Poesia e Modernidade em Álvaro de Campos
Poesia e Modernidade em Álvaro de Campos
Poesia e Modernidade em Álvaro de Campos
Introduo
A Modernidade foi um momento de profundas transformaes na sociedade. Em As
Consequncias da Modernidade, Anthony Giddens (1991, p.11), diz que o termo refere-se a
estilo, costume de vida ou organizao social que emergiram na Europa a partir do sculo
XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influncia. Alm
disso, segundo o autor, o momento que marca o desencaixe das estruturas sociopolticoculturais, a quebra dos antigos paradigmas, o que desperta uma reflexividade constante na
prpria forma de realizao, ou seja, a produo de conhecimento sistemtico sobre a vida
social torna-se integrante da reproduo do sistema, deslocando a vida social da fixidez da
tradio (1991, p.58-9).
1
Texto publicado no e-book Verso beta - literatura: crtica, teoria e traduo, em 2013, e disponvel em
<http://issuu.com/pipacomunica/docs/versaobeta?mode=window>.
2
Doutor em Letras/Teoria da Literatura pela Programa de Ps-Graduao em Letras da UFPE. Professor da Universidade Federal Rural de
Pernambuco Unidade Acadmica de Serra Talhada (UFRPE/UAST), na rea de Lngua Inglesa e Literaturas de Lngua Inglesa.
desvencilhamento
literrios;
dos
antigos
moldes
estranhamento
diante
das
Utilizamos os termos poeta e terico de forma aglutinada para designar um tipo de intelectual que surgiu no fim do sculo XIX,
aproximadamente, e que une a captabilidade lrica (ou antilrica) da vida moderna e o rigor reflexivo dos grandes pensadores da poesia
clssica e, em especial, da moderna.
encontrar-se no continente europeu, Portugal foi um dos pases que entrou mais tardiamente
no modernismo de maneira geral. Seu incio simblico foi 1909, ano do aparecimento do
Futurismo, que chegaria, por conseguinte a Portugal e, por intermdio desse, ao Brasil. A
partir de ento, os movimentos de vanguarda vo fascinando uma quantidade expressiva dos
jovens escritores portugueses que, influenciados pelas novas tendncias artsticas, iniciam um
novo movimento de ruptura com as tendncias passadistas. Alm disso, se faz mister lembrar,
pairava um esprito de renovao literria em Portugal semelhante ao que ocorrera algumas
dcadas antes, em 1870, com a Questo Coimbr, onde jovens literatos provocam uma
profunda revoluo cultural ao propor repensar no s a literatura como toda a cultura
portuguesa desde suas origens, bem como a transformao na ideologia poltica e na
estrutura social portuguesas (MACHADO, 1986, p.14). Dessa maneira, a partir das primeiras
dcadas do sculo XX, a nova gerao revolucionria portuguesa foi um abalo ssmico de
uma tal intensidade e fulgor (LISBOA, 1984, p.15) provocado por uma juventude que, em
reao ao tdio cultural, cultivou os germens de uma nova razo literria com seu laboratrio
de fazeres estticos.
O incio da aventura modernista em Portugal se d em torno da revista Orpheu, lanada
em maro de 1915. Fernando Pessoa, Mrio de S-Carneiro e Almada-Negreiros, dentre
outras personagens do modernismo portugus, j haviam publicado alguns textos-manifestos
propagando o iderio de uma completa revoluo artstico-social. Apesar do curto perodo de
vida, a revista foi o lugar de convergncia da jovem intelectualidade portuguesa das primeiras
dcadas do sculo XX. Impulsionada pelo futurismo de Marinetti e pelos demais movimentos
de vanguarda, a gerao de Orpheu, como ficou conhecida, apresenta as novas tendncias
estticas da nova poesia portuguesa. Os dois primeiros nmeros da revista, de pretensa
periodicidade trimestral, contam com a contribuio de escritores luso-brasileiros, alm dos
supracitados. No entanto, mesmo contando com vrios contribuintes e incentivadores, o grupo
no consegue alcanar a terceira publicao, ficando esta no prelo por falta de financiamento.
Mrio de S-Carneiro, mantenedor e um dos principais participantes da revista, comete
suicdio, em 1916, agravando a situao do grupo que acaba por se desagregar com a morte de
mais dois de seus componentes, em 1918, e o afastamento de vrios outros.
A partir de ento, a histria do modernismo portugus acaba por confundir-se com a
histria do prprio Fernando Pessoa, grande nome de sua gerao, mas que escolheu viver no
anonimato. Isso porque o poeta decidiu, ao trabalhar como redator de cartas comerciais,
reduzindo-se ao trnsito da penumbra entre a irrealidade de sua vida cotidiana e a realidade
de suas fices (PAZ, 2006, p.201), viver intensamente sua produo literria de forma que
nenhum evento exterior interrompesse o grande projeto literrio ao qual ele estava
predestinado. Atravs das palavras de Octavio Paz (2006, p.201), podemos pensar da seguinte
forma: Os poetas no tm biografia. Sua obra sua biografia.
A intensa produo potica era permeada pela criao heteronmica do poeta, j desde a
poca da revista Orpheu s lembrarmos que nela o heternimo lvaro de Campos faz
diversas publicaes. A criao de mscaras ficcionais, outros que o habitam, d a Pessoa a
possibilidade de multiplicar-se vrio, de ser e sentir tudo de todas as formas. A origem e
chave da compreenso heteronmica est en la fragmentacin del yo y en la incapacidad de la
consciencia para reintegrarlo. Los heternimos no seran otra cosa que el conjunto de
representaciones [] de esa personalidad escindida y neurtica del poeta y que como tal se
expresa parcelarmente4 (MARTN LAGO, 2000, p.62). Assim, vemos a criao de
personagens como um mosaico de seu eu buscando a impossvel reconstruo no(s) diverso(s)
do(s) outro(s).
O Homem Moderno em lvaro de Campos
Fernando Antnio Nogueira Pessoa, ou apenas Fernando Pessoa, nasceu num pequeno
quarto no Largo de So Carlos, em Lisboa, s trs e vinte da tarde de treze de junho de 1888,
dia de Santo Antnio, padroeiro da cidade. Filho de uma famlia da pequena aristocracia
portuguesa, desde cedo aprende a dura lio da partida: em 1893 perde o pai, Joaquim de
Seabra Pessoa, vtima da tuberculose e, menos de um ano depois, o irmo mais novo. Depois
uma temporada vivendo em Durban, frica do Sul a me de Pessoa, dona Maria Magdalena
Pinheiro Nogueira Pessoa, v-se obrigada a casar, por procurao, com Joo Miguel Rosa,
comandante e cnsul de Portugal em Durban , Pessoa volta Portugal, onde passa a ter uma
vida modesta e comea a trabalhar como correspondente estrangeiro em casas comerciais.
Esta atividade permitiu-lhe no s garantir o sustento e a independncia econmica dos
parentes, como tambm suficiente para no o atrapalhar na sua intensa produo intelectual
e literria.
Apesar de sua produo crtica ter comeo em A guia (1910), com o grupo de jovens
artistas que Fernando Pessoa vai consolidar uma gerao digna das grandes naes. O
grupo formado em torna da revista luso-brasileira Orpheu (1915), dirigida em seu primeiro
nmero pelo brasileiro Roland de Carvalho e o cabo-verdiano Lus de Montalvor, pseudnimo
de Lus da Silva Ramos, cujos nomes figuram apenas no frontispcio do primeiro nmero da
4
na fragmentao do eu e na incapacidade da conscincia para reintegr-lo. Os heternimos no seriam outra coisa que o conjunto de
representaes [...] dessa personalidade cindida e neurtica do poeta e que, como tal, se expressa parcelarmente.
Sobre as convergncias e divergncias entre as literaturas de Portugal e Brasil ver o captulo As revistas luso-brasileiras em Modernismo
brasileiro e modernismo portugus, de Arnaldo Saraiva (cf. Referncias).
O termo procura designar o violento processo de insero do maquinrio industrial nas grandes capitais do incio do sculo XX, isto , da
prpria modernizao.
Sobre as relaes entre Existencialismo e Literatura ver o captulo Existencialismo, do livro Ultrasmo, existencialismo y objetivismo en
literatura, de Guillermo de Torre (cf. Referncias).
Sobre as fases do lvaro de Campos, Tereza Rita Lopes, na edio organizada e comentada por ela (PESSOA, Fernando. Poesia lvaro
de Campos. Edio Tereza Rita Lopes. So Paulo: Companhia das Letras, 2002), considera apenas duas fases, de acordo com duas pocas na
vida do heternimo: antes de conhecer o mestre Caeiro e depois de conhec-lo. Na primeira, intitulada pela crtica O Poeta Decadente
(1913-1914), Campos ainda estava impregnado do simbolismo e dacadentismo francs e o verso de seus poemas ainda obedecia a
displicentes metro e rima. A segunda fase est, na verdade, dividida em trs: a das grandes odes, dO Engenheiro Sensacionista (19141922), inflamado pelo amplo flego do futurismo e pelos versos salmdicos whitmanianos herdados de Caeiro; a seguinte, O Engenheiro
Metafsico (1923-1930), perde o flego e o mpeto com a morte de Mrio de S Carneiro, em 1916, e inicia uma viagem nusea,
angustiante irrequietao do estado de viglia e acaba por perder o corao no caminho (2002, p.37); a ltima, O Engenheiro Aposentado
(1931-1935), a fase do Campos envelhecendo, de mpeto cada vez mais curto, mais desencantado com o mundo, com a vida. Essa ltima
fase do poeta ser marcada pela comunho de seu corao com tudo aquilo que di, com a vasta dor do mundo (2002: 37). Para o nosso
trabalho, escolhemos as duas primeiras fases do segundo Campos, isto , aquela compreendida entre os anos de 1914 a 1930 O
Engenheiro Sensacionista e o Metafsico por entendermos que nela esto configurados os diversos aspectos da modernidade e do homem
moderno.
estilo da mais pura poesia whitmaniana, no s em sua extenso e energia, como tambm em
versos livres. o melhor exemplo na poesia de lvaro de Campos da energia bruta da
velocidade vertiginal e agressiva do progresso e da civilizao industrial com seus rudos, sua
visceral e mecnica anatomia.
dolorosa luz das grandes lmpadas elctricas da fbrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.
rodas, engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fria!
Em fria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lbios secos, grandes rudos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabea de vos querer cantar com um excesso
De expresso de todas as minhas sensaes,
Com um excesso contemporneo de vs, mquinas!
Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical
Grandes trpicos humanos de ferro e fogo e fora
Canto, e canto o presente, e tambm o passado e o futuro,
Porque o presente todo o passado e todo o futuro
E h Plato e Virglio dentro das mquinas e das luzes elctricas
S porque houve outrora e foram humanos Virglio e Plato,
E pedaos do Alexandre Magno do sculo talvez cinquenta,
tomos que ho-de ir ter febre para o crebro do squilo do sculo cem,
Andam por estas correias de transmisso e por estes mbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um acesso de carcias ao corpo numa s carcia alma.
Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma mquina!
Poder ir na vida triunfante como um automvel ltimo-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes de leos e calores e carves
Desta flora estupenda, negra, artificial e insacivel! (PESSOA, 2002, p.83-4)
Em sua viagem atravs das ruas9, o eu-poemtico continua a saudar a chegada do novo,
do diferente em relao ao passado, enfim, da vida moderna que impregna a cidade. O que
vemos, a partir disso, uma devoo modernidade sfrega, nova Revelao metlica e
dinmica de Deus, e aos seus elementos de concreto e cimento armado, expresso viva do
glorioso progresso, como podemos ver nos versos a seguir:
Ol tudo com que hoje se constri, com que hoje se diferente de ontem!
Eh, cimento armado, beton de cimento, novos processos!
Progressos dos armamentos gloriosamente mortferos!
Couraas, canhes, metralhadoras, submarinos, aeroplanos!
Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.
Amo-vos carnivoramente.
Pervertidamente e enroscando a minha vista
Em vs, coisas grandes, banais, teis, inteis,
coisas todas modernas,
minhas contemporneas, forma actual e prxima
Do sistema imediato do Universo!
Nova Revelao metlica e dinmica de Deus!
[]
Eh-l o interesse por tudo na vida,
Porque tudo a vida, desde os brilhantes nas montras
At noite ponte misteriosa entre os astros
E o mar antigo e solene, lavando as costas
E sendo misericordiosamente o mesmo
Que era quando Plato era realmente Plato
Na sua presena real e na sua carne com a alma dentro,
E falava com Aristteles, que havia de no ser discpulo dele.
Eu podia morrer triturado por um motor
Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuda.
9
O processo de industrializao dos grandes centros urbanos evidenciado no poema de forma que a cidade descrita por lvaro de Campos
se torna um lugar comum a todos os lugares, beirando o universal.
[] (2002, p.86-7)
Em contraste com a paisagem metlica da cidade, essa gente ordinria e suja causa no
eu-lrico uma obsessiva e movimentada vontade de senti-la toda e de todas as maneiras,
vontade que se angustia latejada nas veias da voz enunciativa do poema quando do ltimo
verso lamenta no ser eu toda gente e toda parte. Ao apresentar o contraste entrevisto nas
minorias marginalizadas das grandes cidades, diz DAlge (1989, p.82), o eu-lrico ope a
memria evocativa das lembranas do passado e da realidade do presente glorificao da
sociedade moderna e da ruptura com todas as cadeias que prendem o poeta tradio.
Ode Martima, com 862 versos, o mais longo poema narrativo de lvaro de Campos
que discorre a partir da observao de um pequeno paquete, o qual desperta na conscincia
lcida do poeta a tenso delirante da intil tentativa de fuga da angstia metafsica e da vida
sentada, esttica, regrada e revista (BERARDINELLI, 2004, p.72). O motivo desencadeador
da angstia no eu-poemtico, o paquete que chega, faz a conscincia girar sobre o desejo de
voltar ao passado, o incio do delrio, a evocao pirata, a nsia de partir, a raiva da vida
terrestre, o cio da vida martima; em contraposio, a tentativa lcida de negar tudo isso e, por
fim, o retorno situao inicial, com o paquete que parte. (2004, p.72)
Sozinho, no cais deserto, a esta manh de Vero,
Olho pro lado da barra, olho pro Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, ntido, clssico sua maneira.
[] a minhalma est com o que vejo menos.
Com o paquete que entra,
Porque ele est com a Distncia, com a Manh,
Com o sentido martimo desta Hora,
Com a doura dolorosa que sobe em mim como uma nusea,
Como um comear a enjoar, mas no esprito.
Olho de longe o paquete, com uma grande independncia de alma,
E dentro de mim um volante comea a girar, lentamente. (PESSOA, 2002, p.106)
Essa evoluo viva do volante dentro do narrador desencadeia na voz lcida do poeta a
busca voluntria pelo delrio dos velhos brinquedos de sonho da vida martima. Este
movimento, em Campos, ganha ares de rpida coisa colorida e humana que passa e fica
(2002, p.103) integrando ao discurso potico o real e o onrico.
Toma-me pouco a pouco o delrio das coisas martimas,
Penetram-me fisicamente o cais e a sua atmosfera,
O marulho do Tejo galga-me por cima dos sentidos,
E comeo a sonhar, comeo a envolver-me do sonho das guas,
Para Fernando Pessoa, o Sensacionismo uma formulao do discurso potico onde todo objeto uma sensao humana que, por sua vez,
quando traduzido em arte, converte-se na sensao de um determinado objeto, ou seja, a sensao de uma sensao. Eis os princpios bsicos
da teoria sensacionista.
11
Nessa grande aventura que se torna a Ode Martima, vemos a tentativa do homem,
peregrino dos mares, em reencontrar o porto mtico que o seu destino e verdade, o Cais
absoluto da cidade arquetpica fora do tempo e do espao (DALGE, 1989, p.84), numa
tentativa plural de conciliar o desejo de simultaneidade entre o presente e o passado, entre o
sonho e a realidade. Este poema como se a histria trgico-martima de Portugal tivesse
encontrado um palco na verso pessoal do poeta moderno, uma verso apaixonada e
deliberadamente trivializada (SANTOS, 2007, p.226). Ao final do poema, vemos que,
subitamente, num estalo onomatopaico de estremecimento, o movimento dramtico do eulrico retoma seu lugar original, isto , sua conscincia lcida no cais observando o paquete, e
o volante para. No entanto, o silncio interior do eu-lrico no permanece o mesmo. Num
grito interior de desespero e raiva melanclica, volta-se para si numa sntese de sua prpria
existncia.
A Passagem das horas, poema dedicado a Jos de Almada-Negreiros, apresenta a
mesma estrutura das odes sensacionistas de Campos, com enumeraes caticas e insistentes
reiteraes vocabulares que buscam dar a expresso maqunica do canto da civilizao
moderna, bem ao gosto dos seus poemas futuristas. Nele, o prprio eu do poema se considera
o poeta sensacionalista, enviado do Acaso / s leis irrepreensveis da Vida (PESSOA, 2002,
p.175).
Aqui podemos ver a euforia da vida moderna transbordando em seus versos. A exaltao
da velocidade, o cosmopolitismo poliglota e onomatopaico de cavalgada explosiva,
explodida como uma bomba que rebenta (2002, p.183) so representados a partir da sensao
multiplicativa do eu-lrico, uma vontade fsica de comer o universo12:
Multipliquei-me para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei, no fiz seno extravasar-me,
Despi-me e entreguei-me,
E h em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente. (2002, p.180)
A fora da imagem veloz do caos moderno saudada e exaltada pelos olhos do eu-lrico
e se ope ao esttico que fica nos olhos que param. O desejo de comunho com a mecnica
da vida maquinal se revela na relao que ultrapassa o prprio eu para se estabelecer, na
12
Essa imagem utilizada pelo prprio heternimo num poema sem ttulo que se inicia com os referidos versos (PESSOA, 2002, p.230).
Dessa maneira, a alma aparece como um elemento que se limita por estar presa matria fsica do corpo, o que explica a aporia de seus
desejos.
raiva de todos os mpetos, no crculo-mim (2002, p.185). Esse elo incansavelmente busca
uma outra forma de ser mais com o universo, porque tudo no o bastante: E tudo isto, que
tanto, pouco para o que eu quero (2002, p.186).
Essa mesma necessidade podemos ver nos poemas Afinal, a melhor maneira de viajar
sentir:
Quanto mais eu sinto, quanto mais eu sinta como vrias pessoas
Quanto mais personalidades eu tiver,
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,
Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a existncia total do universo. (2002, p.225)
Alm de um esprito faminto pelo sensacionismo que prega, Campos tambm se mostra
descontente com a hipocrisia social. Nesse sentido, o Poema em linha reta sugere, desde o
ttulo, um dizer sem enganos ou direto um dizer em linha reta. Na fora martelar do advrbio
de negao Nunca, o poema ironiza, desde a primeira estrofe, o fingimento da sociedade
burguesa atravs da denncia de que todas as pessoas sempre tomam para si os melhores
papis no grande teatro da vida: Todos os meus conhecidos tm sido campees em tudo
(2002, p.235).
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes no tenho tido pacincia para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridculo, absurdo,
Que tenho enrolado os ps publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando no tenho calado, tenho sido mais ridculo ainda;
Eu, que tenho sido cmico s criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moos de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angstia das pequenas coisas ridculas,
Eu verifico que no tenho par nisto tudo neste mundo. (2002, p.235)
A segunda estrofe do poema, com repetida marcao, o eu do poema encara a difcil arte
de ser sincero perante um mundo de mentiras, enganos e fantasias, em que todos so
prncipes na vida. Nesta estrofe, o eu lrico utiliza, por vrias vezes, palavras que denotam
toda a sua vileza, insignificncia, reduzindo-se ao erro fatal. A utilizao de anforas Eu e
Que tenho traz consigo a ironia do acaso e a insatisfao com o julgamento. Em cada
situao cotidiana, o eu-lrico busca colocar-se a fim de criticar todos aqueles que se julgam
campees em tudo. A metfora de enrolar os ps publicamente na metonmia dos tapetes
das etiquetas caracteriza a falha perante a sociedade e que, por isso, o eu-lrico tem sido
enxotado do convvio social, escorraado e ridicularizado, calado ou no, tornado-se cmico
perante todos, sofrendo a angstia das pequenas coisas ridculas. Tais caractersticas
apresentadas servem para coloc-lo a par de tudo e todos no mundo, um judeu errante
marginal.
A terceira estrofe retoma a ironia inicial de que no h, alm de si mesmo, no mundo
algum que tenha falhado, pois todos so, muito ironicamente, prncipes em tudo o que
fazem. A estrofe seguinte, suplica por ouvir de algum a confisso de que fora falho, covarde,
tal como ele, pelo menos uma nica vez. Porm, o desfecho da estrofe responde ao eu-lrico a
irnica impossibilidade de tal fato acontecer, uma vez que todos os outros so, perante suas
prprias aes, o Ideal, perfeitos. Com muita ironia, faz uma pergunta retrica aos
prncipes, seus irmos, na busca de algum que confesse que uma vez foi vil
incognoscvel pergunta que se despedaa no ar. Farto de semi-deuses, indaga mais uma vez
por algum que, como ele, tambm seja vil e errneo nesta terra.
Na ltima estrofe, busca caracterizar melhor os prncipes que nunca estiveram errados
ou ridculos. Apenas ele, o eu-lrico, que tem sido ridculo sem ter sido trado, no se
considera digno de falar com os superiores por ser vil. A palavra vil, demasiadamente
empregada no texto, vem do latim vilis e diz respeito a tudo aquilo que de baixo preo,
abjeto, insignificante. a forma como o prprio eu-lrico caracteriza-se ao longo de todo o
poema. Por fim, ele retoma o termo vil para potencializ-lo atravs dos adjetivos
mesquinho e infame e, assim, nulificar a sua prpria significncia perante os semideuses do mundo.
O poema Episdios tambm nos confere a ideia do cenrio moderno. No entanto,
diferentemente da febre futurista onde a exaltao do progresso se fazia constante, aqui
sobressai o tdio causado por uma repetida vida contempornea de mscaras e fingimento
social, fruto de uma necessidade de valorao da aparncia, esvaziamento da verdade original
do Ser.
negao do desejo de ser, como podemos ver nos dois primeiros versos: No: no quero ser
nada. / J disse que no quero nada. (2002, p.245)
Assim, dispensando tudo e a todos, resta como nico desejo que se revela no texto a
solido, vontade de ser s:
Queriam-me casado, ftil, quotidiano e tributvel?
Queriam-me o contrrio disto, o contrrio de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham pacincia!
Vo para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Pra que havemos de ir juntos?
No me peguem no brao!
No gosto que me peguem no brao. Quero ser sozinho,
J disse que sou s sozinho! (2002, p.245-6)
Essa solido escolhida pela voz potica se afasta da companhia das pessoas ao seu redor
que buscam traar-lhe as aes cotidianas, o destino, enfim, a vida por completo. No entanto,
repudiando as escolhas alheias, ele traa seu caminho na solido de seu s sozinho enquanto
o Abismo e o Silncio tardam.
A conscincia dessa aporia, a saber, da nsia de tudo, tambm se faz presente em outro
poema mais tardio, de 1926, tambm intitulado Lisbon Revisited, onde nasce uma angstia
sem leme, uma inquietude de quem dorme irrequieto, metade a sonhar (2002, p.271). Aqui a
lucidez existencial do eu-lrico se pe em contraponto com a cidade de Lisboa, agora
revisitada como nos revela a traduo do ttulo em ingls para o portugus, Lisboa
Revisitada, desencontro do Ser de volta a sua cidade. Sobre o poema em destaque,
Linhares Filho (1998, p.58) diz que tendo conscincia de sua disperso e cultivando o Sonho
() o eu-lrico se coloca no limite entre a perda e o tenaz movimento de busca para o
encontro do Ser (), sede do Sonho ou do Potico. Numa anlise sobre os temas
desenvolvidos pelo heternimo, Jos Clcio Baslio Quesado diz que Campos acaba por
mergulhar numa crescente onda de desiluso a anulao do significado da existncia humana
e, por isso, o poeta se apresenta cada vez mais pausado e reticente, aceitando cada vez mais
sua despersonalizao e irrealizao, at chegar a um comportamento ablico diante da vida e
mesmo da poesia, de que os motivos geradores passam a ser a aceitao do cansao e a
retomada do passado, principalmente da infncia (1976, p.102).
Aniversrio, poema de 193013, faz uma viagem ao passado familiar do eu-lrico. A
infncia, marcada pela felicidade clandestina da inocncia e da despreocupao, contrape os
13
No entanto, o poema est datado de forma ficcional: 15/10/1929, data do aniversrio de lvaro de Campos.
sonhos do passado roubada realidade da presente vida adulta e suas preocupaes. Para ele o
tempo em que festejavam o dia dos meus anos era marcado:
Eu era feliz e ningum estava morto.
[]
Eu tinha a grande sade de no perceber coisa alguma,
De ser inteligente para entre a famlia,
E de no ter as esperanas que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanas, j no sabia ter esperanas.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida. (PESSOA, 2002, p.362)
queres matar e Na noite terrvel. Nos poemas o eu-lrico vive a angstia da impossibilidade
de no poder ser mais o que tinha sonhado. O que move nele este sentimento que se verte
ainda mais para dentro de si a lembrana do irreparvel do passado, de um passado
angustiantemente memorvel cadver temporal e que no pode voltar ; um sentimento de
que tudo poderia ser diferente se outro caminho fosse tomado, outra deciso fosse feita.
Na noite terrvel, substncia natural de todas as noites,
Na noite de insnia, substncia natural de todas as minhas noites,
Relembro, velando em modorra incmoda,
Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida.
Relembro, e uma angstia
Espalha-se por mim todo como um frio do corpo ou um medo.
O irreparvel do meu passado esse que o cadver!
Todos os outros cadveres pode ser que sejam iluso.
Todos os mortos pode ser que sejam vivos noutra parte.
Todos os meus prprios momentos passados pode ser que existam algures,
Na iluso do espao e do tempo,
Na falsidade do decorrer. (2002, p.310)
Essa sensao, segundo Quesado (1976, p.113), tem sua justificativa no princpio
sensacionista de indeterminao do objeto do tratamento potico () como tambm se
fundamenta na variabilidade do prprio sujeito da sensao, desenvolvendo, assim, na poesia
de Campos, uma disperso do sujeito em busca da sensao do objeto. Nas palavras do
prprio poeta das sensaes: Multipliquei-me para me sentir, /Para me sentir precisei sentir
tudo. (PESSOA, 2002, p.180).
janela da existncia, fechado em seu quarto, o eu-lrico se v vencido pela partida
apitada de dentro da cabea que provoca nele uma sacudidela dos nervos e um ranger de
ossos na ida quando, ao contemplar a realidade da porta da Tabacaria do outro lado da rua, se
encontra dividido entre os planos do real por fora e do sonho, como coisa real por dentro.
Assim, as imagens revelam a dicotomia entre o sonho realizvel daqueles que sonham, dentre
eles o eu poemtico e seu passado cheio de esperanas, e o irreparvel destino que ceifa tais
possibilidades. No excerto a seguir vemos a apresentao dos sonhos e, em seguida, na
interposio da conjuno adversativa, o enfrentamento do pessimismo diante de si:
O mundo para quem nasce para o conquistar
E no para quem sonha que pode conquist-lo, ainda que tenha razo.
Tenho sonhado mais que o que Napoleo fez.
Tenho apertado ao peito hipottico mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que no more nela;
Serei sempre o que no nasceu para isso;
Serei sempre s o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao p de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poo tapado.
Crer em mim? No, nem em nada. (2002, p.290-1)
A imagem pueril de uma criana diante da tabacaria surge e o simples fato dela estar
comendo chocolates abre-se para a suspenso do pensamento e perspicaz anlise do eu-lrico
da realidade das pessoas que, assim como uma criana a comer um simples pedao de
chocolate, alimentam seus sonhos, consolo dos que nutrem em si aspiraes altas e nobre e
lcidas, sem inquietaes metafsicas ou conscincia do que os cercam. No entanto, o eu do
poema reserva para si apenas as mais negativas imagens, por pensar como ningum sobre o
que foi, o que e o que poderia ter sido, por no encontrar consolo.
Vivi, estudei, amei e at cri,
E hoje no h mendigo que eu no inveje s por no ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque possvel fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que rabo para aqum do lagarto remexidamente
Fiz de mim o que no soube
E o que podia fazer de mim no o fiz.
O domin que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem no era e no desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a mscara,
Estava pegada cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
J tinha envelhecido.
Estava bbado, j no sabia vestir o domin que no tinha tirado.
Deitei fora a mscara e dormi no vestirio
Como um co tolerado pela gerncia
Por ser inofensivo
E vou escrever esta histria para provar que sou sublime. (2002, p.292)
do outro lado da rua, porta da Tabacaria. O mistrio do Destino conceder a cada um deles a
sequncia inexorvel do tempo sempre intil e estpido diante do que sempre isto ou
sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra. (2002, p.293). As ltimas estrofes do
poema so reservadas intromisso de um homem que entra na Tabacaria, fato que faz
emergir a realidade plausvel e humana do eu poemtico que, numa referenciao
metalingustica, tenciona escrever versos em que possa dizer o contrrio do que sente.
[]
Semiergo-me enrgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrrio.
Acendo um cigarro ao pensar em escrev-los
E saboreio no cigarro a libertao de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota prpria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertao de todas as especulaes
E a conscincia de que a metafsica uma consequncia de estar mal disposto.
Depois deito-me para trs na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calas?).
Ah, conheo-o; o Esteves sem metafsica.
(O Dono da Tabacaria chegou porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperana, e o Dono da Tabacaria sorriu. (2002,
p.293-4)
nas cidades grandes com sua agitao efervescente de multides desencontradas, e a crena
no progresso cientfico, a voz potica do heternimo lvaro de Campos se faz presente num
contexto representacional em que o homem moderno, visceralmente inserido no contexto das
grandes metrpoles, com o progresso emergente e em meio s grandes guerras, colocado em
evidncia. Em seu discurso lrico prevalece a imagem do homem urbano em seu meio social e
os velhos topos da literatura, quando no so revisitados de maneira crtica e reinventiva, do
lugar para uma escrita marcada pela subjetividade e individualidade caractersticas da
modernidade.
Apesar de, no primeiro momento, anunciar e exaltar a chegada da modernidade, com
sua vida frentica de mquinas e homens em profuso aglutinadora, lvaro de Campos faz da
solido uma morada e, desiludido com o mundo dos homens, mergulha na anulao da sua
prpria existncia. Assim, o mundo retratado de maneira crtica, na obra de Campos, e se
transforma no espao teatral onde cada um desempenha o montono papel de no ser si
mesma, de usar mscaras sociais para aparentar ser alguma outra coisa. Esse falseamento de si
irrompe no eu-lrico do heternimo pessoano um angstia memorial de tudo aquilo que ele
no pode ter sido no passado, num movimento de dor e nitidez que cega os olhos de quem
percebe que teve os sonhos roubados, de quem se v atravs de um pessimismo que nulifica
sua existncia e o reduz ao oxmoro temporal entre os sonhos do passado e a irreparvel
realidade do presente. Por isso, a morte se revela na nica possibilidade de conhecer-se, de
conhecer a Verdade do Ser.
Nesse trabalho, procuramos no s encontrar e analisar uma imagem que representasse,
a partir da voz lrica do poeta em discusso, uma potica do homem moderno, mas tambm
lanar um olhar sobre a poesia filosfico-existencial do esprito de inquietude vivido durante a
primeira metade do sculo XX, sentimento comum humanidade da poca. Nesse sentido,
atravs de sua poesia, lvaro de Campos nos revela a angustiante experincia do (com)viver
atravs de imagens do homem moderno na sua relao com os paradoxos impostos pelo
anunciado progresso da modernidade com a esperana de novos tempos, e na descoberta de si
no encontro com o mistrio da existncia da vida (que poderia ter sido) e da morte.
Referncias
BEAUFRET, Jean. Introduo s filosofias da existncia. So Paulo: Duas Cidades, 1976.
BERARDINELLI, Cleonice. Fernando Pessoa: outra vez te revejo. Rio de Janeiro: Lacerda,
2004.