A Arte de Traduzir
A Arte de Traduzir
A Arte de Traduzir
Abner Chiquieri *
preciso
compreender, e compreender implica mrito, alm do
conhecimento. Outra,
num
tom
mais
ameaador: decifra-me ou devoro-te! Outra, ainda,
que
implica
responsabilidade: livro
no
compreendido pelos homens livro que eles
mesmos esquecem! No podemos esquecer nem
Mallarm, nem Mallarm o Livro, de Atti. Sinto-me,
pois na obrigao moral de colaborar para que no
esqueam o livro de Atti, espero ter compreendido o
que ele quis dizer. Assim, estarei tambm livre da
ameaa de ser devorado pelo tempo.
No sei bem definir o mrito que tenho, e a minha compreenso limitada,
mas se eles existem, devo compartilh-los com o prof. Manoel Barros da Motta,
que, um dia, me chegou com uma cpia de Mallarm le Livre e uma traduo
de alguns poemas de Mallarm, feita por Augusto e Haroldo de Campos e
Dcio Pignatari, perguntando-me se eu gostaria de traduzir o livro.
Compartilho-o tambm com o prprio autor, Joseph Atti, com quem mantive
correspondncia durante todo o trabalho.
As ideias que existem sobre traduo e tradutor so antigas, ou seriam
eternas? Elas esto num fundo comum, no ter. Alguns autores se apropriaram
delas e as expressaram em conceitos, definies ou simples afirmaes ou
constataes. Se so antigas, elas se renovam quando algum resolve adotlas e fazem delas uma leitura nova. Semper antiquum et semper novum! Essas
ideias no tm propriamente dono. Assim, elas so minhas tambm e no so
simples efeito de uma coincidncia. Simplesmente, algum chegou antes e
teve o cuidado de traduzi-las e escrev-las.
Quando comecei a traduzir Atti, j houve meu primeiro embate: o ttulo. Pus
uma vrgula entre Mallarm e o livro. Mandei para o autor. Ele me puxou
delicadamente a orelha e tentou explicar-me: no se trata do livro de Mallarm,
Mallarm o livro. Aqui falo em termos e com pontos de interrogao: ser que
em francs um s sintagma Denys laropagite (Dionsio o areopagita),
quando em portugus usamos dois: Haroldo, o poeta. Augusto, o poeta? Ou
seja, estamos tratando com um aposto e no com um adjunto adnominal? Isso
no inverteria a hierarquia dos segmentos e o ncleo? Ou a posio inicial
confere ao segmento essa maior importncia, essa primazia? E a, talvez, eu
tenha errado. Mas, como tradutor, sou um pouco poeta. Tenho mais
compromisso com a vida do que com a escola e com a sintaxe. Vale mais
o Non scholae sed vitae discimus. No aprendemos para a escola, mas para a
vida.
para o seu Soneto em X. Um objeto que nada mais que uma palavra, talvez
para Mallarm. Seria ele o falido bibel de inanidade sonora? Para Lacan, todo
significante comea sendo apenas uma inanidade sonora. Uma sonoridade
que no remete a nenhum objeto nem a nenhum sentido. No porque se diz
de uma palavra que ela um neologismo que no se vai procurar um sentido
para ela. A prova que todo mundo nessas circunstncias se precipita para o
dicionrio. Mas o sentido do dicionrio no o do poeta. Essa palavra um
bibel. O de Mallarm acabou remetendo a diferentes acepes: concha,
bzio, a prega ou a dobra de um rgo. O ptyx talvez considerado como uma
metfora do sexo feminino. Ou no. Assim como a flauta do Fauno remeteria
ao masculino cobiado por Iane e Ianth, as ninfas do bosque, o que faz de
Mallarm um poeta tambm sensual e provocante. No h dvida de que
Mallarm foi constantemente tentado a tornar a linguagem, em poesia,
independente de sua funo propriamente significativa e instrumental...
Procurei a palavra num dicionrio de grego. Certamente, no isso que
Mallarm estava interessado em dizer, seno, principalmente, relacionar a
palavra com outra, buscando uma sonoridade, um sentimento, uma rima. O
que se sabe, finalmente, que o poeta partiu para o rio da morte (Styx),
levando com ele um significante (o ptyx) que no remete a nenhum objeto
existente. Por qu? S ele teria a resposta...
Ses purs ongles trs haut ddiant leur onyx / Langoisse, ce minuit, soutien,
lampadophore, / Maint rve vespral brl par le Phnix / Que ne recueille pas
de cinraire amphore / Sur les crdences, au salon vide : nul ptyx, / Aboli
bibelot dinanit sonore, / (Car le Matre est all puiser des pleurs au Styx
/ Avec ce seul objet dont le nant shonore) / Mais proche la croise au nord
vacante, un or / Agonise selon peut-tre le dcor / Des licornes ruant du feu
contre une nixe / Elle, dfunte nue en le miroir, encor / Que, dans loubli ferm
par le cadre, se fixe / De scintillations sitt le septuor. /
Puras unhas no alto ar dedicando seus nix, / A
Angstia, sol nadir, sustm, lampadifria, / Tais
sonhos vesperais queimados pela Fnix / Que
no recolhe, ao fim, de nfora cinerria / Sobre
aras, no salo vazio: nenhum ptyx,/ Falido bibel
de inanio sonora / (Que o Mestre foi haurir
outros prantos no Styx / Com esse nico ser de
que o Nada se honora). / Mas junto gelosia, ao
norte vaga, um ouro / Agoniza talvez segundo o
adorno, fasca / De licornes, coices de fogo ante
o tesouro, / Ela, defunta nua num espelho embora, / Que no olvido cabal do
retngulo fixa / De outras cintilaes o sptuor sem demora. (AUGUSTO DE
CAMPOS).
Selecionei algumas passagens de Atti, para tentar entender melhor. Assim, na
p. 373: O autor cede a iniciativa s palavras. No se trata aqui, evidentemente,
de escrita automtica, ou de um lirismo fcil. Ceder a iniciativa s palavras
reconhecer a primazia da linguagem e o carter significante dessas palavras,
que se impem por essa razo ao sujeito. Lacan o destaca a respeito de
Mallarm: Se cada um pensasse no que a poesia, no haveria nada de
Assim eu olho para o texto e ele olha para mim, ameaador sempre, como a
esfinge. E dou o primeiro passo, quando chego concluso de que no sou eu
quem l o texto: ele me l. Nicolau de Cusa fez essa experincia do olhar com
o cone, em seu tratado De Icona. Quando ele mandou o texto do seu tratado
para seu mosteiro de origem, mandou junto regras para a leitura e a pintura em
que o personagem olhava para todos ao mesmo tempo. Pendurava-se o cone
na parede e, num semicrculo, as pessoas, pri meiro numa determinada
posio, olhavam para ele e a viam o olhar fixo do personagem. Depois, as
pessoas mudavam de posio, mas o olhar continuava a dirigir-se para cada
um deles. Voc tambm sentiu isso? Est sendo olhado? Isso, para dizer que
Deus olha por todos ao mesmo tempo, basta que voc se apresente. Hoje,
fazemos isso com a Mona Lisa do Louvre.
Isso tudo muito significativo para a traduo. Hoje estamos aqui, ontem
estivemos l. Amanh estaremos alhures. O texto est disponvel para uma
infinidade de pessoas, na diversidade do tempo e do lugar. Mas, mesmo que
eu fique s comigo mesmo, no sou hoje o que fui ontem, nem serei amanh o
que sou hoje. Hoje estou aqui, amanh l. Somos todos diferentes por nossas
origens, lugares e espaos. Eu mesmo sou vrios, dependendo do lugar e do
espao. O olhar do personagem/texto o mesmo, mas eu sou a traduo, eu
fao a diferena, cada um de ns faz a sua. Jean-Joseph Surin reconhece no
Ele o Eu do calabouo em que viveu mais de dez anos. Isso para dizer do
carter fugaz e varivel implicado no texto e em sua traduo.
Como vocs j devem ter percebido, eu no pretendo falar da teoria da
traduo (se que existe alguma consistente, com todo respeito aos tericos).
Estou falando da minha experincia de tradutor. Tocaram-me as palavras de
Lia Luft, que diz ter feito questo, ao escrever seus primeiros livros, de
esquecer tudo o que ela tinha aprendido no mestrado sobre teoria da literatura.
Ento, pode ser que eu escandalize um pouco. Tudo o que eu disser hoje pode
fazer sentido para vocs, ou para alguns de vocs, e no amanh. E viceversa. E para mim tambm, que me incluo entre vocs, porque somos todos
tradutores cem por cento do tempo.
Belloc aconselha: leia o original de modo cabal; transporte para sua lngua o
efeito produzido em seu esprito; confira-o com o original, para aproximar-se
mais dele sem sacrificar sua pureza. J dizia Horcio: como bom tradutor, no
traduzirs palavra por palavra. Acrescenta Conington: uma traduo deve
esforar-se no s por dizer o que disse o autor no original, mas tambm como
o disse. E sentencia Croce: tradues no-estticas so simples comentrios.
H uma relativa possibilidade de tradues, no como reprodues, mas como
produo de expresses similares. Uma boa traduo tem valor original como
uma obra de arte.
Muito comum o tradutor contaminar-se e contaminar o idioma para o qual
est fazendo a traduo. Interferem a a polissemia e a homonmia dos fauxamis. Eu tive problemas com a palavra grenade (granada ou rom?), que o
prprio contexto, muitas vezes, no era suficiente para esclarecer.
Frdric Boyer, em seu artigo Traduire linfini, diz bem: toda traduo
necessita de uma reescrita, um processo que desaloja seu autor, sua
autoridade. E, ainda, traduzir irremediavelmente transformar e criar uma
verso suplementar, fazendo o luto necessrio de uma verso original. Ou,
tambm, a traduo uma arte da transformao, e essa transformao deve
assumir o valor de um conhecimento novo, de um amor novo. Lembro-me de
Atti, dizendo num de seus primeiros e-mails que me escreveu: si vous arrivez
aimer Mallarm autant que moi... E eu completaria: ento voc vai-me
compreender melhor. No tenho o sentimento de ter usurpado o pensamento
de Atti, apesar dessa transformao, desse conhecimento novo, desse amor
novo inevitveis.
Diz ainda Boyer: toda traduo uma prtica de apropriao que fabrica o
indito. Isso me deixa um pouco envergonhado, embora, teoricamente, isso
acontea de fato. Continua ele: traduzir no uma operao lingustica.
primeiramente uma forma de engajamento, uma confrontao num solo novo
com uma ptria que no ser jamais completamente a nossa.
Si vous arrivez aimer Mallarm autant que moi... o amor que faz do abismo
intransponvel uma poa dgua. Certamente, Atti conseguiu esse feito,
Mallarm le Livre, porque ama. Sentimento. Diz Santo Toms de Aquino: nihil
est in intellectu quod non sit prius in sensu, nada chega inteligncia sem
passar primeiramente pelos sentidos.
Movido por esses sentimentos, cheguei traduo de Mallarm le Livre.
ANEXO
Abner Chiquieri, tocado por Mallarm, escreveu o poema que lemos abaixo
"Commmoration absconse"
Ah! Mallarm, Mallarm, / quest-ce que tu as pu rver... / quest-ce que tu as
fait rver!... / On commmore quoi? / La fin (ou presque) dune tche? / Peu
importe, on commmore... / Sonnent les coups de minuit / Ils sont dj tous
venus / Et leurs doubles / Et leurs doutes / La nourrice et puis le Faune / La
nixe suivie des sylphes / (Soyez vous aussi bienvenus / Manoel et Atti) / Et
mme lamozone au sein brl / la faon Saint-Agathe / Hrodiade est venue
/ Sa chevelure dore / Sa grenade sombre e rouge / Et mme la chatte est
venue / (dtrompez-vous, elle ronronne) / Celle qui ntait pas dans le Livre
/ Puis le pnix non plus / (qui (h)aspire la lettre manquante!) / Sauf devenir
phnix / (Quimporte la lettre manquante) / Si a se termine en ix / Venez tous
donc fter / Avant que le soleil ne se lve / Et la constellation disparaisse / La
syrinx on la trouve / La tenaient Iane et Ianth / La biensance est de mise
/ Venez tous on fait la bise / Igitur, alea jacta est / Et six et le double six / Et
puis lenfant dIdume / Qui nest pas mort croyez-y / Sur la feuille on la couch
/ Ah! Mallarm, Mallarm / Bien sr, on a touch au Vers / La strophe que sestil pass? / Si tu ntais pas la (dernire) mode / On aurait pu toublier / Allume
ton obscurit / Et aide-nous scander / La page blanche du Livre / Vite
transform en ode / Sans csures ni troches / Venez tous mme Salom