Castelucci Iconoclasta
Castelucci Iconoclasta
Castelucci Iconoclasta
v14i2p56-71
Em pauta
Castellucci: iconoclastia-iconolatria1
Castellucci: iconoclasm-iconolatry
Laymert Garcia dos Santos2
Resumo
Partindo da recusa do lugar do crtico e da assuno do papel de um espectador sem rosto, forjase no texto a relao cone-espectador, a partir da qual se agencia toda a mise-en-scne de Sobre
o conceito de rosto no Filho de Deus, de Romeo Castellucci, que se posiciona na interseco entre
religio e teatro. Na performance visual, que repousa sobre dois pilares - o rosto de Jesus e o olhar do
espectador - a inteno de Castellucci nos fazer ver um estado de coisas: a decadncia da beleza
e da dignidade do homem. O espetculo o sonho iconlatra que perverte a iconoclastia de Romeo
Castellucci.
Palavras-chave: Romeo Castellucci, Sobre o conceito de rosto no filho de Deus, iconoclastia, iconolatria.
Abstract
From the refusal of the place of the critical and fulfilling the role of a faceless viewer is forged in the
text the icon-spectator relationship, from which is made the mise-en-scne On the concept of face,
regarding the Son of God of Romeo Castellucci, which is positioned at the intersection of religion and
theater. In the visual performance, which rests on two pillars - the face of Jesus and the eye of the
beholder - the intention of Castellucci is to make us see the decay of beauty and human dignity. The
spectacle is an iconolatry that perverts the inoclasm of Romeo Castellucci.
Keywords: Romeo Castellucci, On the concept of face, regarding the Son of God, iconoclasm, iconolatry.
que encontro o ritmo, a respirao e a dico adequada para tentar expressar minimamente a reverberao que a intensidade do espetculo provoca.
Romeo vai me entender, quando digo que recuso o lugar do crtico. Em seu livro,
com Claudia Castellucci, Os peregrinos da matria, ele assina um texto de 1999,
intitulado A crtica e o zumbido do coro, onde escreve:
Em virtude de meu lugar de origem - o teatro - e da metfora que evocarei
aqui, associo a crtica atividade do Coro na tragdia tica; ao zumbido
contnuo do Coro; ao som surdo de seu esforo muscular para comunicar o
obsceno (o incomunicvel), e a cena da crise. [...] O Coro tico , por seu
estatuto, covarde, pusilnime e curioso. precisamente nisso que consiste
seu poder de emoo: sua tentativa, afinal desesperada, de explicar e
de comunicar. [...] Sua tentativa aquela, eterna, dos adultos diante das
crianas: a moderao. Mas ela no exata, como os heris trgicos que
evoluem no erro como em uma substncia cristalina. Ela no redonda,
como o gozo do mundo diante do sangue. Condenada a essa zona de
limbo - nem inteiramente ator, nem inteiramente espectador - essa criatura,
constituda no mximo pela massa cinzenta, no , numa palavra, exata
no teatro. O Coro evolui no jogo extenuado do pndulo pedaggico cujas
extremidades ressoam em eco como a arte e a cidade. [...] O Coro explica
sem coragem a lio aos espectadores, quebrando o centro da cena. [...]
A arte cai, de uma vez por todas, no campo da linguagem, sem volta. A
crtica desempenha, por dentro, a mesma intermitncia da linguagem [...].
A crtica conduz s pastagens do discurso a fora do ator que, como o boi,
muito simples e ignora a sua beleza eficaz. A crtica deve sair da cidade.
O Corifeu, ou [...] o crtico, deveria ter a coragem de seguir outra vez os
caminhos das cabras e esvaziar o seu prprio projeto; afastar-se da heresia
didtica que a cidade lhe impe e parar de fazer discursos benevolentes e
prolixos. (CASTELLUCCI R., 2003, p. 187)
Perdoem-me a longa citao. Mas era preciso enunci-la por completo para
deixar claro que meu compromisso, aqui, exclusivamente com a experincia a que
me submeto, e com o acontecimento ao qual sou submetido. Aceitando o desafio de
Romeo, descarto a academia e a cidade, desprezo a moderao, me imunizo contra a
seduo da linguagem e as belas palavras. Por isso, venho como o co que aterrisa
por aqui, no como o papagaio que olha um pouco para o pblico, um pouco para o
palco. Um co sem pedigree, annimo, como si acontecer com os ces brasileiros.
Esse co olha para o palco... e o que v? Ao fundo uma imagem religiosa,
frente, uma cena hiper-clean de teatro, com atores. A imagem to forte, to avassaladoramente atraente, que o olhar est sempre se voltando ao fundo, comprometendo-se com ela, mais precisamente olhando nos olhos dela. O instinto do co fareja que
a imagem est l como um osso, como uma isca, que atia o apetite, que chama, que
desperta a vontade de olhar, de olhar mais. Antes mesmo de o espetculo comear,
do acontecimento acontecer, o co j caiu no lao, na armadilha do olhar. Com sua
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3 A obra Salvator Mundi, do pintor italiano renascentista Antonello da Messina (1430-1479) surge reproduzida e
ampliada no fundo do palco em Sobre o Conceito de Rosto no Filho de Deus.
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Castellucci descobriu por acaso a imagem do Salvador. Mas no o colocou ingenuamente como fundo da cena. Essa obra-prima do Quattrocento italiano a quintessncia do retrato. Lionello Venturi (1950) aponta que Antonello da Messina foi o
primeiro artista a explorar completamente a combinao das formas geomtricas dos
renascentistas toscanos com a luz e as nuances de cor que eram a especialidade dos
pintores flamengos. Mais ainda: segundo o historiador da arte, essa fuso de estilos
tirava partido, por um lado, do que fora descoberto pelos flamengos para conferir
expresso uma certa intimidade; e, por outro, sublinhava a forma cilndrica, o arredondado dos corpos, rostos e rvores para torn-los mais realistas. Ler o que Venturi
escreve sobre seus retratos esclarecedor:
At hoje parece que vemos em cada um deles o ressuscitar da personalidade
real, em carne e sangue. No entanto, no podemos deixar de observar como
a forma dos olhos, por exemplo, abstrata e geomtrica em sua concepo.
E, paradoxalmente, precisamente essa forma que reconhecemos como
essencialmente verdadeira; quase poderamos dizer mais verdadeira do
que a realidade.(VENTURI, 1950, p. 164)
Castellucci afirma ter visto, nos olhos do Salvator Mundi, uma dvida que se
inscreve entre dois enunciados bblicos. No primeiro, se afirma: O Senhor meu
pastor, nada me faltar. No segundo, Cristo pergunta: Deus meu, Deus meu, por que
me desamparaste? (Mt, 27:46) A dvida abala a f, cava a angstia entre o Filho
e o Pai, pe em questo a relao entre o humano e o divino no corao de Jesus,
humanizando-o completamente. Expressa no olhar, ela transforma, no entender de
Castellucci, o retrato do filho de Deus no retrato do homem, de um homem, ou mesmo
do prprio espectador. Ecce Homo.
A partir do olhar, d-se a humanizao do rosto de um Cristo que nos toca, porque
deseja compartilhar conosco a sua dvida humana, demasiado humana. Pelo olhar,
Jesus nos interroga, assim como interpela, na cena, todos os que, como ele, sofrem
a perda, o abandono do divino. Resulta que todos os olhares sucumbem ao pathos,
paixo, doravante comungada pelas vtimas, que ora protagonizam ora assistem
agonia mtua, tal uma infeco galopante, ou melhor, uma diarreia, que vai tomando
conta de tudo.
O problema que esse rosto no surgiu assim, sem mais nem menos, da dilacerante dvida humana. Porque o pintor siciliano do Quattrocento bebeu na matriz
medieval, e no renascentista, se inspirou no cnone bizantino, para figur-lo. Por trs
do olhar meigo, por trs do rosto manso desse Ecce Homo brilham os olhos chame-
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jantes do Pantocrator. este rosto que se impe na histria da pintura como a imagem
que olha, em vez de ser olhada. ele quem inverte a perspectiva ptica, transformando o espao do espectador num campo esquadrinhado por seu olhar soberano.
Basta ver como Jean Paris descreve o rosto do Pantocrator, esse arqutipo do retrato,
em seu livro Lespace et le regard:
Destacando-se de uma vasta aurola emoldurada por um crculo negro
ou prpura, uma cabea enorme, cuja cabeleira se divide em cachos ou
cai sobre os ombros, fixa os fiis de frente. Ou do alto. Do znite. Sob o
velo, o crnio uma esfera csmica, mas os bigodes e a barba so to
luxuriantes que quase escondem a boca, emaciam o rosto, acentuam as
mas, acusam o aspecto feroz do autocrata com quem seus duplos, Stlin
inclusive, vo fazer questo de se parecer. S se vem os olhos: negros,
febris, dardejando o fogo de umoutro mundo. (PARIS, 1965, p. 148)
De que fundo emerge esse rosto? Atrs: o espao vazio ou pleno de ser, onde
nosso olhar se imiscui, viaja, sem se deparar com acidente algum, exceto essa irisao
infinita. Trata-se de um espao abstrato, inteiramente diferente do nosso, que sugere
o espraiamento como profundidade, e cujo nico atributo - a cor - mas mesmo uma
cor? - define a divindade. Ora, esse espao insondvel, inumano, precisamente isso
o que significam os olhos de Deus sobre ns: atravs deles, penetramos em Seu
elemento prprio, atravs deles a substncia celeste corre em ns, brotando de suas
distncias. preciso que o olho se torne semelhante ao objeto visto para dedicar-se
a contempl-lo. Jamais um olho veria o sol sem tornar-se semelhante ao sol, nem
uma alma veria a beleza sem ser bela. O que Plotino diz da contemplao vale para
a ptica do Pantocrator. A olhar absoluto, espao absoluto. Aqui no h distncia nem
distino entre a essncia e a aparncia, pois nos encontramos no mais puro do ser:
o olhar parte reto do cu ilimitado como o sol atravs do qual o invisvel nos considera
e se oferece o mundo como espetculo (PARIS, 1965, p. 14). A superfcie dourada
ou azul dos bizantinos surge ento como esse fundo informe e vazio do Gnesis:
primeiro a luz com seu fogo e seu ter, depois o cu com sua imensido. sobre esse
fundo que vai se inscrever o rosto ideal, como o duplo do Homem. a partir dele que
o Pantocrator vai olhar de frente, perpendicularmente imagem. O raio parte do ouro
para se fixar em ns - ns somos olhados.
Ora, como bem aponta Paris, esse rosto um iconoclasma que nasce da inquietao extrema a respeito dos poderes da imagem. Pois pintar o Cristo, decreta o Papa
Constantino V, circunscrever o incircunscriptvel. Assim, o rosto do Cristo s pode
aparecer como uma heresia... , portanto, interessantssimo observar como a arte
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bizantina, a primeira a se pretender metafsica, vai resolver uma contradio insolvel: Como figurar o que, por essncia, desafia toda figurao, uma vez que o divino
necessariamente incorporal?
Jean Paris aponta que, para esse conflito, a arte bizantina elabora uma soluo
espantosa, quando em 843 a Igreja admite que as imagens contenham uma centelha
de energia divina e que contempl-las benfico para a alma. Em seu entender, um
novo Deus vai nascer, uma nova pintura (PARIS, 1965, p. 147). a imagem colossal
do Pantocrator na qual se afirmam duas propriedades que, para Deus, so uma s: no
espao, a Simetria; no ser, o Olhar.
A inveno do rosto exige, assim, que o espao e o olhar se constituam num s e
nico movimento. Tenhamos um pouco de pacincia e acompanhemos um pouco mais
o argumento de Jean Paris:
A perspectiva [...] no o forte dos bizantinos. que ela caracteriza nosso
mundo terrestre, nossa viso binocular, e seria um sacrilgio imp-la extenso
metafsica. Deus no tem nada em comum com a nossa ptica: sua silhueta
plana sobre fundo dourado manifesta isso agressivamente, e todos os seres
que participam de seu cu tambm so isentos de profundidade. Mas [...] a
consequncia, ou melhor, a condio de tal esttica, que a profundidade,
excluda da parede, se encontra na frente da imagem, significada pelo Olhar
divino. Por isso, esse Olhar, bem como a simetria que ele supe, constitui a
verdadeira perspectiva do quadro: perspectiva invertida, que contamina os
prprios objetos. em nossa direo que o espao se projeta, pois para
ns que Deus projeta sua viso. Portanto, evidente que, ao modificar um
ou outro desses fatores, o artista tambm destri o plano pictural de duas
dimenses. Deixando de obedecer aos cnones sagrados, [...] a tarefa do
pintor ser doravante a de fornecer uma outra base de veracidade. Como?
Reportando ao prprio quadro a profundidade que antes emanava dele, isto
fazendo recuar o dourado do fundo at inserir nele, fora, paisagens.
medida que o Olhar divino se distancia de ns, deixa de nos impor sua
extenso, nosso prprio olhar se afunda nela, se substitui a ela, cava seus
horizontes, e a dispe suas leis. Assim que Deus no se ope mais anexao
de seu espao, mas o abandona desviando os olhos, a terceira dimenso
se inverte, volta lentamente para o dourado mural, aprofunda a superfcie
sagrada, fazendo de ns no mais objetos olhados, mas testemunhas que
olham. A profanao dos temas se acompanha portanto, necessariamente,
de sua inverso espacial: a perspectiva ser o revolver da extenso celeste
contra ela mesma, a vitria do olhar humano sobre o Olhar transcendente.
(PARIS, 1965, p. 175)
A incurso nas pesquisas de Jean Paris se fez necessria porque encontramos ali
a discusso relativa ao surgimento do rosto e de seu conceito na pintura. Isso importantssimo para o entendimento do dispositivo cnico de Castellucci, porque joga-se a
uma luz poderosa sobre a funo que a iconoclastia cumpre neste espetculo.
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A reflexo de Romeo, de 1997, importante porque amarra um feixe de questes que parecem desaguar dramaticamente em Sobre o conceito de rosto no filho
de Deus. Por isso, cabe prestar ateno em como a iconoclastia funciona nesta pea,
para procurar entender o processo.
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Ora, nesta pea, grande o sofrimento dos atores, porque a exposio total eles tm de suportar o olhar dos espectadores e de Jesus, tm de exibir a condio
degradante de seus personagens. E como estes so pura exterioridade, tudo se passa
em seus corpos. Cria-se, ento, o mximo de tenso: assumindo biologicamente
a condio de seus personagens, os atores tm de se alienar inteiramente, de se
tornarem eles mesmos outros, numa espcie de releitura catlica do teatro da crueldade de Artaud. A transfigurao se d pela via do atroz, in vivo, ao vivo! Mas, ateno:
no fundo, no fundo esse sofrimento gozoso, pois da abjeo do aniquilamento de si
emerge o sublime, o secreto xtase. De novo, estamos no terreno do pathos, da paixo
do Deus que se aliena no humano e que, pela dor, encarna e oferece em espetculo
a perda e a salvao de cada um e do mundo.
O realismo do sofrimento atinge as raias do absurdo. Para poder suportar tamanha
carga em cada performance, o ator precisa de um treino fsico e psquico rigoroso, que
se efetiva atravs do que Castellucci chama de exerccios dlficos, isto prticas
individuais de solido que conduzem o indivduo a situaes extremas. No h tempo
para evocar aqui as orientaes que lhe so dadas, pois so muito variadas e formuladas como mximas. H uma, porm, que merece meno, por dar uma ideia precisa
do objetivo a ser alcanado e por se aplicar diretamente pea que assistimos. Ela
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diz: Ator, suje o palco. Como o cavalo, o estbulo. Como o porco, o chiqueiro. Como a
criana, seu leito (CASTELLUCCI R., 2003, p. 145).
Haveria, ento, um devir-animal e um devir-criana no ator do teatro iconoclasta? Aparentemente, sim. Mas surge uma dvida: Como pode haver esse devir, se
o passado e o futuro se encontram no rosto do Salvador, no retorno do humano nesse
rosto e para esse rosto?
Pai e filho expiam sua culpa diante do Ecce Homo, que veio visit-los, conferir
sentido s suas penas, sua impotncia, e consol-los. Na sequncia, garotos vo
arremessar granadas de brinquedo no rosto humano-divino. Quem so eles?
Foi dito anteriormente que o quadro de Antonello da Messina foi o detonador
da criao do espetculo. Mas, na verdade, h uma segunda imagem que a ela se
contrape na gnese da pea. Trata-se de uma fotografia de Diane Arbus, na qual um
garoto magrelinho, flagrado num parque, manifesta pateticamente a sua ira, tanto no
rosto retorcido quanto nas mos - uma delas porta uma granada de brinquedo, a outra,
com seus dedos retorcidos, tenta agarrar o vazio.
Castellucci viu nessa imagem um cone da fome espiritual de nossa poca, a
expresso da impotncia contempornea. Apropriando-se dela, Romeo vai multiplicar o
menino em cena: agora vrios deles se pem a atirar suas falsas granadas de alumnio
contra o rosto de Cristo. Mas seus gestos so ambguos: mais do que uma verdadeira
agresso, eles se constituem como uma provocao, uma espcie de grito, um chamamento; vale dizer: uma forma de prece. Pois miram esse rosto para despert-lo e redimi-lo.
Assim como o rosto do Salvador fulgurou suavemente, respondendo splica do
filho, que o invoca, ele vai agora resplandecer para os garotos. Mas eis que j tem incio a
destruio da imagem. Por dentro, ao som da excelente composio de Scott Gibbons, a
imagem comea a ser forada, manchada, dilacerada, aniquilada. Assim, iconoclastia
que presidiu emergncia do rosto do Pantocrator, no incio da pea, corresponde agora
uma outra iconoclastia, que visa abater o cone. Desaparecendo, a imagem se faz Verbo:
You are my Shepherd. Mas, tambm: You are not my Shepherd4.
O Senhor meu Pastor. O Senhor no o meu Pastor. No registro bblico, vale
o primeiro enunciado, Nada me faltar. Mas em caso de negativa, me falta tudo, a
comear de um rosto no qual me mirar, para saber quem sou. Ou seja: o sistema-Cris-
tianismo no comporta sada, porque no se pode existir fora dele. Nesse sentido, o
rosto do filho de Deus a produo perfeita de um incontornvel aparelho de captura.
Cabe, ento, evocar aqui, o captulo do livro Mil Plats (1980), de Gilles Deleuze
e Flix Guattari, intitulado Ano zero - Rostidade. Pois ali encontramos um pensamento
muito forte e consistente sobre o conceito de rosto, e particularmente o conceito de
rosto do filho de Deus. Com efeito, o filsofo e o psicanalista comeam considerando
como um rosto curioso: um sistema muro branco-buraco negro: grande rosto com
bochechas brancas, rosto de giz furado com olhos como buraco negro. Cabea de
palhao, clown branco, pierr lunar, anjo da morte, santo sudrio (DELEUZE et GUATTARI, 1980, p. 205). Em suma: Um sistema semitico e, como tal, produtor de significao e de subjetividade. Assim, Deleuze e Guattari escrevem:
No exatamente o rosto que constitui o muro do significante, nem o buraco
da subjetividade. O rosto, pelo menos o rosto concreto, comearia a se
esboar vagamente sobre o muro branco. Comearia a aparecer vagamente
no buraco negro. [...] certo que o significante no constri sozinho o muro
que lhe necessrio; certo que a subjetividade no escava sozinha seu
buraco. Mas tampouco esto completamente prontos os rostos concretos
que poderamos nos atribuir. Os rostos concretos nascem de uma mquina
abstrata de rostidade, que ir produzi-los ao mesmo tempo que der ao
significante seu muro branco, subjetividade seu buraco negro. O sistema
buraco negro-muro branco no seria ento j um rosto, seria a mquina
abstrata que o produz, segundo as combinaes deformveis de suas
engrenagens. (DELEUZE et GUATTARI, 1980, p. 206-207)
Em que circunstncias essa mquina desencadeada, produzindo rosto e rostizao, se o rosto no animal, tampouco humano em geral? Para Deleuze e Guattari
(1980), h algo de inumano no rosto. E o que h de inumano so os agenciamentos de
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poder que precisam produzir o rosto num determinado momento, tendo em vista que
ele no um universal, no existiu desde sempre, sequer o rosto do homem branco.
Na anlise deles, o rosto o prprio Homem branco, com suas grandes bochechas e
o buraco negro dos olhos. O rosto o Cristo (p. 216).
Ano zero - Rostidade: Momento em que a mquina abstrata deslancha o processo
de produo que ir permitir e garantir a onipotncia do significante, bem como a autonomia do sujeito:
Vocs sero alfinetados no muro branco, cravados no buraco negro.
Essa mquina denominada mquina de rostidade porque produo
social de rosto, porque opera uma rostizao de todo o corpo, de suas
imediaes e de seus objetos, uma paisagificao de todos os mundos
e meios. A desterritorializao do corpo implica uma reterritorializao no
rosto; a descodificao do corpo implica uma sobrecodificao pelo rosto;
o desmoronamento das coordenadas corporais ou dos meios implica uma
constituio de paisagem. (DELEUZE et GUATTARI, 1980, pp. 221-222)
Devemos reconhecer que tais comentrios de Deleuze e Guattari so pertinentes. Conhecendo de perto os Yanomami do Brasil, posso assegurar que a diferena
cabea/rosto procede plenamente, por experincia prpria. Alis, a primeira coisa que
pude perceber, com surpresa, quando estive pela primeira vez com eles, foi a impos68
sibilidade de encontrar um rosto nos seres que estavam minha frente, e a sensao,
estranhssima, de comear a desconhecer minhas prprias expresses faciais porque,
de repente, elas no faziam mais sentido para meu interlocutor... e, por contgio, nem
para mim!
Essa questo forte, palpvel, e j foi tratada a fundo quando Stella Senra (2009)
analisou o que acontecia nos retratos de Yanomami realizados por Claudia Andujar,
e publicados no livro Marcados. Com efeito, ali se pode ver com clareza que, quanto
mais aculturados os ndios, mais suas cabeas vo se rostificando, mais seu modo de
existncia vai se enquadrando nos parmetros do retrato.
Ora, esse exemplo permite perceber que a inveno do rosto se d no ano zero
do Cristo, mas pode tambm se inaugurar ainda hoje, l onde povos ditos primitivos,
selvagens, so cristianizados e incorporados ao desenvolvimento histrico do Homem
branco. possvel, portanto, observar no contemporneo a mquina abstrata do
Cristianismo produzindo rostos l onde existiam cabeas. Por outro lado, preciso
concordar com as observaes de Deleuze e Guattari quanto utilizao que a pintura
ocidental fez dos recursos do Cristo-rosto. Dizem eles:
De uma maneira mais alegre, a pintura utilizou-se de todos os recursos do
Cristo-rosto. Serviu-se da mquina abstrata de rostidade, muro brancoburaco negro, em todos os sentidos para produzir com o rosto do Cristo
todas as unidades de rosto, mas tambm todas as variaes de desvio.
H um jbilo da pintura a esse respeito, da Idade Mdia ao Renascimento,
como uma liberdade desenfreada. No apenas o Cristo preside rostizao
de todo o corpo (seu prprio corpo), paisagificao de todos os meios
(seus prprios meios), mas compe todos os rostos elementares, e dispe
de todos os desvios: Cristo-atleta de mercado, Cristo-maneirista pederasta,
Cristo-negro, ou pelo menos Virgem negra margem do muro. As maiores
loucuras aparecem na tela, atravs do cdigo catlico. Um nico exemplo
dentre tantos outros: sobre o fundo branco de paisagem, e buraco azulescuro do cu, o Cristo crucificado, tornado mquina pipa, envia, por meio
de raios, estigmas a So Francisco; os estigmas operam a rostificao do
corpo do santo, imagem do de Cristo; mas igualmente os raios que trazem
os estigmas ao santo so os fios pelos quais este movimenta a pipa divina.
sob o signo da cruz que se soube triturar o rosto em todos os sentidos, bem
como os processos de rostificao. (DELEUZE et GUATTARI, 1980, p. 219)
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