Bourdieu Sobre o Estado
Bourdieu Sobre o Estado
Bourdieu Sobre o Estado
Remi Lenoir
1. BOURDIEU, Pierre.
Le bal des clibataires, Paris,
Seuil, 2002.
2. BOURDIEU, Pierre. La
cause de la science, Actes de la
recherche en sciences sociales,
106-107, 1995, pp. 3-10.
3. BOURDIEU, Pierre. La
sainte famille. Lpiscopat
franais dans le champs du
pouvoir. Actes de la recherche
en sciences sociales, 44-45, nov.
1982, pp. 2-53.
4.* O livro de Pierre Bourdieu,
Sobre o Estado, publicado em
portugus pela Companhia
das Letras, So Paulo, 2014,
com traduo de Rosa Freire
dAguiar. (N. E.). Neste texto,
todas as referncias do autor
a Curso remetem a essa obra.
5. BOURDIEU, Pierre.
Sur ltat. Cours au Collge
de France, 1989-1992, Paris,
Raisons dAgir/Seuil, 2012,
BOURDIEU, Pierre, La noblesse
dtat. Grandes coles et esprit
de corps, Paris, Minuit, 1989.
6. Cf. Le sociologue devant
ltat, Association des sociologues de langue franaise, Paris,
27 set. 1 out. 1982, indito.
7. BOURDIEU, Pierre.
Sur ltat, op. cit., p.173
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Sem voltar gnese do Estado que ele esboa por alto no seu curso, detendo-se naqueles fundamentos que so mais pertinentes do ponto de vista de seu
objeto a formao de um campo de poder, em especial do poder no Estado,8
pode ser oportuno lembrar os fundamentos elaborados ao longo de sua
obra, ou seja, a publicao oral (seu Curso) e escrita (La Noblesse dtat) de seus
trabalhos sobre o Estado datando de 1989, isto , 30 anos aps suas primeiras
investigaes sobre as estruturas sociais na Arglia, e 20 anos aps suas primeiras pesquisas sobre as diferentes fraes da classe dominante na Frana com a
publicao, nesse meio tempo, desses dois livros a respeito da teoria sociolgica:
Lesquisse dune thorie de la pratique (1972) e Le sens pratique (1980).
De fato, a problemtica elaborada por Bourdieu em relao ao Estado se inscreve em continuidade com o conjunto de seus estudos, que se referem menos ao
Estado do que diviso do trabalho social de dominao e ao problema prprio
da classe dominante, ao de sua diviso interna e ao sistema das diferenas entre
as fraes intelectuais e econmicas, assim como s formas mais ou menos institudas de conciliao de seus interesses especficos. Estes ltimos correspondem
s duas espcies de capital, capital cultural e capital econmico, que funcionam
como outras tantas condies necessrias para participar do campo do poder,
e que tm cada um suas leis de acumulao, de gesto e de transmisso. Sobre
isso, ele costumava alertar contra o emprego da noo de classe dominante, pois
ela participava da representao realista e unitria do poder, e se referia a esse
respeito trade dumziliana, bem traduzida pelos trs conceitos do simbolismo medieval da sociedade, bellatores, oratores, laboratores: em todas as sociedades, e a fortiori nas sociedades diferenciadas, os detentores de diferentes formas
de poder (ou de espcies de capital) esto em luta.
Assim, o objeto de trabalho de Bourdieu sobre o Estado se baseia menos
naqueles que governam, na populao dos que detm o poder, este costumando ser definido como uma substncia que se possui, do que nas estruturas das relaes que dividem e unificam ao mesmo tempo o campo do poder.
Da as anlises mltiplas e minuciosas que Bourdieu faz dos mecanismos que
conduzem s posies neste ltimo, principalmente a socializao familiar e a
passagem pelas grandes escolas,9** cuja estrutura homloga quela do espao das posies dominantes (La Noblesse dtat tem como subttulo Grandes
coles et esprit de corps). Donde tambm, e de modo inseparvel, a anlise das
lutas incessantes pelo reconhecimento do valor e da legitimidade das espcies
de capital no campo do poder as guerras de palcio (um dos captulos
de Homo academicus se intitula Espces de capital et formes de pouvoir).
A noo de legitimidade em Bourdieu , no raro, associada s de dominao, de violncia, ou de capital simblicos. Ela remete concepo da ordem
social tal como Bourdieu a elaborou e desenvolveu, desde seus primeiros trabalhos, e que encontrou sua forma mais acabada em Le sens pratique e Les
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A doxa uma crena e uma crena que no se percebe como tal. No pode
haver a reconhecimento mais absoluto que o reconhecimento da doxa j que
ela no se percebe como tal, isto , como reconhecimento: A adeso dxica a mais absoluta que uma ordem social possa conseguir, j que se situa
alm mesmo da constituio da possibilidade de fazer de outra maneira, diz
Bourdieu.21 No se tem nem mesmo ideia disso, ela no pode nem sequer aflorar. nesse sentido que os dominados colaboram para sua dominao pelo
prprio fato de que, no tendo escolha, aceitam as regras do jogo e esperam
algo do jogo, mesmo porque, ao contrrio dos jogos, no podem sair do jogo.
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Esse modo de integrao na ordem social levanta a questo da legitimidade, j que a noo de doxa acentua o fato de que o reconhecimento da
fora nunca se impe tanto a no ser quando interiorizada pelos sujeitos
sociais, quando est no estado incorporado. A esse respeito, podemos citar
Durkheim, que teve a intuio disso:
O universal
Para explicar a emergncia, a ordem pblica constri, a partir do que relatam tambm os historiadores ou os socilogos especializados, um modelo: o
da lgica da gnese do Estado como princpio dessa ordem. Esse modelo o
da gnese de uma realidade irredutvel soma dos elementos que a constituem, sendo a isso que remete a noo de transcendncia, o grupo e o que o
representa como totalidade transcendente soma de suas partes.23 A noo
de campo busca nomear esse efeito dessa espcie de metafsica holstica.
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Segundo Bourdieu, com a constituio do Estado moderno, h uma mudana de ordem com relao ao Estado dinstico: passa-se de uma lgica de funcionamento do mundo social a outra, de uma razo a outra, da razo domstica razo de Estado. Por qu? resposta dessa pergunta que dedicada a
gnese do Estado que Bourdieu far.
medida que se desenvolvem, as sociedades se diferenciam em universos distintos com funcionamentos autnomos, e cujas implicaes e tipos
de capital se especificam. Bourdieu sintetiza a esse respeito os trabalhos de
historiadores sobre a emergncia desses campos de atividades que se autonomizam uns em relao aos outros, cada um sendo caracterizado por uma
espcie de capital que constitui, ao mesmo tempo, o recurso e a implicao
prprios do campo: capital de fora militar, capital econmico, capital cultural ou informacional, capital jurdico, capital simblico. Ao fazer a gnese
de cada um deles, Bourdieu mostra os dois traos que caracterizam o Estado
moderno. Em primeiro lugar, um processo de concentrao dessas espcies de capital em seu interior. Mesmo se o Estado, ou o que faz as vezes de
Estado, no detm o conjunto do capital, como o caso do capital econmico, ele conquista aos poucos o monoplio do poder no campo econmico,
como nos outros campos em que o poder mais direto. Por exemplo, detm
o monoplio da arrecadao dos impostos, da emisso de moeda, e da regulamentao do mercado.
Esse poder sobre as diferentes espcies de capital o que Bourdieu chama
de um metacapital, que corresponde formao de um espao particular,
um campo, um metacampo no interior do qual os agentes lutam para poder
controlar essa espcie de capital o capital estatal que d poder sobre as
outras espcies de capital, isto , sobre os outros campos. o segundo trao que
distingue o campo estatal, o Estado em relao aos outros campos. Se tomarmos mais uma vez o exemplo do imposto, cujas dificuldades para arrecadar
ainda hoje conhecemos, o reconhecimento da legitimidade do imposto, a aceitao da submisso ao imposto so uma forma de reconhecimento do Estado.
Esse reconhecimento da legitimidade do Estado participa da crena na ideia
de Estado como irredutvel a suas encarnaes. Essa referncia a um Estado
transcendente (que encontramos na justia e no direito) um passo no caminho da construo do Estado burocrtico, tal qual o conhecemos hoje, de uma
construo estatal impessoal, pura e que conduz ideia moderna de Estado
como entidade abstrata e superior aos interesses particulares, em suma, meta.
Portanto, a um processo de concentrao das espcies de capitais que existem, isto , a um processo de unificao dos mercados referente aos bens materiais e simblicos produzidos nos diferentes campos em determinado territrio,
correspondem uma mudana de lgica de funcionamento da sociedade, uma
mudana de ordem. O que era da ordem do privado, da famlia, da dinastia, das
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