A Mão que Pune - 1890
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Sobre este e-book
Em "A Mão Que Pune - 1890", a missão de Angelo Agostini e sua gangue de párias imaginários serve de eixo a uma jornada insólita. Dos céus do Brasil às catacumbas de Paris. Do presidente Julio Verne ao Imperador Pedro II. De Mary Shelley a Machado de Assis. "A Mão que Pune – 1890" é uma jornada cheia de mistérios no melhor estilo steampunk, escrita pelo professor Octavio Aragão, um dos maiores nomes da ficção científica do Brasil.
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A Mão que Pune - 1890 - Octavio Aragão
Capítulo 1: Contrato de risco
Minha mulher morreu ontem. O menino está com a ama. Não sei dele. Não consigo sair da taverna.
Os outros falam sem parar e jamais retruco. Apenas ouço as conversas, pálidos reflexos de Byron, do pior Byron. Evito meter uma bala nos miolos enquanto desenho caricaturas a carvão em um bloco de folhas amareladas.
Já disse que minha mulher morreu?
Pois é mentira, ela continua lá no Brasil. Quem morreu foi a mulher que amo. Minha mulher por destino, como a cólera ou a febre amarela. Viemos para cá porque pensamos que seria o começo de algo novo, porque foi aqui que me eduquei, descobri minha vocação. O pequeno Angelo poderia seguir meus passos, se tornar melhor que eu.
Eu. Eu. Eu. Tudo o que falo sempre diz respeito a mim. Por isso estabeleci residência temporária na taverna, para ouvir algo além do sacrossanto Eu, mesmo que não seja necessariamente bom.
– Linda e lívida
é horrível – disse Johann – Recordes tuas origens germânicas todas as vezes em que tentares se expressar em francês.
– Olha quem fala – retrucou Claudius Hermann, dândi britânico – Um comedor de chucrutes reclamando de outro.
Claudius era arrogante, mas com algo de sedutor. O problema era o caráter instável, mas isso poderia ser falado de todos nós, e no caso dos outros não havia o charme para equilibrar.
– Ao menos tenho a decência de não me arvorar a poeta em línguas que não domino.
Dos seis rapazes do grupo, era Johann quem merecia a minha simpatia, talvez pelo agnosticismo, pela destreza no bilhar ou por ser o único que mostrava algum respeito pela filha da taberneira, que seria linda, não fosse a queimadura no rosto. A infeliz se aproximou com mais uma rodada. Pensei que se meus companheiros fossem tão adeptos da necrofilia quanto gostavam de alardear, poderiam começar por ali. Os lábios cheios, os poucos dentes perceptíveis, por incrível que pareça, brancos. Um dos olhos era dono de um azul intenso, mas, infelizmente, o outro mal aparecia sob a mecha de cabelo desgrenhada. O braço direito, inútil, mas os seios, desafiadores.
– Pode deixar aí, criatura – disse Gennaro, o pintor – Cuidado para não derramar uma gota. Se existe algo de valor nesta pocilga não é tua mão sinistra, mas a pipa de tua genitora.
As gargalhadas ressoaram. Conheci diversos poetas medíocres, todos melhores que esses pulhas. Johann, que era até razoável, tomou a palavra.
– Sem dúvida a pipa da taberneira é mais abençoada que a do teu pai, Gennaro. Os anos pouco adiantaram para tua sensatez, sem falar no talento.
Já disse que gosto desse menino? Gennaro apoiou-se na mesa suja e levantou o corpanzil de quase cem quilos. Era um italiano e um artista, como eu, mas diferíamos em dois aspectos: elegância e humildade. Ambas qualidades minhas.
– Tua mãe é quem deveria falar das características referentes à pipa de meu pai, mas se quiser posso poupar o esforço de pensar em uma resposta melhor te quebrando os dentes.
Em outro momento de minha vida, quando o Brasil era um parque de diversões, a perspectiva de alguns minutos de violência insensata num bar seria até bem-vinda. Porém, esse não era mais meu estado de espírito. Puxei um dos rapazes, Arnold, pelas mangas da casaca e o joguei entre os combatentes, armado com palavras de juízo. Um ou dois agrados aos egos de cada um resolveram a contenda, a transformando em risadas e confraternizações, tapas nas costas e juras de amizade eterna. Nada de brigas para estragar minha introspecção e o fluxo contínuo de vinho.
Os ânimos se acalmaram e logo restamos apenas nós sete na taverna. Os outros fregueses desistiram de competir com minha equipe e se recolheram aos seus respectivos lares. Lembrei-me de meu filho, abandonado aos cuidados de uma babá qualquer, mas afastei o pensamento para territórios mais tristes e menos importantes. Dos bêbados remanescentes, o único em mínimas condições de estabelecer um raciocínio sensato era eu. Quase sorri quando Johann decidiu puxar conversa.
– Angelo, como decano desta turba, cabe a ti contar a última história da noite.
Desviei os olhos para o fundo do recinto, elaborando uma desculpa qualquer. Mudei de ideia quando enxerguei o rosto deformado da filha da comerciante, mesmerizada.
Durante o último mês, nos reuníamos para contar histórias apavorantes. Uma série de contos de horror sobre mulheres mortas, vultos espectrais e ciúmes assassinos. Coisas de crianças, contos da carochinha, fantasias púberes emocionalmente pálidas.
Consegui me esquivar das narrativas fantasmagóricas, pois nenhum daqueles contos desencarnados chegava aos pés de minhas experiências nos últimos cinco anos. Meus fantasmas eram piores, já que reais. No entanto, empunhei a caneca de borgonha e convidei o confrade para se aproximar. Johann achegou-se e falei de maneira que minha voz pudesse chegar ao sítio de onde minha admiradora absorvia as palavras.
– Rapaz, te prepara para uma história que encanecerá não apenas teus cabelos, mas partes do corpo que nem recordas que existem.
O álcool pareceu desanuviar o semblante de Johann, lábios entreabertos, como a sorver o ar que servia de fonte para minhas palavras.
– Sabes por acaso que o Brasil, minha pátria adotiva, é um império? – perguntei à guisa de introdução.
– Não fazia ideia. Um império nos trópicos?
Sufoquei o ímpeto de chamá-lo de ignorante, enchi a caneca de vinho até quase transbordar, lubrificando a receptividade do ouvinte, e adiantei a conversa.
– Nosso imperador, Dom Pedro de Orléans e Bragança, é um Bourbon, mas um Bourbon moderno, cheio de inspirações mirabolantes e com a cabeça nas nuvens. Imagine o amigo que tal monarca de hábitos sonhadores costumava dormir nas sessões da câmara dos deputados.
Johann já perdera o interesse. Sua imaginação necessitava de ingredientes macabros para manter a atenção, mas não desisti.
– Pois, como todos os Bourbons, esse também guardava segredos relacionados à carne. Seus descendentes masculinos jamais primaram pela boa saúde e, como em todo império, varões são necessários. Acredite, porém, que apesar de todos os prognósticos em contrário, o primogênito do imperador, Afonso, nascido em 1845, foi resgatado das portas da morte por um milagre terrível demais para ser admitido. Milagre que tem mais a ver com as artes do andar de baixo que com a pureza do Reino dos Céus.
A última frase ressuscitou a atenção.
– Que dizes, Angelo? Que artes malignas seriam essas?
– Ah, meu amigo, teu querido presidente Júlio Verne tem muito a ver com isso. Foi em outubro, durante L’Exposition Universelle, quando o Brasil estava na moda por aqui, que sem querer testemunhei um encontro inusitado. A história de minha saída do Brasil é tão curiosa que mereceria outra narrativa, mas deixe adiantar que, em meus dias áureos, fui o maior crítico que a monarquia já teve. Emprestei meu parco talento como ilustrador e jornalista à guerra contra toda e qualquer forma de autoritarismo, principalmente aquela nódoa denominada escravidão. Fui um guerrilheiro abolicionista durante vinte anos e espicacei a coroa brasileira e seus comparsas o quanto pude. O resultado não poderia ser outro: fui condenado ao exílio sob ameaças de morte. Acabei aqui, na França, junto a Abigail, grávida de meu pobre filhinho.
– Ela está morta, não é? – o interesse doentio era perceptível no tom de voz do rapaz. Do outro lado das mesas, impassível, a filha da taberneira nem sequer piscava.
– Sim, está, mas voltarei a esse ponto mais tarde. O caso agora é estabelecer o cerne da história desta noite. Fiquei estupefato quando, em meio às minhas andanças pelas maravilhas mecânicas em exposição, antevi no povaréu certa figura conhecida, a quem segui pela feira até um galpão aparentemente abandonado que logo a absorveu. Dei um jeito de contornar a estrutura de madeira, que devia medir uns quarenta metros quadrados, procurando por brechas nas tábuas. Demorei meia hora disfarçando minha curiosidade dos eventuais visitantes da feira, em sua maioria olhando para o alto, embasbacados com a monstruosa torre de metal recém-nascida que agora assombra o horizonte de Paris, e fui recompensado com um buraco que dava uma bela visão da cena que se desenrolava dentro do aposento.
Interrompi a história para dar um bem-vindo gole de borgonha e o efeito foi positivo em todos os interessados.
– Ande, homem, o que ocorria nas entranhas da construção?
Limpei a boca na manga do paletó e me permiti saborear o tempo suspenso refletido na transpiração de Johann. Percebi que a dama desfigurada se aproximara dois passos de nossa mesa. O interesse dela era cativante e induzia à continuidade das palavras. Todo pretenso artista gosta de plateia.
– Dentro do enorme aposento estavam ninguém menos que teu adorado presidente progressista e outro sujeito que na época eu não conhecia. O nome Charles Edward Prendick soa familiar?
– O inglês mentor da Fundação Moreau? Por que não haveria de conhecer se todos falam dele e de seus milagres?
– Não sei. Tu ignoravas que o Brasil fosse um império, diabos. Como hei de confiar na extensão de tua cultura?
– Honestamente, Angelo, não se ofenda, mas as questões políticas do Brasil ocupam uma colocação muito baixa em minha lista de interesses. Já Charles Prendick e o presidente Verne juntos num mesmo local e em segredo, isso sim é digno de nota. Assisti uma vez a uma palestra de Prendick na qual apresentou algumas pessoas que afirmava serem híbridas de homens e felinos. Era interessante, até parecia convincente, mas não consegui atinar com o aspecto prático de tais experimentos. Confesso, porém, que durante certo tempo acalentei algumas fantasias pouco recomendáveis a respeito.
– É curioso, pois acreditava que teus vícios imorais iam pouco além de damas frias e vinho tépido, mas vamos adiante, que a história se aprofunda. Os três homens reunidos naquela sala consistiam em uma isca por demais apetitosa para meu faro jornalístico. Como conseguia ouvir com dificuldade o que falavam, decidi me ocultar e esperar o fim da conversa. Assim que saíssem da sala, eu resolveria a quem seguir e o que investigar, porque para mim já era um caso digno de pauta. Eu tinha de saber o que estava acontecendo.
– Diabos, o homem estava só? Sem um séquito? Sem acompanhante?
– Ninguém além de ele próprio e sua sombra, mas o que contarei depois explicaria a solidão do monarca. Dentro do aposento, poucos móveis serviram de cenário a uma proposta que me soou suspeita o suficiente para eclipsar minha crença na ciência. Ao que pude compreender da conversa entrecortada, Prendick, com o apoio do presidente Verne, ofereceu a possibilidade de cura para a doença do príncipe em troca de auxílio financeiro para suas pesquisas com animais. O curioso a respeito disso é que o único dinheiro de que o imperador pode dispor, até onde a imprensa tenha conhecimento, não provém de recursos públicos, mas de sua própria já não mais tão vasta fortuna pessoal. Acreditem, já tentei por diversas vezes descobrir algum indício de falcatrua da parte do imperador, e jamais logrei êxito. De qualquer maneira, de onde quer que viesse a quantia, o velho anuiu e selou um acordo com o britânico, o que já é motivo suficiente para, caso venha a público, provocar uma revolta popular no Brasil.
Minha pausa foi seguida de um silêncio absoluto. Ninguém mais ousava me apressar. Decidi dar voz ao que todos pensavam.
– Sim, meus amigos, ao que tudo indica, o imperador brasileiro concordou, em um encontro secreto, em contribuir para um experimento cedendo o corpo do herdeiro da coroa como cobaia. Verne também anuiu em bancar parte da... não tenho outra palavra, experiência, lançando mão dos cofres públicos da França, afirmando que o rapaz entraria numa espécie de programa científico internacional. Compreendem o motivo de minha perturbação?
O trio terminou a reunião e, enquanto trocavam cumprimentos, busquei esconderijo em meio ao povo, mas sempre mantendo os olhos colados na porta do galpão. Vi quando cada um saiu apressado, sem olhar para trás. Foi difícil decidir a quem vigiar, então optei pelos velhos hábitos e segui o imperador. Afinal, ele era o peixe fora d’água, o curinga.
O velho Pedro estava hospedado no Hotel Bedford, na Rue de I’Arcade, 17, a três quarteirões dos Jardins des Tuileries, então, montei guarda em uma venda defronte ao edifício esperando algo de incomum. Em certa hora surgiu determinado indivíduo de compleição avantajada e andar arrastado, como se carregasse um fardo sobre os ombros curvos. Depois de duas palavras à porta do hotel, o estranho foi escoltado para dentro, reaparecendo em vinte minutos acompanhado por Dom Pedro, travestido como um cidadão comum, sem a pompa majestática. Meu digníssimo imperador se esgueirava como um transeunte distraído, mas andando em linha reta, com um objetivo claro em vista, descendo o Quartier de la Madeleine com uma pressa digna de um desportista ou de um funcionário dos correios. Depois de pensar um pouco, decidindo a qual dos dois seguiria, saí atrás do aleijado, que descia em direção ao Gare Saint-Lazare, mas logo desviou em uma transversal, quase me despistando.
Apressei-me e consegui identificar, depois de muita correria, e apesar da luz deficiente das dezoito horas, o capote de meu alvo desaparecendo numa viela depois da Rue de Londres, e adentrando uma construção de quatro andares com jeito de casa alemã, mas com estrutura triangular. As nove janelas eram assimétricas, retângulos com molduras brancas, mas que não pareciam obedecer às leis primárias da boa arquitetura, optando por uma independência estilística digna de garatuja infantil. Apesar disso, havia imponência ali. Tratava-se de uma construção altiva, porém gasta. Frente curva, paredes marrons compostas por miríades de tijolinhos heterogêneos. Telhado branco, como se houvesse acabado de nevar, encimado por uma torre que poderia ser tanto um mirante com ares orientais, quanto uma chaminé estilizada ao limite do racional. Sobrevivente dos excessos dos piores dias de Termidor, órfã de qualquer benefício dos Napoleões subsequentes. Era uma ruína.
Mas não era.
Uma observação acurada revelou a juventude dos materiais utilizados na confecção do edifício. Nada ultrapassava cinco anos de existência. A aparência decadente era planejada. Talvez vocês apreciassem mais o prédio do que eu, homem banal de gostos ortodoxos. A pequena e solitária coluna sobre a qual debruçava o segundo andar remetia à perna de uma criança desnutrida, mas coberta por entalhes cujo significado me escapa ainda hoje, algo que teria algum parentesco com os grafismos etruscos de antes de Cristo.
Foi por trás da coluna que a porta deixou uma brecha por onde a luz embaçada forçou caminho até a rua. Era um convite. Atravessei até a casa, os sapatos martelando o calçamento, e empurrei a porta com o dedo, não havia trancas barrando a passagem. Entrei, mas vi muito pouco. O cheiro de éter, porém, feriu minhas narinas. Hospital ou manicômio. Sim, já estive em vários, sei como fedem. O clichê reza que a loucura tem um odor específico. Acredito que o perfume emana da alma dos médicos, não dos pacientes. Era a casa de sujeitos cuja satisfação residia em abrir corpos para saber como funcionam, filhotes do iluminismo, que nem sempre mantêm as luzes acesas dentro das próprias mentes a ponto de entenderem suas motivações. Mais ou menos como vocês, pretensos necrófilos. Prestidigitadores, falsários da ciência, que fingem compreender o que não têm condições. Piores que os políticos, pois ao menos destes temos a certeza de que não há o que esperar.
Entrei temeroso de esbarrar em algum móvel, mas o minimalismo me salvou de maiores indiscrições. Ouvi o ranger das tábuas no andar de cima, dialogando com os pés do homem que seguira. Apoiei-me na parede mais próxima e silenciei a respiração. Na falta dos olhos, os ouvidos vêm à proa do navio e assumem o comando. Prestei atenção à sinfonia de estalos e distingui sussurros na penumbra. Parecia um lamento, um choro.
Em um canto, até então indistinta por minha visão acabrunhada, uma figura que guardava resquícios semelhantes ao contorno feminino estendia a mão. Melhor