Canguilhem - 2009 - Que e A Psicologia
Canguilhem - 2009 - Que e A Psicologia
Canguilhem - 2009 - Que e A Psicologia
Que a Psicologia?*1
What is Psychology?
RESUMO Neste texto, originado de uma conferncia apresentada em 18 de dezembro de 1956 no Collge Philosophique (Paris) e publicado dois anos mais tarde, Georges Canguilhem propem-se a discutir a psicologia, investigando a existncia (ou no) de uma unidade de projeto que pudesse conferir sua unidade eventual aos diferentes tipos de disciplinas tidas ento como psicolgicas. Para responder questo Que a psicologia?, considera necessrio esboar uma histria da
psicologia. Mas enfatiza: uma histria considerada apenas nas suas orientaes e
relacionada com a histria da filosofia e das cincias, uma histria necessariamente
teleolgica, uma vez que destinada a transferir, para a interrogao proposta, o
sentido originrio suposto nas diversas disciplinas, mtodos ou empreendimentos,
cuja disparidade atual legitima essa pergunta.
Palavras-chave: psicologia epistemologia da psicologia histria da psicologia.
ABSTRACT In this article, originally presented at a conference on December 18,
1956 at the Collge Philosophique (Paris) and published two years later, Georges
Canguilhem discusses psychology by investigating the existence (or not) of a project
unity that could confer its eventual unity to the different types of disciplines considered as psychological. In responding to the question What is psychology?, it
is necessary to make a sketch of the history of psychology. But he emphasizes: a
history considered only in its orientations and relations with the history of philosophy and of sciences, a history which is necessarily teleological, since once destined
to transfer, for the proposed question, the supposed original meaning of the diverse
disciplines, methods or attempts, whose current disparity legitimates this question.
Keywords: psychology epistemology of psychology history of psychology.
*1 Nota do Editor (N.E.): texto publicado originalmente na Revue de Mtaphysique et de Morale (Paris, 1:
12-25, 1958), a partir de palestra proferida em 18 de dezembro de 1956, no Collge Philosophique de
Paris.
**N.E.: formado em medicina, o francs Georges Canguilhem (1904-1995) tornou-se um incomparvel
professor de filosofia; dedicado instituio acadmica, foi professor da Universidade de Strasbourg e da
Sorbonne, na qual dirigiu o Instituto de Histria das Cincias. Deixou trabalhos profundamente originais
em filosofia das cincias da vida.
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GEORGES CANGUILHEM**
Trad. Osmyr Faria Gabbi Jr.
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mas. A cincia da alma um domnio da fisiologia no seu sentido original e universal de teoria da natureza.
dessa concepo antiga que se origina sem ruptura um aspecto
da psicologia moderna: a psicofisiologia considerada durante muito
tempo exclusivamente psiconeurologia (mas atualmente tambm
como psico-endocrinologia) e a psicopatologia como disciplina mdica. Dada essa relao, no parece ser suprfluo recordar que antes
das duas revolues que permitiram o aparecimento da fisiologia moderna, a de Harvey e a da Lavoisier, devida a Galeno uma revoluo
de no menos importncia que a teoria da circulao ou da respirao,
quando ele estabelece, clnica e experimentalmente de acordo com os
mdicos da Escola de Alexandria, Herfilos e Erasstratos, e contra a
doutrina aristotlica, mas conforme as antecipaes de Alcmon, Hipcrates e Plato, que o crebro, e no o corao, o rgo das sensaes e do movimento, o lugar da alma. Galeno funda verdadeiramente, durante sculos, uma filiao ininterrupta de pesquisas de pneumatologia emprica, cujo elemento fundamental a teoria dos espritos
animais, destronada e substituda no fim do sculo XVIII pela eletroneurologia. Ainda que decididamente pluralista em sua concepo das
relaes entre funes psquicas e rgos enceflicos, Gall procede diretamente de Galeno e domina, apesar de suas extravagncias, todas
as pesquisas sobre localizaes cerebrais durante os sessenta primeiros
anos do sculo XIX, at o prprio Broca.
Em suma, enquanto psicofisiologia e psicopatologia, a psicologia
atual sempre recua at o sculo II.
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tendo em vista que ele no se identifica com a razo matemtica e mecanicista, instrumento da verdade e medida da realidade.
Mas essa responsabilidade censurvel aos olhos do fsico. Portanto, a psicologia constituda como um empreendimento de remisso do esprito. Seu projeto de uma cincia que, face fsica, explique
o motivo do esprito, primeira vista, ser coagido, devido a sua natureza, a enganar a razo em relao realidade. A psicologia faz-se fsica
do sentido externo para dar conta dos contra-sensos que a fsica mecanicista imputa ao exerccio dos sentidos na funo cognitiva.
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Mas o princpio da psicologia biolgica do comportamento no parece ter sido desprendido, da mesma maneira, de uma tomada de conscincia filosfica explcita; sem dvida, porque s pde ser posto em
prtica sob a condio de permanecer sem ser formulado. Esse princpio a definio do prprio homem enquanto ferramenta. O utilitarismo, que implica a idia de utilidade para o homem, a idia do homem enquanto juiz da utilidade, foi sucedido pelo instrumentalismo,
que implica a idia da utilidade do homem, a idia do homem como
meio da utilidade. A inteligncia no mais aquilo que fez os rgos
e serve-se deles, porm o que serve aos rgos. No impunemente
que as origens histricas da psicologia das reaes devem ser procuradas nos trabalhos suscitados pela descoberta da equao pessoal prpria aos astrnomos que utilizam o telescpio (Maskelyne, 1796). O
homem foi inicialmente estudado enquanto instrumento do instrumento cientfico antes de o ser enquanto instrumento de todo instrumento.
As pesquisas sobre as leis de adaptao e da aprendizagem, sobre
a relao entre aprendizagem e as aptides, sobre a deteco e a mensurao de aptides, sobre as condies de rendimento e de produtividade (quer se trate de indivduos, quer de grupos) pesquisas inseparveis de suas aplicaes em seleo ou orientao admitem todas
um postulado comum e implcito: a natureza do homem ser um instrumento, sua vocao ser colocado em seu lugar, em sua tarefa.
Nietzsche, sem dvida, tem razo quando diz que os psiclogos
querem ser os instrumentos ingnuos e precisos desse estudo do homem. Eles se esforaram para chegar a um conhecimento objetivo,
mesmo se o determinismo que procuram nos comportamentos no
seja mais hoje em dia o determinismo de tipo newtoniano, familiar aos
primeiros fsicos do sculo XIX, mas um determinismo estatstico, progressivamente baseado nos resultados da biometria. Mas qual , enfim,
o sentido desse instrumentalismo de segunda potncia? O que leva ou
inclina os psiclogos a tornar-se, entre os homens, os instrumentos da
ambio de tratar o homem como instrumento?
Nos outros tipos de psicologia, a alma ou o sujeito, forma natural
ou conscincia de interioridade, o princpio que se d para justificar
enquanto valor uma certa idia de homem em relao verdade das
coisas. Todavia para uma psicologia na qual a palavra alma faz fugir
e a palavra conscincia faz rir, a verdade do homem est dada pelo
fato de que no h mais nenhuma idia de homem enquanto valor diferente daquela de um instrumento. Ora, deve-se reconhecer que
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dade para lhe dizer o que e o que deve fazer. Tratar como um inseto,
a palavra de Stendhal, que a tomou emprestada de Cuvier.12 E se ns
tratarmos o psiclogo como um inseto; se ns aplicarmos, por exemplo,
a recomendao de Stendhal ao morno e inspido relatrio Kinsey?
Dito de outra maneira, a psicologia da reao e do comportamento, nos sculos XIX e XX, acreditou que se tornaria independente
ao separar-se de toda filosofia, ou seja, da especulao que pesquisa
uma idia de homem para alm do horizonte dos dados biolgicos e
sociolgicos. Mas essa psicologia no pode evitar a recorrncia de seus
resultados sobre o comportamento daqueles que os obtm. A questo
Que a psicologia?, na medida em que se interdita a psicologia de
procurar sua resposta, torna-se Onde querem chegar os psiclogos
fazendo o que fazem? Em nome de quem se declaram psiclogos?.
Quando Gedeo recrutou o comando dos israelitas e chefiando-os repele os madianitas para alm do Jordo, ele utiliza um teste em duas
etapas que lhe permite, inicialmente, escolher dez mil homens entre
trinta e dois mil, e depois trezentos entre os dez mil. Mas este teste
devedor do Eterno, tanto em relao ao objetivo de sua utilizao
quanto ao procedimento de seleo usado. Para selecionar um selecionador, preciso normalmente transcender o plano dos procedimentos tcnicos de seleo. Dada a imanncia da psicologia cientfica, permanece a questo: quem tem, no a competncia, mas a misso de ser
psiclogo? A psicologia repousa realmente sobre um desdobramento
que no mais aquele da conscincia de acordo com os fatos e as
normas que a idia de homem comporta , uma massa de sujeitos
e uma elite corporativa de especialistas que investem a si mesmos de
sua prpria misso.
Em Kant e em Maine de Biran, a psicologia est situada em uma
antropologia, ou seja, apesar da ambigidade, atualmente muito em
voga desse termo, em uma filosofia. Em Kant, a teoria geral da habilidade humana permanece relacionada a uma teoria da sabedoria. A
psicologia instrumentalista apresenta-se como uma teoria geral da habilidade, fora de qualquer referncia sabedoria. Se no podemos definir essa psicologia por uma idia de homem, ou seja, situ-la dentro
da filosofia, certamente no temos o poder de interditar a quem quer
que seja de se dizer psiclogo e de chamar psicologia ao que faz. Mas
ningum pode mais interditar a filosofia de continuar a interrogar-se
12 Ao invs de odiar o pequeno livreiro da cidade vizinha que vende o Almanaque Popular, dizia eu ao meu
amigo Senhor de Ranvelle, aplique-lhe o velho remdio indicado pelo clebre Cuvier; trate-o como inseto.
Investigue seus meios de subsistncia, procure adivinhar suas formas de acasalamento (Mmorires dun
Touriste, ed. Calmann-Lvy, tomo II, p. 23).
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