O Errante
O Errante
O Errante
ROBERT BLOCH
(Dedicado a H. P. Lovecraft)
Traduzido por Arthur Ferreira Jr.'.
Eu sou o que professo ser um escritor de fico bizarra. Desde a mais tenra
infncia, fui escravizado pela enigmtica fascinao do desconhecido e do
indecifrvel. Os medos sem nome, os sonhos grotescos, os caprichos mrbidos
e quase intuitivos que assombram nossas mentes, sempre causaram em mim
um prazer potente e inexplicvel.
Procurei uma mquina de escrever gasta, uma resma de papel barato, e alguns
papis carbono. Que melhor campo, se no os reinos infinitos da imaginao
colorida? Poderia escrever sobre horror, medo, e sobre o enigma que a
Morte. Pelo menos, na insensibilidade de minha falta de sofisticao, era isto
que eu tencionava.
Mas eu tinha de viver. De forma lenta, mas constante, comecei a ajustar meu
estilo s minhas ideias. Laboriosamente, experimentei com palavras, frases,
estruturas de sentenas. Era um trabalho, e um trabalho duro. Logo aprendi a
me esforar. Todavia finalmente uma de minhas histrias foi bem recebida; e
ento uma segunda, uma terceira e uma quarta. Logo, tive de comear a
dominar os truques mais bvios da rea, e o futuro enfim parecia mais
brilhante. Foi com a mente menos carregada que voltei minha vida de
sonhos e a meus amados livros. Minhas histrias rendiam-me um viver um
tanto apertado, e o por um tempo isto foi suficiente. Mas no por muito tempo.
A ambio, essa iluso eterna, foi a causa de minha runa.
Aps muita presso de minha parte, ele relutantemente consentiu em proverme os nomes de certas pessoas que considerava aptas a ajudar em minha
busca. Ele era escritor de notvel brilhantismo e ampla reputao entre os
poucos relevantes, e eu sabia que ele estava avidamente interessado no
resultado da demanda em si.
To logo sua preciosa lista chegou em minhas mos, comecei uma ampla
campanha postal para obter acesso aos volumes desejados. Minhas cartas
atingiram universidades, bibliotecas privadas, videntes famosos e os lderes de
cultos cuidadosamente ocultos e obscuramente designados. Mas estava fadado
ao desapontamento.
Verme.
O proprietrio no sabia dizer como foi que aquele livro havia chegado a sua
posse. Anos antes, talvez, tenha sido includo em algum lote variado, de
segunda mo. Obviamente no estava ciente de sua natureza, j que eu o
comprei por apenas um dlar. Ele embalou para mim a ponderosa coisa,
bastante satisfeito com a venda inesperada, e me deu um satisfeito bom-dia.
Ludvig atribua seu aprendizado feiticeiro aos anos que passara cativo entre os
magos e taumaturgos da Sria, e falava longamente dos encontros com os
gnios e efreets da mitologia do Oriente Mdio. Sabe-se que ele passou algum
tempo no Egito, e existem lendas entre os dervixes lbios falando dos feitos do
velho vidente em Alexandria.
De qualquer forma, seus dias de declnio foram passados no pas flamingo das
terras baixas, onde havia nascido e onde residia, apropriadamente, nas runas
de uma tumba pr-romana erguida na floresta prxima a Bruxelas. Ludvig
tinha a reputao de habitar ali entre um enxame de familiares e conjuraes
temerariamente invocadas. Os manuscritos ainda existentes falam dele de
maneira reservada, como sendo atendido por companheiros invisveis e
servos vindos das estrelas. Os camponeses evitavam a floresta noite, pois
no gostavam de certos rudos que ressoavam sob a lua, e muito certamente
no estavam ansiosos de ver o que andava venerando nos velhos altares
pagos que erodiam em certos bosques mais soturnos.
Qualquer que seja a verdade, essas criaturas que ele comandava jamais foram
vistas aps a captura de Prinn pelos lacaios inquisitoriais. Os soldados
perseguidores encontraram a tumba totalmente deserta, muito embora tenha
sido saqueada nos mnimos detalhes, antes de sua destruio. As entidades
sobrenaturais, os instrumentos e componentes incomuns todos haviam
curiosamente desaparecido. Uma busca nas florestas proibidas e um exame
temeroso dos estranhos altares no adicionou informao alguma. Haviam
manchas frescas de sangue nos altares, e tambm na roda de tortura, antes
do fim das sesses de questionamento de Prinn. Uma srie de torturas
particularmente atrozes falharam em suscitar quaisquer revelaes adicionais
do mago silencioso, e depois de muito os exaustos interrogadores cessaram de
tentar e lanaram o envelhecido feiticeiro numa masmorra.
II
Providence uma cidade adorvel. A casa de meu amigo era antiga e
esquisitamente georgiana. O primeiro piso era uma joia da atmosfera colonial.
O segundo sob antigos telhados de duas guas que sombreavam a imensa
janela, serviam como escritrio para meu anfitrio.
Foi ali que ponderamos naquela noite lgubre e fatdica de fim de abril; ali sob
a janela aberta que contemplava o mar azul. Era uma noite sem lua; opressiva
e melanclica com sua bruma que enchia a escurido de sombras quirpteras.
Em minha mente posso ainda v-lo o minsculo aposento iluminado por
lampio, com uma grande mesa e as cadeiras de espaldar alto; prateleiras
delimitando as paredes; manuscritos estocados em arquivos especiais.
Seu perfil magro jogava uma perturbadora sombra na parede, e seu rosto de
cera era furtivo luz plida. Havia um inexplicvel ar de portentosa revelao,
bastante perturbador em sua potncia; eu pressentia a presena de segredos
querendo ser revelados.
Seus olhos cintilavam com uma luz feral; seu perfil cadavrico ficou mais
tenso, conforme esquadrinhava aquelas runas mofadas. As sentenas
trovejavam numa temvel litania, e ento decaam em tons abaixo de um
sussurro, conforme sua voz ficava to suave quanto o sibilar de uma vbora.
Compreendi apenas algumas frases aqui e ali, pois em sua introspeco, ele
parecia haver esquecido de mim. Estava lendo algo sobre feitios e
encantamentos. Lembro de aluses a certos deuses da adivinhao como o Pai
Yig, o sombrio Han, e Byatis de barba de serpentes. Senti calafrios, pois j
conhecia esses nomes antigos, mas sentiria ainda mais calafrios se ao menos
soubesse o que estava para acontecer.
A coisa aconteceu rpido. Subitamente ele voltou-se para mim com grande
agitao, sua voz empolgada num tom estridente. Perguntou-me se eu
lembrava das lendas da feitiaria de Prinn, e das histrias dos servos invisveis
que ele ordenava que descessem das estrelas. Assenti, pouco compreendendo
a causa de seu sbito frenesi.
Ele contou-me ento a razo. Ali, num captulo sobre familiares, encontrara
uma orao ou feitio, talvez o mesmo usado por Prinn para convocar seus
servos invisveis de alm das estrelas! Deixe-me ouvir o que ele lia.
Sadoquae sigillum.
O resto aconteceu com apavorante rapidez. Num timo, meu amigo comeou a
gritar, perto da janela; gritar e agitar selvagemente as mos no ar vazio. luz
do lampio, vi suas feies contorcerem-se num esgar de agonia insana. Um
momento depois, seu corpo ergueu-se do cho, sem que nada o estivesse
segurando, e comeou a torcer-se para trs, num ngulo capaz de quebrar-lhe
as costas. Um segundo mais tarde, veio o nauseante som de ossos quebrados.
Sua forma agora pairava no prprio ar, olhos vidrados e mos apertando
convulsivamente algo que parecia invisvel. Mais uma vez atroou o som de
escrnio manaco, mas daquela vez dentro do quarto!
Isto foi tudo. Fui deixado sozinho no aposento, com aquele corpo mole e sem
vida a meus ps. O livro havia desaparecido; mas haviam impresses
sangrentas na parede, poas de sangue no cho, e o rosto de meu pobre
amigo era uma massa sangrenta, que morta fitava as estrelas.
Por um longo perodo de tempo, sentei sozinho, em silncio, antes que ateasse
fogo ao aposento e a tudo que ele continha. Depois disso, sa correndo, rindo,
pois eu sabia que as chamas erradicariam todo trao do que permanecia ali.
Havia chegado pouco antes, naquela tarde, e ningum me conhecia, e
ningum havia me visto, e parti antes que as chamas brilhantes me
denunciassem. Tropecei por horas por entre as ruas tortuosas, e rebentava
numa gargalhada contnua e idiota toda vez que olhava para as estrelas
sempre vigilantes, sempre ardentes, que observavam-me furtivamente atravs
dos rolos de nvoa assombrada.