israelense mais conhecida pelas fices,
sobretudo a notvel obra de Amos Gitai que surgiu o filme que radicalizou de vez essa tendncia, autopro-
clamando-se o primeiro documentrio animado em longa-metragem da histria.
Primeira obra a ser exibida na mostra competitiva do Festival de Cannes de 2008, o filme Valsa com Bashir foi classificado
pelo crtico francs Christian Delage como a primeira grande surpresa do festival
8
daquele ano, sendo longamente aplaudido
7 On a more aesthetic level, theres a way in which more literal representations of certain things are less powerful than abstract ones
because weve become so immune. If you start showing real footage of real violence, people in pain, then people stop listening. I was
always very conscious of trying to create visuals for the sound of the persons voice to come through and not compete.
8 Premire grande surprise du festival, a t longuement applaudi hier soir dans le grande salle du Palais. Artigo disponvel em
http://christiandelage.blogspot.com/2008/05/cannes-2008_18.html
Estilo graphic model para contar uma acusao absurda em The Prisio-
ner or: How I Planned to Kill Tony Blair (2006).
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Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
pelo pblico presente na premire (2008). O autor, cujo primeiro filme remonta ao ano de 1991, alcanou uma obra profunda-
mente original, de uma beleza plstica to grande quanto fora de sua proposta
9
(Ibdem), afirmou Delage poca.
A saga psicolgica do ex-combatente, diretor e protagonista do longa, Ari Folman, empolgou o p-
blico mas tambm causou perplexidade, tanto por apresentar uma no-fico animada, tendo como mote
fenmenos subjetivos da memria dos personagens, como por tratar de forma pouco usual o conflito entre
Israel e Palestina assunto que ser melhor tratado mais a frente.
Folman j havia trabalhado com animao em 2004 ao produzir a srie The Material that Love is Made of.
Foi neste mesmo perodo, ao completar 40 anos de idade, que o cineasta recebeu dispensa do exrcito israe-
lense era oficial da reserva poca e colaborava em produes institucionais para o IDF. Foi-lhe oferecido
a oportunidade de participar de sesses de psicoterapia para relatar suas experincias enquanto combatente.
Depois de oito sesses de duas horas, Folman concluiu: foi a primeira vez em 20 anos que eu contei a minha
histria a mim mesmo
10
(entrevista ao Haaretz Magazine, 13/06/2008: 42).
O diretor de acordo com relato feito em documentrio acerca dos bastidores da produo de Valsa com Bashir
11
- foi em
busca de seus amigos do meio cinematogrfico que tambm haviam servido o exrcito e viu que muitos tampouco haviam
refletido sobre aqueles anos, lembrando-se com dificuldade dos perodos que estavam em combate. Foi a partir do contato com
os ex-companheiros de farda, que Folman, posteriormente, foi chamado pelo amigo Boaz Rein para conversar num bar no porto
de Tel Aviv e lhe contar seu pesadelo com os ces referentes a seu primeiro dia na Guerra do Lbano de 1982 episdio que,
reencenado, se transformou na mola-mestra de todo o enredo do documentrio.
Tal como sugerido no dilogo inicial do documentrio (sequncia 1), Folman utilizou o processo de confec-
o do filme como complemento ao seu tratamento psicolgico:
Foi uma terapia (...) voc faz e faz e faz em vez de ficar sentado passivamente em
tratamento. Este projeto me ajudou com muitas grandes questes dentro de mim.
Ele me colocou atravs de um processo que foi simplesmente incrvel, um processo
de revelao e entendimento. De repente voc tem conscincia de que se tratou.
Que voc tem a sua histria nas mos.
12
(Ibdem)
9 Lauteur, dont le premier film remonte lanne 1991, a russi une ouvre trs originale, dune beaut plastique gale la force du propos.
10 ... this was the first time after 20 years that I had told my story to myself.
11 Documentrio includo na verso para colecionador de Valsa com Bashir lanada na Espanha (Vals con Bashir)
12 It was therapy (...) you do and do and do, instead of Just sitting passively in treatment. This project helped me resolve a great many
things within myself. It put me through a deep process that was simply amazing, a process of revelation and understanding. Suddenly
you realize that you have treated yourself. That you have taken your story into your hands.
Depoimento de um dos cem ex-soldados que con-
taram suas memrias da Guerra do Lbano.
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Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Ao tratar a realizao de um documentrio sobre a busca de memrias, obscurecidas por conta do trau-
ma de presenciar o massacre de Sabra e Chatila, como um processo psicoteraputico, Folman transformou
a produo do longa num exerccio de recordao tal como caracterizado pelo filsofo francs Paul Ri-
couer (2007:37). A definio de Ricouer d conta de que a recordao uma busca ativa, sistematizada,
daquilo que ficou esquecido. Diferentemente da lembrana, que seria apenas uma afeco, o surgimento
repentino de reminiscncias, imagens, que ficam armazenadas naquilo que o mesmo filsofo define como
esquecimento de reserva (Ibdem: 436).
A busca de Folman foi focada, prioritariamente, na memria coletiva de alguns de seus companheiros de
guerra e de outros soldados que foram convidados a prestar seus relatos a partir de um chamamento na internet.
Cerca de 100 ex-combatentes atenderam ao pedido da produo do filme e tiveram seus depoimentos grava-
dos. Desses, no final, apenas o de Ronny Dayag (sequncia 6) acabou includo na obra.
A recordao foi se dando a partir do compartilhamento das memrias dos outros combatentes, mergulhando, so-
bretudo, na subjetividade de suas vivncias, sonhos, fantasias, angstias, culpas e alucinaes. Como ressalta Fanny
Lautissier (2009), a histria pessoal de Folman serviu de pretexto para a formulao de uma narrativa plural, o que
vem a se inscrever em um balano permanente entre memria individual e memria coletiva.
13
Tal balano permanente fundamentou-se nas experincias vividas que tanto valorizava Maurice Halbwachs
(2006:68), tendo como foco principal seus aspectos mais irrepresentveis, mais intangveis. Como ressalta o
socilogo francs, para quem a memria individual e a memria coletiva constroem-se mutuamente, os atrati-
vos ou elementos das lembranas pessoais que parecem pertencer apenas a ns podem muito bem ser encontra-
dos em meios sociais definidos e neles se conservarem (...) os membros desses grupos (dos quais no deixamos
de fazer parte) saberiam descobrir e mostr-los para ns, se fizssemos as perguntas certas (Ibdem:78 e 79).
A partir das associaes possibilitadas pelo recolhimento das outras experincias, Ari Folman foi reconsti-
tuindo o perodo em que estava na guerra. Lembranas dos soldados mortos e mutilados, das horas atirando a
esmo num inimigo desconhecido, do ataque a uma criana palestina que atirava com uma bazuca no meio de
um pomar, da angstia de retornar de folga para casa e ver como a realidade seguia alheia ao conflito. Lem-
branas de sua infncia e de sua namorada poca do conflito inclusive uma alucinao na qual ela parti-
cipava de seu prprio enterro (sequncia 10). Alm da valsa surreal danada pelo companheiro Frenkel no
meio de um pesado tiroteio em Beirute, tendo a imagem de Bashir Geymael ao fundo da a inspirao para
o ttulo do filme (sequncia 10).
Ao optar por tal estratgia narrativa no documentrio, amplamente focada na subjetividade do protagonista
e da maioria dos personagens, Folman acabou naturalmente caminhando para o uso da animao linguagem
com a qual j havia trabalhado. Afinal, como aponta Ward, tais elementos intangveis muitas vezes se perdem
no sedutor mundo mimtico da imagem live action
14
(2005: 89). Ainda no autor ingls, o uso da animao
permitiu ao diretor tentar documentar o indocumentvel
15
(Ibdem: 93).
13 ... avant tout un prtexte la formulation dun rcit pluriel, que vient sinscrire dans un balance permanente entre mmoire indi-
viduelle et mmoire collective.
14 something that sometimes gets lost in the seductively mimetic world of live action.
15 .. an attempt to document the undocumentable.
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Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
A vantagem, o diferencial da animao, como ressalta Paul Wells, possibilitar um diferente modelo de inter-
pretao que abstrado da existncia material e oferece a transparncia das ideias
16
(2002: 31). J John Halas e
Joy Bachelor exaltam aquilo que definem como o poder penetrativo da animao, qual seja:
a habilidade de evocar o espao interno e retratar o invisvel. Con-
ceitos abstratos e estados previamente inimaginveis podem ser visu-
alizados por meio da animao de maneiras que seriam difcilmente
alcanadas ou que restariam no persuasivas no contexto da imagem
live action.
17
(Apud Ward, 2005: 93)
Sem saber desenhar, mas ciente do poder comunicativo da animao para tratar dos fenmenos da mente
humana, Folman procurou o ilustrador David Polonsky e o animador Yoni Goodman para tentar dar vida s
suas subjetividades num filme documentrio. Depois do filme j lanado e com grande repercusso internacio-
nal, o diretor, em entrevista, explicou melhor sua opo:
As cenas na minha mente sempre foram desenhadas, sempre anima-
das. No havia outra opo. Jamais poderia ter feito de outra ma-
neira. E, honestamente, eu acho que no estaria sentado aqui conti-
go hoje se no fosse um flme animado. Voc no se importaria com
o que aconteceu com um cara como eu 25 anos atrs, quando eu era
apenas um soldado comum no Lbano, se no tivessem lhe dito, oh,
um flme animado muito legal. Voc tem que ver esse flme. Como
realizador, pude ter total liberdade de fazer o que quisesse. Ir de
uma dimenso outra. Ir de histrias reais para o subconsciente,
para os sonhos, para as alucinaes, para as drogas, para o medo
da morte, para a ansiedade; tudo. Eu tive a liberdade de brincar
com tudo em um enredo.
18
(Apud OHeir, 2008)
Sonhos e alucinaes no discurso realista
Msica eletrnica em ritmo intenso, 26 cachorros latindo com expresso de ferocidade, olhos esbugalhados e ala-
ranjados, baba escorrendo pelo canto de suas bocas. Correm alucinadamente sob um cu alaranjado at chegarem a
uma edificao de onde, pela janela, um senhor olha apavorado para os ces que parecem sedentos por devor-lo. Trs
jovens desnudos saem do mar numa praia urbana, frente a edificaes aos frangalhos. Trilha fantasmagrica. noite,
mas o cu est laranja. Eles se vestem, pegam suas armas e partem em direo a uma ruela, de onde aparecem dezenas
de mulheres com vestimentas rabes chorando e gritando histericamente, denotando veementemente desespero e dor.
a partir de dois sonhos que se constri todo o enredo de Valsa com Bashir. Algo que, como j visto, seria
absolutamente inadmissvel tempos atrs num filme documentrio, afinal os sonhos seriam uma afronta cabal
aos postulados de objetividade e verdade que nortearam as concepes desse outro cinema durante dcadas. O
16 The otherness of animation itself announces a different model of interpretation which is abstracted from material existence and
offers up the transparency of ideas.
17 Ability to evoke the internal space and portray the invisible. Abstract concepts and previously unimaginable states can be visuali-
zed through animation in ways that are difficult to achieve or which remain unpersuasive in the live-action context.
18 The scenes in my mind were always drawn, always animated. So there was not another option. I would never do it any other way.
And, honestly, I think I wouldnt be sitting here with you today if it was not an animated film. You wouldnt care about what happened
to a guy like me 25 years ago, when I was just a common soldier in Lebanon, if you werent told, Oh, its a very cool animated film.
You have to see it. As a filmmaker it gave total freedom to do whatever I liked. To go from one dimension to another. To go from real
stories to the subconscious to dreams to hallucinations to drugs to fear of death to anxiety, everything. I had the liberty to play with
everything in one story line. Entrevista de Ari Folman a Andrew OHeir. War as a Bad Acid Trip. Disponvel online em
http://archive.salon.com/ent/movies/btm/feature/2008/12/26/folman/print.htm.
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Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
primeiro sonho, o dos ces alucinados de olhos alaranjados, a cena que inicia o filme e d o tom onrico que
toma conta do documentrio pelo menos at antes da sequncia final.
Ao relatar seu pesadelo ao amigo, Boaz Rein acaba por ativar a memria de Ari Folman que, depois de se dar
conta do esquecimento sobre o que fazia nos fatdicos dias do massacre de Sabra e Chatila, comea a ter lembranas
evocadas por meio de seu sonho na praia. Introduzir o sonho bem como outros fenmenos subjetivos como as alu-
cinaes e as prprias afeces das lembranas foi uma ousadia, mas que de forma alguma pode ser considerada
uma maneira de se fugir ou de macular o realismo que caracteriza o cinema documentrio.
Sonho Ari Folman a mola-mestra do documentrio.
A surreal valsa danada por Frenkel com Bashir Geymael.
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Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Desde o fim do sculo XIX, primeiro com Sigmund Freud e posteriormente, de maneira ainda mais acentuada, com Carl Jung,
que Psicologia vem demonstrando que a vivncia interior do ser humano, por mais absurda e fantasiosa que possa parecer, parte
intrnseca ao seu ser, ou seja, deve ser considerada vinculada sua realidade. Jung entendia os sonhos como parte integral e impor-
tante do inconsciente particular de cada um e to real quanto qualquer outro fenmeno vinculado ao indivduo (2008: 10 e 43).
Para o psiclogo suo, por meio dos sonhos penetra-se no mais profundo, mais verdadeiro e mais durvel do
ser humano. No mentem, no iludem, no deformam, no encobrem, mas comunicam ingenuamente o que so e
o que pensam. (...)... quer sejam originais ou difceis, a experincia demonstra que sempre se esforam por exprimir
algo que o eu no sabe ou no compreende (2006:489). Ainda no pensamento de Jung, vale ressaltar:
(Os sonhos) no so de modo algum resduos sem vida ou signifcao.
Tm, ao contrrio, uma funo e so, sobretudo, valiosos devido ao seu
carter histrico. Constituem uma ponte entre a maneira pela qual
transmitimos conscientemente nossos pensamentos e uma forma de ex-
presso mais primitiva, colorida e pictrica (...) que apela diretamente
nossa sensibilidade e nossa emoo. (2008:53)
A assertiva de Jung corrobora a estratgia documental de Folman, tanto por trazer a subjetividade para o discurso
no-ficcional como por represent-la, d-lhe vida, por meio da animao, ressaltando o onirismo das experincias
relatadas. Como salienta Paul Wells, a partir do pensamento do cineasta russo Yuri Norstein autor da animao Tale
of Tales (1979), inspirado nas tcnicas de iluminao do pintor holands Rembrandt van Rijn -, nossas recordaes e
nosso inconsciente nossa maneira de pensar - intrinsecamente pictrica, e esses estados elevados que experimen-
tamos so capturados com uma nfase particular
19
por meio da animao (2002:33).
19 ..our recollections and unconscious our way of thinking is intrinsically pictorial, and that the heightened states we experience
are captured with a particular emphasis...
26 ces alucina-
dos: pesadelo de
Boaz Rein abre
Valsa com Bashir.
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Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Imagens gravadas em estdio servi-
ram de referncia para a animao.
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Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
A criao da saga psicolgica
Para alcanar os resultados estticos e dramticos apresentados em Valsa com Bashir, Ari Folman teve que
praticamente produzir dois filmes. Todas as entrevistas, dramatizaes de dilogos como Boaz Rein e Car-
mi Caan, que foram representados por atores que interagiram com Folmam -, bem como as encenaes das
memrias e sonhos foram filmadas em estdio, com fundo preto. Tais imagens serviram de referncia para o
ilustrador David Polonsky fazer os desenhos que viriam a ser animados.
Polonsky e a equipe do filme optaram por no utilizar o mtodo tradicional da rotoscopia, j tratado ante-
riormente, pelo qual as ilustraes so feitas sobre os traos reais das imagens live-action captadas, fazendo
Tcnica cut-out fragmen-
tava as ilustraes para dar
movimento s imagens.
Ilustrao feita por David Po-
lonsky: base para a animao
de Valsa com Bashir.
89
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
com que os movimentos das figuras desenhadas tenham uma naturalidade impecvel. Tendo as sequncias
captadas por Folman como referncia, o artista grfico israelense realizou cerca de 2,3 mil ilustraes
20
, usando
bastante da criatividade para representar os ambientes onde se desenrolavam as aes. Sobre isso ele explica:
20 Informao includa no press-kit de Valsa com Bashir, disponvel no site www.waltzwithbashir.com
Intertextualidade imag-
tica com Apocalipse Now
(1979) e La Jete (1962).
90
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Mundo onrico contamina
o mundo real em trs mo-
mentos de Valsa com Bashir.
91
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Eu nunca estive em Beirute ou Sidon, ento minha representao pict-
rica dessas cidades foi quase que inteiramente uma inveno. Para os
planos de fundo no para os personagens eu usei partes de fotogra-
fas, desenhando encima delas. Interessava-me saber como a audincia
em Beirute iria receber as imagens. Eu estava um pouco chateado com
isso, mas a desculpa era de que se tratava da memria. Voc utiliza blo-
cos de construo, alguns deles so reais e outros so inventados, mas
juntos eles so dispostos de uma maneira que lhe d signifcao.(...)
A coisa mais importante aqui haver sufcientes associaes e, para
isso, ser convincente o sufciente para criar sentimentos emocionais
relevantes.
21
(Haaretz, 13/06/2008: 42)
Para tornar esses 2,3 mil desenhos num filme de pouco menos de 90 minutos, a equipe de oito animadores
comandados por Yoni Goodmann trabalhou por trs anos. Ao excluir a rotoscopia, tiveram de utilizar um mix
de tcnicas para dar movimento e continuidade s ilustraes estticas de Polonsky. No toa em diversos mo-
mentos do filme os movimentos dos personagens so errticos, pouco naturais Tentamos imitar o mximo
possvel a linguagem corporal e facial
22
, ressalta o ilustrador (Ibdem).
Ao escolherem a via mais artstica e difcil, a equipe evolui a uma velocidade de quatro a seis minutos de
animao por ms. O mix de tcnicas utilizado incluiu a animao estilo cut-out, a animao em Flash e a ani-
mao em 3-D. A tcnica cut-out foi crucial no processo, pois, a partir dela, cada uma das 2,3 mil ilustraes
era separada entre os personagens e o plano de fundo e, ento, cada personagem era fragmentado em centenas
de partculas. Posteriormente eram recompostos para criar a sequncia de frames que dava movimento ao filme
(Ibdem e Saunders, 2010: 171).
Cabia ao supervisor de efeitos visuais , Roiy Nitzan, unir novamente personagens com os respectivos planos de
fundo, por meio da animao 3-D. Tambm era sua responsabilidade dar os acabamentos finais, adicionando efeitos
de fumaa, poeira, exploses, alm de efeitos de movimento de cmera como a bela transio que leva da Holanda
ao deserto do Negev, em Israel, entre as sequncias 11 e 12 e os ajustes e adaptaes de cor para dar uma atmosfera
mais prxima do graphic novel ao filme. Foi uma quantidade imensa de trabalho. A primeira lei da animao
simplesmente no faz-la. sofrido demais
23
, confessou o designer.
A empreitada para construir o filme deu a Ari Folman, como j mencionado, um poder absoluto para cons-
truir a narrativa, num nvel de interferncia provavelmente sem precedentes na histria do documentrio o
que causaria repulsa aos catedrticos do cinema direto. Tal controle o permitiu, por exemplo, praticar uma
intertextualidade imagtica, fazendo referncias tcitas e explcitas a outras obras. Uma delas, confirmada
pelo prprio Folman na verso comentada da edio brasileira do filme, uma homenagem ao pico filme de
guerra Apocalipse Now (EUA, 1979, 153 min) de Francis Ford Coppola. na sequncia 7, a cena cmica dos
soldados na praia, tomando sol, bebendo, fumando maconha e surfando, tudo isso em meio a tiroteios e bom-
bardeios tal como a clssica cena da obra de Coppola na qual um comandante insiste para seus subordinados
surfarem durante uma ofensiva na Guerra do Vietn.
21 I was never in Beirut or Sidon, som y depction of them was almost entirely na invention. For the backgrounds not the characters I
used parts of pictures, drawing on and around them. It interests me to know what viewers in Beirut will make of it. I was a bit bothe-
red by this, but the excuse is that its memory: you use building blocks, some of which are real and some of which are made up, but
together they are arranged in a way that gives you meaning. () The most important thing is for there to be enough associations and
for it to be convincing enough to create the relevant emotional feelings.
22 We tried to imitate face and body language as much as possible.
23 It was a huge amount of work. The first law of animation is just dont do it. Its too painstaking.
92
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Outra referncia tcita observada por Rob White, editor do peridico norte-americano Film Quarterly (edio
de inverno 2008-2009) a um dos mais intrigantes trabalhos da histria do cinema, a fotonovela La Jete (Fran-
a, 1962, 28 min), de Chris Marker. na sequncia 10, quando Folman recorda-se da alucinao que teve ao chegar
ao aeroporto de Beirute, andando pelo saguo sem se dar conta da destruio que havia inviabilizado as instalaes
h meses, que h referncia s cenas no qual o protagonista de La Jete, um prisioneiro de um mundo ps-apoca-
lptico, enviado ao passado por meio de sua prpria memria, na tentativa de salvar o mundo, mas acaba falhando
tambm devido a problemas de amnsia e de sonhos recorrentes no qual uma mulher era assassinada no aeroporto.
J a terceira e mais relevante referncia imagtica feita no filme revelada na sequncia 15, durante relato
do jornalista Ron Ben Yshai. Ao tratar do que viu ao chegar aos campos de Sabra e Chatila na manh seguinte
aos dois dias de massacre, Yshai faz uma analogia com as cenas de horror da Segunda Guerra Mundial, es-
pecialmente emblemtica foto tirada por oficiais nazistas de um garoto com as mos para o alto em sinal de
rendio, durante a expulso dos judeus remanescentes e sobreviventes do Gueto de Varsvia, na Polnia, em
1943. A comparao entre a tragdia judaica e a palestina, no s em Valsa com Bashir como em outras obras
do cinema israelense, ser tratado mais frente.
A simbiose realidade x subjetividade
Ao promover a simbiose entre documentrio, subjetividade e animao, Valsa com Bashir acabou por empre-
ender uma narrativa que praticamente abole as fronteiras entre a realidade ftica e a subjetividade, j que no h
marcaes claras delimitando as cenas mais realistas daquelas mais onricas. como levar ao extremo o conceito de
limites difusos (blurred boundaries) de Bill Nichols. Como observa Fanny Latussier (2009), existe uma conta-
minao visual da representao com vocao realista por uma dimenso imaginria.
24
Tal contaminao visual acontece logo na sequncia 2, quando, aps despedir-se de Boaz Rein e sair de
carro, Folman, ao contemplar a vista do calado da praia de Tel Aviv, v surgir os sinalizadores laranjas
elemento visual fundamental para a continuidade da narrativa no cu, o que se encadeia no sonho dos trs
jovens que saem nus do mar de Beirute. Expediente semelhante acontece na sequncia 5, quando Folman est
dentro de um txi rumo ao aeroporto de Amsterd depois da conversa com Carmi Caan.
Em meio ao cenrio glido, completamente alvo por conta da neve, Folman v surgir pela janela do carro
suas lembranas dos primeiros dias de guerra no Lbano, quando, dentro de um blindado, atirava a esmo para
todos os lados. A contaminao da realidade pelo onrico acontece, inclusive, na parte mais didtica do filme,
quando o diretor dialoga com o amigo e psiclogo Ori Sivan (sequncia 3).
Ao tentar explicar a maneira como episdios esquecidos reaparecem na memria de forma pouca vinculada
com a realidade , Sivan cita uma experincia na qual as pessoas se reconhecem erroneamente em uma foto de
parque de diverses acreditando que se tratava de um fato verdico acontecido na sua infncia. A representao
imagtica da experincia reaparece e contamina o real quando a sequncia retorna para o dilogo. Pode-se
ver, pela janela da casa em que acontece a cena, a presena da roda gigante e do balo que faziam parte foto-
grafia que foi representada como sendo aquela utilizada na experincia psicolgica.
Por outro lado, mesmo com a intencionalidade de esfacelar as fronteiras entre o real e o imaginrio, entre o documen-
trio e a representao ficcional, tanto o uso de cores como da trilha sonora so utilizados diferenciar as cenas fticas das
24 une contamination visuellle de la reprsentation vocation raliste par une dimension imaginaire.
93
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
onricas em outros momentos. Um ambiente monocromtico com a prevalncia da cor laranja, alusiva aos sinalizadores
que teriam iluminado a noite em que o massacre de Sabra e Chatila ocorreu, a marca registrada do filme. Est presente
no pesadelo de Boaz Rein, tanto no cu de Tel Aviv como nos olhos e na baba dos ces alucinados. Tambm no sonho na
praia de Beirute de Ari Folman. Por fim, prevalece em todas as cenas referentes ao genocdio em si.
como se a colorao laranja funcionasse como um fio condutor da narrativa, que leva do pesadelo inicial,
passando pelo sonho principal e chegando motivao do trauma que levou ao esquecimento do diretor-pro-
tagonista. O ilustrador David Polonsky explica melhor essa vinculao entre a cor laranja, o sonho e o trauma:
(Os soldados) so magros, quase secos, muito vulnerveis. (...) No
muito longe deles, est acontecendo o massacre de Sabra e Chatila,
mas o heri, que quem tem a alucinao, est apartado dos even-
tos. Flutuando na gua. E tudo est colorido em tons de laranja e
preto. Essa alucinao repete-se ao longo do flme afitiva, opres-
siva at que ele pode ver a realidade de frente e preencher o vcuo
na sua memria. E a cor laranja
25
vai reaparecer, bastante laranja.
(Haaretz, 13/06/2008: 41)
O ambiente monocromtico tambm caracteriza a representao da lembrana-alucinao de Carmi Caan
(sequncia 4). Inicialmente, prevalecem tons azuis esverdeados, inclusive na figura feminina que sai nua do
mar e o leva para a gua onde o personagem fica sob seu ventre uma aluso, ao mesmo tempo a uma figura
materna, j que se tratava um jovem de 19 anos, e uma figura ertica, dado que o prprio Carmi dizia ter pro-
blemas de masculinidade por ser um nerd. Posteriormente o tom monocromtico torna-se vermelho alaranjado
por conta da alucinao da exploso do barco em que estava junto de seu regimento a caminho do Lbano.
25 The (soldiers) are thin, almost withered, very vulnerable. () Not far from them, the massacre At Sabra and Chatila is going on, but
the hero, whose hallucination this is, is cut off from the events. Floating in the water. And everything is tinted in shades of orange and
black. This hallucination recurs throughout the movie troubling, oppressive until he can look at the reality head-on and fil the void
in his memory. And then the color orange will reappear, a lot of orange.
Carmi Caan relata alucinao durante trajeto para a guerra.
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Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Em outras cenas de lembranas, a animao utilizada para ressaltar a luminosidade. assim quando, ao
fim da sequncia 5, h um contraste enorme entre a escurido do cu com as luzes dos helicpteros e o brilho
das mantas trmicas colocadas sobre os cadveres de soldados israelenses. Tambm na lrica cena ao final da
sequncia 7, quando a animao reala os raios de luz entrando por meio das rvores do pomar onde o regi-
mento de Folman atacado por uma criana que atira com uma bazuca destruindo um blindado logo depois
outra criana fuzilada antes de efetuar o disparo.
Nas cenas fticas, bem como em outros flash-backs e alucinaes de Folman no aeroporto, j citado, e
quando v sua ento namorada, Yaeli, caminhando para uma barricada e, depois, chorando em seu hipottico
funeral (sequncias 9 e 10) h o privilgio na utilizao de cores frias com o intuito de dar uma ambientao
mais natural e realista (Fatussier, 2009).
Em entrevista ao peridico francs Cahiers Du Cinma, Ari Folman revelou como queria que documentrio
animado fosse recebido pelo pblico:
Eu no procurei reproduzir a realidade de maneira abstrata. Eu queria
contar a percepo dos soldados que assistiram quelas cenas. Para
isso, a animao foi decisiva, j que ela permite passar muito facil-
mente de uma dimenso a outra. (...) Valsa com Bashir foi construda
como uma trip (viagem), no sentido da droga. Ns investimos muito
tempo e esforo para que, desde a primeira cena com os cachorros, o
espectador fosse imerso em um imaginrio como que deformado pelo
consumo de drogas.
26
(Cahiers Du Cinma, Junho 2008, 29)
26 Je ne cherchais pas reproduire la ralit de manire abstraite. Je voulais raconter la perception des soldats qui assistaient cette
scne. Pour a lanimation a t dcisive, car elle permet de passer trs facilement dune dimension lautre. (...) Valse avec Bashir
est construit comme une trip, dans le sense de la drogue. Nous avons investi beaucoup de temps et deffort pour que, ds la premire
scne avec les chiens, le spectateur soit plong dans un imaginaire comme dform par la consummation de drogues.
Folman v a ex-namorada Yaeli em alucinao de seu prprio enterro.
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Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Mesmo intitulando-se o primeiro documentrio longa-metragem animado da histria e com a intencionali-
dade da equipe de produo de dar um clima lisrgico ao filme, Valsa com Bashir recorreu, num ato que at soa
como contraditrio, ao inigualvel poder realista da imagem fotogrfica para fechar a trama. Para no restar
dvidas acerca das motivaes traumticas que levaram o diretor a ter as memrias do massacre de Sabra e
Chatila bloqueadas por duas dcadas, so apresentados 114 segundos de cenas captadas na manh seguinte s
48 horas de carnificina cometida contra os refugiados palestinos.
As imagens no so inditas, tendo sido mostradas, at com mais cenas, nos filmes Children Of
Chatila (Mai Masri, Lbano, 1998, 50 min) e Comment Jai Appris Surmonter ma Peur et a Aimer
Ariel Sharon (Avi Mograbi, Israel e Frana, 1997, 60 min). Mas seu impacto tremendo e tem o efei-
to de cortar imediatamente a onda lisrgica qual o espectador imerso durante todo o documen-
trio. Folman explica: Eu no queria que ningum sasse do cinema achando que se tratava apenas
de um divertido filme animado
27
(Apud Saunders, 2010: 184).
27 I didnt want anyone leaving the theatre thinking it was a cool movie.
Valsa com Bashir se rende ao poder realstico da imagem fotogrfica.
TRAUMA, CULPA E REDENO:
O NOVO CINEMA ISRAELENSE
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Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
No oprimido de ontem habita o opressor de amanh
Vitor Hugo
1
A
escolha da equipe de produo de Valsa com Bashir em compor uma narrativa no-ficcional focada
na subjetividade do protagonista e seus personagens est intimamente relacionada com a questo do
trauma. por conta dele que Boaz Rein tinha seus pesadelos recorrentes com os 26 ces que matou
numa ofensiva militar num vilarejo libans como no estava apto para matar homens, foi incumbido de calar
os animais que poderiam denunciar a ao dos soldados israelenses (sequncia 1).
So tambm traumticas as lembranas de Carmi Caan de seu primeiro dia de combate, vomitando
no navio de tanto medo que tinha de participar da guerra antes da alucinao com a mulher gigante que
remetia ao seu problema de auto-afirmao masculina. Tambm ao ouvir o terrvel silncio da morte
(sequncia 4) depois de, sem conseguir controlar o pavor, fuzilar uma famlia inteira de libaneses que, de-
safortunada, circulava prxima rea de desembarque dos recrutas israelenses. Isso sem contar, claro, o
trauma de vivenciar o massacre de Sabra e Chatila, imagens que, segundo ele, teriam sido apagadas do
seu sistema.
E, evidentemente, o trauma tambm a razo do desaparecimento das memrias de Ari Folman. As lem-
branas esfaceladas por duas dcadas por conta de presenciar e, por isso mesmo, ser conivente com um geno-
cdio ele, que conviveu desde a infncia com o pesadelo do genocdio em funo de seus pais serem sobre-
viventes do campo de concentrao de Auschwitz. O auxlio para que a carnificina fosse levada a cabo, com o
1 Apud Morin, 2007:127
Caan e a lembrana do terrvel silncio da morte.
98
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
lanamento de sinalizadores que iluminavam o trabalho sujo dos falangistas, e posteriormente, o resultado
de toda aquela insanidade, como mostrado fotograficamente nos 114 segundos finais da obra, explicam o por-
qu do bloqueio traumtico.
O relato do jornalista britnico Robert Fisk, com quatro dcadas de cobertura dos conflitos do Oriente Mdio pelos
jornais The Times e The Independent, refora o potencial traumtico das imagens que abalaram o ento jovem soldado de
19 anos. Fisk chegou a Chatila na manh seguinte primeira noite do extermnio contra os refugiados palestinos.
... o fedor em Chatila provocava nsia de vmito. Mesmo com os mais
grossos lenos, ns sentamos o cheiro. Aps alguns minutos, ns co-
meamos a cheirar como os mortos (...) Quando chegamos a cem, pa-
ramos de contar os corpos. Em cada viela havia cadveres mulheres,
homens, jovens, bebs e avs cados juntos em desordenada e terr-
vel profuso, no local onde tinham sido esfaqueados ou metralhados.
(...)... havia mulheres jogadas em casas com suas saias rasgadas at
cintura e as pernas bem abertas, crianas com gargantas cortadas,
flas de homens jovens com tiros nas costas aps terem sido alinhados
diante de um muro de fuzilamento. Havia bebs bebs enegrecidos,
porque tinham sido chacinados havia mais de 24 horas e seus pequenos
corpos j estavam em estado de decomposio jogados em monturos
junto a latas descartadas de rao dos EUA, equipamentos mdicos do
Exrcito israelense e garrafas vazias de usque. (Fisk, 2007:488 e 489)
De acordo com Carl Jung, o trauma um acontecimento brusco que prejudica de modo imediato o ser
vivo, tal como um choque, o terror, o medo, a vergonha, o desgosto, etc... (2006: 489). J Laplanche e Ponta-
lis, em seu guia de psicanlise, postularam que trata-se de um afluxo de excitaes que excedem a tolerncia
do indivduo, bem como sua capacidade de dominar e elaborar acerca de tais excitaes.
Acontecimento da vida do sujeito que se defne pela sua intensidade,
pela incapacidade em que se encontra o sujeito de reagir a ele de forma
adequada, pelo transtorno e pelos efeitos patognicos duradouros que
provoca na organizao psquica. (Laplanche & Pontalis, 2001:522)
Outra especialista em trauma, a norte-americana Cathy Caruth, entende que uma das caractersticas desse abalo
mental o seu retardamento, dado que a vtima no consegue compreender ou representar o evento traumtico no
momento da sua ocorrncia, por isso a experincia traumtica continua assombrar a vtima repetidas vezes
2
(Apud
Yosef, 2011: 2). Ainda em Caruth, a pesquisadora defende que o trauma tanto uma crise de conhecimento como
de representao
3
(Ibdem), que toma forma por meio de repetidas e intrusivas alucinaes, sonhos, pensamentos
e comportamentos ligados ao fato original
4
(Apud Yosef, 2010:317).
O professor de Film Studies da Universidade de Tel Aviv, Raz Yosef, especialista na nova cinematografia israelense,
sintetiza a questo do trauma e como ela foi apropriada pela narrativa de Valsa com Bashir. O trauma estabelecido por
meio de uma relao entre dois eventos: o primeiro no necessariamente traumtico porque quando ocorre ainda est
2 the trauma victim cannot grasp or represent the traumatic event at the time of its occurrence, and so the traumatic experience
continues to haunt the victim over and over.
3 Trauma is thus a crisis of knowledge and representation.
4 a response, sometimes delayed, to an overwhelming event or events, which takes the form of repeated intrusive hallucinations,
dreams, thoughts or behaviors stemming from the events.
99
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
muito cedo para se compreender seu significado pleno; o segundo pode no ser inerentemente traumtico em si, mas faz
disparar a memria do evento primrio, que s depois tem o significado traumtico incorporado
5
(2011:2).
No caso de Valsa com Bashir, o trauma joga um papel crucial que, como ressalta o historiador Bruno Cabanes
vai alm do tema da inocncia perdida
6
, comum nos relatos de antigos combatentes (Apud Fatussier, 2009) e em
filmes de guerra como Platoon (EUA, 1986, 120 min), de Oliver Stone, Nascido para Matar (Full Metal Jacket,
EUA, 1987, 116 min), de Stanley Kubrick, e Alm da Linha Vermelha (The Thin Red Line, EUA, 1998, 170 min),
de Terrence Malick. Dois fatores fazem com que o trauma de Ari Folman, causador de seu bloqueio, seja acentuado.
Um deles o prprio ambiente institucional israelense, envolto em situaes de conflito com seus vizinhos
rabes desde a fundao do Estado judeu em 1948. Em que pese a comoo nacional causada pelas cenas de
horror do massacre de Sabra e Chatila, sempre houve, de acordo com Raz Yosef, uma articulao deliberada
das autoridades do pas para ignorar a ocorrncia do massacre sobretudo a participao da IDF na carnificina.
Esse evento catastrfico foi excludo da memria nacional coletiva israelense e Folman sentiu o dever pessoal
de tentar relembrar esse passado emudecido
7
(2011:1).
Foi a partir da subjetividade de ex-combatentes como Folman o fenmeno que se repete em fices como Be-
aufort (Joseph Chedar, Israel, 2007, 131 min) e Lebanon (Shmuel Maoz, Israel, Lbano, Frana e Alemanha, 2009,
93 min) que a realidade da Guerra do Lbano, centrada na culpa e sofrimento dos soldados, veio tona novamente.
Como ressalta Yosef, suas experincias (dos soldados) individuais traumticas e memrias de guerra foram silen-
ciadas e defenestradas da narrativa histrica nacional pela ideologia hegemnica israelense
8
(2010:314).
Ainda no pensamento do acadmico israelense, Valsa com Bashir expe uma profunda ruptura, ou uma
traumtica descontinuidade, entre o passado e o presente entre histria e memria e aponta para o decl-
nio da memria histrica em Israel (2011: 4). Tal ruptura resultado do fenmeno que Paul Ricouer define
5 trauma is established through a relationship between two events: a first event that is not initially necessarily traumatic because
when it occurs it is still too soon to comprehend its full significance; and a second event that may not be inherently traumatic in itself
but does trigger a memory of the earlier, which is only then embedded with traumatic significance.
6 thme de linnocence perdue
7 This catastrophic event has been excluded from the Israeli national collective memory, and Folman feels a personal duty to try and
remember the muted past.
8 Their individual traumatic experiences and memories of the war were silenced and cast out of the national historical narrative by
the hegemonic Israeli ideology.
Lebanon (2009) outro filme is-
raelense a tratar dos traumas dos
soldados que participaram da
guerra em 1982.
100
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
como memria manipulada, tipo de engendramento que atuaria sobre a coletividade enquanto estratgia de
evitao, de esquiva, de fuga, se trata de uma forma ambgua, tanto ativa quanto passiva, de esquecimento
(2007:456). Seguindo o raciocnio, diz Yosef:
Tal como os indivduos, as naes ou coletividades podem tambm estar
sujeitas a experincias extremas catastrfcas, como genocdios, ocupa-
es e guerras. (...) O evento (ou sries contnuas deles) choca a nao e
desestabiliza a maneira como ela percebe a si mesma. s vezes difcil
recordar o evento, e ainda mais difcil represent-lo e incorpor-lo den-
tro das histrias que a nao utiliza para compreender-se e organizar
seu passado. Frequentemente, as naes preferem esquecer certos even-
tos traumticos, que so percebidos como ameaadores ou vergonhosos,
e que podem ser perigosos demais para a sociedade.
9
(Yosef, 2011: 6)
Ricoeur entende que instituies, tais como o Estado e a mdia, alimentam mitos hegemnicos que acabam
por atuar de maneira obsessiva para renegar, ignorar eventos e fatos do passado que no lhe so interessantes:
esquecimento de fuga, expresso de m-f (...) motivada por uma obscura vontade de no se informar, de no
investigar o mal cometido pelo meio que cerca o cidado, em suma, por um no-querer-saber (2007:455). No
caso israelense, como ressalta Yosef, o tal mito-hegemnico, capaz de manipular um passado inconveniente,
calcado numa identidade que se caracteriza como a de um povo perseguido: os israelenses continuam a ser
ver como vtimas e como se enfrentassem a ameaa da aniquilao: no passado pelas mos dos nazistas e hoje
pelas mos dos pases rabes em geral (...), um ponto de vista que refora sua opinio de que esto sempre cer-
tos, sem reconhecer o prejuzo infligido por Israel a outros grupos, como o povo palestino
10
(Yosef, 2011:8).
Ou seja, ao empreender o exerccio de recordao que lhe levaria s razes de seu trauma, e de seu blo-
queio de memria, e ao transformar tal empreitada num documentrio, Ari Folman remou contra a corrente
ideolgica que ergueu a narrativa histrica acerca do passado de Israel. Certamente, o longo perodo em que
este trauma ficou latente na memria de Folman um armazenamento de imagens que Ricouer chama de es-
quecimento de reserva (2007:436) foi fruto tambm de um ambiente que no lhe facilitava o enfrentamento
desse trauma, sua assimilao redentora, quela que traz alvio alma. No toa, cerca de cem ex-combatentes
atenderam ao chamado da produo do documentrio para revelarem suas experincias na Guerra do Lbano.
Era uma oportunidade de verbalizar, expor e organizar suas memrias repletas de sofrimento e de culpa, todas
elas relegadas ao desterro frente fora da narrativa histrica oficial imposta.
o que fica evidenciado no relato de Ronny Dayag (sequncia 6). Junto de outros jovens soldados que
mais pareciam seguir para uma excurso de frias, Dayag sobreviveu a uma emboscada na qual todos seus
companheiros de blindado foram assassinados. Depois nadar por horas em alto mar e ter a sorte de encontrar
um regimento aliado que o resgatou, Dayag passou a conviver com um terrvel sentimento de culpa que o as-
sombrava e o envergonhava. Tinha a sensao de que havia fugido do campo de batalha para salvar a minha
pele. (...) Culpado. Eu me senti culpado por est de p no tmulo deles. Era como se eu no tivesse feito o
9 the film exposes a deep rupture, or traumatic discontinuity, between the past and the present between history and memory
and points to the decline of the historical memory in Israel.
Like individuals, nations or collectives can also undergo extreme catastrophic experiences, such as genocide, occupation, or war. ()
The event (or series of ongoing events) shocks the nation and destabilizes the very way it perceives itself. Sometimes it is hard to recall
the event, and even harder to represent it and incorporate it within the stories that the nation uses to understand itself and organize
its past. More often than not, nations prefer to forget certain traumatic events, which are perceived as threatening or shameful, and
which might be too dangerous for society.
10 Israelis continue to see themselves as victims and as facing the threat of annihilation: in the pasta t the hands of the Nazis, and
today at the hands of Arab countries in general.() an outlook that strengthens their opinion that they are always right, without
acknowledging the harm visited by Israel on other groups, such as Palestinians.
101
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
bastante. Eu no fiz o bastante. Nesse sentido, Valsa com Bashir permitiu o reencontro dos personagens e
certamente de muitos que assistiram obra com o nebuloso passado. Eles (os soldados) sofriam com feri-
das que eram tanto pessoais como histricas e que no poderiam ser curadas sem que deixassem cicatrizes no
presente
11
(Yosef, 2011: 6).
O outro fator que acentua os efeitos malvolos do trauma sofrido pelo diretor-protagonista o fato de ele
ser filho de sobreviventes do Holocausto, especificamente do mais sombrio e emblemtico dos campos de con-
centrao nazista, Auschwitz, como o prprio personagem revela no filme (sequncia 12). Tendo assimilado
o horror do genocdio contra os judeus desde os seis anos de idade, Folman sofria de uma espcie de trauma
intergeracional, qual seja, na viso de Beatriz Sarlo, a manuteno viva das memrias das tragdias impostas
aos pais na cabea dos filhos (2007:91).
A situao de Folman, assim como de filhos de sobreviventes de outros horrores como o Apartheid sul-africano e as
torturas sdicas e desenfreadas dos regimes ditatoriais latino-americanos entre os anos 1960 e 1980, se encaixa dentro da
definio ps-memria, termo que no agrada a Sarlo, mas cujo conceito preciso em sua clareza: ... se trata do registro,
em termos memorialsticos, das experincias e da vida dos outros, que devem pertencer gerao imediatamente anterior
e esto ligados ao ps-memorialista pelo parentesco mais estreito (Ibdem:96).
No caso judaico, a conscientizao do horror de seus antepassados, da Dispora, passando pelos pogrons
medievais at o Holocausto (Shoah), algo que no apenas passado naturalmente de pai para filho como al-
tamente estimulado entre a comunidade judaica bem como para fora dela. De acordo com Hirsch, tal consci-
ncia trao fundamental da identidade judia, sendo inclusive mais premente que a religio entre os indivduos
laicos e urbanos (Apud Sarlo, 2007: 97).
Ou seja, a ruptura emocional causadora do trauma de Ari Folman, alm das cenas da carnificina em si, foi
potencializada pelas memrias do Holocausto. O contraste cabal entre a identidade de vtima, de perseguido,
de massacrado, face a uma realidade de, no mnimo, apoio e conivncia para com um massacre que no poupa-
va mulheres, velhos ou crianas. o que se torna evidente no segundo dilogo entre o diretor-protagonista e o
psiclogo Ori Sivan quando este lhe diz: Seu interesse pelo massacre vem de muito antes de ele ter ocorrido.
Seu interesse pelo massacre vem de um outro massacre. Seu interesse por aqueles campos , na verdade, por
outros campos (sequncia 12).
Mais frente (sequncia 14), no ltimo dilogo entre os dois, com Folman j ciente do ocorrido nos dias de
massacre que pareciam apagados de sua memria, Sivan explicita as razes da ruptura emocional do diretor-prota-
gonista. Voc no consegue se lembrar do massacre porque, na sua opinio, os assassinos e os que os cercavam so
o mesmo crculo. Voc se sentiu culpado aos 19 anos. Sem querer, voc assumiu o papel do nazista.
Essa culpa resultante dessa transio de vtima para carrasco tornou a busca das memrias de Ari Folman
importante no somente para acertar as contas com os infortnios pretritos, mas tambm para absolv-lo da
responsabilidade para com o morticnio dos refugiados palestinos. Essa reconciliao com o passado traum-
tico funciona, segundo Ricouer, como uma espcie de perdo, o horizonte comum da memria, da histria e
do esquecimento (2007:465). No caso de Valsa com Bashir, foi preciso ir alm da necessria assimilao do
fato que lhe ocasionaram a ruptura emocional.
A narrativa adquire ares de uma saga redentora para Folman. Em princpio por absolv-lo da responsabi-
lidade para com a tragdia. Voc estava l, atirando fogos, mas no executou o massacre, lhe tranquilizou
11 They suffer from wounds that are both personal and historical and that cannot heal without leaving scars in the present.
102
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Valsa com Bashir usa as imagens do massa-
cre para fazer referencia ao Holocausto: for-
ma de reconhecer a tragdia palestina.
103
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
o amigo e psiclogo Sivan (sequncia 14). Como diz Raz Yosef, o combatente israelense representado
como uma vtima passiva da histria, como algum que no teve participao ativa na opresso da populao
palestina
12
(2011: 143 e 144).
Apesar disso, Folman imputa uma responsabilidade residual do massacre ao governo israelense. Era im-
portante mostrar a realidade crua desse massacre cometido pelas milcias crists com uma certa cumplicidade
de Israel
13
, disse o diretor-protagonista em entrevista ao Cahiers Du Cinma (junho de 2008: 30). A culpa-
bilidade por levar o genocdio a cabo totalmente atribuda aos falangistas cristos que, como ressalta Carmi
Caan, tinham uma relao de idolatria quase ertica para com o lder assassinado Bashir Geymael (sequn-
cia 11) o que justificaria a carter implacvel da ao.
As vistas grossas ao massacre personificada no ento ministro da Defesa israelense, Ariel Sharon. Um
dos personagens, o jornalista Ron Bem Yshai, afirma no filme que ligou para Sharon enquanto acontecia a
carnificina, mas que o ministro apenas teria lhe agradecido o alerta e voltado para sua noite de sono (sequncia
13). Sharon, assim como o ento primeiro-ministro Menachen Begin, no resistiram ao impacto das imagens
do massacre na sociedade israelense e acabaram fora do governo. Ironicamente, Sharon voltaria ao poder no
comeo dos anos 2000, perodo em que degringolaram de vez as negociaes de paz entre Israel e Palestina.
A saga redentora de Folman no fica restrita exposio da conivncia do exrcito israelense. O diretor recria
possveis cenas do massacre de Sabra e Chatila e faz isso de forma a fomentar uma analogia imagtica com o prprio
Holocausto judeu. Seguiu, assim, a tendncia ps-moderna alardeada por Andreas Huyssen de globalizao do
discurso do Holocausto, no qual a tragdia judaica perde sua qualidade de ndice histrico especfico e comea a
funcionar como uma metfora para outras histrias e memrias (2001: 12 e 13).
As analogias entre Sabra e Chatila e o Holocausto (sequncia 15) vo desde as filas de refugiados subindo
nos caminhes frente coao dos milicianos armados, os veculos abarrotados de mulheres, velhos e crianas
rumos aos matadouros dos quais falou Carmi Caan - foi como uma viagem de LSD (sequncia 11) -, os
paredes de fuzilamento, as colunas de sobreviventes tendo frente a criana com as mos ao alto sabe
aquela foto do Gueto de Varsvia?, recordou Ron Bem Yshai -, as pilhas de cadveres assassinados, presentes
tanto nas imagens animadas como nas fotogrficas mostradas ao fim do filme.
Ao apresentar o durante e depois do massacre de uma forma anloga ao Holocausto, o filme acabou represen-
tando um sintoma comum aos eventos traumticos, cujas memrias acabam tornando-se atrasadas e deslocadas,
ou seja, acabam no tendo um referencial fsico e rearticulam-se enquanto evento psquico
14
(Elsaesser, Thomas
apud Yosef, 2011: 12 e 13). Mas, mais importante que isso, tratou-se da forma de reconhecer e deixar patente o fla-
gelo sofrido pelos palestinos durantes aqueles dias de 16 e 17 de setembro de 1982.
12 The Israeli combatant is represented as a passive victim of the history Who takes no active part in the oppression of the Palestinian
population.
13 ... Il est donc important de montrer la ralit crue de ce massacre commis par les milices chtiennes avec une certaine complicit
dIsral.
14 Traumatic event is delayed and displeced, rearticulation as a psychic event.
104
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
tica e auto-referencialidade
Expor o trauma de soldados que participaram de uma guerra iniciada pelo meu pas, uma invaso brutal de um
estado vizinho
15
(Folman, entrevista ao Cahiers Du Cinma, junho de 2008: 30), apontar a responsabilidade, ainda
que secundria, do governo israelense no sombrio episdio classificado como genocdio pela ONU, e reconhecer a
tragdia dos refugiados palestinos ao compar-los aos prias judeus durante a II Guerra Mundial.
Se aos olhos dos que esto acostumados a acompanhar o desenrolar do conflito Israel-Palestina por meio da
cobertura enviesada e maniquesta da mdia, o filme Valsa com Bashir demonstra coragem e revela a complexidade
da sociedade israelense no trato da questo, para muitos, sobretudo entre os que moram l, a premiada obra peca em
termos de contextualizao e, principalmente, em dar voz s vtimas de fato do massacre: os palestinos.
Para Dave Saunders, Valsa com Bashir crtico ao governo de Israel, mas no oferece concluses polticas
concretas, preferindo navegar de maneira eltrica pelo labirinto de experincias em direo ao ponto central
de uma barbaridade sem sentido, que foi tornada possvel, basicamente, por jovens inocentes, confusos e me-
drosos
16
(2010: 170). J Anthony Lane questiona: Qual o conforto dado aos parentes das vtimas de Sabra
e Chatila (...) pelo fato de que alguns conscritos que estavam presentes e nada fizeram so agora livres para
articular, at tornar lrica, sua dor interna?
17
(Apud Saunders, 2010: 170).
O israelense Raz Yosef lembra que a nica maneira para que Folman mostrasse interesse para com as vtimas
palestinas foi criando uma conexo com as vtimas judias
18
(2011:153). O pesquisador entende que Valsa com
Bashir, assim como boa parte da produo cinematogrfica que trata dos traumas e do conflito Israel-Palestina, so
falhos em mostrar o outro ponto de vista, focando apenas em apresentar as situaes nas quais os prprios israelen-
ses figuram enquanto vtimas. Tambm pecam em apontar os excessos extremados das aes do exrcito israelense
e em reconhecer a responsabilidade pelos no-judeus vitimados pelo nacionalismo judaico
19
(Ibdem: 145).
Por meio de sua esttica nica, o flme examina criticamente a repres-
so da memria do diretor acerca do massacre (...) e as implicaes
ticas de um trauma que ns no queremos ver e que ns preferiramos
ter esquecido. (...) Entretanto, Folman tira vantagem da responsabi-
lidade tica que lhe foi confada para contar apenas sua traumtica
histria, sem dar a narrativa traumtica palestina um espao indepen-
dente para si. O trauma de Folman, enquanto testemunha das atroci-
dades, permanece central no flme, e to poderoso que incorpora o
trauma vicrio dos palestinos. (Ibdem: 16)
O colunista poltico Gideon Levy, que escreve no jornal Hareetz, de orientao poltica de centro-esquerda, foi
custico em suas crticas ao filme, distribuindo uma saraivada de improprios contra a produo em um de seus
15 Ctait la premire guerre initie par mon pays, une invasion brutale dun tat voisin.
16 Waltz with Bashir is critical of Israels government, but offers no politically concrete conclusions, preferring to navigate its elec-
trifying way through a maze of experience towards a middle-point of barbaric pointlessness made possible by basically innocent,
confused, frightened youths.
17 What comfort is it to the relatives of Sabbra and Chatila victimns (...) that a few conscripts who stood by and did nothing are now
free to articulate, and even lyricise, their internal pain?
18 ... the only way that Folman can show any interest in the Palestinian victim is by creating a linkage with the Jewish victim.
19 ... these films does not derive from a desire to confess to any crime or to take responsibility for the non Jewish victims of Jewish
nationalism.
105
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
artigos. O texto publicado s vsperas da cerimnia do Oscar de 2009, na qual Valsa com Bashir era indicado
classifica a obra como irritante, perturbadora, ultrajante e enganosa
20
(Hareetz, 19/02/2009).
21
Levy opinou que o filme at merecia o Oscar pela qualidade artstica da animao, mas que tambm deveria
receber um emblema de vergonha por sua mensagem
22
. Este filme extraordinariamente irritante justamente
porque feito com muito talento
23
, destacou. O colunista no perdoou o fato de Folman sequer ter mencionado a
violenta ofensiva do IDF contra a Faixa de Gaza, reduto do grupo extremista Hamas, no final de 2008 a Operao
Chumbo Fundido - em seu discurso de recebimento do Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro.
Para Levy, o filme um ato de fraude e dolo
24
, que s serviu para reforar a sndrome do ns atiramos,
ns choramos
25
. Para o jornalista, a obra carrega um trao de vitimizao, ingrediente absolutamente essen-
cial no discurso que se produz aqui em Israel.
26
... apesar de tudo incluindo a luz verde dada aos nossos lacaios, a
Falange, para executar o massacre, e o fato de tudo ter acontecido num
territrio ocupado por Israel as mos brutais e cruis que vertem
sangue no so as nossas mos. Vamos levantar nossas vozes em pro-
testo contra a selvageria de Bashir tipos que ns bem conhecemos. E,
claro, um pouco tambm contra ns mesmos por fecharmos os olhos,
talvez demonstrar encorajamento (ao massacre). Mas no: aquele san-
gue no nosso. deles, no nosso. (Ibdem)
O colunista entende que o cinema israelense ainda por demais focado em mostrar os judeus enquanto vtimas,
os pesadelos so sempre nossos, s nossos
27
, e sentencia: Ns ainda no fizemos um filme sobre o sangue do
outro, o qual ns temos derramado e continuamos a permitir que seja vertido de Jenin a Rafah - certamente no seria
um filme que ganharia o Oscar
28
. Com menos eloquncia, o pesquisador Raz Yosef, endossa a crtica de Levy.
20 ... the film is infuriating, disturbing, outrageous and deceptive...
21 Todas as referncias ao pensamento de Gideon Levy so relativas ao artigo disponvel em http://www.haaretz.com/gideon-levy-
-antiwar-film-waltz-with-bashir-is-nothing-but-charade-1.270528
22 a badge of shame for its message
23 This is an extraordinarily infuriating film precisely because it is done with so much talent.
24 It is an act of fraud and deceit
25 ... the we shot and we cried syndrome...
26 another absolutely essential ingredient in public discourse here...
27 We have not yet made a movie about the other blood, which we have spilled and continue to allow to flow, from Jenin to Rafah
certainly not a movie that will get to the Oscars.
28 the nightmare is always ours, ours alone
106
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
O cinema israelense expressa alguma empatia tica acerca do sofrimento
dos palestinos? O cinema israelense admite que a catstrofe palestina de-
corrncia de crimes de guerra imorais? Em geral, com a exceo de uns
poucos flmes, ns temos que responder negativamente. O novo cinema isra-
elense recusa-se a admitir as injustias perpetradas pelo nacionalismo judeu
ao povo palestino e ainda v a sociedade israelense como uma coletividade
vitimada. A maior parte das narrativas do cinema israelense encontra di-
fculdade de representar essas transgresses, negando-as inteiramente ou
ignorando as formas pelas quais a ocupao (dos territrios palestinos) se
tornou uma parte inseparvel da identidade israelense.
29
(2011: 16)
Expor a complexidade do conflito
Envoltos num ambiente poltico cada vez mais tenso poltica e economicamente, no qual so crescentes
as animosidades entre os militantes de esquerda e o atual establishment de direita que engloba dos modera-
dos, outrora radicais, do partido Likud do primeiro-ministro Benyamin Netaniahu, aos beligerantes do Yisrael
Beiteinu (Israel Minha Casa), encarnados na figura do histrinico premier Avigdor Lierbermann, passando
pelos cada vez mais fortes religiosos ultra-ortodoxos -, natural que partidrios pelo fim do conflito entre
Israel-Palestina critiquem a tibieza do cinema nacional em representar e denunciar a ocupao dos territrios
palestinos, e toda a violncia que isso implica, bem como em dar voz aos outros envolvidos no embate de uma
forma mais efetiva.
s acusaes de pegar leve com o governo e os exrcitos israelenses e de no contextualizar o que Israel fazia no
Lbano quando do massacre de Sabra e Chatila a guerra tinha o objetivo de aniquilar o poderio blico da Organizao
pela Libertao da Palestina (OLP) -, Ari Folman responde dizendo que o tema principal do filme a confiabilidade da
memria
30
, sobretudo daquelas adquiridas na juventude, uma idade na qual voc no pensa totalmente
31
. Para mim
o filme sobre a memria para onde vo nossas memrias quando ns as suprimimos? -, a questo de se a memria
continua vivendo dentro de ns ou se tem sua prpria maneira de viver
32
(Apud Saunders, 2010: 170 e 171).
Por mais que soe como uma tergiversao, alegao de Folman tem sentido. Afinal, alm da narrativa ser centra-
da na representao dos fenmenos da memrias dos personagens por meio da animao, a questo que abordada
mais didaticamente e contextualizada, tal como os preceitos mais conversadores do filme documentrio, a da me-
mria. Por isso as explanaes sobre a relao trauma e memria nos relatos do psiclogo Ori Sivan (sequncias 3,
12 e 14) e da especialista em desordem de estresse ps-traumtico, professora Zahava Solomon, que explicou como
um fotgrafo conseguia transitar imune nas ruas de uma Beirute em guerra at se confrontar com o horror ao ver
cavalos mortos no hipdromo da cidade (sequncia 8).
Alm disso, e dos pontos levantados anteriormente, cabe ressaltar que em nenhum momento de Valsa com
Bashir exalta a ao israelense no Lbano, tampouco apresenta os soldados como heris, como to comumente
acontece em filmes de guerra, principalmente os norte-americanos. O ilustrador David Polonsky disse que,
29 Does Israeli cinema express an ethical empathy toward the suffering of the Palestinians? Does Israeli cinema admit that the Pales-
tinian catastrophe is the outcome of immoral war crimes? In general, with the exception of a few films, we must answer in negative.
The new Israeli cinema refuses to admit to the injustices perpetrated by Jewish nationalism to the Palestinian people and still sees
Israeli society as a victimized collective. Most narrative Israeli cinema find it difficult to represent these wrongdoings, sometimes even
denying them entirely or ignoring the ways in which the occupation has become an inseparable part of Israeli identity.
30... trustworthiness of memory itself...
31 ... at an age when you dont think at all.
32 For me, the film is about memory where do our memories still live inside us or have their own way of living.
107
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
mais do que o desafio artstico, no empregaria trs anos dando vida s subjetividades dos personagens do
filme se no fosse identificado com a posio poltica de esquerda
33
do projeto (Hareetz, 13/06/2008: 43).
Polonsky diz ter evitado representar os soldados como jovens e vtimas, e no aceita a alegao de que os per-
sonagens tenham uma postura estilo atirar e chorar
34
tal como critica Gideon Levy. No h glria romntica
na guerra, assim como no h perdo. H a mensagem clara e simples de que a guerra terrvel e insustentvel.
Despendemos grande energia para evitar transmitir a mensagem de que a guerra herica; os soldados no so nem
heris nem exemplos
35
(Ibdem). Nessa mesma linha de pensamento, Folman complementa: No h nada do bri-
lho israelense da guerra, no h promoo dos combatentes. Todos so clssicos anti-heris
36
(Ibdem).
Ou seja, por mais que no seja incisivo como parte dos israelenses e dos crticos de Israel gostariam, Valsa
com Bashir de forma alguma pode ser tratado como uma espcie de propaganda sionista. Seria um reducionis-
mo imprprio. No se pode cobrar de um filme que abarque todas as histrias e verses de um episdio como
o massacre de Sabra e Chatila. Foi apresentada, de uma forma criativa e inovadora, pontos de vista que eram
pouqussimos conhecidos fora do Estado judeu. Alm disso, para quem quer conhecer outras verses acerca
do genocdio, existem opes.
Uma viso das verdadeiras vtimas acerca do massacre pode ser conferida no documentrio Children of Shatila
(Lbano, 1998, 50 min), do cineasta Mai Masri, filho de pai palestino e me norte-americana. Apesar de mostrar as
mesmas cenas de dezenas de cadveres exibidas nos 114 segundos finais de Valsa com Bashir, o filme tambm no
focado em contextualizar o ocorrido. A inteno de Masri foi mostrar o campo 16 anos aps o massacre.
Ao estruturar a narrativa nos relatos de filhos e pais de mortos no massacre um senhor diz ter perdido
quatro filhos -, o filme procura representar a penosa vida dos refugiados palestinos e seus descendentes. A
falta de infra-estrutura, saneamento, servio de sade, as habitaes precrias, o desemprego generalizado, a
condio de cidado pria... situao que s no pior por conta de iniciativas pontuais da ONU, que garante,
por exemplo, um emprego de varredor a um pai de famlia especialista em informtica.
So tocantes as histrias das crianas que aprendem o ofcio de arteso com professores que foram muti-
lados no massacre e em outros confrontos que continuam a acontecer por ali. Desolador ver a v esperana
dos velhos entrevistados pelas crianas locais - que deixaram a Palestina no Nakba em 1948 e, mesmo sobre-
vivendo ao genocdio de 1982, ainda sonham em voltar para os seus lares. Apresentam documentos e chaves
de casas que, se ainda esto de p, provavelmente so habitadas pelos migrantes judeus de todo o mundo que
vieram morar em Israel.
J uma viso libanesa acerca da carnificina oferecida pelo documentrio Massaker Sabra et Chatila par ses
Bourreaux (Lbano, Frana, Alemanha, 2005, 98 min), produzido pela teuto-libanesa Monika Borgmann. O filme
exibe entrevistas com seis ex-falangistas cristos que participaram do massacre. Nenhum deles tem a face revelada,
o que no diminui o valor dos chocantes relatos. A obra quase que um complemento de Valsa com Bashir, j que
oferece uma contextualizao mais abrangente sobre o que acontecia em Beirute durante o perodo de guerra.
33 I certainly would not have become involved in this Project if I did not identify with his left-wing political stance.
34 They do not shot and cry.
35 There is no romantic glory in the war, and no forgiveness. There is a clear, simple message that war is untenable and terrible. We
went to great lengths to avoid conveying a message that war is heroic; the soldiers are neither heroes nor role models.
36 There is none of the Israeli glitter of war, no hyping of the fighters. Everyone is a classic anti-hero.
108
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Os relatos deixam claro a paixo superlativa que os cristos libaneses nutriam pelo ento recm-eleito pre-
sidente Bashir Geymael o que confirma as palavras de Carmi Caan, que dizia que o poltico era uma dolo
para os falangistas tal como David Bowie era para ele prprio (sequncia 11). O que tambm fica evidenciado
no documentrio ausncia de culpa e remorso dos homens que de fato massacram uma populao indefesa,
composta na maioria por mulheres, crianas e velhos.
Embora alguns apresentem at alguma resignao, mal-estar com o ocorrido, a mensagem passada pelos
relatos era de que estavam apenas cumprindo ordens. Eles no teriam outra opo que no fosse vingar a morte
do amado lder da forma brutal e exacerbada como ocorreu. Era a obrigao e eles a cumpriram com requintes
de crueldade. Uma viso diametralmente oposta aos traumas e culpas que assombraram as memrias dos sol-
dados israelenses representados em Valsa com Bashir.
O mais interessante do filme, entretanto, a revelao dos milicianos de que foram treinados pelas foras
armadas israelenses. Cabe lembrar que os cristos maronitas, parcela mais rica da sociedade libanesa e que
tinha em Geymael seu lder, eram aliados de Israel durante a invaso que intencionava destruir a OLP. Os
falangistas contam que foram levados ao pas vizinho, onde receberam treinamentos com armas avanadas e
aprenderam tcnicas de movimentao e ataque surpresa.
Um deles conta que parte do treinamento era ver vdeos das cmaras de gs dos campos de concentrao nazista,
nas quais os judeus eram assassinatos em ritmo industrial, em pleno funcionamento. Mais que isso, relatam que
oficiais israelenses no apenas incentivaram a revanche contra os palestinos por conta de um assassinato que nunca
foi esclarecido, como forneceram armas e cercaram a rea em apoio operao. Inclusive iluminando a rea noite
por meio de sinalizadores queles que Folman soltava quando de sua ruptura emocional e cuja colorao laranja
o elemento visual mais marcante e constante de Valsa com Bashir.
Um cinema alm do entretenimento
Israelense radicada nos Estados Unidos, a professora de Film Studies da Universidade de Nova York
(NYU), Ella Shoat sentencia: ... pode-se argumentar que todos os filmes so polticos ou, mais precisamen-
te, tm uma dimenso poltica -, os filmes israelenses so necessariamente e intensamente polticos, incluindo,
e talvez at mais especificamente, aqueles que reivindicam no ser. Poltica est na essncia sobre qualquer
discusso sobre o cinema israelense
37
(2010: 5). Essa interseco entre os filmes e a poltica apontada por
Shoat vem de longa data, bem antes da criao da ptria judaica.
A relao entre o cinema e o estado de Israel praticamente embrionria. Pouco aps o surgimento da s-
tima arte, os irmos Lumire foram regio da Palestina, ento pertencente ao Imprio Otomano (Turquia),
para registrar a vida na Terra Santa (Kronish, 1996: 5). Das imagens surgiu o filme, em estilo documentrio
actualits, La Palestine en 1896 (Frana, 1896, aproximadamente 3 min). Naquele mesmo ano, o jornalista
austro-hngaro de origem judia Theodor Herzl lanou o jornal Der Judenstaat (O Estado Judeu).
Tratava-se de uma reao de Herzl ao crescente antissionismo na Europa depois de dcadas de integrao.
A motivao maior do jornalista foi o chamado caso Dreyfus, no qual o capito do exrcito francs Alfred
Dreyfuss foi acusado de traio por, supostamente, atuar como espio do exrcito alemo acusao da qual
37 For, while it can be argued that all films are political or, more accurately, have a political dimension Israeli films are necessa-
rily and intensely political, including, and perhaps even especially, those films which claim not to be. Politics is of the essence in any
discussion of Israeli cinema
109
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
viria a ser absolvido em 1906. A culpa de Dreyfus, eu a atribuo sua raa, proclamou, poca, o chefe mi-
litar Charles Maurras (Apud Morin, 2007: 73).
A publicao de Der Judenstaat foi o primeiro passo a criao do movimento Sionista, mobilizao polti-
co-econmico-diplomtica que ressuscitaria o milenar sonho judeu de ter sua prpria nao desde a dispora
ocasionada pela Revolta de Bar Kocheva, que levou o Imprio Romano a proibi-los na Terra Santa em 135 D.c.
(Ibdem: 154). O movimento se consolidaria e passaria a ter atuao internacional em 1897, com a realizao do
Primeiro Congresso Sionista na cidade da Basilia, na Sua. Alm de compras de terras na Palestina e do in-
centivo migrao de judeus para l a primeira metrpole criada por eles foi Tel Aviv, em 1909 - a caracters-
tica mais marcante do movimento sionista foi o uso da comunicao como ferramenta poltica e de persuaso.
Em Massaker (2005), falangistas que participaram do massacre contam como foram treinados por Israel.
Children of Chatila (1998) mostra
a realidade dos campos de refugia-
dos 16 anos aps o massacre.
110
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
O pioneirismo sionista na produo de cinema na Palestina foi do ucraniano Yaackov Ben Dov, que
chegou a Terra Santa em 1907 e foi o primeiro a possuir uma cmera de filmagem por l (Kronish, 2006:
6). Mas ele, que ficou conhecido como o pai do cinema hebraico, s viria a concluir seu primeiro filme
em 1917, quando documentou a triunfal entrada do general britnico Edmund Allenby em Jerusalm aps
derrotar as tropas otomanas.
Contingentes sionistas haviam lutado ao lado das tropas aliadas durante a I Guerra Mundial e, como uma
espcie de retribuio, a Gr Bretanha que controlou a Palestina at 1948 - prometeu a criao de um lar
nacional judaico na Terra Santa (Morin, 2007: 113). Foi justamente a partir da que floresceu a produo ci-
nematogrfica pr-Estado de Israel, com carga altamente ideolgica refletindo o fervor e a filosofia Sionista
daquele tempo
38
(Kronish, 1996: 17).
Aps a Guerra de Independncia, entre 1948 e 1949, o cinema passou a ser utilizado como ferramenta fun-
damental para criar um sentimento de unidade nacional. Foi quando os filmes passaram a forjar a imagem de
um novo judeu, forte, empreendedor, guerreiro, bem diferente das figuras oprimidas e tristonhas que viviam
nos guetos da Europa. At o final dos anos 1960 a maioria dos filmes israelenses estava focada nos virtuais
heris mticos israelenses: os sabras , os kibbutzniks e os soldados, geralmente dentro do contexto do conflito
rabe-israelense
39
(Shoat, 2010: 53).
De acordo com Kronish, na cinematografia dessa poca os rabes eram geralmente inimigos annimos, figuras
similares s dos nativos norte-americanos nos westerns
40
(1996: 29). Outra temtica desse perodo, que persiste
at hoje, a dificuldade de integrao de judeus vindos de diferentes partes do mundo, sobretudo a tenso entre os
ashkenazis, de origem europeia, e os sepharadis, vindos dos pases rabes, do Ir e da ndia.
a partir de 1967 que o cinema israelense comea a assumir um tom mais crtico ao governo e o exrcito
do pas, bem como questionar o sofrimento imposto s populaes palestinas. Em junho daquele ano, as for-
as militares deram uma demonstrao de fora sem precedentes. Numa autntica ao blitzkrieg atacaram os
pases rabes vizinhos Egito, Jordnia e Sria derrotando-os fragorosamente em apenas seis dias. O lucro
da ofensiva foi a anexao da Pennsula do Sinai, devolvida ao Egito em 1979, das estratgicas Colinas de
Gol, na Sria, e dos territrios que, segundo a resoluo da ONU de 1947, deveriam pertencer aos palestinos:
A Cisjordnia, a Faixa de Gaza e a parte oriental de Jerusalm - o que acabou trazendo a tona o flagelo dos
refugiados palestinos, que viviam com direitos limitados sob o jugo de egpcios e jordanianos.
O consenso que reinava em Israel sobre o exrcito se enfraqueceu: muitos comearam a duvidar de seu
papel defensivo (as iniciais ZHL, pronunciadas Zahal, significam Exrcito de Defesa de Israel), e passa-
ram a v-lo, desde ento, como um tipo de exrcito policial incumbido de reprimir uma populao civil
41
(Schweitzer, 1997: 204). Ainda sobre esse tema, ressalta Edgar Morin:
38 Almost all the films of the pre-state period were influenced in some way by the Zionist fervour and philosophy of the time.
39 Until the mid-to late sixties most Israeli films focused on the virtually mythic Israeli heroes: Sabras, kibbutzniks, and soldiers, often
within the context of the Israeli-Arab conflict...
40 Arabs are generally anonymous enemy figures similar to the portrayal of native Americans in westerns.
41 Le consensus qui gnait en Isral propos de larme faiblit: beaucoup commencrent douter de son rle defensif (les initiales
Z.H.L., prononces Zahal, signifient Arme de Dfense dIsral), y voyant dsormais une sorte darme policire charge de rprimer
une population civile.
111
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Com a Guerra dos Seis Dias (junho de 1967), em que o Estado hebreu
se torna ocupante, colonizador e repressor, Israel e as instituies ju-
daicas da dispora dedicam-se a lembrar o martrio judaico do passa-
do, no somente por dever de memria, mas tambm, e cada vez mais,
para que esse martrio oculte os sofrimentos experimentados pelo povo
palestino. (2007: 118 e 119)
O acirramento da questo poltica, com um Israel cada vez mais beligerante e fomentador de uma retrica
maniquesta, foi sendo contraposto aos poucos pelo cinema, no qual os realizadores foram demonstrando a
insatisfao com a realidade que bem caracterizada pela uma clebre frase emitida pelo ministro da Defesa
Mosh Dayan, aps a Guerra do Yom Kippour, em 1973. Ns estamos condenados a viver aqui em um estado
de guerra permanente
42
(Apud Schweitzer, 1997: 206).
De acordo com Kronish, aps a Guerra do Yom Kippour na qual Israel foi atacado de surpresa pelas foras
do Egito em um dos mais tradicionais feriados judaicos, o Dia do Perdo o cinema do pas, de uma forma
mais incisiva, comeou a assumir a tarefa de comentarista poltico
43
(1996: 105). Durante meados dos anos
1970, a vulnerabilidade e a depresso que acompanhou a trgica perda de vidas durante a Guerra do Yom Ki-
ppur, levou muitos israelenses a repensar os valores hericos tradicionais. As Foras de Defesa de Israel (IDF)
j no eram mais consideradas sacrossantas e acima de qualquer suspeita
44
(Ibdem: 105 e 106). Alguns filmes
que caracterizam bem a mudana de postura rumo a uma inclinao crtica so Halfon Hill Doesnt Answer
(Assi Dayan, 1976), The Paratroopers (Yehuda Neeman, 1977) e Hamsin (Dan Wachsmann, 1982).
O novo cinema israelense dos anos 2000
Conforme aponta Ella Shoat, a indstria cinematogrfica israelense, at a dcada de 1990, conseguia colo-
car uma mdia de 10 ttulos por ano nas telas de cinema. Nessa contabilidade entravam os filmes de exaltao
os mitos heroicos do Sionismo, os melodramas que existem em qualquer pas, as obras mais polticas questio-
nando a atuao geopoltica de Israel e as comdias chamadas Bourekas, nas quais, geralmente, os judeus de
ascendncia no europeia eram ridicularizados (2010: 2 e 3).
O panorama do cinema muda drasticamente nesse incio de novo milnio. Primeiro em reconhecimento interna-
cional, que tem como ponto de virada o sucesso do aclamado e controverso Kadosh (Israel, Frana, 1999, 117 min),
de Amos Gitai, que trata da opresso das mulheres imposta pelo sistema religioso ultra-ortodoxo dos judeus que
vivem no bairro de Mea Sherim, em Jerusalm. Desde ento, a cinematografia de Israel tem colecionado sucessivas
nomeaes e indicaes para os mais prestigiosos festivais e premiaes do mundo: Cannes, Berlim, Veneza, Globo
de Ouro, Oscar Footnote (2011), de Joseph Cedar, j indicado em 2008 por Beaufort (2007), concorrer estatueta
de melhor filme em lngua estrangeira na cerimnia do Oscar do prximo dia 26 de fevereiro.
A mudana tambm ocorreu em termos de produtividade. De acordo com o ltimo Catlogo Anual de Fil-
mes Israelenses (2010-2011) produzido pela Cinemateca de Jerusalm, cerca de 70 longas-metragens de fico
e 180 documentrios foram lanados ou estavam em fase final de produo no pas. Sem grandes oramentos,
42 Nous sommes condamns vivre ici dans um tat de guerre permanent.
43 ... that Israeli filmmaking began to take on the task of political commentator.
44 During the mid-1970s the vulnerability and depression that accompanied the tragic loss of life during Yom Kippur War led many
Israelis to rethink traditional heroic values. The Israel Defense Forces were no longer considered sacrosanct and above criticism.
112
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
as obras so quase sempre feitas em coproduo com produtoras de pases europeus, sobretudo Frana, Ale-
manha e Holanda. Tambm contam com recursos de fundaes ligadas ao governo, como a Israel Film Fund
e a New Israeli Foudation for Cinema & TV, e algumas privadas, como a Gesher Multicultural Film Fund e a
The Joshua Rabinovich Tel Aviv Foundation for the Arts Cinema Project.
Outro trao fundamental do novo cinema israelense dos anos 2000 o exacerbamento das caractersticas
introduzidas l nos anos 1970. Nesse sentido, explica Raz Yosef:
Um dos mais contundentes e interessantes fenmenos no cinema isra-
elense contemporneo o nmero e o escopo de flmes que lidam com
eventos traumticos do passado eventos e experincias que foram
reprimidos ou insufcientemente enlutadas, como as memrias do Ho-
locausto, traumas de guerra, as perdas vinculadas experincia da
migrao e o trauma da ocupao israelense e da vitimizao do povo
palestino. (...) Os eventos traumticos do passado israelense so repre-
sentados como memrias privadas de distintos grupos sociais solda-
dos, imigrantes, mulheres, homossexuais e no como uma memria
coletiva, tal como a viva e praticada tradio que condiciona a socie-
dade israelense. Esses flmes so um tipo de liex de mmoire domnio
da memria que preserva e abriga eventos traumticos reprimidos
cuja entrada na narrativa histrica nacional foi negada. Esse descola-
mento da memria coletiva nacional coloca esses flmes em um mundo
marcado por uma insistente mistura do contexto histrico com impres-
ses privadas e subjetivas um mundo intemporal de sonhos, fantasias,
alucinaes e mitos. Esses grupos sentem o dever de relembrar o pas-
sado, relanando as memrias reprimidas por meio do cinema com o
objetivo de regressar e dar signifcao s suas identidades.
45
(2011:5)
Ou seja, Valsa com Bashir est longe de ser um caso isolado em suas intenes comunicativas de resgatar
a memria dos soldados, questionar o carter interminvel situao de guerra em Israel e, de alguma forma,
expor o flagelo palestino. Existem paralelos entre essas obras mais atuais. Podem at no formar um grupo
organizado, mas sem dvida comungam perspectivas e objetivos que as conectam contemporaneamente. Um
perodo uma unidade histrica dentro da qual diferenas e similaridades entre os filmes adquirirem especial
importncia em referncia aos tempos
46
, explica Bill Nichols (1991: 22).
Os filmes acabam funcionando como porta-voz dos diferentes grupos pacifistas, ex-soldados, jovens
que no querem servir ao exrcito, gays, feministas, rabes-israelenses, migrantes... que, naquele pas, aco-
bertam-se sob o manto ideolgico da esquerda. No conheo nenhum cineasta de direita em Israel, disse, a
este pesquisador, o documentarista e chefe de programao da Cinemateca de Tel Aviv, Pinchas Schatz.
Assim, tal conjunto de obras assume o papel de construir o que Marc Ferro chama de contra-histria, no
sentindo de tornar-se autnomo em relao s instncias que tinham o monoplio dos discursos sobre a socie-
45 One of the most striking and interesting phenomena in contemporary Israeli cinema is the number and scope of films dealing with
past traumatic events events and experiences that were repressed or insufficiently mourned, such as the memory of the Holocaust,
war traumas, the losses entailed by the experience of immigration, and the trauma of the Israeli occupation and victimization of the
Palestinian people. () Traumatic events from Israeli societys past are represented as the private memory of distinct social groups
soldiers, immigrants, women, queers and not as collective memory, as lived and practiced tradition that conditions Israeli society.
These films are a kind of lieux de mmoire realms of memory that preserve and house repressed traumatic events that have been
denied entry into the nations historical narrative. This detachment from national collective memory pulls the films into a world ma-
rked by a persistent blurring of the historical context and by private and subjective impressions a timeless world of dreams, fantasies,
hallucinations, and myths. These groups feel duty-bound to remember the past, recasting repressed memories through the cinema in
order to return and give meaning to their identity.
46 A period is a historical unit of time within which the similarities and differences among films take on special importance in refe-
rence to the times.
113
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Falangistas cristos: a eles atribuda exclusivamente a culpa pelo massacre
Responsabilidade de Israel para com o massacre encarnada na figura de Ariel Sharon.
114
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
dade (...) caracterizado pelas verdades estabelecidas (2010:13). Ainda no pensamento do pesquisador francs,
ele ressalta que o filme, imagem ou no da realidade, documento ou fico, intriga autntica ou pura inveno,
Histria. (...) aquilo que no aconteceu (e por que aquilo no aconteceu?), as crenas, as intenes, o imaginrio
do homem, so to Histria quanto a Histria (Ibdem: 32). Complementando o conceito de Ferro:
... as enquetes flmicas que lanam mo da memria e do testemunho
oral so numerosas. O flme ajuda assim na constituio de uma con-
tra-histria, no ofcial, liberada, parcialmente, desses arquivos escri-
tos que muito amide nada contm alm da memria conservada por
nossas instituies. Desempenhando assim um papel ativo, em contra-
ponto com a Histria ofcial, o flme se torna agente da Histria pelo
fato de contribuir para uma conscientizao. (Ibdem: 11)
Nesse sentido, h de ressaltar o valor da atual cinematografia israelense por mostrar a complexidade scio-
-poltica do pas e como parcelas importantes da sociedade, embora com poder poltico cada vez mais diminu-
to, discordam do tal estado de guerra permanente e da maneira maquiavlica com a qual o governo emprega
seu poderio diplomtico, blico e econmico na relao com as populaes palestinas. OK, pode ser pouco
para os militantes que esto l dentro, vivendo a realidade. Mas essas obras jogam uma luz acerca dos fa-
tos que contrasta cabalmente com a viso maniquesta apresentada diariamente pela mdia internacional. Por
exemplo, o pesquisador francs Guy Gauthier entende que os documentaristas israelenses so obcecados pela
Palestina, pela paz, pela co-habitao...
47
(2008: 348).
Outro pesquisador francs, Raphal Nadjari, realizou um estudo audiovisual sobre a cinematografia de Is-
rael que resultou no filme Une Histoire du Cinma Israelien (Frana, 2009, volume 1: 103 min; volume 2: 106
min). Nadjari entende que o cinema do pas caminha num sentido que obriga ao reconhecimento do outro, do
seu sofrimento, de sua histria. o fim da ignorncia: deve-se ver o outro nos olhos, reconhecer o sofrimento
do povo palestino
48
(2009: entrevista contida no livreto que acompanha a edio francesa do filme).
O cinema israelense, por mais que se questione sua falta de veemncia no trato da questo Palestina, no
endossa vises que dominam os meios de comunicao e o cinema, sobretudo o norte-americano. No se pode
47 On comprendra que les documentaristes israliens soient obsds par la Palestine, la paix, la co-habitation
48 ... oblige la reconnaissance de lAutre, de sa souffrance, de son histoire. Cest la fin de lignorance: on doit regarder lAutre dans
les yeux, reconnatre la souffrance du peuple palestinien.
Com o controverso Kadosh (1999), cine-
ma israelense passa a ser reconhecido in-
ternacionalmente.
115
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
falar que filmes como Valsa com Bashir e tantos outros produzidos recentemente compactuem com a viso
desoladora apresentada por Edward Said, palestino radicado nos EUA e autor do clssico Orientalismo:
Um aspecto do mundo eletrnico ps-moderno que houve um re-
foro dos esteretipos pelos quais o Oriente visto. A televiso,
os flmes e todos os recursos da mdia tm forado as informaes
a se ajustar em moldes cada vez mais padronizados. No que diz
respeito ao Oriente, a padronizao e os esteretipos culturais in-
tensifcaram o domnio da demonologia imaginativa e acadmica
do misterioso Oriente do sculo XIX. (...) o Oriente Mdio agora
identifcado com a Poltica da Grande Potncia, a economia do pe-
trleo e a dicotomia simplista entre um Israel democrtico e aman-
te da liberdade e os rabes malvados, totalitrios e terroristas; as
chances de uma viso clara do que dizemos ao falar sobre o Oriente
Prximo so deprimentemente pequenas. (2008: 58)
Sobre o cinema, Edgar Morin lembra que Hollywood uma criao de pequenos judeus imigrados do leste
europeu que viviam de pequenas profisses (2007:101). O autor nomeou os migrantes e os estdios por eles
criados: Adolphe Zukor funda a Paramount, Carl Laemmle a Universal, os irmos Warner a Warner Bros,
Louis B. Mayer e Samuel Goldwin a Metro Goldwin-Mayer, Willian Fox a 20th Centrury Fox, Harry Cohn a
Columbia... (Ibdem). O cinema de Hollywood, de acordo com Robert Stam e Ella Shoat, foi e continua sendo
o principal disseminador do eurocentrismo, ideologia que procura naturalizar o mito da supremacia branca
e ocidental frente ao resto do mundo. Movimento que, segundo os autores, conseguiu at criar uma hierarquia
de valores humanos: no pice estavam os americanos e europeus, logo abaixo se localizavam os israelenses,
na sequncia, os aliados rabes e, abaixo de todos na escala, estavam os inimigos rabes. (...) a mensagem
subliminar enviada pela mdia: a cultura do Terceiro Mundo no tem nenhum valor que um europeu (incluindo
europeus honorrios) deva respeitar (2006: 191).
H de ressaltar que os prprios judeus foram alvos de campanhas difamatrias pesadas e que as produes
norte-americanas serviam de contraponto na batalha da informao e representao antes e durante a II Guerra
Mundial. Exemplo emblemtico nesse sentido o filme O Judeu Sss (Jud Sss, Veit Harlan, Alemanha, 1940,
98 min), que contou com a interferncia direta do ministro da Propaganda Nazista, Joseph Goebbels, em sua
produo. A obra procurava reforar dois esteretipos judeus: o do subumano confinado ao guetto e do depra-
vado que pratica a usura na busca desenfreada por lucros (Ferro, 2010: 133 e 134). Outros exemplos de filmes
que atacavam a imagem dos judeus so: Robert und Bertram (Hans Zerlett, Alemanha, 1939), Die Rothschilds.
Aktien auf Waterloo (Erich Waschneck, Alemanha, 1940, 97 min) e Der Ewige Jude (Fritz Hippler, Alemanha,
1940, 62 min) (Shaheen, 2009: 11).
Apesar disso, a indstria cinematogrfica norte-americana acabou tornando-se uma ferramenta fundamen-
tal para a causa sionista antes e depois da criao do Estado de Israel, naturalizando esteretipos que, como diz
Jack Shaheen, vilipendiavam um povo
49
(2009:1). Estudioso acerca da representao dos povos do Oriente
Mdio na mdia norte-americana, Shahenn, em sua obra na qual analisa cerca de mil filmes produzidos em
Hollywood que abordam a temtica rabe, taxativo ao afirmar que o cinema yankee pratica uma sistemtica
e penetrante (...) degradao e desumanizao de um povo
50
(Ibdem: 7).
49 Hollywood vilifies a people...
50 cinemas systematic, pervasive, and unapologetic degradation and dehumanization of a people.
116
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Vistos pelas lentes distorcidas de Hollywood, os rabes parecem di-
ferentes e ameaadores. Projetado junto com questes raciais e re-
ligiosas, os esteretipos so profundamente enraizados no cinema
norte-americano. De 1896 at hoje, os realizadores tem coletivamente
indicado os rabes como inimigo pblico nmero 1 brutais, desalma-
dos, no civilizados fanticos religiosos e loucos por dinheiro, outros
culturalmente empenhados em aterrorizar os civilizados ocidentais, es-
pecialmente os cristos e os judeus.
51
(Ibdem: 8)
As estereotipagens podem ser escancaradas - como na animao Aladdin (Ron Clements e John Musker,
EUA, 1992, 90 min) dos Estdios Disney, e no clssico da pancadaria, estrelado por Chuck Norris, Comando
Delta (The Delta Force, Menahen Golam, EUA, 1986, 125 min) -, ou aparecer tacitamente. Exemplo deste l-
timo estilo o filme que inaugura a franquia Indiana Jones, os Caadores da Arca Perdida (Raiders of the Lost
Ark, EUA, 1981, 115 min) de Steven Spielberg. Stam e Shoat pontuam que o blockbuster revela um substrato
judaico escondido, mesmo na ausncia de personagens judeus. Libertando a antiga arca de origem hebraica
da possesso ilegal dos egpcios, o heri americano tambm a resgata do sequestro nazista, reforando alegori-
camente a solidariedade entre americanos e judeus contra os nazistas e seus colaboradores rabes (2006: 317).
Alm de no seguir a linha ideolgica desenvolvida por seus patrcios que comandam expressiva parte
da indstria cinematogrfica nos EUA onde a populao judia maior do que em Israel -, o novo cinema
israelense tampouco pode ser apontado como mais uma das ferramentas ideolgicas do famigerado Lobby
51 Seen through Hollywoods distorted lenses, Arabs looks different and threatening. Projected along racial and religious lines, the
stereotypes are deeply ingrained in American cinema. From 1896 until today, filmmakers have collectively indicted all Arabs as Public
Enemy #1 brutal, heartless, uncivilized, religious fanatics and money-mad others bent on terrorizing civilized Westerners, especially
Christians and Jews.
O cinema antissemita tem
como smbolo o filme ale-
mo Jud Sss(1940).
117
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Judeu
52
. Movimento de alcance mundial, mas de influncia decisiva nos Estados Unidos, praticam um intenso
patrulhamento ideolgico sobre polticos, acadmicos e a mdia. Suas entidades mais conhecidas na Amrica
do Norte so a AIPAC (The American Israel Public Affairs Comittee)
53
e a ADL (Anti-Defamation League)
54
.
Alm dessas, h de se ressaltar o competente e eficaz trabalho desenvolvido pela agncia de relaes pblicas
do Governo de Israel, o Hasbara
55
, cuja onipresena global, em parceria com as comunidades espalhadas
pelo mundo, no deixa sem resposta nenhum tipo de crtica que se faa a atuao do Estado de Israel, desde as
chauvinistas que encarnam um abjeto antissemitismo e que pregam o fim do Estado Judeu at as manifestaes
de solidariedade tragdia Palestina, dentro e fora dos territrios ocupados onde vivem cerca de 3,5 milhes
de refugiados e seus descendentes.
... eis-me aqui enfim traidor dos judeus por ter manifestado minha compaixo pelos palestinos
que sofrem as misrias e humilhaes de uma ocupao, desabafou Edgar Morin, descendente de ju-
deus convertidos, os marranos, depois de sofrer intensa campanha difamatria e enfrentar processos
judiciais movidos pela associao France-Isral aps publicar o artigo Isral-Palestine: le cancer
no jornal Le Monde de 04 de junho de 2002. Nada sou, portanto, seno uma das inmeras vtimas
da histeria poltica, a verdadeira histeria de guerra que v no no-conforme um inimigo, e no inimigo
um monstro de ignomnia (2007: 79).
Judeu, filho de sobreviventes do Gueto de Varsvia e dos campos de concentrao, que perdeu todos seus
demais parentes durante o genocdio nazista, Norman Filkenstein entende que as entidades que praticam o
lobby usam do passado sofrido do povo hebreu para auferir vantagens polticas e econmicas, alm de justi-
ficar as aes violentas cometidas contra a populao palestina. O Holocausto provou ser uma indispensvel
bomba ideolgica. Em seus desdobramentos, um dos maiores poderes militares do mundo, com uma horrenda
reputao em direitos humanos, projetou-se como um Estado vtima, da mesma forma que o mais bem-su-
cedido grupamento tnico dos Estados Unidos adquiriu o status de vtima. Dividendos considerveis resultam
dessa falsa vitimizao em particular, imunidade crtica, embora justificada. Os que usufruem dessa imu-
nidade, eu poderia acrescentar, no escapam tpica corrupo moral que faz parte dela (2006: 13). A fama
internacional e seu ativismo contra as polticas de Israel e a atuao do lobby judeu levaram Filkenstein a sofrer
campanhas severas de demonizao por uma parte da comunidade judaica norte-americana, que lhe atribuiu o
ttulo nada honroso de self-hatred jewish e que procura prejudic-lo em sua atuao profissional tal como
mostrado no documentrio American Radical The Trials of Norman Filkenstein (David Ridgen e Nicolas
Rossier, EUA, 2009, 84 min).
Enfim, essa brevssima descrio acerca de uma parte da complexidade da querela geopoltica, que h mais
de 60 anos praticamente todos os dias ocupam os noticirios de todo o planeta, serve apenas para ressaltar o
papel fundamental que o cinema israelense tem cumprido ao demonstrar que nem todos que vivem naquele
pequeno pas - que se transformou em potncia agrcola, tecnolgica, militar e cultural em to pouco tempo de
52 Sobre este assunto, ver: Mearsheimer, John J. & Walt, Stephen M. The Israel Lobby and U.S Foreign Policy, e Chomsky, Noam &
Papp, Ilan Clusters of History: U.S. Involvement in the Palestine Question, in Gaza in Crisis Reflections on Israels War against the
Palestinians.
53 www.aipac.org
54 www.adl.org
55 www.hasbara.com
118
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
existncia compactuam com a tragdia que est sendo levada a cabo contra os povos palestinos, o que tam-
bm, h de se dizer, fruto de muita omisso e de interesses polticos pouco solidrios de seus irmos rabes.
No se v no cinema israelense atual pelo menos nas obras as quais este pesquisador pode ter acesso
a dicotomia simplista entre o israelense democrata e o palestino terrorista. Os filmes no se prestam
a fazer simplesmente mais do mesmo. Seu valor est justamente em trazer toda a complexidade da situa-
o, os interesses e os atores desconhecidos que atuam nessa arena do conflito Israel-Palestina, para a tela
do cinema e, a partir da, para o mundo por meio de festivais, da internet e, s vezes, pela distribuio da
indstria do entretenimento.
fato que muitos dos filmes focam na prpria insatisfao, geralmente traumtica, dos israelenses. Mas
reconhecer e explicitar o absurdo da guerra sem fim no deixa de ser um mrito de filmes como Valsa com
Bashir, Beaufort, Lebanon e Kippur (Amos Gitai, Israel e Frana, 2000, 117 min) para ficar naqueles de
maior reconhecimento internacional em funo de seu elevado valor artstico. por meio do cinema que seis
jovens garotas puderam contar seus desafios morais de, aos 18 anos, atuar militarmente nos territrios ocu-
pados, dificultando terrivelmente a vida e o direito de ir e vir dos palestinos, inclusive de jovens, como elas,
grvidas. Essa viso profundamente crtica o que se tem no documentrio To see if Im smiling (Israel, 2007,
60 min), da diretora e ex-soldada Tamar Yarom. Ainda que sem voz, as agruras dos palestinos esto presentes
lado a lado com os dilemas das ex-combatentes.
Um trauma de famlia exposto em Blood Relation (Israel, 2009, 75 min), no qual a cineasta Noa Bem
Hagai vai em busca das primas nascidas do relacionamento entre uma tia judia e um palestino - o casal havia
fugido para viver na Cisjordnia nos anos 1950. O reencontro com o passado familiar leva a vrios questiona-
mentos acerca da ocupao israelense nos territrios palestinos, principalmente as dificuldades econmicas e
de se ter acesso a servios essenciais.
J Yariv Mozer documentou sua participao na segunda Guerra do Lbano, em 2006, e produziu o filme
My First War (Israel, 2008, 85 min). Trata-se de uma viso aterradora acerca da operao que pretendia destruir
Filkenstein: seilf-hatred jewish.
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as foras do grupo terrorista Hezbollah, na qual fica patente o desnimo dos soldados, e at de comandantes,
tanto com a falta de sentido da ofensiva como com a falta de coordenao, o que os expunha constantemente
ao perigo. No filme se v soldados do poderoso IDF admitindo a derrota na guerra.
Tambm possvel ver a questo do conflito Israel-Palestina sendo apresentada juntamente de outras ques-
tes caras aos grupos minoritrios no pas. o caso de Bubble (Eytan Fox, Israel, 2006, 117 min), no qual o
conflito o pano de fundo da histria que conta a relao homossexual tema recorrente no atual cinema do
pas entre um soldado do IDF e um palestino mulumano que vivia ilegalmente em Tel Aviv.
J em Lemmon Tree (Eran Riklis, Israel, 2008, 106 min) o papel da mulher em ambas sociedades abor-
dado juntamente com a questo da ocupao israelense e a construo da cerca de segurana que isola reas
palestinas tidas como perigosas. A trama principal do filme gira em torno da luta de uma palestina viva para
manter as terras onde sua famlia plantava limes h geraes, e que estava ameaada quando uma autoridade
israelense tornou-se sua vizinha.
A alegada falta de veemncia est longe de ser caracterstica da obra do documentarista Avi Mograbi, com
seus filmes originais e debochados que acusam abertamente o governo, o exrcito, os religiosos ortodoxos e
outros segmentos do establishment direitista de serem criminosos por conta da ocupao dos territrios pales-
tinos e por alimentarem a beligerncia na sociedade israelense. Entre seus clssicos documentrios poltico-
-cmicos de questionamento custico est Happy Birthday Mr. Mograbi (Israel, 1999, 77 min), August: a
Desnimos de soldados israelenses em My First War (2008): reconhecendo a derrota.
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Moment Before the Eruption (Israel, 2002, 72 min), Pour Un Seul de Mes Deux Yeux (Israel, Frana, 2005, 110
min) e Z32 (Israel, Frana, 2008, 81 min).
Questionar incisivamente a geopoltica israelense e tambm a atuao dos grupos do lobby judeu nos Esta-
dos Unidos foi o objetivo de Yovav Shamir, no provocativo documentrio Defamation (Israel, 2009, 91 min).
Shamir mostra, de forma bem humorada, o que est por trs das mobilizaes dos grupos que atuam na linha
definida por Filkenstein como A Indstria do Holocausto o prprio pesquisador entrevistado no filme e
revela o quanto de mito existe no to propalado antissemitismo por organizaes como a ADL, que basicamen-
te desmascara pelo filme.
J o primeiro documentrio de Shamir um exemplo de que o cinema de Israel sim capaz de dar voz
e mostrar mais diretamente o flagelo palestino. Em Checkpoint (Israel, 2003, 80 min), o cineasta emprega a
tcnica do cinema direto para mostrar como a implantao dos checkpoints estava tornando invivel a vida dos
Palestinos sem direito de
ir e vir so representados
em Checkpoint (2003).
Em Defamation (2009), Sha-
mir desnuda as organizaes
que praticam o lobby judeu.
121
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
palestinos. Shamir consegue evidenciar a falta de critrio dos soldados, a arbitrariedade sem sentido e como os
cidados rabes velhos, mulheres grvidas, doentes, crianas eram aviltados em seus direitos por conta da
paranoia israelense com a segurana. Todos pagavam pelo radicalismo desesperado-irracional de alguns terro-
ristas. Shamir mostrou o processo de isolamento fsico dos palestinos ainda em seu comeo talvez prevendo
que tudo iria ficar muito pior, como de fato aconteceu.
O isolamento fsico das populaes palestinas tambm tema do filme Mur (Israel, Frana,
2004, 100 min), de Simone Bitton, israelense descendente de judeus marroquinos. A cineasta
mostra o processo de construo do muro que o governo israelense designa eufemisticamente
como cerca de segurana ao longo do que seria a fronteira de Israel com a Cisjordnia. So
760 quilmetros de uma barreira com oito metros de altura severamente vigiada. Empregando
um tom humanista em que procura mostrar a insatisfao de muitos israelenses com a separao
fsica entre dois povos que por sculos conseguiram conviver em paz na regio, o documentrio
Star Hotel (2006) mostra a vida precria de
palestinos que trabalham como ilegais em Israel.
Em Promesses (2000), a promoo de encontro
entre crianas palestinas e israelenses.
122
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
de Bitton brilha ao mostrar os palestinos que, sem alternativas, trabalham na construo da bar-
reira que iria isol-los de seus parentes e amigos.
A falta de alternativas laborais aos palestinos tambm tema de 9 Star Hotel (Israel, 2006, 72
min), de Ido Haar. Trata-se de um documentrio completamente dedicado a dar voz e mostrar a reali-
dade de palestinos que atravessam a cerca de segurana para trabalhar como ilegais na construo
civil israelense. Vivendo as noites escondidos em pequenos barracos no alto de montes e em regime
de solidariedade, os trabalhadores convivem diariamente com o temor de serem pegos pela polcia
israelense e, presos, perder a precria fonte de sustento de suas famlias que ficaram nos territrios
ocupados. Cenas do desespero dos pees com a batidas policiais noturnas so o ponto alto do do-
cumentrio, cujo nome, 9 Star Hotel, procurar ironizar a realidade frgil dos vveres dos ilegais em
contraste com a obra do hotel de altssimo luxo no qual alguns deles trabalham.
Tambm no se pode deixar de falar dos filmes de temtica abertamente pacifista, que tem no
documentrio Promesses (Justine Shapiro, B.Z. Goldberg, Israel, 2000, 106 min) seu representante
mais evidente, j que foi nomeado ao Oscar de melhor documentrio de 2002. O filme procura captar
a viso de sete crianas israelenses e palestinas entre rfos, religiosos ortodoxos, laicos - acerca
do conflito. No fim promove um tocante encontro no qual crianas judias so levadas a conhecer um
jovem palestino na Cisjordnia. No faltam lgrimas no filme que procura demonstrar que possvel
sim o entendimento entre as partes, sobretudo quando ainda no esto envenenadas pelo dio mtuo
to propalado pelas autoridades e pela mdia.
Outro exemplo de filme que procura retratar o entendimento entre as partes e o esforo mtuo visando
o fim das hostilidades e do conflito Encounter Points (Israel, EUA, 2006, 85 min), de Ronit Avni e co-
-dirigido pela brasileira Jlia Bacha. A obra retrata o trabalho do The Parents Circle
56
, tambm conhecido
como frum das famlias israelo-palestinas enlutadas, formada exclusivamente por pais que perderam
seus filhos nas dcadas de conflito.
O filme apresenta a dificuldade dessas pessoas que talvez fossem as que mais deveriam estar consumidas
pelo dio contra a outra parte em promover uma viso conciliadora, que fuja do maniquesmo fcil que s
torna o conflito uma realidade impossvel de ser terminada. Este pesquisador teve a oportunidade de conhecer
in loco o trabalho do Parents Circle em 2006 e um alento ver um documentrio que leve para fora das frontei-
ras israelenses a viso de pessoas to engajadas em promover a tolerncia e em demonstrar que a convivncia
no s apenas possvel como uma necessidade imperiosa.
Mostrar as iniciativas, opinies e histrias que no frequentam a mdia tradicional um dos
grandes mritos do cinema israelense dos anos 2000. Trata-se de uma realidade que escamoteada
deliberadamente por aqueles que no tm nenhum interesse no fim do conflito nesse sentido, vale
conferir o documentrio norte-americano Peace, Propaganda and Promised Land (Sut Jally e Bath-
sheba Ratzkoff, EUA, 2004, 80 min).
Assim como o Parents Circle, dezenas de outras instituies em Israel e na Palestina trabalham pelo en-
tendimento e paz na regio. De acordo com um dos mais conhecidos destes, o Gush Shalom
57
do incansvel
ativista Uri Avnery, so cerca de 70 os grupos que atuam ativamente hoje em dia em Israel e na Palestina em
56 www.theparentscircle.org
57 www.gush-shalom.org
123
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prol do respeito mtuo, pelo fim da ocupao israelense nos territrios ocupados e pela criao tal como
previsto pela ONU em 1947 de dois pases capazes de conviver sem animosidades.
O cinema a forma atual de dar voz a essas contracorrentes e lev-las ao mundo. Trata-se de um tpico
embate culturalista tal como definido por John Fiske: A cultura a luta pelas significaes assim como a so-
ciedade a luta pelo poder
58
(1989: 20).
58 Culture is a struggle for meanings as society is a struggle for power.
Israelenses e palestinos que perderam seus filhos no conflito trabalham lado a lado pela paz em Encounter Points (2006).
CONSIDERAES FINAIS
125
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Se o real no um pensamento, como o pensamento poderia apreen-
d-lo sem difculdade e sem limites ? Assim, o real sempre tem a lti-
ma palavra : o que impede que qualquer discurso jamais o designe
adequadamente.
A verdade ? Que cientista, hoje, pretenderia conhec-la ? Que artista
ainda se preocupa com ela ? E quantos flsofos chegam ao ponto de
dizer que ela no existe, que nunca existiu, que a ltima iluso de que
temos de nos libertar?
Andr Comte-Sponville
1
N
o. Definitivamente no se pode atribuir um carter revolucionrio ao filme Valsa com Bashir. Por
outro lado, no h como negar que a obra israelense seja um marco na histria do cinema documen-
trio. Afinal, ao radicalizar tendncias que vinham constituindo-se h dcadas de forma marginal,
o filme, por seu sucesso e repercusso crtica e acadmica, acabou por consolidar a estruturao de narrativas
no-ficcionais baseadas em elementos da subjetividade de seus personagens - alcanando resultados sem pre-
cedentes ao fazer isso de forma casada com o uso da tcnica da animao. Ademais, h de se mencionar que
tal resultado foi obtido a partir da representao de personagens que vivem uma realidade onde as questes da
memria, do trauma e da culpa sobressaem-se, muitas vezes de forma contraditria, na conformao identitria
nacional israelense.
Embora dentre suas 15 premiaes internacionais, somente uma tenha sido reconhecendo-o expressamente
como documentrio, Valsa com Bashir tornou-se paradigma de um novo estilo de cinema no-ficcional que
o jornal francs Le Monde entende como resultado da hibridizao entre a animao e o documentrio
2
(18/03/2011). No por outro motivo, o filme israelense foi a inspirao do Festival do Filme de Animao de
Annency, na Frana, em 2009
3
. O que se viu com Valsa com Bashir que a animao no necessariamente
sinnimo de fico
4
, escreveu a crtica Sophie Bourdais, do site Tlrama, poca.
Valsa com Bashir tambm foi o mote de outro evento realizado na Frana. Em maro de 2011, o Forum des
images, entidade vinculada prefeitura parisiense, promoveu o festival O Documentrio Animado : verdade
ou mentira ?
5
. O filme israelense foi tema de debate e a imagem animada de Ari Folman figurava em todas as
peas publicitrias do evento, que contou com a exibio de 27 filmes, sendo quatro longas-metragens.
Dois dos longas exibidos em Paris reafirmam a tendncia consagrada por Valsa com Bashir de utilizar a anima-
o para trazer realidade imagtica a subjetividade dos personagens representados. Um deles tambm exibido no
festival Tudo Verdade do ano passado teuto-iraniano A Onda Verde (The Green Wave, Ali Samadi Ahadi, 2010,
1 2003: 504 e 623.
2 lhybridation de lanimation et du documentaire.
3 Festival Du Film Danimation Annency 09 informaes obtidas pelo site www.annency.org
4 On la vu avec Valse avec Bachir, lanimation nest pas forcment synonyme de fiction. Obtido em http://www.telerama.fr/
cinema/docu-fiction-et-animation-les-joies-du-melange-des-genres-2,56752.php
5 Le Documentaire Anim: Vrai ou Faux. Informaes em http://www.forumdesimages.fr/fdi/Festivals-et-evenements/Archives-Festi-
vals-et-evenements/Archives-Festivals-et-evenements-saison-2010-2011/Le-documentaire-anime-vrai-ou-faux
126
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
80 min). O filme conta a histria do movimento que tomou as ruas de Teer por conta do resultado, supostamente
fraudado, das eleies de 2009 que reconduziram Mahmoud Ahmadinejad presidncia iraniana.
O filme mescla entrevistas de manifestantes, blogueiros e pensadores iranianos com imagens captadas por
cmeras de telefone celular e com as animaes que procuram reproduzir a violncia da represso empregada
pela Guarda Revolucionria contra o movimento maior no pas desde a Revoluo islmica de 1979. As
imagens animadas cobrem os relatos de pessoas que foram presas, torturadas e que sofreram at abuso sexual.
So cenas fortes que, alm de no existirem em arquivo, ressaltam o aspecto mais brbaro da polcia poltica
do Estado teocrtico xiita.
Outra exibio bastante comentada no festival foi a do filme colombiano Pequeas Voces (Jairo Eduardo
Carillo e Oscar Andrade, 2010, 76 min). A obra um alargamento de um curta-metragem produzido pelos
diretores em 2004. Completamente animado, o documentrio tem uma estratgia narrativa semelhante ao j
citado A is for Autism, s que no plano poltico em vez do sanitrio.
Carillo e Andrade animaram as ilustraes feitas por quatro jovens (entre 8 e 13 anos) que viviam como
refugiados em seu prprio pas depois de serem expulsos pela guerrilha colombiana, as FARC, das proprieda-
des agrcolas em que viviam. Os jovens falam acerca da realidade violenta em que viviam e tambm de seus
sonhos e esperanas. Relatos que ganharam vida a partir de seus prprios desenhos e que viraram um docu-
mentrio animado em terceira dimenso (3-D).
Tambm vale lembrar que a animao tambm deu vida aos pensamentos e reminiscncias de outra historia de
judeus que vivem os traumas do Holocausto por conta da experincias de seus pais, s que no contexto da comunida-
de judaica de Toronto, no Canad. No filme I Was a Child of Holocaust Survivors (Canad, 2010, 15 min), a cineasta
Ann Marie Fleming num estilo que lembra o franco-iraniano Perspolis contou a histria de Berenice Eisenstein,
que escreveu, em 2006, sua autobiografia em formato de graphic novel, na qual revela o peso de viver em torno de
pessoas que transformaram o trauma de viver o horror nazista em parte de suas identidades.
Em suma, a pergunta feita no nome do festival parisiense, verdade ou mentira ?, respondida pelas pr-
prias obras exibidas que, mesmo abdicando em parte ou totalmente do efeito realidade possibilitado pela
imagem fotogrfica, no abrem mo do vnculo com o mundo histrico, no caso priorizando a subjetividade e
a individualidade dos sujeitos que vivem neste mundo histrico. Uma teorizao elaborada pelo pesquisador
noruegus Gunnar Strom desmonta a aparente contradio que pode existir entre o documentrio e animao :
Em A Onda Verde (2010), a ani-
mao ajuda a contar a histria das
manifestaes contra o resultado das
eleies no Ir em 2009.
127
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Se examinarmos de perto a questo da incompatibilidade entre a ani-
mao e o documentrio, nos daremos conta de que os dois termos se
aplicam em nveis diferentes : a animao um termo tcnico relati-
vo a um mtodo de produo de flmes ; enquanto o documentrio
uma noo conceitual que diz respeito a representao da realidade,
portanto como contedo da obra cinematogrfca. Consequentemente,
seria possvel teoricamente que um produto seja ao mesmo tempo um
desenho animado, sob o ponto de vista tcnico, e um documentrio, no
que concerne ao seu contedo.
6
(Apud Maghmi, 2008)
Longe de ser um conflito, a simbiose entre o documentrio e a animao abre novas possibilidades em ter-
mos de linguagem, narrativas e contedo para o cinema no-ficcional, o que pode, alm da expanso esttica,
tornar os documentrios mais atrativos para outros pblicos e, consequentemente, torn-los mais lucrativos e
sustentveis. Essas novas tecnologias emergentes esto realmente expandindo o vocabulrio do que a no-
-fico e pode ser, e isso muito excitante
7
, avaliou o cineasta Brett Morgen (Apud Adams, 2009 : 24).
Usar imagens totalmente construdas e estruturar um discurso sobre a realidade baseado na subjetividade
no relativizar nem ignorar a verdade. Como ressalta o filsofo Comte-Sponville, a verdade uma abstrao
(a verdade no existe : s h fatos e enunciados verdadeiros). Mas somente essa abstrao nos permite pens-
-la (2003 : 622). E o documentrio, sobretudo neste sculo XXI, tem procurado novas maneiras de abstrair e
representar uma verdade tal como outras reas do pensamento e das expresses artsticas j faziam desde a
primeira metade do sculo passado.
O que no d mais aceitar o antigo postulado que amarrava o cinema documentrio a uma noo ingnua
de transmitir a realidade e verdade tal como so naturalmente, aparte da condio humana de quem realiza a
obra. Nesse sentido, vale o pensamento de Stella Bruzzi, que v uma incongruncia lgica nessa clssica onto-
logia da no-fico, j que h uma impossibilidade nesse objetivo
8
(2006 : 7) : todo filme de no-fico
6 Si nous examinons de prs la question de lincompatibilit entre lanimation et le documentaire, nous nous apercevons que les deux
termes sappliquent des niveaux diffrents : lanimation est un terme technique relatif une mthode de production de film ; tandis
que le documentaire est une notion conceptuelle portant sur la reprsentation de la ralit, donc sur le contenu de luvre cinma-
tographique. Par consquent, il serait possible thoriquement quun produit soit la fois un dessin anim, du point de vue technique,
et un documentaire, en ce qui concerne son contenu.
7 These new emerging technologies are really expanding the vocabulary of what nonfiction is and can be, and its pretty exciting.
8 ... impossibility of this aim.
Desenhos de crianas traumatizadas pelo conflitos na Colmbia ganham
vida em Pequeas Voces (2010).
128
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
assim condenado a ser incapaz de estar altura de sua inteno, ento o documentrio torna-se aquilo que voc
faz quando voc fracassou
9
(Ibdem : 6).
Entretanto, o fato das novas experincias do documentrio de certa forma rejeitarem os postulados clssi-
cos, encarnados no ideal de transparncia, no quer dizer a fora realista do estilo cinema direto esteja morto
ou superado. o que fica patente nos 114 segundos finais de Valsa com Bashir imagens fotogrficas que
foram fundamentalmente complementares experincia lisrgica que domina a obra.
O cinema direto continua representando histrias relevantes e alcanando resultados notveis. o caso
do j citado Checkpoint (2004), de Yoav Shamir, com suas imagens acachapantes mostrando o processo
de guetizao ao qual as populaes palestinas vem sendo progressivamente submetidas. Ou o docu-
mentrio de Rachel Boyton A Crise a Nossa Marca (Our Brand is Crisis, EUA, 2005, 87 min), na qual
acompanhou a campanha de Gonzalo Snchez de Lozada presidncia da Bolvia em 2002, revelando
o poder dos marqueteiros norte-americanos em manipular a mdia local, demonizando o indgena Evo
Morales e criando a sensao de crise apocalptica, o que levou eleio do candidato que falava um
espanhol com sotaque yankee e que acabou derrubado do poder depois de impor uma srie de medidas
neoliberais que culminaram na privatizao da gua.
No Brasil o cinema direto produziu obras espetaculares na ltima dcada, como Estamira (Marcos Prado,
2004, 121 min). A produo acompanhou o cotidiano da catadora de lixo Estamira Gomes de Souza, ento
com 63 anos, esquizofrnica, carismtica e cheia de filosofias sobre a vida, enquanto trabalhava junto de ou-
tros excludos num aterro sanitrio do Rio de Janeiro. Exemplo de como a subjetividade pode ser alcanada
inclusive pelo estilo que mais pregou a objetividade outrora.
Joo Moreira Salles tambm produziu dois clebres documentrios em estilo direto na ltima dcada. Em
um deles mostrou o dia-a-dia de ensaios, turns e concertos do pianista erudito Nelson Freire (Brasil, 2003,
102 min), revelando a consagrao internacional de um brasileiro no mundo das finas artes constantemente
convidado para ser solista das mais prestigiosas orquestras do mundo -, uma historia que poucos no pas, in-
clusive este pesquisador, sequer tinha ideia.
J em Entreatos (Brasil, 2004, 117 min), Salles resgata a melhor tradio do cinema direto ao expor os bas-
tidores da poltica, tal como a pioneira Primrias (1960), de Robert Drew. O cineasta acompanhou os ltimos
trinta dias de campanha do ento candidato Lus Incio Lula da Silva em 2002, quando finalmente alcanaria
seu primeiro mandato. Procurando interferir o mnimo no andamento dos episdios que ocorriam frente a sua
cmera, Salles conseguiu captar o jeito simples de Lula, meio malandro, meio bonacho, repleto de um caris-
ma que se revelava na adorao quase divina que recebia por parte dos eleitores. Tambm retratou as famosas
reunies de articulao poltica, nas quais se destacavam figuras que viriam a entrar muito negativamente no
imaginrio nacional, como o ex-ministro Jos Dirceu.
Todas as experincias tratadas ao longo deste trabalho s reforam o carter de conceito aberto do cine-
ma documentrio. As possibilidades de se contar narrativas vinculadas ao mundo histrico so cada vez mais
variadas, muitas vezes escapando da arbitrariedade de postulados clssicos, mas isso est longe de minar a cre-
dibilidade desse outro cinema. O documentrio jamais ser realidade, mas isso no apaga ou invalida aquela
realidade que est sendo representada
10
, enfatiza Bruzzi (2006:6) .
9 ... all nonfiction film is thus deemed to be unable to live up to its intention, so documentary becomes what you do when you have failed.
10 ... a documentary will never be reality nor will it erase or invalidate that reality by being representational.
129
Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
No fundo, por mais que a gama de estratgias na no-ficao tenham se ampliado significativamente nos
ltimos tempos, continua vlido o pensamento de Bill Nichols, elaborado l em 1983, quando da publicao
de seu clssico texto A Voz do Documentrio : o documentrio sempre foi uma forma de re-presentao, e
nunca uma janela aberta para a realidade (2005 : 49).
Por fim, cabe ressaltar que o cinema israelense continua a apresentar pontos de vistas alternativos acerca do
conflito com os palestinos - assim como em Valsa com Bashir e muitos dos filmes citados no captulo anterior.
Um exemplo recente Lipstikka (Jonathan Sagall, Israel-UK, 2011, 90 min), que tem duas mulheres palestinas
como protagonistas. As personagens, depois de anos de separao, reecontram-se em Londres quando passam
a recordar a dor da juventude nos territrios ocupados. O filme causou polmica em Israel, especialmente entre
as comunidades mais conservadores, por ser outro a comparar a tragdia palestina ao Holocausto.
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SEQUNCIAS DE
VALSA COM BASHIR
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Valsa com Bashir: Subjetividade, Memria e Geopoltica no Documentrio Contemporneo
Seq Incio Fim Descrio
1 0 717
Crditos iniciais. Pesadelo de Boaz Rein com os ces. Relato de Rein sobre o sonho para Ari Folman. Sugesto
para fazer um lme como terapia. Despedida.
2 718 909
Folman segue de carro e para na orla de Tel Aviv. V surgir no cu um sinalizador laranja. Sonho de Folman com
ele e dois outros soldados saindo desnudos do mar em uma praia de Beirute durante a Guerra do Lbano.
3 910 1206
Encontro com amigo e psiclogo Ori Sivan para tratar do esquecimento da participao na guerra. Sivan explica
experincia que demonstra como a memria pode se manifestar de formas inusitadas. Sivan convence Folman a
empreender uma busca por suas recordaes.
4 1207 2216
Encontro de Folman com Carmi Caan na Holanda. Carmi relembra seu primeiro dia de guerra. Reminiscncia
do barco rumo ao Lbano, alucinao com a mulher desnuda gigante e com o bombardeio de seus companheiros
de Guerra. Lembrana do fuzilamento de uma famlia libanesa. Carmi diz no lembrar nada acerca do massacre de
Sabra e Chatila. Repete-se o sonho de Folman na praia.
5 2217 2602
Da janela do taxi, rumo ao aeroporto de Amsterd, Folman v seus primeiros dias servindo na Guerra do
Lbano. Do alto de um blindado atirava freneticamente sem alvo denido. Recolhimento e entrega de cadveres e
soldados israelenses feridos.
6 2603 3835
Encontro de Folman com o ex-soldado Ronny Dayag. Longo relato tratando dos momentos divertidos iniciais do
combate at a emboscada que matou todos seus companheiros de blindado. Reminiscncias sobre a lembrana com
a me enquanto se escondia. Fuga nadando horas no mar. Culpa por ter sobrevivido e seus companheiros morrido.
7 3836 4514
Cenas na praia com os soldados entretendo-se, referncia ao clssico Apocalipse Now. Dilogo com Shmel
Frenkel sobre o uso do patchouli em combate. Cenas burlescas mostrando ataques em estilo guerrilha e a overre-
action dos militares israelenses. Cena buclica na qual regimento de Folman e Frenkel atacado por dois garotos
dentro de um pomar.
8 4515 4943
Dilogo com a professora Zahava Solomon sobre estresse ps-traumtico em guerras. Ela conta caso do fot-
grafo que s se deu conta do horror do combate ao ver cavalos mortos no hipdromo de Beirute. Lembranas de
Folman sobre os dias que estava de folga do combate. Estranhamento acerca da rotina normal da cidade a despeito
tragdia que acontecia ali perto. Lembranas da ex-namorada Yaeli.
9 4944 5421
Novo dilogo de Folman com Boaz Rein. Referncia a folga mnima de soldados russos durante a II Guerra
Mundial. Rein conta que tambm cou com Yaeli, paixo de Folman. Lembrana de Folman sobre seu regimento
nos arredores de Beirute. Ocial Dror Hazari assistindo lme porn alemo. Folman lembra de alucinao que teve
com Yaeli vindo junto barreira militar em que estava. Ocial recebe telefonema avisando sobre o assassinato de
Bashir Geymael e determina que soldados da barricada rumem em direo a Beirute.
10 5422 10250
Folman lembra da alucinao que teve no avio militar sobre seu prprio funeral, no qual Yaeli aparecia aos
prantos. Alucinaes de Folman no aeroporto de Beirute. Cenas de trocas de tiro intensas na cidade. Lembrana do
reprter Ron Bem Yshai andando em meio s balas como se fosse imune. Cena da valsa danada por Frenkel no
meio da rua tendo um cartaz de Bashir ao fundo.
11 10251 10251 Novo dilogo de Carmi Caan com Folman. Carmi descreve o matadouro para onde os palestinos eram levados
e elabora acerca da paixo ertica que os falangistas cristos tinham para com Bashir Geymael. Folman revela que
ainda no conseguiu lembrar dos dias do massacre de Sabra e Chatila. Exibio do sonho de Folman mais uma vez.
Carmi repele o amigo acusando-o de estar obcecado.
12 10605 10728 Ori Sivan diz a Folman que a preocupao com os campos de Sabra e Chatila remete aos campos de concentra-
o nazistas, j que os pais do diretor-protagonista eram sobreviventes de Auschwitz. Recomenda descobrir o que
de fato ocorreram nos dias do massacre
13 10729 11611 Entrevista em estilo mais documental com o ocial Dror Harazi. Reproduo de cenas alusivas ao massacre em
evidente intertextualidade com imagens do Holocausto: paredes de fuzilamento, las de refugiados acossados
pelos milicianos, caminhes carregados de palestinos rumo aos matadouros. Reprter Ron Bem Yshai conta sobre
o contato telefnico com Ariel Sharon, que no deu muita importncia para o massacre. Sequncia de sinalizadores
alaranjados atirados ao cu.
14 11612 11741 ltima conversa entre Folman e Sivan. Diretor conta que lembrou dos dias de massacre, revelando estar no topo
de um edifcio soltando sinalizadores para iluminar a noite e facilitar o trabalho dos milicianos. Sivan diz que ele se
colocou no papel do nazista, mas que no poderia se considerar culpado pelo massacre, j que no havia atirado
contra os palestinos.
15 11742 12304
Sequncia basicamente narrada por Ron Bem Yshai, com uma nica interveno de Folman. Reproduo imag-
tica das lembranas do reprter ao chegar aos campos de Sabra e Chatila aps o massacre. Conta o episdio sur-
real no qual um comandante israelense chega em frente aos refugiados que fugiam do massacre e pede para que
eles parem de atirar e retornem s suas casas. Descreve o cenrio de catstrofe que encontrou, com os corpos em-
pilhados. Lamenta ver crianas entre os massacrados e diz ter sido tocado pela imagem de uma menina, da mesma
idade de sua lha, morta entre os escombros. Representao do jovem soldado Folman nervoso e hesitante perante
as cenas macabras. Entrada do som captado diretamente por uma equipe de televiso que cobriu o evento in loco.
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nica sequncia com cenas fotogrcas do lme. Mostra o desespero das mulheres rabes em meio ao cenrio
resultante da carnicina, com suas pilhas de cadveres amontoados. Explica o porqu do impacto sobre Ari Folman
ter sido to fulminante, tornando-se um trauma.