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Canguilhem - 2009 - Que e A Psicologia

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Que a Psicologia?*1
What is Psychology?
RESUMO Neste texto, originado de uma conferncia apresentada em 18 de dezembro de 1956 no Collge Philosophique (Paris) e publicado dois anos mais tarde, Georges Canguilhem propem-se a discutir a psicologia, investigando a existncia (ou no) de uma unidade de projeto que pudesse conferir sua unidade eventual aos diferentes tipos de disciplinas tidas ento como psicolgicas. Para responder questo Que a psicologia?, considera necessrio esboar uma histria da
psicologia. Mas enfatiza: uma histria considerada apenas nas suas orientaes e
relacionada com a histria da filosofia e das cincias, uma histria necessariamente
teleolgica, uma vez que destinada a transferir, para a interrogao proposta, o
sentido originrio suposto nas diversas disciplinas, mtodos ou empreendimentos,
cuja disparidade atual legitima essa pergunta.
Palavras-chave: psicologia epistemologia da psicologia histria da psicologia.
ABSTRACT In this article, originally presented at a conference on December 18,
1956 at the Collge Philosophique (Paris) and published two years later, Georges
Canguilhem discusses psychology by investigating the existence (or not) of a project
unity that could confer its eventual unity to the different types of disciplines considered as psychological. In responding to the question What is psychology?, it
is necessary to make a sketch of the history of psychology. But he emphasizes: a
history considered only in its orientations and relations with the history of philosophy and of sciences, a history which is necessarily teleological, since once destined
to transfer, for the proposed question, the supposed original meaning of the diverse
disciplines, methods or attempts, whose current disparity legitimates this question.
Keywords: psychology epistemology of psychology history of psychology.
*1 Nota do Editor (N.E.): texto publicado originalmente na Revue de Mtaphysique et de Morale (Paris, 1:
12-25, 1958), a partir de palestra proferida em 18 de dezembro de 1956, no Collge Philosophique de
Paris.
**N.E.: formado em medicina, o francs Georges Canguilhem (1904-1995) tornou-se um incomparvel
professor de filosofia; dedicado instituio acadmica, foi professor da Universidade de Strasbourg e da
Sorbonne, na qual dirigiu o Instituto de Histria das Cincias. Deixou trabalhos profundamente originais
em filosofia das cincias da vida.

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GEORGES CANGUILHEM**
Trad. Osmyr Faria Gabbi Jr.

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questo Que a psicologia? aparenta ser mais incmoda


para o psiclogo do que a questo Que a filosofia? para
o filsofo. Porque para a filosofia a interrogao sobre o seu
sentido e a sua essncia serve mais para constitu-la do que a define
uma resposta a esta pergunta. O fato de a questo renascer incessantemente, por falta de uma resposta satisfatria, , para aquele que gostaria de poder se dizer filsofo, uma situao de humildade e no de
humilhao. Mas, para a psicologia, a questo sobre sua essncia, ou,
mais modestamente, sobre seu conceito, questiona ao mesmo tempo
a existncia do psiclogo, na medida em que sua incapacidade de responder exatamente sobre o que ela torna-lhe bem mais difcil responder sobre o que ele faz. S lhe resta, ento, procurar em uma eficcia sempre discutvel a justificativa de sua importncia enquanto especialista, importncia que ele no deploraria de nenhuma maneira
com este ou aquele se ela engendrasse no filsofo um complexo de inferioridade.
Quando se diz que a eficcia do psiclogo discutvel no se pretende dizer que ela seja ilusria; mas simplesmente assinalar que essa
eficcia est sem dvida mal fundamentada enquanto no se provar
que ela resulta realmente da aplicao de uma cincia, ou seja, enquanto
o estatuto da psicologia for fixado de maneira tal que se deve avali-lo
mais como um empirismo heterogneo que est codificado literariamente com vistas a ser transmitido. De fato, muitos dos trabalhos de
psicologia do a impresso de misturar uma filosofia sem rigor porque ecltica sob o pretexto de objetiva , uma tica sem exigncias
porque associa experincias etolgicas sem critic-las, a do confessor,
a do educador, a do chefe, a do juiz etc. , e uma medicina sem controle porque dos trs tipos de doenas menos inteligveis e menos
curveis, doenas da pele, doenas nervosas e doenas mentais, o estudo e o tratamento das duas ltimas sempre forneceram hipteses e
observaes psicologia.
Portanto, parece que ao perguntar Que a psicologia? coloca-se
uma questo que no nem impertinente nem ftil.
Durante muito tempo procurou-se a unidade caracterstica do
conceito de cincia na direo de seu objeto. Este ditaria o mtodo a
ser utilizado no estudo de suas propriedades. Mas, no fundo, isso era
limitar a cincia investigao de um dado, explorao de um domnio. Quando se tornou patente que toda cincia d mais ou menos
a si mesma seu dado e por essa razo apropria-se do que se chama seu
domnio, o conceito de cincia progressivamente se deslocou de seu

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objeto para seu mtodo. Ou mais exatamente, a expresso objeto de


uma cincia recebeu um sentido novo. O objeto da cincia no mais
somente o domnio especfico de problemas, de obstculos a resolver,
tambm a inteno e a visada do sujeito da cincia, um projeto
especfico que constitui uma conscincia terica como tal.
Pode-se responder questo Que a psicologia? ao ressaltar a
unidade de seu domnio, apesar da multiplicidade de projetos metodolgicos. desse tipo a resposta brilhante dada pelo professor Daniel
Lagache, em 1947, questo formulada, em 1936, por Edouard Claparde2. A unidade da psicologia procurada aqui em sua possvel definio enquanto teoria geral da conduta: sntese da psicologia experimental, da psicologia clnica, da psicanlise, da psicologia social e da
etnologia.
Entretanto, quando se olha de perto, talvez se diga que essa unidade se assemelha mais a um pacto de coexistncia pacfica acordado
entre profissionais do que a uma essncia lgica, obtida pela descoberta de uma constante numa variedade de casos. Das duas tendncias entre as quais o professor Lagache procura um acordo slido a naturalista (psicologia experimental) e a humanista (psicologia clnica) ,
tem-se a impresso que a segunda parece ter preponderncia para ele.
O que explica sem dvida a ausncia da psicologia animal nesse inventrio das partes em litgio. Sem dvida, v-se claramente que ela
est includa na psicologia experimental em grande parte uma psicologia de animais , mas aquela a contm como material ao qual aplica seu mtodo. Com efeito, uma psicologia s pode ser dita experimental em razo de seu mtodo e no de seu objeto. Enquanto, a despeito das aparncias, mais pelo objeto do que por seu mtodo que
uma psicologia dita clnica, psicanaltica, social, etnolgica. Todos esses adjetivos so indicativos de um nico e mesmo objeto: o homem,
ser loquaz ou taciturno, ser social ou insocial. Assim sendo, pode-se rigorosamente falar de uma teoria geral da conduta enquanto no se resolver a questo de saber se h continuidade ou ruptura entre linguagem humana e linguagem animal, sociedade humana e sociedade animal? possvel que sobre esse ponto no caiba filosofia decidir, mas
cincia, de fato, a numerosas cincias, incluindo a psicologia. Porm,
nesse caso, a psicologia no pode, para definir-se, prejulgar o que ela
chamada a julgar. Sem o que, inevitvel que a psicologia, ao propor
a si mesma como teoria geral da conduta, tome como sua alguma idia
sobre o homem. Ento preciso permitir filosofia interrogar a psicologia de que lugar ela retira essa idia e se no seria, no fundo, de
alguma filosofia.
2 LUnit de la Psychologie. Paris: PUF, 1949.

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Desejamos abordar a questo fundamental apresentada por uma


via oposta uma vez que no somos psiclogo , ou seja, investigar se
h ou no uma unidade de projeto que poderia conferir sua unidade
eventual aos diferentes tipos de disciplinas ditas psicolgicas. Mas nosso procedimento de investigao exige um retorno temporal. Para investigar em relao ao que se sobrepem os domnios, pode-se fazer
sua explorao separada e sua comparao na atualidade (uma dezena
de anos no caso do professor Lagache). Investigar se os projetos se interceptam exige que se explicite o sentido de cada um deles, no quando ele se perdeu no automatismo de sua execuo, mas quando surge
a partir da situao que o suscitou. Procurar responder questo Que
a psicologia? torna-se para ns a obrigao de esboar uma histria
da psicologia, mas, preciso enfatizar, uma histria considerada apenas nas suas orientaes e relacionada com a histria da filosofia e das
cincias, uma histria necessariamente teleolgica, uma vez que destinada a transferir, para a interrogao proposta, o sentido originrio suposto nas diversas disciplinas, mtodos ou empreendimentos, cuja disparidade atual legitima essa pergunta.

I A PSICOLOGIA COMO CINCIA NATURAL


Embora psicologia signifique do ponto de vista etimolgico cincia
da alma, notvel que uma psicologia independente esteja ausente, tanto como idia quanto de fato, dos sistemas filosficos da Antiguidade;
nos quais, entretanto, a psique, a alma, considerada um ser natural. Os
estudos relativos alma encontram-se divididos entre a metafsica, a lgica e a fsica. O tratado aristotlico Da Alma na realidade um tratado
de biologia geral, um dos escritos consagrados fsica. Segundo Aristteles, e de acordo com a tradio da escolstica, os cursos de filosofia do
incio do sculo XVII ainda tratam da alma num captulo da fsica.3 O objeto desta o corpo natural e organizado que contm a vida como potencialidade; logo, a fsica trata da alma como forma do corpo vivo, e
no como substncia separada da matria. Desse ponto de vista, um estudo dos rgos do conhecimento, ou seja, dos sentidos exteriores (os
cinco usuais) e dos sentidos interiores (senso comum, fantasia, memria), no difere em nada do estudo dos rgos da respirao ou da digesto. A alma um objeto natural de estudo, uma forma na hierarquia
das formas, ainda que sua funo essencial seja o conhecimento das for3 Cf. Scipion Du Pleix. Corps de Philosophie contenant la Logique, la Physique, la Mtaphysique el lEthique.
Genve, 1636 (1d, Paris, 1607).

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mas. A cincia da alma um domnio da fisiologia no seu sentido original e universal de teoria da natureza.
dessa concepo antiga que se origina sem ruptura um aspecto
da psicologia moderna: a psicofisiologia considerada durante muito
tempo exclusivamente psiconeurologia (mas atualmente tambm
como psico-endocrinologia) e a psicopatologia como disciplina mdica. Dada essa relao, no parece ser suprfluo recordar que antes
das duas revolues que permitiram o aparecimento da fisiologia moderna, a de Harvey e a da Lavoisier, devida a Galeno uma revoluo
de no menos importncia que a teoria da circulao ou da respirao,
quando ele estabelece, clnica e experimentalmente de acordo com os
mdicos da Escola de Alexandria, Herfilos e Erasstratos, e contra a
doutrina aristotlica, mas conforme as antecipaes de Alcmon, Hipcrates e Plato, que o crebro, e no o corao, o rgo das sensaes e do movimento, o lugar da alma. Galeno funda verdadeiramente, durante sculos, uma filiao ininterrupta de pesquisas de pneumatologia emprica, cujo elemento fundamental a teoria dos espritos
animais, destronada e substituda no fim do sculo XVIII pela eletroneurologia. Ainda que decididamente pluralista em sua concepo das
relaes entre funes psquicas e rgos enceflicos, Gall procede diretamente de Galeno e domina, apesar de suas extravagncias, todas
as pesquisas sobre localizaes cerebrais durante os sessenta primeiros
anos do sculo XIX, at o prprio Broca.
Em suma, enquanto psicofisiologia e psicopatologia, a psicologia
atual sempre recua at o sculo II.

II A PSICOLOGIA COMO CINCIA DA SUBJETIVIDADE


O declnio da fsica aristotlica, no sculo XVII, assinala o fim da
psicologia como parafsica, como cincia de um objeto natural, e correlativamente o nascimento da psicologia como cincia da subjetividade.
Os fsicos mecanicistas do sculo XVII so os verdadeiros responsveis pelo aparecimento da psicologia moderna como cincia do sujeito pensante.4
Se a realidade do mundo no mais confundida com o contedo
da percepo, se a realidade obtida e exposta pela reduo das iluses da experincia sensvel usual, o resto qualitativo desta experincia, dado que possvel enquanto falsificao do real, envolve a responsabilidade prpria do esprito, ou seja, do sujeito da experincia,
4 Cf. Aron Gurwitsch. Dveloppement Historique de la Gestalt-Psychologie, in Thals, IIe anne, 1935, pp.
167-175.

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tendo em vista que ele no se identifica com a razo matemtica e mecanicista, instrumento da verdade e medida da realidade.
Mas essa responsabilidade censurvel aos olhos do fsico. Portanto, a psicologia constituda como um empreendimento de remisso do esprito. Seu projeto de uma cincia que, face fsica, explique
o motivo do esprito, primeira vista, ser coagido, devido a sua natureza, a enganar a razo em relao realidade. A psicologia faz-se fsica
do sentido externo para dar conta dos contra-sensos que a fsica mecanicista imputa ao exerccio dos sentidos na funo cognitiva.

A. A fsica do sentido externo


Portanto a psicologia, cincia da subjetividade, comea como psicofsica por duas razes. Em primeiro lugar porque no pode ser menos
do que uma fsica para ser levada a srio pelos fsicos. Em segundo, porque deve procurar em uma natureza, ou seja, na estrutura do corpo humano, a razo da existncia de resduos irreais na experincia humana.
Mas, entretanto, essas razes no implicam um retorno concepo antiga de uma cincia da alma, ramo da fsica. A nova fsica
um clculo. A psicologia tende a imit-la. Ela procurar determinar as
constantes qualitativas da sensao e as relaes entre essas constantes.
Aqui Descartes e Malebranche so os corifeus. Nas Regras para
Direo do Esprito (XII), Descartes prope a reduo das diferenas
qualitativas entre dados sensrios a uma diferena de figuras geomtricas. Trata-se aqui de dados sensrios na medida em que so, no sentido prprio do termo, as informaes de um corpo por um outro corpo; os sentidos externos informam um sentido interno, a fantasia,
que nada mais que um corpo real e figurado. Na Regra XIV, Descartes trata expressamente do que Kant chamar da grandeza intensiva
das sensaes (Crtica da Razo Pura, analtica transcendental, antecipao da percepo): as comparaes entre luzes, entre sons etc., s
podem ser convertidas em relaes exatas por analogia com a extenso do corpo figurado. Se se acrescenta que Descartes, que no exatamente nem o inventor do termo nem do conceito de reflexo, afirmou, no entanto, a constncia de ligao entre a excitao e a reao,
v-se que uma psicologia, entendida enquanto fsica matemtica do
sentido externo, comea com ele para chegar em Fechner, graas ao
apoio de fisilogos como Hermann Helmholtz, apesar e contra as reservas kantianas, criticadas por sua vez por Herbart.
Essa variedade de psicologia ampliada por Wundt s dimenses
de uma psicologia experimental, apoiada em seus trabalhos pela esperana de fazer aparecer, nas leis dos fatos de conscincia, um deter-

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minismo analtico do mesmo tipo daquele que a mecnica e a fsica


permitem esperar de toda cincia de validade universal.
Fechner morreu em 1887, dois anos da tese de Bergson, Ensaios
sobre os Dados Imediatos da Conscincia (1889). Wundt faleceu em
1920, tendo formado muitos discpulos, dos quais alguns ainda esto
vivos, e no sem ter assistido aos primeiros ataques dos psiclogos da
Forma contra a fsica analtica do sentido externo, simultaneamente
experimental e matemtica, conforme as observaes de Ehrenfels sobre as qualidades da forma (ber Gestaltqualitten, 1890), observaes aparentadas s anlises de Bergson sobre as totalidades percebidas
enquanto formas orgnicas que prevalecem sobre as partes supostas
(Ensaio, cap. II).

B. A cincia do sentido interno


Mas a cincia da subjetividade no se reduz elaborao de uma
fsica do sentido externo; ela se prope e se apresenta como a cincia
da conscincia de si ou a cincia do sentido interno. Data do sculo
XVIII o termo psicologia no sentido de cincia do eu (Wolff). Toda a histria dessa psicologia pode ser escrita como aquela dos contra-sensos,
na qual as Meditaes de Descartes, sem serem responsveis, deram o
motivo.
Quando Descartes, no incio da Terceira Meditao, considera
seu interior para procurar torn-lo o mais conhecido e o mais familiar para si mesmo, essa considerao visa o pensamento. O interior
cartesiano, conscincia do Ego cogito, o conhecimento direto que a
alma tem de si mesma enquanto entendimento puro. As Meditaes
so chamadas por Descartes de metafsicas porque elas pretendem
atingir diretamente a natureza e a essncia do Eu penso na apreenso
imediata de sua existncia. A meditao cartesiana no uma confidncia pessoal. A reflexo que d ao conhecimento do Eu o rigor e a
impessoalidade das matemticas no aquela observao de si que os
espiritualistas, no incio do sculo XIX, tiveram a ousadia de tomar Scrates como patrono, a fim de que o sr. Pierre-Paul Royer-Collard pudesse dar a Napoleo I a garantia de que o Conhece a ti mesmo, o cogito e a introspeo forneciam seu fundamento inexpugnvel ao trono
e ao altar.
O interior cartesiano no tem nada em comum com o sentido interno dos aristotlicos que concebem seus objetos interiormente e
dentro da cabea5 e que, como se viu, Descartes considera como um
aspecto do corpo (Regra XIII). Por essa razo Descartes diz que se co5 Scipion Du Pleix, op. cit., Physique, p. 439.

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nhece a alma direta e mais facilmente que o corpo. uma afirmao


acerca da qual se ignora muito freqentemente a inteno explicitamente polmica, uma vez que para os aristotlicos no se conhece a
alma diretamente: O conhecimento da alma no de nenhuma maneira direto, mas apenas por reflexo; dado que a alma semelhante
a um olho que tudo v e que s pode ver a si mesmo por reflexo
como em um espelho () e a alma de modo semelhante no se v e
s se conhece por reflexo e pelo reconhecimento de seus efeitos.6
Tese que suscita a indignao de Descartes quando Gassendi a retoma
nas suas objees contra a Terceira Meditao, e contra as quais ele
responde: No de nenhuma maneira nem o olho que v a si prprio nem o espelho, mas o esprito, o nico que conhece o espelho, o
olho e a si prprio.
Ora, essa rplica decisiva no derrota esse argumento escolstico.
Maine de Biran, mais de uma vez, utiliza-o contra Descartes em Memorial sobre a Decomposio do Pensamento. A. Comte invoca-o contra a possibilidade de introspeo, ou seja, contra esse mtodo de conhecimento de si mesmo que Pierre-Paul Royer-Collard emprestou de
Reid para fazer da psicologia a propedutica cientfica da metafsica,
ao justificar pela via experimental suas teses tradicionais, prprias do
substancialismo espiritualista7. Mesmo Cournot, na sua sagacidade,
no desdenha o argumento quando o retoma para apoiar a idia de
que a observao psicolgica se refere mais conduta do outro que
do eu do observador, de que a psicologia se aparenta mais sabedoria
do que cincia e de que da natureza dos fatos psicolgicos serem
melhor traduzidos em aforismos que em teoremas.8
Conheceu-se de forma equvoca o argumento de Descartes
quando simultaneamente se constitui contra ele uma psicologia emprica como histria natural do eu de Locke a Ribot, passando por
Condillac, os idelogos franceses e os utilitaristas ingleses e, segundo
se acreditou, de acordo com ele, uma psicologia racional fundada sobre a intuio do Eu substancial.
Kant tem ainda hoje a glria de ter estabelecido que, se Wolff pde
batizar esses recm-nascidos ps-cartesianos (Psicologia Emprica, 1732;
Psicologia Racional, 1734), no entanto no conseguiu fundamentar suas
pretenses de legitimidade. Kant mostra, de um lado, que o sentido interno fenomenal apenas uma forma da intuio emprica, que tende a
confundir-se com o tempo, e, de outro, que o eu, sujeito de todo juzo
6 Ibid., p. 353.
7 Cours de Philosophie positive. 1re Leon.
8 Essai sur les Fondements d enos Connaissances, 1851, 371-376.

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de apercepo, uma funo de organizao da experincia, mas do


qual no se poderia fazer cincia, dado que a condio transcendental
de toda cincia. Os Primeiros Princpios Metafsicos da Cincia da Natureza (1786) contestam que a psicologia possa ser uma cincia, seja
imagem das matemticas, seja imagem da fsica. No h psicologia
matemtica possvel no sentido em que h uma fsica matemtica. Mesmo que se aplique s modificaes do sentido interno, em virtude da
antecipao da percepo relativa s grandezas intensivas, as matemticas do contnuo, no se obter nada de mais importante do que seria
uma geometria limitada ao estudo das propriedades da linha reta. Tambm no h psicologia experimental no sentido em que a qumica se
constitui atravs do uso da anlise e da sntese. No podemos realizar
experincias nem sobre ns mesmos nem sobre o outro. Alm do que,
a observao interna altera seu objeto. Querer surpreender a si mesmo
ao se observar conduziria alienao. A psicologia s pode ser descritiva. Seu lugar verdadeiro em uma Antropologia, como propedutica
a uma teoria da aptido e da prudncia, coroada por uma teoria da sabedoria.

C. A cincia do sentido ntimo


Se se chama psicologia clssica aquela que se pretende refutar,
preciso dizer que em psicologia h sempre clssicos disponveis para
qualquer um. Os idelogos, herdeiros dos sensualistas, tomaram como
clssica a psicologia escocesa que pregava, como eles, um mtodo indutivo para poder melhor afirmar, contra eles, a substancialidade do
esprito. Mas a psicologia atomista e analtica dos sensualistas e dos
idelogos, antes de ser rejeitada como psicologia clssica pelos tericos
da psicologia da Gestalt, j era tida como tal por um psiclogo romntico como Maine de Biran. Para ele, a psicologia torna-se a tcnica
do dirio ntimo e a cincia do sentido ntimo. A solido de Descartes
a ascese de um matemtico; a de Maine de Biran, a ociosidade de um
delegado. O Eu penso cartesiano fundamenta o pensamento em si; o
Eu quero de Biran, a conscincia para si contra a exterioridade. Em seu
escritrio calafetado, Maine de Biran descobre que a anlise psicolgica
no consiste em simplificar, mas em complicar; que o fato psicolgico
primitivo no elementar, porm uma relao, relao vivida em um
esforo. Ele chega a duas concluses, inesperadas em um homem cujas
funes so de autoridade, ou seja, de comando: a conscincia requer
o conflito entre um poder e uma resistncia; o homem no , como
pensou Bonald, uma inteligncia servida por rgos, mas uma organizao viva servida por uma inteligncia. necessrio que a alma es-

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teja encarnada, portanto, no h psicologia sem biologia. A observao


de si mesmo no dispensa nem o recurso fisiologia do movimento
voluntrio nem patologia da afetividade. A situao de Maine de Biran nica entre os dois Royer-Collard: dialogou com o doutrinrio
e foi julgado pelo psiquiatra. Temos de Maine de Biran um Passeio
com o sr. Royer-Collard nos Jardins de Luxemburgo e de Antoine-Athanase Royer-Collard, irmo caula do primeiro, um Exame da Doutrina de Maine de Biran.9 Se Maine de Biran no tivesse lido e discutido
Cabanis (Relaes entre o Fsico e o Moral no Homem, 1798) e Bichat
(Pesquisas sobre a Vida e a Morte, 1800), a histria da psicologia
patolgica t-lo-ia ignorado, o que ela no pode. O segundo RoyerCollard , depois de Pinel e junto com Esquirol, um dos fundadores
da escola francesa de psiquiatria.
Pinel havia defendido a idia de que os alienados so simultaneamente doentes como os outros nem possudos nem criminosos e
diferentes dos outros, devendo, portanto, ser tratados separadamente
dos outros e, de acordo com os casos, em servios hospitalares especializados. Pinel fundou a medicina mental como disciplina autnoma
a partir do isolamento teraputico de alienados em Bictre e em Salptrire. Royer-Collard imita Pinel na Maison Nationale de Charenton, onde se tornou chefe dos mdicos em 1805, o mesmo ano em
que Esquirol defendeu sua tese de medicina sobre as Paixes consideradas como causas, sintomas e meios de cura da alienao mental.
Em 1816, Royer-Collard torna-se professor de medicina legal na Faculdade de Medicina de Paris, depois, em 1821, primeiro titular da cadeira de medicina mental. Royer-Collard e Esquirol tiveram como aluno Calmeil, que estudou a paralisia entre os alienados, Bayle, que reconheceu e isolou a paralisia geral, e Flix Voisin, que iniciou o estudo do
retardo mental em crianas. em Salptrire que, depois de Pinel, Esquirol, Lelut, Baillarger e Falret, entre outros, Charcot torna-se em 1862
chefe de um servio, cujos trabalhos sero continuados por Thodule
Ribot, Pierre Janet, o cardeal Mercier e Sigmund Freud.
Vimos que a psicopatologia comeou de forma positiva com Galeno, vemos que ela conduz at Freud, criador em 1896 do termo psicanlise. A psicopatologia no se desenvolveu isolada de outras disciplinas psicolgicas. Com base nas pesquisas de Biran, ela coage a filosofia a interrogar-se, h mais de um sculo, em qual dos dois RoyerCollard ela deve procurar a idia que preciso ter da psicologia. Assim, a psicopatologia ao mesmo tempo juiz e parte do debate inin9 Publicado pelo seu filho Hyacinthe Royer-Collard (em Annales Mdico-Psychologiques, 1843, tomo II, p.1).

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terrupto que a metafsica legou direo da psicologia, sem ter, alis,


renunciado a dizer sua palavra sobre as relaes entre o fsico e o psquico. Essa relao foi formulada durante muito tempo como somatopsquica antes de tornar-se psicossomtica. Alis, essa inverso a mesma que operou na significao dada ao inconsciente. Se se identifica
psiquismo e conscincia recorrendo de forma errada ou acertada autoridade de Descartes , o inconsciente de ordem fsica. Se se pensa que
o psiquismo possa ser inconsciente, a psicologia no se reduz cincia da
conscincia. O psquico no to-somente o que est escondido, mas
o que se esconde, o que escondemos, o que no mais apenas o ntimo, mas tambm de acordo com um termo retirado por Bossuet
dos msticos o abissal. A psicologia no apenas a cincia da intimidade, mas a cincia das profundezas da alma.

III A PSICOLOGIA COMO CINCIA DAS


REAES E DO COMPORTAMENTO
Maine de Biran, ao propor que se defina o homem como organizao viva servida por uma inteligncia, demarca de antemo melhor, aparentemente, do que Gall, segundo o qual, de acordo com Lelut, o homem no mais uma inteligncia, porm uma vontade servida por rgos10 o terreno sobre o qual se constituir no sculo
XIX uma nova psicologia. Mas, ao mesmo tempo, ele assinala seus limites, visto que, na sua Antropologia, ele situa a vida humana entre a
vida animal e a vida espiritual.
O sculo XIX assiste constituio ao lado da psicologia como
patologia nervosa e mental, como fsica do sentido externo, como cincia do sentido interno e do sentido ntimo de uma biologia do comportamento humano. As razes desse evento nos parecem ser as seguintes. Inicialmente, razes cientficas, a saber, a constituio de uma
biologia como teoria geral das relaes entre os organismos e os meios,
o que marca o fim da crena na existncia de um reino humano separado; em seguida, razes tcnicas e econmicas, ou seja, o desenvolvimento de um regime industrial que dirige a ateno para o carter
industrioso da espcie humana, o que marca o fim da crena na dignidade do pensamento especulativo; por fim, razes polticas que se
resumem no fim da crena em valores de privilgio social e na difuso
do igualitarismo: o alistamento e a instruo pblica tornam-se questo de Estado, a reivindicao de igualdade em relao s tarefas mi10 Quest-ce que la Phrnologie? ou Essai sur la signification et la valeur des systmes de psychologie en gnral et de celui de Gall en particulier. Paris, 1836, p. 401.

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litares e s funes civis (a cada um de acordo com seu trabalho, suas


obras ou seus mritos) o fundamento real, ainda que freqentemente
despercebido, de um fenmeno prprio das sociedades modernas: a
prtica generalizada da especializao, entendida em sentido amplo
enquanto determinao da competncia e revelao da simulao.
Ora, o que caracteriza, para ns, essa psicologia dos comportamentos em relao aos outros tipos de estudos psicolgicos sua incapacidade constitutiva de apreender e exibir com clareza seu projeto instaurador. Se, entre os projetos instauradores de alguns tipos anteriores
de psicologia, uns podem passar por contra-sensos filosficos, aqui, ao
contrrio, uma vez que se recusa toda relao com uma teoria filosfica, coloca-se a questo de saber de onde essa pesquisa psicolgica
pode retirar seu sentido. Ao aceitar-se que ela se torne, de acordo com
o padro da biologia, uma cincia objetiva das aptides, das reaes e
do comportamento, essa psicologia e seus psiclogos esquecem totalmente de situar seu comportamento especfico em relao s circunstncias histricas e aos meios sociais nos quais foram levados a propor
seus mtodos ou tcnicas e a tornar aceitveis seus servios.
Nietzsche, ao esboar a psicologia do psiclogo do sculo XIX,
escreve: Ns, psiclogos do futuro () consideramos quase como
um signo de degenerao o instrumento que procura conhecer a si
mesmo: somos os instrumentos do conhecimento e precisamos ter
toda ingenuidade e preciso de um instrumento; conseqentemente
no temos o direito de analisar a ns mesmos, de nos conhecer.11 Um
mal-entendido espantoso, mas como revelador! O psiclogo quer ser
apenas um instrumento, sem procurar saber de quem ou do que instrumento. Nietzsche parecia melhor inspirado quando se inclina, no
incio da Genealogia da Moral, sobre o enigma que os psiclogos ingleses representam, ou seja, os utilitaristas, preocupados com a gnese
dos sentimentos morais. Ele se interrogou na ocasio sobre o que teria
levado os psiclogos na direo do cinismo, isto , na explicao das
condutas humanas pelo interesse, utilidade e esquecimento dessas motivaes morais. E eis que, diante da conduta dos psiclogos do sculo
XIX, Nietzsche renuncia provisoriamente a todo cinismo, ou seja, a
toda lucidez!
A idia de utilidade, como princpio de uma psicologia, resultava
da tomada de conscincia filosfica da natureza humana enquanto potncia de artifcio (Hume, Burke), mais prosaicamente, enquanto fabricante de ferramentas (os enciclopedistas, Adam Smith, Franklin).
11 La Volont de Puissance. Trad. Blanquis, livro III, 355.

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Mas o princpio da psicologia biolgica do comportamento no parece ter sido desprendido, da mesma maneira, de uma tomada de conscincia filosfica explcita; sem dvida, porque s pde ser posto em
prtica sob a condio de permanecer sem ser formulado. Esse princpio a definio do prprio homem enquanto ferramenta. O utilitarismo, que implica a idia de utilidade para o homem, a idia do homem enquanto juiz da utilidade, foi sucedido pelo instrumentalismo,
que implica a idia da utilidade do homem, a idia do homem como
meio da utilidade. A inteligncia no mais aquilo que fez os rgos
e serve-se deles, porm o que serve aos rgos. No impunemente
que as origens histricas da psicologia das reaes devem ser procuradas nos trabalhos suscitados pela descoberta da equao pessoal prpria aos astrnomos que utilizam o telescpio (Maskelyne, 1796). O
homem foi inicialmente estudado enquanto instrumento do instrumento cientfico antes de o ser enquanto instrumento de todo instrumento.
As pesquisas sobre as leis de adaptao e da aprendizagem, sobre
a relao entre aprendizagem e as aptides, sobre a deteco e a mensurao de aptides, sobre as condies de rendimento e de produtividade (quer se trate de indivduos, quer de grupos) pesquisas inseparveis de suas aplicaes em seleo ou orientao admitem todas
um postulado comum e implcito: a natureza do homem ser um instrumento, sua vocao ser colocado em seu lugar, em sua tarefa.
Nietzsche, sem dvida, tem razo quando diz que os psiclogos
querem ser os instrumentos ingnuos e precisos desse estudo do homem. Eles se esforaram para chegar a um conhecimento objetivo,
mesmo se o determinismo que procuram nos comportamentos no
seja mais hoje em dia o determinismo de tipo newtoniano, familiar aos
primeiros fsicos do sculo XIX, mas um determinismo estatstico, progressivamente baseado nos resultados da biometria. Mas qual , enfim,
o sentido desse instrumentalismo de segunda potncia? O que leva ou
inclina os psiclogos a tornar-se, entre os homens, os instrumentos da
ambio de tratar o homem como instrumento?
Nos outros tipos de psicologia, a alma ou o sujeito, forma natural
ou conscincia de interioridade, o princpio que se d para justificar
enquanto valor uma certa idia de homem em relao verdade das
coisas. Todavia para uma psicologia na qual a palavra alma faz fugir
e a palavra conscincia faz rir, a verdade do homem est dada pelo
fato de que no h mais nenhuma idia de homem enquanto valor diferente daquela de um instrumento. Ora, deve-se reconhecer que

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preciso, para que se possa questionar a idia de um instrumento, que


nem todas as idias sejam da ordem de um instrumento, e que preciso exatamente, para que se possa atribuir algum valor a um instrumento, que nem todos os valores sejam o de um instrumento, cujo valor subordinado consiste em encontrar um outro. Por conseguinte, se
o psiclogo no esgota o seu projeto de psicologia em uma idia de
homem, acredita ele que possa legitim-lo atravs de seu comportamento de utilizao do homem? Ns dizemos claramente: atravs de
seu comportamento de utilizao, apesar de duas objees possveis.
Com efeito, podemos ser advertidos, de um lado, que esse tipo de psicologia no ignora a distino entre teoria e aplicao; de outro, que
a utilizao no feita pelo psiclogo, mas por aquele ou aqueles que
lhe pedem relatrios ou diagnsticos. Responderemos que, a no ser
que se confunda o terico da psicologia com o professor de psicologia,
preciso reconhecer que o psiclogo contemporneo , na maior parte das vezes, um praticante profissional cuja cincia na sua inteireza
inspirada pela pesquisa de leis de adaptao a um meio scio-tcnico
e no a um meio natural , o que sempre confere a suas operaes
de medida um significado de avaliao e uma importncia de especialista. De modo que o comportamento do psiclogo do comportamento humano encerra, de forma quase obrigatria, uma convico
de superioridade, uma boa conscincia diretora, uma mentalidade de
dirigente das relaes entre os homens. Por essa razo, preciso colocar a questo cnica: quem designa os psiclogos como instrumentos
do instrumentalismo? Como se reconhecem os homens dignos de atribuir ao homem instrumental seu papel e sua funo? Quem orienta os
orientadores?
Evidentemente no nos colocaremos no terreno das capacidades e
da tcnica. A questo no saber se h bons ou maus psiclogos, ou seja,
tcnicos hbeis que aprenderam ou incapazes que fazem tolices no previstas pela lei. A questo que uma cincia ou uma tcnica cientfica no
contm por si s qualquer idia que lhe confira seu sentido. Na sua Introduo Psicologia, Paul Guillaume fez a psicologia do homem submetido a um teste. O testado defende-se contra essa investigao, teme
que se exera sobre ele uma ao. Guillaume v nesse estado de esprito
um reconhecimento explcito de um reconhecimento implcito da eficcia do teste. Mas tambm se poderia ver a um embrio da psicologia
do testador. A defesa do testado a repugnncia em se ver tratado como
um inseto por um homem a quem ele no reconhece nenhuma autori-

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dade para lhe dizer o que e o que deve fazer. Tratar como um inseto,
a palavra de Stendhal, que a tomou emprestada de Cuvier.12 E se ns
tratarmos o psiclogo como um inseto; se ns aplicarmos, por exemplo,
a recomendao de Stendhal ao morno e inspido relatrio Kinsey?
Dito de outra maneira, a psicologia da reao e do comportamento, nos sculos XIX e XX, acreditou que se tornaria independente
ao separar-se de toda filosofia, ou seja, da especulao que pesquisa
uma idia de homem para alm do horizonte dos dados biolgicos e
sociolgicos. Mas essa psicologia no pode evitar a recorrncia de seus
resultados sobre o comportamento daqueles que os obtm. A questo
Que a psicologia?, na medida em que se interdita a psicologia de
procurar sua resposta, torna-se Onde querem chegar os psiclogos
fazendo o que fazem? Em nome de quem se declaram psiclogos?.
Quando Gedeo recrutou o comando dos israelitas e chefiando-os repele os madianitas para alm do Jordo, ele utiliza um teste em duas
etapas que lhe permite, inicialmente, escolher dez mil homens entre
trinta e dois mil, e depois trezentos entre os dez mil. Mas este teste
devedor do Eterno, tanto em relao ao objetivo de sua utilizao
quanto ao procedimento de seleo usado. Para selecionar um selecionador, preciso normalmente transcender o plano dos procedimentos tcnicos de seleo. Dada a imanncia da psicologia cientfica, permanece a questo: quem tem, no a competncia, mas a misso de ser
psiclogo? A psicologia repousa realmente sobre um desdobramento
que no mais aquele da conscincia de acordo com os fatos e as
normas que a idia de homem comporta , uma massa de sujeitos
e uma elite corporativa de especialistas que investem a si mesmos de
sua prpria misso.
Em Kant e em Maine de Biran, a psicologia est situada em uma
antropologia, ou seja, apesar da ambigidade, atualmente muito em
voga desse termo, em uma filosofia. Em Kant, a teoria geral da habilidade humana permanece relacionada a uma teoria da sabedoria. A
psicologia instrumentalista apresenta-se como uma teoria geral da habilidade, fora de qualquer referncia sabedoria. Se no podemos definir essa psicologia por uma idia de homem, ou seja, situ-la dentro
da filosofia, certamente no temos o poder de interditar a quem quer
que seja de se dizer psiclogo e de chamar psicologia ao que faz. Mas
ningum pode mais interditar a filosofia de continuar a interrogar-se
12 Ao invs de odiar o pequeno livreiro da cidade vizinha que vende o Almanaque Popular, dizia eu ao meu

amigo Senhor de Ranvelle, aplique-lhe o velho remdio indicado pelo clebre Cuvier; trate-o como inseto.
Investigue seus meios de subsistncia, procure adivinhar suas formas de acasalamento (Mmorires dun
Touriste, ed. Calmann-Lvy, tomo II, p. 23).

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sobre o estatuto mal definido da psicologia, tanto do lado das cincias


como do lado das tcnicas. A filosofia, quando procede assim, conduz-se
de acordo com sua ingenuidade constitutiva, to pouco assemelhada
ao simplismo que no exclui um cinismo provisrio, o que a leva a
voltar-se mais uma vez para o lado popular, ou seja, para o lado
natural dos no-especialistas.
Por conseguinte, de forma muito vulgar que a filosofia interroga a psicologia e diz: para aonde ides, para que eu saiba quem sois?
Mas o filsofo tambm pode dirigir-se ao psiclogo sob a forma de um
conselho uma nica vez no cria o hbito e dizer: quando se sai
da Sorbonne pela rua Saint-Jacques pode-se subi-la ou desc-la; quando se sobe, chega-se ao Panteo, o Conservatoire de alguns grandes homens, mas quando se desce, certamente se chega delegacia de polcia.

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