O último homem
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Sobre este e-book
É aqui que a célebre autora de Frankenstein registra uma história de guerras, de amores trágicos e, como não poderia deixar de ser, da extinção da raça humana. Em um futuro não mais distante, Lionel Verney vê cada um de seus amigos cair vítima de uma doença que, entre fanáticos e negacionistas, deixa cada vez mais clara a inexorável força da natureza. Ficção apocalíptica ou profecia acertada?
Mary Shelley
Mary Shelley (1797-1851) était une romancière anglaise, fille du philosophe politique William Godwin et de la célèbre féministe Mary Wollstonecraft. Surtout connue pour avoir écrit Frankenstein ; or, The Modern Prometheus, l'œuvre révolutionnaire de Shelley est considérée comme l'un des premiers romans de science-fiction. Outre sa carrière littéraire, Shelley a édité et promu les œuvres de son mari, le poète Percy Bysshe Shelley. Ses contributions aux littératures gothique et romantique ont laissé un impact durable sur le monde de la fiction.
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O último homem - Mary Shelley
SUMÁRIO
Assim vivemos agora
Mary Shelley: criadora e criatura
Introdução
Volume 1
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
XI
Volume 2
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
Volume 3
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
Sobre a tradução
Sobre os autores
Créditos
Colofão
PREFÁCIO
Assim vivemos agora
A história se repete. Primeiro como tragédia, depois como farsa.
Karl Marx escreveu essas palavras na abertura de seu livro O 18 de brumário de Luís Bonaparte. Publicado pela primeira vez em 1852, o livro trazia para reflexão algo que não era novo. A ideia de que as coisas vêm em ciclos está presente desde tempos quase imemoriais — está aí o Eclesiastes, que não nos deixa mentir, com outra frase famosa e muitas vezes repetida: Não há nada de novo sob o sol
.
Este é o nosso caso hoje. No momento em que escrevo este prefácio, vivemos sob uma pandemia que em poucos meses infectou trinta e três milhões de pessoas e matou um milhão. Pegou o mundo de surpresa, mas talvez não devesse. Afinal, tivemos uma situação bastante parecida cem anos atrás. E — a história continua se repetindo — há praticamente duzentos anos um livro também já nos alertava a respeito. O último homem não é o livro mais famoso de Mary Shelley, mas seu tema agora é mais pertinente que o de sua obra-prima, Frankenstein.
A questão é que a literatura jamais é preditiva. É um grande erro supor que o escritor de ficção é de algum modo realmente um profeta. O poeta estadunidense Ezra Pound cunhou o termo antena da raça
para falar justamente de quem está sintonizado com seu tempo. É um termo mais do que pertinente para tratar de razão e sensibilidade, para usarmos um termo muito caro a uma autora contemporânea de Mary Shelley, a também britânica Jane Austen.
Ao contrário do que costumam dizer, O último homem não é exatamente um romance distópico, ainda que a primeira parte nos jogue de cabeça numa Europa do futuro com o mesmo tipo de crise e conflito dos nossos tempos. Como muitos autores que vieram depois, Shelley não está particularmente preocupada — pois não costumava ser esse o escopo — com worldbuilding: a ideia não era mostrar um mundo novo, mas sim fazer comentários políticos e filosóficos sobre os tempos em que viviam os autores.
A praga começa de fato a afetar a humanidade em 2092, mas a ela se somam certos sinais e portentos de caráter bíblico, como o sol negro, e também climáticos, como grandes inundações. O interessante no livro, porém, é que suas cenas agem como um divisor de águas: a menção a Constantinopla na segunda parte traz em seu cerne a queda dessa cidade e alude ao fim da monarquia na Inglaterra, o que naquela época já seria considerado apocalíptico por si só, além, claro, do impacto da praga na humanidade.
Portanto, claro que O último homem é um livro apocalíptico. Chamá-lo de distópico é que talvez seja muito pouco, no fim das contas. Mas o impacto da realidade é demasiado forte neste momento em que releio a obra, pois, se por um lado aos autores de ficção não pode ser cobrado o status de profeta, por outro eles de fato vibram como antenas da raça — ou chips, como o músico e escritor Fausto Fawcett atualizou brilhantemente a metáfora — e percebem aquilo que nem todos os demais conseguem num primeiro momento: o fator humano.
Pois neste livro você também encontra negacionistas, ou líderes que afirmam que podem salvar seus seguidores. Não são poucos os teóricos literários que apontam este livro como representação do desencanto de Shelley com os românticos ingleses aos quais era afiliada. Na verdade, o grupo de Lionel é bem um espelho do grupo de poetas, entre os quais seu marido, Percy Bysshe, e lorde Byron, ambos presentes com ela na residência de Byron no lago Genebra, palco da criação de seu personagem mais famoso, o monstro de Frankenstein. Mas não é deste livro que estamos falando aqui. O último homem merece ser tão conhecido quanto o seu clássico de protoficção científica.
Assim como Frankenstein, porém, O último homem é um livro que não poupa seus leitores. Acho que posso dizer que, só pelo título, vocês já sabem o final da história, mas isso não nos impede de ler com avidez o livro para saber como Lionel chegou lá. E, no fim das contas, talvez essa leitura acabe sendo benéfica para nós também como uma espécie de manual de instruções para nossos tempos — sobre como lidar com a nossa impotência hoje, diante da pandemia da
COVID-19
, e sobre como não repetir nunca mais essa história, nem como tragédia, nem como farsa.
Fábio Fernandes [✱]
Setembro de 2020
APRESENTAÇÃO
Mary Shelley: criadora e criatura
Ainda me lembro como se fosse ontem da primeira vez que peguei um exemplar de Frankenstein para ler. Não faz tanto tempo assim, e eu já conhecia por alto a história de Mary Shelley, sua importância, seu trabalho — conhecia a força que Frankenstein carregava, como era bem falado e benquisto entre os aficionados por ficção científica e terror. Além disso, mesmo quem não é grande apreciador de ficção especulativa já ouviu falar da história do homem construído com pedaços de outros corpos, do cientista que tentou imitar Deus e da inimizade entre o criador e a criatura. Então, mesmo sem nunca ter lido uma linha de Frankenstein, eu já o conhecia.
Mas não fiquei menos surpresa quando finalmente nos encontramos. Foi mágico. Foi um momento de realização, eu acho. A importância desse momento é uma sensação que vou carregar para sempre comigo. Desde então, desde aquele dia, o nome de Mary Shelley ficou cravado no meu coração. Uma ferida que jamais seria cicatrizada, um nome que jamais seria apagado.
E é engraçado como algumas pessoas sobrevivem ao período entre os humanos — como alguns nomes se sobressaem e se mantêm na memória e história da humanidade. A jovem de dezoito anos que um belo dia resolveu escrever uma história de fantasmas aterrorizante o bastante para competir com lorde Byron e Percy Shelley com certeza não imaginava, em 1816, que seu nome seria um desses. Que iria se sobressair até aos seus pais, que na época já eram considerados grandes pensadores.
Mary Wollstonecraft Godwin nasceu em Londres, no dia 30 de agosto de 1797. Filha do filósofo William Godwin e da escritora Mary Wollstonecraft, infelizmente não teve contato com a mãe, que faleceu poucos dias após seu nascimento devido a uma infecção durante o parto. Mary cresceu em meio aos livros, influenciada e encorajada pelo pai. Foi aos dezessete anos, em 1814, que iniciou seu relacionamento com Percy Shelley, seguidor de Godwin e poeta em ascensão. Percy ainda estava casado quando conheceu e começou a ter um caso com Mary. Em 1816 os dois se casaram, após o suicídio da primeira esposa de Percy. Muito se questiona sobre a conduta de ambos nesse caso, mas a história é como é.
No mesmo ano, o casal se reuniu a lorde Byron e John Polidori em um lago próximo de Genebra, na Suíça, para passar o verão, mas, graças ao monte Tambora, na ilha de Sumbawa, Indonésia, que em 1815 jorrou uma quantidade absurda de pó vulcânico e despejou toneladas de enxofre na atmosfera, 1816 ficou reconhecido como o ano sem verão
. Estudiosos, muitos anos depois, atribuíram a esse evento o que aconteceu no ano seguinte: chuvas torrenciais e falta do sol típico do hemisfério norte. A temporada do grupo, então, não foi das mais aprazíveis, e os membros acabaram se mantendo em casa por boa parte do tempo.
Com o sol escondido e chuvas intensas, foi proposto um desafio: escrever o conto de fantasma mais assustador entre eles. Uma das grandes inspirações da proposta surgiu da leitura de uma edição francesa do livro Fantasmagoriana, traduzido por Jean-Baptiste Benoît Eyriès, com histórias de Johann August Apel, Friedrich Laun, Johann Karl August Musäus e Heinrich Clauren. O título remete ao Fantasmagorie, de Étienne-Gaspard Robert, um tipo de show com sobreposições de luzes, ventriloquismo e efeitos fantasmagóricos muito popular entre 1790 e 1800.
Um dos frutos do desafio foi o próprio Frankenstein. Criado para ser uma história curta, Percy Shelley encorajou a continuação da composição da esposa. Naquele verão, discutiram bastante sobre galvanismo e sobre a história de que o filósofo natural Erasmus Darwin, avô de Charles Darwin, havia reanimado matéria morta. Mary ficou impressionada e interessada na questão. Quando, certa noite, teve um pesadelo sobre o tema, utilizou-o para criar a obra dentro do desafio proposto. Em 1831, em um prefácio para uma nova edição do livro, Shelley contou que queria que seus leitores ficassem tão aterrorizados como ela. O livro foi publicado em 1818, e inicialmente não foi creditado a Mary, e sim a Percy. Logo, porém, o engano foi desfeito, e Mary assumiu a autoria de Frankenstein, que ainda hoje gera debates acalorados sobre maldade e bondade humana, certo e errado na relação tempestuosa entre as duas figuras centrais. Há elementos suficientes na obra para pensarmos sobre abandono, sobre até onde vai nossa responsabilidade criativa, sobre o homem nascer mau ou ser corrompido ao longo do caminho de sua vida.
Mas Mary Shelley não é só Frankenstein, e o livro que vocês estão prestes a ler é uma prova bastante real disso. Se você ainda não teve contato com outras obras de Shelley, só posso recomendar que aperte os cintos e se prepare para a viagem.
O último homem foi publicado originalmente em 1826, mas se passa no futuro, no final do século
XXI
, entre os anos 2073 e 2100. A história é narrada em primeira pessoa por Lionel, filho de um nobre que caiu em desgraça e, sem ninguém para ajudá-lo, deixou seus filhos quase na miséria. Lionel se ressente muito da condição do pai, mas isso muda quando ele conhece o filho do antigo e último rei da monarquia inglesa, um dos últimos amigos de seu pai, uma pessoa que Lionel acreditava que também lhe virara as costas. Uma amizade cresce entre as crias dos dois antigos amigos, e os dois passam a ser companheiros inseparáveis.
É nessa narrativa de memória, que compreende a juventude e vida adulta de Lionel e seus amigos, que conhecemos uma visão de futuro de Mary Shelley. A Inglaterra perdeu sua linhagem real, é comandada por um parlamento e um lorde protetor; desejos de igualdade se mesclam a desejos de ascensão; a manutenção da nobreza corre perigo, dependendo daquele que assumirá o governo do país. Ainda assim, com todos os acontecimentos do romance, Shelley nos demonstra ainda outra coisa: o governo não é nada frente à força destrutiva e aterrorizante da própria natureza.
Em determinado ponto da narrativa, uma praga cai sobre os ombros da humanidade. Pessoas começam a morrer aos montes, e nenhum governante sabe muito bem como lidar com isso. A praga se espalha rapidamente. Pastos são transformados em arados para dar conta da quantidade necessária de alimento para tantas pessoas que precisam de ajuda; nobres deixam de utilizar seus animais de serviço, como cavalos, e toda a configuração da cidade se transforma; a economia entra em colapso. Tudo está ruindo, ninguém tem muita esperança.
Entre 2092 e 2100, a situação piora consideravelmente: Adrian se esforça para assumir o controle da situação, assumindo o papel de lorde protetor, mas a Inglaterra se vê alvo de saques constantes. Entre viagens e perdas dos primeiros e únicos amigos de Lionel, falsos profetas e encontros que fazem qualquer um perder a esperança no pouco que sobrou da humanidade, nosso protagonista acaba assumindo o manto de último homem, aquele que dá nome ao título do livro, enquanto escreve suas memórias e tenta encontrar sobreviventes.
Apesar de todas as informações que cedi neste prefácio, o livro ainda tem muito mais a oferecer. Devo ter coberto bem o topo do iceberg, mas abaixo d’água ainda se encontra um universo rico, com discussões morais e questões humanas que são tão representativas do trabalho de Mary Shelley, uma pensadora capaz de evocar terrores e provocar a imaginação de seus leitores da forma mais assustadora jamais sonhada.
O último homem não teve uma boa recepção quando lançado. Foi chamado de doentio por alguns críticos, e outros afirmaram que a imaginação da autora era enferma, mas Mary, mais tarde, falou do romance com carinho e afirmou ser uma de suas obras preferidas. A crítica foi tão firme que o livro foi esquecido durante mais de cento e trinta anos, reencontrando o público apenas em 1965, quando as pessoas ainda se lembravam da forte praga que, menos de cinquenta anos antes, acabara com muitas vidas: a gripe espanhola data de 1918 a 1920 e dizimou pelo menos cinquenta milhões de pessoas.
A praga de O último homem não é explicada em nenhum momento. Shelley reservou o direito de deixar que os leitores futuros descobrissem por si mesmos. Seus sintomas, entretanto, poderiam ser de uma série de doenças que conhecemos e para as quais temos tratamentos e remédios hoje em dia.
Agora passamos por outra pandemia. Ler as consequências de um governo despreparado e de como a humanidade pode atingir seu pior enquanto passamos por momentos aterrorizantes nas palavras de Mary Shelley é assustador, mas a obra é uma reflexão interessante do período em que a autora a escreveu — todas as falhas do governo, do ideal romântico, de uma possível queda da monarquia, que, naquele momento, ainda dominava com força. Mary, como mulher de seu tempo, escreveu sobre suas preocupações e, apesar de aterrorizante, é também um pouco fascinante perceber como algumas preocupações se repetem.
Por mais que Mary tenha sido levada a sério como escritora em vida, demorou muito para que ela recebesse as gratificações que merece e adentrasse no panteão de grandes escritores de todos os tempos. Seu trabalho é reflexivo e poderoso, questionador e incisivo. Fruto de dois pensadores incríveis, esposa de um jovem poeta romântico e de renome… nada disso faz jus ou delimita as qualidades de Mary Shelley, e seu nome deve valer por si mesmo. Quando pensamos nela, devemos pensar primeiramente em sua mente ágil e sagaz, que trabalhou duro para construir histórias que permaneceram tão relevantes depois de tantos anos, como Frankenstein e O último homem. A biografia da autora é interessante, e fiz um breve relato dos episódios de sua juventude para dar contexto aos leitores de suas aventuras antes da criação de sua obra-prima, mas é nas palavras, é nos textos que residem suas verdadeiras qualidades enquanto criadora e criatura.
Jéssica Reinaldo [✱]
Halloween de 2020
Imagem de uma caveiraVisitei Nápoles no ano de 1818. Em 8 de dezembro, meu colega e eu atravessamos a baía para visitar as ruínas antigas espalhadas pelas praias de Baiae. As águas translúcidas e cintilantes do mar calmo cobriam fragmentos de antigas vilas romanas, entre as quais se emaranhavam algas marinhas, e assumiam um brilho adamantino quando banhadas pelos raios matizados do sol. O elemento era tão azul e diáfano que Galateia poderia deslizar sobre a superfície em sua carruagem de madrepérola; ou então Cleópatra, julgando-as mais adequadas que o leito do Nilo, poderia escolher aquelas águas como estrada para sua mágica embarcação. Era inverno, mas a atmosfera lembrava mais o início da primavera; o calor agradável contribuía para causar uma sensação de deleite plácido — quinhão de cada viajante que, enquanto se demora, lamenta deixar as baías tranquilas e os promontórios radiantes de Baiae.
Visitamos os chamados Campos Elísios e o lago Averno. Também vagamos por vários templos em ruínas, banhos e pontos turísticos; a certa altura, entramos na sombria caverna da Sibila de Cumas. Nossos lazzeroni carregavam tochas que brilhavam em um vermelho quase apagado nas sombrias passagens subterrâneas; nelas, a escuridão os cercava, parecendo ávida por absorver cada vez mais o elemento da luz. Passamos por um túnel natural que levava a uma segunda galeria e perguntamos se também não podíamos entrar ali. Os guias apontaram para o reflexo das tochas na água que cobria o chão, deixando que tirássemos nossas próprias conclusões; acrescentaram, porém, que era uma pena, porque aquele caminho levava à gruta da Sibila. Nossa curiosidade e entusiasmo foram inflamados por essa informação, e insistimos em tentar passar. Como geralmente acontece quando se leva a cabo esse tipo de iniciativa, as dificuldades diminuíram depois de uma análise da situação. Descobrimos, de cada lado do caminho úmido, repousos para a planta do pé
.
Por fim, chegamos a uma caverna grande, deserta e escura, que os lazzeroni asseguraram ser a gruta da Sibila. Ficamos um tanto decepcionados, mas mesmo assim examinamos o espaço com cuidado, como se as paredes rochosas e vazias ainda pudessem conter resquícios da visitante celestial. Em um dos lados do espaço, havia uma pequena abertura.
— Aonde essa passagem leva? — perguntamos. — Podemos entrar aqui?
— Questo poi, no — disse o sujeito de aparência selvagem que carregava a tocha. — Podem avançar apenas por uma curta distância, e ninguém visita esse lugar.
— Vou arriscar de qualquer forma — disse meu colega. — Pode ser que leve à caverna real. Devo ir sozinho ou posso contar com a sua companhia?
Sinalizei minha disposição a continuar com ele, mas nossos guias protestaram contra a decisão. Com grande fluência, eles nos contaram no próprio dialeto napolitano — com o qual não tínhamos muita familiaridade — que havia fantasmas, que o teto poderia cair, que a passagem era estreita demais para permitir nossa entrada e que um buraco profundo e cheio de água se encontrava no fim do caminho, onde poderíamos acabar nos afogando. Meu amigo tomou a tocha do homem e deu fim à ladainha, e assim continuamos sozinhos.
A passagem na qual mal cabíamos no começo logo ficou ainda mais estreita e baixa; passamos a andar quase curvados, mas mesmo assim persistimos na ideia de seguir caminho. Depois de certo tempo, chegamos a um espaço mais amplo, com teto mais alto. Enquanto celebrávamos a mudança, nossa tocha foi apagada por um golpe de vento, e mergulhamos na mais profunda escuridão. Os guias tinham com eles materiais para reacender o fogo, mas nós, não — nosso único recurso era voltar por onde tínhamos vindo. Apalpamos toda a circunferência do espaço amplo em busca da entrada, e, depois de um tempo, achamos que havíamos conseguido. No entanto, só encontramos um outro corredor, que evidentemente ia para cima. Ele terminava como o anterior; porém, uma coisa que pareceu ser uma réstia de luz, vinda de algum ponto que não conseguimos precisar, enchia o espaço com uma penumbra bem questionável. Aos poucos, nossos olhos se acostumaram à baixa luminosidade, e percebemos que não havia nenhuma passagem direta que nos levasse adiante, mas que era possível escalar por um dos lados da caverna até chegar no arco baixo de um nível superior, que prometia um percurso mais fácil e parecia levar à origem da luz. Subimos com uma dificuldade considerável e chegamos em outra passagem com ainda mais iluminação, que, por sua vez, possuía outro corredor ascendente, como o anterior.
Depois de uma série desses caminhos, que fomos capazes de superar apenas com nossa resolução, chegamos a uma gruta larga com um teto arqueado como uma abóbada. Uma abertura no meio deixava entrar uma luz celestial, mas ela estava coberta por moitas e vegetação rasteira que agiam como um véu, obscurecendo o dia e dando ao espaço um tom de solenidade religiosa. Era uma gruta espaçosa, quase circular, e um canto tinha um trono de pedra com mais ou menos o tamanho de um divã grego. O único sinal de que um dia houvera vida no local era o esqueleto perfeitamente branco de uma cabra, que provavelmente não havia percebido a abertura enquanto vagava pela colina acima da gruta e caído de cabeça. Era possível que eras inteiras houvessem passado desde aquela catástrofe, e o estrago causado no teto, por sua vez, havia sido reparado pelo crescimento da vegetação ao longo de centenas de verões.
O resto do mobiliário consistia em montes de folhas, fragmentos de casca de árvore e uma substância branca e pelicular parecida com a parte interna da capa verde que protege os grãos do milho indiano ainda imaturo. Estávamos cansados com todo o esforço necessário para chegar àquele ponto, então nos sentamos no divã de pedra enquanto o tilintar dos sinos das ovelhas e os gritos dos jovens pastores, lá de cima, chegavam até nós.
Por fim, meu amigo, que apanhara algumas das folhas espalhadas pelo recinto, exclamou:
— É a gruta da Sibila! São as folhas da Sibila!
Em uma análise mais minuciosa, descobrimos que todas as folhas, cascas e outras substâncias traziam caracteres inscritos. O mais surpreendente era que os escritos estavam em vários idiomas: alguns que meu colega não conhecia, caldeu antigo e hieróglifos egípcios, tão velhos quanto as pirâmides. Alguns, o que era ainda mais estranho, estavam em dialetos modernos, em inglês e em italiano. Era possível enxergar pouco naquela penumbra, mas as inscrições pareciam conter profecias, relatos detalhados de eventos passados pouco tempo atrás, nomes que agora são conhecidos, mas que não o eram na ocasião, e, não raro, exclamações de exultação ou pesar, de vitória ou derrota, gravadas naquelas finas e escassas páginas. Aquela certamente era a gruta da Sibila; não exatamente como descrita por Virgílio, mas a região fora tão agitada por terremotos e vulcões que mudanças não seriam de espantar, embora os sinais da ruína tivessem sido apagados pelo tempo. A preservação das folhas provavelmente se devia a um acidente que havia fechado a entrada da caverna, além de à vegetação de crescimento rápido que tornara a única entrada impenetrável às interpéries. Fizemos uma seleção apressada das folhas, escolhendo as que pelo menos um de nós seria capaz de entender, e, em seguida, carregados com nosso tesouro, demos adeus à caverna banhada pela penumbra. Depois de muita dificuldade, conseguimos nos reencontrar com os guias.
Durante a estadia em Nápoles, retornamos com frequência à caverna — às vezes sozinhos, deslizando sobre o mar iluminado pelo sol —, e toda vez acrescentávamos mais itens à nossa coleção. Desde então, contanto que as circunstâncias mundanas não me afastassem da função ou que meu estado de espírito não impedisse o estudo, dediquei-me a decifrar esses resquícios sagrados. O conteúdo, maravilhoso e eloquente, fazia com frequência valer meus esforços, confortando-me em momentos de pesar e dando asas à minha imaginação por voos ousados através da natureza e da mente humana. Durante certo tempo, meu trabalho não foi solitário. Tudo isso já passou, porém, e com meus companheiros incomparáveis e escolhidos a dedo, também se perdeu a recompensa mais cara a eles:
Di mie tenere frondi altro lavoro
Credea mostrarte; e qual fero pianeta
Ne’ nvidio insieme, o mio nobil tesoro?
Trago a público minhas últimas descobertas nas delicadas páginas sibilinas. Por serem esparsas e desconectadas, precisei acrescentar certas ligações e modelar a obra para que tivesse um formato consistente. O principal conteúdo, no entanto, se encontra nestas rapsódias poéticas e na intuição divina que a donzela de Cumas recebeu do paraíso.
Refleti bastante sobre o objeto dos versos e sobre a versão inglesa da poesia. Chego a pensar que, por mais obscuros e caóticos que sejam, os versos devem a forma presente a mim, que os decifrou. É como se entregássemos a outro artista os fragmentos pintados da cópia do mosaico da Transfiguração de Rafael da Basílica de São Pedro; o artista os juntaria em uma obra, que tomaria forma pelo talento e mente peculiares dele. Sem dúvida, o conteúdo das folhas da Sibila de Cumas foi distorcido e reduzido em questão de interesse e excelência nas minhas mãos. Minha única desculpa para essa transformação é o estado de incompreensão da condição intocada.
O trabalho me brindou com longas horas de solidão, tirou-me de um mundo que há muito me negou a benevolência e que me levou a um resplandecer de imaginação e poder. Será que as pessoas que lerem a obra encontrarão consolo na narrativa de miséria e lamentável mudança? Eis um dos mistérios da nossa natureza, que paira sobre mim e de cuja influência não posso escapar. Confesso que não permaneci impassível ao longo do desenvolvimento da trama e que me deixei abater — ou melhor, agonizei — em algumas partes da narrativa, que transcrevi fielmente de meu material. Ainda assim, a natureza humana é tal que o estímulo da mente me foi caro, e a imaginação, pintora de intempéries e terremotos — ou, pior, das tempestuosas e destruidoras paixões humanas —, amaciou meus pesares e infindáveis arrependimentos reais e vestiu os fictícios com a idealidade aferroada mortalmente pela dor.
Mal sei dizer se esse pedido de desculpas é necessário. Afinal, os próprios méritos da minha adaptação e tradução vão mostrar como dediquei meu tempo e meus poderes imperfeitos à tarefa de dar forma e substância às frágeis e tênues folhas da Sibila.
VOLUME 1
I
Sou nativo de um recanto cercado pelo mar, uma terra ensombrada pelas nuvens; quando a superfície do globo se apresenta em minha mente, com seu oceano sem fim e continentes a perder de vista, esse local aparece apenas como um ponto desprezível no imenso todo. Mesmo assim, quando submetido à balança do poder mental, ele é muito mais significativo do que regiões de maior extensão e população mais numerosa. Esse poder é comprovado pelo fato de que a mente humana é criadora de tudo que é bom e grandioso para a humanidade, e que a própria Natureza foi apenas a primeira-ministra. A Inglaterra, localizada no extremo norte do mar turvo, agora visita meus sonhos na forma de um navio vasto e bem tripulado, que governou os ventos e passou a vagar orgulhoso pelas ondas. Na minha mocidade, essa terra era o universo para mim. Quando me punha nas colinas de minha terra natal e via planícies e montanhas se estenderem para além dos limites da visão, pintalgadas pelas habitações dos meus conterrâneos e submetidas à fertilidade pelo trabalho deles, aquele ponto era, para mim, o centro da Terra. O resto do globo era apenas uma fábula; esquecê-lo não teria custado minha imaginação nem exigido esforço nenhum.
Minhas riquezas foram, desde o princípio, exemplos do poder que a mutabilidade pode ter sobre os diferentes cursos da vida de um indivíduo. No meu caso, isso veio praticamente como herança. Meu pai foi um desses homens a quem a natureza concedeu generosamente os dons invejados da astúcia e da imaginação e que, depois, largou o receptáculo da vida para ser impelido pelos ventos sem a racionalidade como leme ou o juízo como timoneiro. A linhagem dele era obscura, mas as circunstâncias o levaram cedo ao reconhecimento público; logo, os parcos bens de seu pai se dissolveram em uma peça esplêndida de estilo e luxúria na qual ele era o protagonista. Durante os breves anos da juventude imprudente, ele foi adorado pelos néscios da alta estirpe da época, assim como pelo jovem soberano — que escapava das intrigas da política e dos árduos deveres da rotina real para encontrar diversão infalível e alegria para o espírito na sociedade. Os impulsos do meu pai, nunca sob o próprio controle, sempre o deixavam em situações difíceis das quais apenas a esperteza que tinha podia livrá-lo. As crescentes dívidas de honra e negócios, que teriam massacrado qualquer outra pessoa, eram suportadas com um humor leve e uma hilaridade nata. Por outro lado, a companhia dele era tão necessária nas mesas e esquemas dos ricos que seus descuidos eram considerados perdoáveis, e ele era sempre recebido com uma adulação intoxicante.
Esse tipo de popularidade, como qualquer outra, é evanescente: as dificuldades de todo o tipo aumentaram em quantidade assombrosa comparada às maneiras vãs que ele tinha de se livrar delas. Quando isso acontecia, o rei, com a afeição que tinha por ele, intercedia a seu favor e colocava o amigo para trabalhar. Meu pai fazia as mais sinceras promessas de melhora, mas seu temperamento social, a ânsia pela dose usual de admiração e, acima de tudo, o demônio da jogatina que o possuía completamente faziam com que as resoluções positivas fossem passageiras, e as promessas, vazias. Com a ágil sensibilidade peculiar a seu temperamento, ele percebeu que seu poder no círculo brilhante estava minguando. O rei se casou, e a arrogante princesa da Áustria — que, como rainha da Inglaterra, havia se tornado a líder dos costumes — olhava com maus olhos para os defeitos de meu pai e com desprezo para o afeto que o real esposo nutria por ele. Meu pai sentiu que a queda estava próxima, mas, em vez de usar a última calmaria antes da tempestade para salvar a si mesmo, tentou esquecer do mal vindouro fazendo sacrifícios ainda maiores à divindade do prazer, árbitro cruel e traiçoeiro de seu destino.
O rei, um homem de excelente temperamento, mas facilmente influenciável, havia então se tornando um discípulo voluntário da soberba consorte. Assim, foi induzido a olhar com extrema desaprovação, ou no mínimo com desgosto, para as imprudências e loucuras de meu pai. É bem verdade que a presença dele dissipava essas nuvens; a franqueza de coração aberto, as tiradas brilhantes e a atitude confiante dele eram irresistíveis. Era só à distância, quando as novas histórias de seus erros eram despejadas no ouvido do amigo real, que ele perdia a influência. O manejo astuto da rainha foi utilizado para prolongar esses períodos de ausência e para reunir várias das acusações. Depois de certo tempo, o rei foi convencido a considerá-lo uma fonte de perpétua inquietação, sabendo que teria de pagar pelos efêmeros prazeres da sociedade com ladainhas tediosas — para não falar nas dolorosas narrativas sobre excessos, cuja verdade ele não podia negar. O resultado foi que ele decidiu fazer uma última tentativa de recuperar meu pai; em caso de insucesso, este seria renegado para sempre.
A cena seguinte deve ter sido de interesse profundo e paixão inflamada: um rei poderoso, notável por uma bondade que outrora o fizera dócil e agora cheio de conselhos altivos que alternavam súplicas e reprovações, implorando ao amigo que atendesse seus reais interesses; que, de forma resoluta, evitasse as fascinações que o esvaziavam e usasse os grandes poderes que tinha em um campo útil — no qual ele, o soberano, seria o prumo, o estanque e o pioneiro. Meu pai sentiu essa bondade; por um momento, sonhos ambiciosos piscaram diante de seus olhos, e ele achou que seria por bem trocar os objetivos que então tinha por deveres mais nobres. Com sinceridade e fervor, ele cumpriu a promessa exigida: em troca de uma jura de serviço contínuo, recebeu do mestre real uma quantidade de dinheiro para quitar dívidas urgentes, permitindo que começasse a nova carreira sob ventos auspiciosos. Na mesmíssima noite, enquanto ainda estava cheio de gratidão e determinação, todo o valor, e mais um valor igual, foi perdido na mesa de apostas. Tomado pelo desejo de reparar a primeira perda, meu pai arriscou dobrar as apostas, e assim acabou incorrendo em uma dívida de honra que seria totalmente incapaz de pagar. Envergonhado por precisar pedir ajuda ao rei mais uma vez, ele deu as costas a Londres, a seus deleites falsos e misérias persistentes e, com a pobreza como única companhia, enterrou-se em solidão entre as colinas e os lagos de Cumberland. Sua astúcia, seus bons modos e os relatos de seus encantos pessoais, hábitos fascinantes e talentos sociais foram, por muito tempo, lembrados e transmitidos de boca em boca. Quem perguntava onde estava aquele favorito dos costumes — o companheiro dos nobres, o raio que se destacava e dourava com esplendor exótico as reuniões da corte e de quem se dava à diversão — ouvia que ele estava sob uma nuvem, que era um homem perdido. Ninguém achava que lhe cabia pagar seus prazeres com serviços reais nem que seu longo reinado de astúcia brilhante merecia uma pensão após a aposentadoria. O rei lamentou a ausência; amava repetir o que ele dizia, relatar as aventuras que haviam vivido juntos e exaltar seus talentos — mas a reminiscência terminava por aí.
Enquanto isso, meu pai, esquecido, foi incapaz de esquecer. Remoeu a perda do que era, para ele, mais necessário do que respirar ou se alimentar — a excitação dos prazeres, a admiração dos nobres, o modo de vida luxurioso e sofisticado dos grandes. A consequência foi uma febre nervosa. Enquanto acometido por ela, foi cuidado pela filha de um pobre camponês em cuja casa se abrigou. Ela era amável, gentil e, acima de tudo, carinhosa com ele; não seria de admirar que um antigo ídolo de beleza nobre pudesse, mesmo em um estado de decadência, parecer um ser de natureza elevada e maravilhosa aos olhos de uma humilde camponesa. A ligação entre os dois levou ao casamento malfadado do qual fui fruto. Não obstante a ternura e a doçura de minha mãe, seu esposo ainda lamentava o próprio estado de degradação. Desacostumado ao trabalho braçal, ele não entendia de nada que pudesse contribuir para o apoio da família que crescia. Às vezes pensava em se apresentar ao rei. Por um tempo, orgulho e vergonha o contiveram, e, antes que suas necessidades se tornassem tão prementes a ponto de convencê-lo com considerável empenho, ele morreu. Apenas por um breve intervalo antes da catástrofe, ele olhou para o futuro e contemplou com angústia a situação desoladora na qual a esposa e os filhos seriam deixados. Seu último esforço foi escrever ao rei uma carta de comovente eloquência e lampejos ocasionais do espírito brilhante que era parte integral dele. Deixou como legado à viúva a aos órfãos a amizade com o mestre real, e sentiu-se satisfeito, pois, dessa maneira, a prosperidade deles estaria mais garantida em sua morte do que durante sua vida. A carta foi entregue aos cuidados de um nobre que, sem dúvida alguma, realizaria o último e gratuito favor de entregá-la nas mãos do rei.
Meu pai então morreu dominado pelas dívidas, e sua pequena propriedade foi tomada imediatamente pelos credores. Minha mãe, sem um tostão e com o fardo de duas crianças, esperou semana após semana, depois mês após mês, na expectativa doentia por uma resposta — que nunca chegou. Ela não tinha experiência alguma com o mundo além da choupana do próprio pai; a mansão do senhorial era o tipo mais elevado de grandeza que ela era capaz de conceber. Em vida, meu pai tivera familiaridade com os nomes da realeza e do círculo da corte; mas tais coisas, ruins segundo a experiência da minha mãe, pareciam-lhe, depois da perda daquele que dava substância e realidade a elas, vagas e fantásticas. Se, sob qualquer circunstância, ela chegou a reunir coragem suficiente para se dirigir às pessoas nobres mencionadas pelo esposo, a má experiência que tivera no passado a fez desistir da ideia. Ela percebeu, portanto, que não havia escapatória para a terrível miséria; a mistura de preocupação constante, luto pela perda daquele ser que a fascinava — pelo qual ela continuou a nutrir admiração ardente —, trabalho duro e saúde delicada acabou livrando-a da triste continuidade de desejo e miséria.
Deixou os órfãos em uma condição peculiarmente lamentável. O próprio pai havia emigrado de outra parte do país e morrido muito tempo antes. Não tinham nenhum parente para pegá-los pela mão — eram proscritos, miseráveis, seres indesejáveis com os quais a mais ínfima demonstração de pena era uma questão de gentileza. Eram tratados meramente como filhos de camponeses, mas ainda mais pobres que os mais pobres de todos, que ao morrer tinham deixado aos filhos a herança ingrata da caridade mesquinha da terra.
Eu, o mais velho dos dois, tinha cinco anos quando minha mãe morreu. Uma lembrança dos discursos dos meus pais e as informações que minha mãe conseguiu incutir em mim a respeito dos amigos de meu pai, com a esperança vã de que um dia eu pudesse me beneficiar desse conhecimento, flutuavam como sonhos indistintos pelo meu cérebro. Convenci-me de que era diferente dos meus protetores e companheiros, e superior a eles, mas não sabia como ou por quê. O sentimento de insulto associado ao nome do rei e dos nobres ficou gravado em mim; eu não podia tirar conclusão alguma desse sentimento, porém; não a ponto de servir como guia para ações. As primeiras lembranças que tenho são as de ser um órfão desprotegido vivendo entre os vales e colinas de Cumberland. Prestava serviços para um fazendeiro; com um cajado em mãos e o cão a meu lado, pastoreava um rebanho numeroso nos planaltos próximos. Não há muito o que enaltecer em uma vida assim. As dores excediam em muito os prazeres de vivê-la. Havia liberdade nela, e uma conexão com a natureza, além de uma solidão temerária, mas essas coisas, por mais românticas que fossem, não eram páreo para o amor pela ação e o desejo por simpatia humana, características da juventude. Tampouco o cuidado pelo meu rebanho ou a mudança das estações eram suficientes para domar meu espírito ardente; minha vida ao ar livre e meu tempo vago foram as tentações que me levaram cedo aos hábitos desregrados. Associei-me com outros sujeitos sem amigos como eu; transformei-os em um bando do qual eu era chefe e capitão. Todos nós, garotos pastores, aproveitávamos o tempo em que nossos rebanhos se espalhavam pelos pastos para planejar e executar várias diabruras maldosas, o que atraía a raiva e a vingança dos rústicos. Eu era o líder e protetor dos meus camaradas e, por me tornar notável entre eles, os delitos de todos geralmente recaíam sobre mim. Ainda assim, embora tivesse que aguentar a punição e a dor em defesa deles, com o espírito digno de um herói, consegui em troca sua admiração e obediência.
Nessa escola, desenvolvi um temperamento áspero, mas firme. A ânsia por admiração e o baixo autocontrole que herdei do meu pai, alimentados pelas adversidades, tornaram-me audacioso e imprudente. Eu era duro como os elementos e ignorante como os animais de que cuidava. Constantemente me comparava a eles; quando descobri que minha superioridade de chefe consistia em poder, logo persuadi a mim mesmo de que eu era apenas nisso inferior aos potentados mais notáveis do mundo. Portanto, iletrado em filosofia refinada e perseguido por uma inquieta sensação de rebaixamento do meu verdadeiro posto na sociedade, vaguei pelas colinas da Inglaterra civilizada, um selvagem tão bruto quanto os fundadores de Roma criados por lobos. Obedecia tão somente a uma lei: a lei do mais forte. Minha principal virtude era nunca ceder.
Permita-me, no entanto, uma retratação sobre essa afirmação que fiz sobre mim. Junto de outras lições meio esquecidas e mal-empregadas, minha mãe se encarregou de dar, com grande exortação, a proteção da outra filha à minha tutela fraternal; esse dever eu cumpri tanto quanto minhas habilidades permitiam, com todo o zelo e afeição que minha natureza permitia. Minha irmã era três anos mais nova do que eu. Cuidei dela desde que era uma criancinha; embora a diferença de sexo nos garantisse ocupações variadas e, em grande medida, separasse-nos, ela continuava sendo o objeto do meu amor atento. Órfãos, no sentido mais amplo do termo, são os mais pobres dentre os pobres, e desprezados mesmo em meio aos desonrados. Se minha audácia e coragem me garantiam um tipo de aversão respeitosa, a juventude e o fato de ser mulher — aspectos que não incitavam ternura ao fazê-la parecer fraca — eram causa de inúmeras humilhações para ela. Seu próprio temperamento não era tão desenvolvido a ponto de diminuir os efeitos de seu posto inferior.
Ela era um ser peculiar e, como eu, havia herdado boa parte das inclinações de nosso pai. Seu semblante era pura expressão: os olhos não eram escuros, e sim impenetravelmente profundos. Era possível descobrir imensidões sem fim ao encarar seu olhar intelectual; dava para sentir que a alma que ali havia era formada por um universo de pensamentos compreendido pelo alcance de sua visão. Ela era pálida e toda clara, os cabelos dourados formavam cachos nas têmporas e o tom rico dos fios contrastava com o mármore vivo que havia embaixo. O vestido grosseiro de camponesa era pouco harmônico com o refinamento que o rosto expressava, mas ainda assim combinava com ele de maneira curiosa. Ela era como um dos santos de Guido, com o paraíso no coração e no olhar; quando alguém a via, só conseguia pensar no que ela guardava dentro de si, e trajes e mesmo compleição eram secundários comparados à mente que sorria em seu semblante.
Porém, embora fosse amável e cheia de sentimentos nobres, minha pobre Perdita (pois esse fora o nome extravagante que havia recebido do pai moribundo) não era, de modo algum, santa em caráter. Os modos dela eram gélidos e repulsivos. Se tivesse sido criada por pessoas que dessem valor à afeição, teria sido diferente, mas, mal-amada e negligenciada, ela pagava a ânsia por gentileza com desconfiança e silêncio. Era submissa a todos que exerciam autoridade sobre ela, mas uma nuvem perpétua lhe marcava o cenho; a impressão era de que esperava hostilidade de todas as pessoas que se aproximavam dela, e suas ações eram instigadas pela mesma sensação. Passava sozinha todo o tempo sobre o qual tinha controle. Perambulava até pelos lugares mais pouco frequentados, subia até alturas perigosas para que nesses lugares ermos pudesse se envolver em solidão. Não raro, passava horas inteiras caminhando para cima e para baixo nas trilhas da floresta, elaborava guirlandas de flores e vinhas ou assistia à oscilação das sombras e ao farfalhar das folhas. Às vezes, sentava à beira de um regato e, como se o pensamento tivesse sido pausado, atirava flores ou pedrinhas na água, observando como boiavam e depois afundavam. Também construía barquinhos feitos com cascas de árvores ou folhas, com uma pena servindo de vela, e depois assistia intensamente enquanto a embarcação navegava por entre as corredeiras e águas rasas do riacho. Enquanto isso, sua ativa imaginação compunha milhares de combinações. Ela devaneava sobre acidentes no mar e em terra
— perdia-se satisfeita nessas explorações que criava para si mesma e voltava com o espírito relutante para os detalhes enfadonhos da vida comum. A pobreza era a névoa que cobria suas excelências como um véu; tudo o que era bom nela parecia perecer diante do desejo pelo licor genial da afeição. Ela sequer tinha a mesma vantagem que eu em termos de lembranças de nossos pais; ela tinha a mim, seu irmão, como único amigo, mas a aliança dela comigo só reforçava o desgosto de possíveis protetores por ela — por isso, cada erro que ela cometia era exagerado e transformado em crime. Se tivesse sido criada na esfera da sociedade para a qual, por herança, a constituição delicada de sua mente e personalidade era adaptada, teria sido objeto de algo próximo à adoração, pois suas virtudes eram tão proeminentes quanto seus defeitos. Toda a geniosidade que enobrecia o sangue de nosso pai se expressava nela. Uma corrente generosa fluía em suas veias; falsidade, inveja ou maldade eram antípodas de sua natureza. Seu semblante, quando iluminado por amabilidade, poderia muito bem pertencer a uma rainha de grandes nações; tinha os olhos brilhantes e o olhar destemido.
Embora, por nossa situação e temperamento, nós dois tivéssemos sido quase igualmente eliminados das formas convencionais de relações sociais, contrastávamos fortemente um com o outro. Eu sempre necessitava dos estímulos do companheirismo e do reconhecimento. Perdita era autossuficiente. Apesar dos meus hábitos desregrados, meu temperamento era social; o dela, recluso. Eu passava a vida em meio a realidades tangíveis; ela, a sonhos. Poderia até dizer que eu amava meus inimigos, pois, ao me provocar, concediam-me certa felicidade; Perdita quase desgostava dos próprios amigos, pois interferiam em seus humores visionários. Todos os meus sentimentos, mesmo os de exultação e triunfo, transformavam-se em amargor quando não havia ninguém para compartilhar deles; Perdita, mesmo quando alegre, refugiava-se na solidão e era capaz de passar dia após dia sem expressar suas emoções ou sequer buscar sentimentos equivalentes em outras mentes. Veja bem, ela era capaz de amar e lidar com a ternura no olhar e na voz dos amigos, mas suas atitudes expressavam o afastamento mais gélido. Com ela, toda sensação virava um sentimento, e ela nunca falava até que tivesse mesclado as percepções sobre objetos externos àquelas que já eram criação da própria mente. Ela era como um solo fértil que absorvia os ares e orvalhos do paraíso e depois os dava de novo à luz na adorável forma de frutos e flores; mas era frequentemente obscura e áspera como o solo, arada e recém-semeada com sementes invisíveis.
Vivia em uma choupana cujos arredores de relva aparada desciam suavemente até as águas do Ulswater; atrás dela, um bosque de faias se estendia coluna acima, e um regato serpenteante descia o aclive, correndo por entre margens pontuadas por álamos até desaguar no lago. Eu vivia com um fazendeiro cuja casa era construída no topo da colina. Um penhasco escuro se erguia atrás dela e, na face norte, a neve se depunha entre as gretas mesmo no verão. Antes do nascer do sol, eu orientava meu rebanho até os pastos para ovelhas e o protegia ao longo do dia. Era uma vida dura; a chuva e o frio eram mais frequentes do que dias de sol, mas eu me orgulhava em desprezar as interpéries. Meu fiel cão cuidava das ovelhas enquanto eu escapava para os encontros com meus camaradas, e deles para as execuções dos nossos estratagemas. Ao meio-dia, voltávamos a nos encontrar, e com alegria aproveitávamos os espólios de camponês — acendíamos uma fogueira e avivávamos as chamas destinadas a cozinhar a caça roubada dos estoques vizinhos. Depois, vinham as incursões a regiões próximas, as brigas com os cães e as emboscadas e fugas conforme, à moda dos ciganos, enchíamos nossas panelas. A busca por uma ovelha perdida ou os esquemas com os quais evitávamos ou tentávamos evitar punições preenchiam as horas da tarde; no começo da noite, meu rebanho voltava ao local de repouso e eu voltava à minha irmã.
Raramente escapávamos de fato; para usar uma expressão antiga, raramente livrávamos nossa pele. Nosso parco espólio era, com frequência, pago com bofetadas e prisão. Certa vez, quando tinha treze anos de idade, fui colocado por um mês na cadeia do condado. Saí de lá com as morais em nada melhores, mas com o ódio por meus opressores multiplicado por dez. Pão e água não domaram meu sangue; confinamento não me inspirou pensamentos gentis. Saí bravo, impaciente, miserável. Minhas únicas alegrias eram as horas durante as quais criava planos de vingança. Aperfeiçoei-os durante a solidão forçada, de modo que, por toda a temporada seguinte — e eu fui libertado no começo de setembro —, não falhei nem um dia em providenciar um abundante espólio em comida para mim e meus camaradas. Foi um inverno glorioso. A geada mordaz e as nevascas pesadas deixavam os animais mais dóceis e mantinham os cavalheiros do condado diante da lareira; conseguíamos mais carne do que éramos capazes de comer, e meu fiel cão chegou a engordar com nossos restos.
Os anos passaram; isso apenas aumentou meu amor pela liberdade e meu desprezo por tudo aquilo que não era tão selvagem ou bruto como eu mesmo. Aos dezesseis anos, minha aparência mudou de súbito para a de um homem. Era alto e atlético; era treinado em atividades que exigiam força e habituado à inclemência dos elementos. Minha pele era bronzeada de sol, meus passos eram firmes pela consciência do poder. Eu não temia pessoa nenhuma e não amava ninguém. Mais tarde na vida, olharia com assombro para a pessoa que havia sido; como teria me tornado alguém totalmente inútil se tivesse seguido o caminho desregrado. Minha vida era como a de um animal; minha mente corria o risco de se degenerar em uma que transmitisse apenas a natureza bruta. Até então, meus hábitos selvagens não tinham me causado nenhum prejuízo radical. Meus poderes físicos tinham crescido e florescido assim; minha mente, submetida à mesma disciplina, estava impregnada pelas virtudes da brutalidade. Minha esbanjada independência, porém, me levava diariamente a cometer atos de tirania, e a liberdade começava a se transformar em libertinagem. Eu era quase um homem, e paixões fortes como as árvores de uma floresta haviam criado raízes em mim, começando a sombrear o caminho da minha vida com seu nocivo crescimento.
Ansiava eu por iniciativas além de meus esquemas infantis, e criava sonhos destemperados de ações que ainda empreenderia. Comecei a evitar meus antigos camaradas, e logo os perdi. Haviam chegado à idade em que saíam para cumprir seus destinos na vida; já eu, um proscrito, sem nada para servir de prumo ou me fazer avançar, havia parado. Os mais velhos começaram a me usar de exemplo do que não ser; os jovens, a pensar em mim como alguém diferente deles. Eu os odiava e, tomado pela última e pior degradação, passei a odiar a mim mesmo. Agarrei-me a meus hábitos ferozes, embora os repudiasse. Continuei a guerra contra a civilização, embora nutrisse o desejo de pertencer a ela.
Remoí diversas vezes o que lembrava das histórias da minha mãe sobre a vida pregressa do meu pai. Contemplei as poucas relíquias que tinha dele, coisas que contavam histórias sobre o grande refinamento que podia ser encontrado entre as choupanas da montanha; nada, porém, servia de prumo para me orientar na direção de um modo de vida mais agradável. Meu pai tivera conexões com os nobres, mas tudo o que eu sabia sobre elas dizia respeito à negligência posterior. O nome do rei — a quem meu pai moribundo dirigira as últimas preces e que o havia ignorado de forma bárbara — era associado apenas a ideias de falta de gentileza, injustiça e consequente ressentimento. Eu havia nascido para ser maior do que era naquele momento — e chegaria lá —, mas grandeza, pelo menos de acordo com minhas percepções distorcidas, não era associada à bondade, e meus pensamentos selvagens não eram validados por considerações morais quando se rebelavam em sonhos de ser nobre. Assim, lá estava eu, no topo de uma torre com um mar de maldades se agitando aos meus pés. Estava prestes a me jogar nele, precipitando-me como uma corrente sobre todas as obstruções no caminho dos meus desejos, quando a influência de um estranho foi trazida pela corrente da sorte e transformou o curso turbulento em algo que, em comparação, era como os meandros gentis de um córrego que cerca um prado.
II
Eu morava longe dos tormentos frenéticos dos homens, e os boatos de guerras ou mudanças políticas eram desgastados até chegarem à nossa morada montanhosa na forma de meros ruídos. Pelo início da minha juventude, a Inglaterra fora palco de dificuldades momentâneas. No ano de 2073, o último dos reis, o antigo amigo de meu pai, abdicou do trono em anuência à gentil força dos protestos de seus súditos, e uma república foi instituída. Vastas propriedades foram asseguradas ao monarca destronado e à família. Ele recebeu o título de conde de Windsor, e o Castelo de Windsor, uma antiga propriedade real, assim como todos os bens dali, foi parte do patrimônio legado. Morreu logo depois, deixando dois descendentes: um filho e uma filha.
A ex-rainha, princesa da casa da Áustria, tentara por muito tempo compelir o marido a lutar contra as necessidades do momento. Era soberba e destemida; acalentava o amor pelo poder e um desprezo amargo pelo ex-rei que havia entregado o próprio reino. Foi só pelo bem dos filhos que aceitou permanecer, mesmo despida de realeza, como membro da república da Inglaterra. Quando enviuvou, direcionou todos os pensamentos à educação do filho, Adrian, segundo conde de Windsor, de modo que ele pudesse cumprir seus fins ambiciosos. Com leite materno ele foi impregnado, e a intenção era de que crescesse com o propósito firme de readquirir a coroa perdida. Adrian tinha, então, quinze anos de idade. Era viciado em estudar e, ao longo dos anos, foi absorvendo aprendizado e talento: segundo os relatos, logo começou a frustrar as ideias da mãe e a acalentar princípios republicanos. Independentemente disso, a altiva condessa não confiava a mais ninguém os segredos do ensino familiar. Adrian foi criado em meio à solidão e mantido à parte de potenciais companheiros da mesma idade e posição. Eis que circunstâncias desconhecidas levaram a mãe a afastá-lo da tutoria imediata, e soubemos que ele visitaria Cumberland. Milhares de boatos surgiram para tentar explicar a conduta da condessa de Windsor, mas é provável que nenhum fosse verdadeiro. A cada dia, porém, ficava mais evidente que teríamos entre nós o nobre herdeiro da antiga casa real da Inglaterra.
Em Ulswater, havia uma grande propriedade com uma mansão anexa, pertencente à família. Um dos apêndices era um grande parque com paisagismo de muito bom gosto, cheio de caça. Eu roubava com frequência daquela reserva; o estado negligenciado da propriedade facilitava minhas incursões. Quando ficou decidido que o jovem conde de Windsor visitaria Cumberland, funcionários vieram preparar a casa para recebê-lo. Os cômodos foram restaurados com um esplendor impecável, e o parque teve todo o abandono revertido, passando a ser guardado com um cuidado atípico.
Fiquei desproporcionalmente perturbado ao saber disso. O fato trouxe à tona minhas lembranças dormentes, meus sentimentos suspensos de prejuízo, que trouxeram consigo um novo sentimento de vingança. Eu não conseguia mais cuidar das minhas ocupações. Todos os meus planos e maquinações foram esquecidos: era como se começasse uma vida do zero, e as perspectivas não pareciam boas. A guerra, pensei, estava prestes a começar. Ele chegaria triunfante ao distrito para onde meu pai fugira com o coração partido; ele encontraria os herdeiros malfadados do homem, legados com uma confiança vã a seu real pai, reduzidos a pobres miseráveis. Que ele descobrisse nossa existência e nos tratasse pessoalmente da mesma forma insultuosa