(TEORIA) NESTAREZ, Oscar. Poe e Lovecraft - Um Ensaio Sobre o Medo Na Literatura
(TEORIA) NESTAREZ, Oscar. Poe e Lovecraft - Um Ensaio Sobre o Medo Na Literatura
(TEORIA) NESTAREZ, Oscar. Poe e Lovecraft - Um Ensaio Sobre o Medo Na Literatura
OSCAR NESTAREZ
Agradecimentos monolíticos a: Thais Rodegheri Manzano, pela orientação e pelos preciosos
conselhos; Roberta Okura, pelo carinho e incentivo; Fabricio Kassick, pela capa; Vitor França,
pela troca de ideias e experiências; Vince Vader e Guilherme Big, pelos autênticos oráculos nerds
que são.
Agradeço, também, a Maria Claudia, minha mãe, por animar em mim o interesse pelo
desconhecido; à minha irmã, Maria Isabel; e ao meu pai, José Eduardo, porto seguro sem o qual
aventuras como esta jamais seriam possíveis.
Para Roberta, cujo sorriso iluminado me convenceu de que nem tudo são trevas.
1
INTRODUÇÃO
Edgar Allan Poe e Howard Phillips Lovecraft: dois nomes que, mesmo quando
apenas sussurrados, já causam arrepios. Dois legítimos demiurgos noturnos, dois
narradores do abismo, dois missionários da imaginação desenfreada. E, por isso
mesmo, dois dos maiores autores da literatura fantástica universal. Ao primeiro,
qualquer autor de ficção atual deve tributo; sua obra abriu horizontes estéticos até
então inauditos e praticamente inaugurou a narrativa moderna de contos. Já
Lovecraft, menos conhecido em geral mas muito cultuado em certos círculos, deu
magnífica sequência aos caminhos abertos por Poe rumo a abismos insondáveis, a
mundos paralelos e, enfim, à verdadeira, definitiva literatura fantástica,
especialmente de horror.
Tendo como base a obra dos dois autores, este livro pretende apresentar a literatura
notadamente sua vertente “fantástica” como o diário de bordo da viagem do artista
rumo às vastidões inauditas de que, ao fim e ao cabo, todos somos feitos. O objetivo
também é apontar que o horror, o legítimo e definitivo horror, está logo aqui à
espreita, dentro de nós mesmos, vagando por essas mesmas vastidões.
Acredita-se que foi nesta seara que o autor se expôs mais genuinamente diante dos
leitores. É quando notamos toda a exuberância de sua inclinação à doença, à
decadência e ao desconhecido, dando a estes temas verdadeira expressão artística.
Nas palavras de Lovecraft, ele mesmo um fiel seguidor do poeta, os heróis deste
tinham “qualidades mais particulares que pareciam advir do próprio Poe, que com
certeza tinha muito da depressão, sensibilidade, aspiração insana, solidão e
esquisitice extravagante que ele atribui a suas vítimas altivas e solitárias do
Destino” (LOVECRAFT, 2007:69).
O que se busca enfatizar é que Lovecraft não saiu dos domínios do horror; toda a
sua obra versa sobre o medo primordial, a atmosfera da loucura, o pânico absoluto e
sem concessões, e seus recursos para atingi-lo eram invariavelmente semelhantes, de
modo que seus contos são sempre inconfundíveis. M as esta semelhança não torna a
leitura enfadonha.
Pelo contrário, acredito que a genialidade de Lovecraft reside na forma como ele
combinou estes elementos e, claro, no estado de muda prostração em que nos deixa
qualquer um de seus relatos. Eis o maior motivo da dificuldade da escolha: eleger
quais contos analisar, uma vez que todos têm fascinante poder de devastação. Ao
menos para o leitor apaixonado.
Foi citado, pouco acima, o leitor apaixonado. Certamente ele se lembra da primeira
vez, provavelmente no início da adolescência, em que leu alguma obra de Poe ou
Lovecraft.
O trajeto até estes primeiros encontros também deve ter sido o mais óbvio para o
adolescente: filmes. Antes de ler qualquer conto ou romance dos dois, é bastante
provável que o leitor apaixonado já houvesse visto uma série de filmes baseados em
suas obras. O que é um enorme perigo, uma vez que a transposição para o cinema
pode aniquilar qualquer impacto que tais relatos causam. Porque ambos trabalham o
inefável e o irretratável com ardor incomparável, de modo que insistir em dar formas
tanto às criaturas impossíveis de Lovecraft ou às propostas insanas de Poe pode
aniquilar o que há de mais fascinante em seus ofícios: a sugestão. Salvo exceções,
claro, há filmes dignos de sua inspiração, mas isso será analisado ao final deste texto.
O que não há são dúvidas de que a sugestão é muito mais poderosa se excitada pelas
páginas de um livro, que nos estimula a revirar nosso próprio repertório mental em
busca de tintas e pincéis que ilustrem a narrativa. Ou seja, quando colocamos mais
de nós mesmos em histórias que evocam o desconhecido, sem concessões visuais,
quando derrubamos o espesso véu da realidade, que nos isola acústica e
sensorialmente de sons e fragmentos de um passado imemorial, tornamo-nos
vulneráveis. E uma vez vulneráveis, passamos a ouvir essa estranha voz que nos
convida a entrar e explorar nossos próprios recantos esquecidos ou nunca visitados.
Assim, pode-se dizer que a reação natural e imediata de nossos ancestrais foi utilizar
o ainda pouco evoluído aparato intelectual para justificar o desconhecido, explicar o
incompreensível. Há indícios de que foi então que surgiram as mais remotas lendas
de que se tem notícia, muito anteriores a qualquer observação científica. Hipóteses
que, ao lado dos retratos cotidianos de caçadas, rituais e outros, foram gravadas pelo
homem primevo nas entranhas das cavernas em que morava. Ao mesmo tempo,
alguns estudos revelam que histórias “extraordinárias” foram transmitidas oralmente
de geração a geração.
Aqui é natural que se evoque a consagrada cena em que homens ancestrais, reunidos
em torno de uma fogueira noturna, ouvem atentamente o ancião da tribo.
M as é importante mencionar que, até então, a narrativa fantástica de que hoje temos
notícia, como um estilo estabelecido com regras e preceitos, não existia. O que havia
eram relatos de pavor e mistério profundos, espalhados por baladas, crônicas e
escritos sagrados dos mais imemoriais. Segundo Lovecraft, eles estavam presentes
ao longo de toda a história antiga, dos cerimoniais mágicos pré-históricos ao Egito,
passando também pelas primeiras nações semitas. Do Oriente ecoam O livro de
Enoque e A chave de Salomão, cujos alucinantes fragmentos dão prova do poder
exercido pelo fantástico nestas longínquas eras. M as foi a partir da Idade M édia,
tempo em que o ocidente encontrou respostas principalmente religiosas para
algumas das principais questões sobre a existência humana, que o interesse pelo
assunto chegou ao apogeu de até então. E é daí que vêm os principais elementos que
deram origem ao estilo literário que analisaremos no capítulo seguinte o gótico, este
sim o verdadeiro berço do fantástico.
Segundo Lovecraft, o autor deu “ao impulso crescente uma forma definitiva e se
tornou o verdadeiro fundador da história de horror literária” (LOVECRAFT,
2007:26). Isso porque a história de Walpole apresenta, com exuberância, todos os
elementos “assombrados” que hoje são característicos do romance gótico: cenários
medievais como castelos, igrejas, florestas e ruínas, personagens intensamente
dramáticos e temas recorrentes, como profecias, segredos do passado, maldições e
manuscritos reveladores.
Concebido em uma época que andava sedenta pelas estranhezas e pelos espectros da
antiguidade, O Castelo de Otranto não apenas saciou essa sede como foi recebido
com seriedade inédita até pelos leitores mais judiciosos. Além disso, e novamente
segundo Lovecraft, Walpole criou um tipo inovador de cenários, personagens típicos
e incidentes que inspiraram profundamente os verdadeiros criadores de um terror
cósmico. Vastidões imensuráveis, castelos antiquíssimos, catacumbas ocultas, lendas
apavorantes, nobres e tirânicos vilões, heróis virtuosos e imaculados: a partir de
Walpole, todo esse arsenal ficou à disposição dos criadores literários para que se
estabelecessem os primórdios da verdadeira atmosfera de horror.
Artista incansável e polivalente, foi compositor (autor de uma sinfonia, nove óperas
e duas missas), caricaturista e pintor. M as foi no campo literário que deixou sua
indelével marca de estranheza e maravilhamento. Isso a ponto de influenciar, entre
muitos outros, titãs intelectuais como Jung e Freud.
A influência do escritor alemão foi tamanha que, pelo menos na primeira metade do
século XIX e ainda de acordo com CALVINO, “conto fantástico” é sinônimo de
“conto à la Hoffmann” (2004:12).
Por toda a Europa ecoa a influência do autor, da Rússia de Gogol à França de
Charles Nodier, Honoré de Balzac e Théophile Gautier. Aliás, é na França que o
fantástico oitocentista ganha novos e variados matizes, como o esoterismo do
próprio Nodier e de Gérard de Nerval, e o esteticismo de Gautier, tão importante
para o desenvolvimento do conto fantástico moderno. Já Nerval coloca uma nova
carta na mesa: o conto-sonho, de carregado lirismo, devaneio e subjetividade. Há
ainda as histórias mediterrâneas e nórdicas de Prosper M érimée que, assim como
acontecia com as artes plásticas de então, acrescentam uma apreciada novidade ao já
efervescente cenário: o contato com o exótico.
Do outro lado do canal da M ancha, o Reino Unido mantém seu fiel apreço pelas
histórias de horror e fantasia, agora sofisticadas pela fina pena de narradores como
M ary Shelley, Charles Dickens e, principalmente, o irlandês Joseph Sheridan Le
Fanu. Considerado o primeiro escritor a realmente se especializar na literatura
fantástica, Le Fanu não escreveu nada além de histórias de fantasmas e de horror,
floreando suas narrativas com a riquíssima imaginação popular irlandesa e
embasando suas tramas em controvérsias religiosas ele era protestante.
É importante notar que, até aqui, tratamos de nomes que privilegiaram a questão
visual em suas histórias. Italo Calvino afirma que, para a literatura sobrenatural
oitocentista, “o verdadeiro tema é a realidade daquilo que se vê: acreditar ou não
acreditar nas aparições fantasmagóricas, perceber por trás da aparência cotidiana
um outro mundo, encantado ou infernal” (CALVINO, 2004:13).
“Aqueles que sonham de dia têm consciência de muitas coisas que escapam
àqueles que sonham apenas à noite.”
Poe, Eleonora.
Também pudera: segundo filho (tinha um irmão mais velho e uma irmã mais nova)
dos atores David Poe e Elizabeth Arnold, Edgar perdeu ambos ainda criança, antes
de completar três anos de idade, sendo logo depois adotado pelo abastado casal John
Allan e Frances Kielling Allan, de Richmond. Isso lhe proporcionou educação de
qualidade, viagens pelo velho mundo (que lhe causariam profunda impressão) e
alguns anos de segura calmaria, rapidamente interrompidos por seus rompantes.
Escritor maduro, só faz refinar sua técnica nos contos, poemas e críticas literárias
que produz. A revista se impõe como referência e Poe atinge notável status no meio,
de modo que a relativa estabilidade profissional se estende à vida pessoal: ainda
morando com a tia, ele acaba por se casar com sua filha, a prima Virginia Clemm, de
apenas 13 anos, em 1836. M as a calmaria não dura muito mais. Ao cabo de dois
anos, o incorrigível Poe já palmilha o movediço terreno rumo ao abismo alcoólico, o
que devasta a boa relação que tinha com o patrão e culmina com a sua demissão.
Desempregado, novamente decide mudar de ares e parte, com Virginia, para Nova
Iorque. Lá é publicada, em 1838, sua única novela completa, A narrativa de Arthur
Gordon Pym.
A partir daí a ruína é total. Se antes Poe caminhava lentamente para o suicídio, agora
corre a passos largos. E o faz com gosto, bebendo cada vez mais, comportando-se de
forma violenta e sofrendo de seguidos ataques de delirium tremens. Até que, no
outono de 1849, durante um tour literário que promovia para angariar fundos, um
noturno Poe entrou em uma taberna de Baltimore e lá consumiu suas últimas e
dissipadas horas em bebedeira selvagem.
Existem controvérsias sobre as causas de sua morte. Há quem diga que foi em
decorrência do alcoolismo, há quem afirme que ele foi assassinado e há quem acredite
nas mais diversas doenças. O fato é que, naquela última noite, já fria e avançada,
quase parindo o dia, ele sai extremamente ébrio da taberna a perambular sem rumo
pelas ruas, até que aquele gelado vento noturno, velho conhecido seu e tão
inspirador em outras épocas, visita-o uma última vez. Como de costume, o sopro se
anuncia pelo apagar de velas moribundas e pelo ranger de portas distantes, e o ataca,
desta vez mais implacável do que nunca, para extinguir a chama da sua existência.
Pouco antes do amanhecer, Poe é encontrado inconsciente e levado ao hospital
Washington College, onde, com 40 anos, vem a falecer. É enterrado sem qualquer
cerimônia em uma vala comum do cemitério local.
Em brevíssimas e insuficientes linhas, essa foi a vida de um dos autores das obras
nas quais mergulharemos a seguir. Uma vida introspectiva, catastrófica, rebelde e,
exatamente por isso, valiosíssima para este livro. Afinal, Poe buscou dentro de si
mesmo a motivação, o fôlego para percorrer vastidões inéditas na literatura
fantástica. A principal substância em sua obra são seus próprios traumas e
experiências, sua própria vida. Ao lado de Guy de M aupassant, Ambrose Bierce e
tantos outros atentos observadores dos horrores e das minúcias secretas do
cotidiano no século XIX, Poe absorve a tragédia a própria e a alheia para nos
devolver relatos que invariavelmente causam absoluta estranheza e indiscutível
maravilhamento. A diferença é que o faz com uma entrega e um rigor inéditos, que o
separam dos demais.
A disciplina, para ele, parecia só existir quando aplicada à firmeza intelectual, sendo
nesse sentido irredutível, draconiano até.
Ele soube como pouquíssimos nos estender a sua mão verbal para que o
seguíssemos floresta literária adentro.
É por essa capacidade de escrever com a própria vida que o próprio Poe foi o maior
personagem de si mesmo. Antes de Roderick Usher, de Arthur Gordon Pym e de
Frederick M etzengerstein, foi Poe e ninguém mais a principal vítima de neuroses
transmutadas em suposições alucinantes, o acossado pelas sombras, o perseguido e
o perseguidor obcecado por tudo o que está oculto pelo espesso véu do cotidiano.
Evocando uma figura já conhecida e perdida algumas páginas acima, Poe, assim como
Lovecraft depois dele, foi o bardo que cantou os recantos escuros do dia-a-dia, que
poetizou as arestas esquecidas do lugar-comum, que narrou as lendas abandonadas
em esquinas da rotina. O bardo que transmitiu à posteridade histórias íntimas, todas
suas, mas que fascinam justamente pela beleza e pela veemência com que nos
exortam a olhar para dentro de nós mesmos ao invés de para fora.
A seguir vamos nos deter em algumas dessas histórias, vamos analisá-las e decantá-
las para entendermos um pouco mais desse fascínio que, além de universal, é acima
de tudo atual. Claro, pois nunca o mundo literário e até o narrativo em geral esteve
tão carente de nomes do calibre criativo de Poe ou Lovecraft, copiados e adaptados à
exaustão no cinema, na música e até em jogos eletrônicos.
Pois apesar de não ser tão gigantesca quanto a de outros autores, a obra de Poe
encanta por ser toda ela assombrosa, constituindo-se tarefa das mais ingratas
selecionar um recorte específico para análise. É preciso decidir entre o contista, o
novelista e o poeta, naturalmente deixando de lado o crítico por se tratar de um
trabalho dirigido à ficção.
Ainda assim a empreitada é inglória, já que é inviável acolhermos toda a produção e,
ao abarcarmos apenas alguns contos e um poema, certamente deixaremos à deriva
outros tão valiosos quanto, ou até mais.
Desta forma, podemos interpretar que a intenção de Poe, ao nomear a obra, foi
qualificar suas histórias tanto como noturnas, sombrias, inclinadas às trevas de uma
gruta interior, quanto como vertiginosas, inacreditáveis, voluptuosas, cheias de
movimentos inesperados e de surpreendentes revelações.
Bastante à vontade nos domínios da psicologia, Poe soube como poucos construir
seus “heróis” de forma a sempre conquistar nossa empatia, não importando quão
cruéis ou desumanos fossem. São réus confessos e advogados de si próprios,
defendendo a todo custo e com violenta paixão as suas inimagináveis e perversas
maquinações. É assim, por exemplo, com o narrador de O gato preto, que se nos
apresenta como dócil amante dos animais desde criança. “Gostava, especialmente,
de animais, e meus pais me permitiam possuir grande variedade deles” (POE,
2002:39), diz ele que, já adulto, mantém estas características e um apreço especial
por seu enorme gato preto, de nome Pluto, que era seu “preferido”, com o qual ele
“mais se distraía”.
Pior para Pluto, que pouco depois é enforcado pelo dono porque este já não mais
suporta sua “ominosa” presença.
M as, à revelia disso, o protagonista segue em frente com seu regime de horror. Após
algum tempo ele encontra, durante suas vadiações, um gato preto e grande como
Pluto, diferindo desse apenas por uma mancha branca no pescoço. A marca de uma
corda, talvez? A pergunta fica no ar. O fato é que o gato o acompanha, tornando-se
rapidamente o seu novo objeto de ódio. Logo depois ele descobre que o animal
também só tem um olho, o que só faz aumentar sua aversão. M as quanto mais ele o
odeia, mais o gato o prefere, até que a situação chega às raias do insuportável.
Violentamente atormentado, o narrador parece incorporar o próprio animal,
chegando enfim ao último de seus círculos infernais: “naquele momento eu era um
miserável um ser que ia além da própria miséria da humanidade. Era uma besta-
fera, cujo irmão fora por mim desdenhosamente destruído...” (POE, 2002:46).
Eis a conclusão do conto, que não redime o criminoso. Sua perversidade sem
fim e sua renúncia a qualquer clemência ou humanidade haviam sido punidas.
Por ser mais descontraído e repleto de cinismo, o conto nos afasta das sombras
pelas quais caminhávamos até há pouco. M as ainda assim é um dos arranjos mais
divertidos de Poe, que nos deu saborosas passagens, como: “(A mãe de Toby
Dammit) fez o que pôde para castigá-lo enquanto ainda pequeno (...), porém tinha a
desgraça de ser canhota. O mundo gira da direita para a esquerda. Não se deverá,
pois, açoitar uma criança da esquerda para a direita. Se cada golpe, na direção
própria, lança para fora uma má propensão, conclui-se que cada pancada, numa
direção oposta, soca para dentro sua parte de maldade. “(POE, 2002:239).
Tal é a fábula com que Poe, sem recusar a violência que lhe é peculiar, abre uma
espécie de parêntese para dialogar mais proximamente com os leitores, exortando-os
ao comedimento e à sensatez que ele próprio tantas vezes desprezou. É como um
clarão doentio que se abre na penumbra da floresta, em que é possível enxergar mais
nitidamente os perigos que derivam de nossos atos inconsequentes. M as a clareira
logo fica para trás e a floresta volta a se encerrar, desta vez mais escura do que
nunca, já que agora estamos cercados pelas trevas da Inquisição espanhola: estamos
diante d’ O poço e o pêndulo.
Situado entre os contos mais sombrios do livro, é também um dos mais famosos de
Poe. Foi inúmeras vezes adaptado para o cinema e serviu de inspiração para canções
dos mais variados estilos, do metal pesado à música erudita, em uma espécie de
culto que pode ser justificado pelo domínio magistral dos recursos que, ainda hoje,
fazem da história um verdadeiro pesadelo. A ambientação gótica de criptas e
catacumbas gotejantes, o narrador novamente em primeira pessoa, que aos poucos
tem a dimensão de seus infortúnios, os carrascos cujas identidades nunca são
reveladas e uma luta constante entre delírio, esgotamento psicológico e consciência
proporcionam uma experiência literária sem precedentes. As primeiras linhas já são
fulminantes: “Estava exausto, mortalmente exausto com toda aquela longa agonia”
(POE, 2002:249). E conforme o pobre homem se dá conta do próprio paradeiro, a
situação só faz piorar: Vi, também, durante alguns momentos de delírio e terror, a
suave e quase imperceptível ondulação das negras tapeçarias que cobriam as
paredes da sala, e meu olhar caiu então sobre as sete grandes velas que estavam
em cima da mesa. A princípio, tiveram para mim o aspecto de uma caridade, e
pareceram-me anjos brancos e esguios que deveriam salvar-me. (POE, 2002:250).
O réu está diante de seus carrascos, ouvindo sua terrível sentença, que Poe mantém
habilmente oculta. Exausto, ele adormece a sonhar com a morte e acorda na primeira
etapa de seu martírio o breu total de uma espécie de calabouço.
Pouco tempo depois ele adormece, novamente esgotado, e acorda para o segundo
suplício, agora amarrado por braços e pernas a uma espécie de andaime. Recobrando
os sentidos, aos poucos percebe que, logo acima de si, há um enorme pêndulo com
uma lâmina que passa a se mover e, para a sua mortificação, vai descendo, a
princípio com muito vagar e depois mais rapidamente. Poe consegue manter por
longas linhas essa situação-limite servindo-se de exaltados arranjos, como: “Para
que falar das longas, longas horas de horror mais do que mortal, durante as quais
contei as rápidas oscilações do aço? Polegada a polegada, linha a linha, descia aos
poucos, de modo só perceptível a intervalos que para mim pareciam séculos. E
cada vez descia mais, descia mais!... (POE, 2002:260).
Até que lhe surge a ideia de esfregar restos de comida nas tiras de couro que o
prendem para que os ratos as roam. Ele desta forma se liberta no último segundo,
mas, ao se soltar e caminhar pelo chão, ativa uma espécie de mecanismo que recolhe
o pêndulo e faz com que as paredes passem a se fechar sobre si. Novamente sua
angústia (e a nossa) parece não ter fim, e o delírio segue:
É o fundo dos fundos, o confronto final entre o condenado e seus maiores temores,
aqui essencialmente religiosos, em um combate amplificado pela atmosfera oculta em
que foi lançado. M as ele sai vencedor, sendo enfim salvo no último instante pela
cavalaria francesa que o livra das garras da Inquisição.
Abra-se um breve parêntese para se observar que se notam, neste conto, vários dos
elementos que serão familiares à obra de Lovecraft. A ambientação, o mal à espreita,
a descida sem fim: perceber-se-á, em breve, como ele se serviu fartamente das
receitas de Poe para criar seus próprios festins do pavor. São aspectos que também
se encontram em vários outros contos, como o próprio O gato preto e,
principalmente, Manuscrito encontrado em uma garrafa.
O que começa como pura aventura marítima, tão comum à época em que a navegação
colonialista ainda inspirava autores como M elville (seu Moby Dick é de 1851),
envereda para um assombroso mergulho nos distantes mares polares. E o que se
segue são o legítimo horror e a inevitável loucura advindos do encontro com o
desconhecido, tema este tão caro a Lovecraft.
“(...) percebi o clarão triste e sombrio de uma luz vermelha, a flutuar sobre a
vertente do imenso abismo em que nos achávamos e a lançar sobre o nosso convés
um vacilante reflexo. Erguendo os olhos, deparei com um espetáculo que me fez
gelar o sangue nas veias. A uma altura tremenda, diretamente sobre nós,
justamente sobre a precipitosa muralha de água, navegava um navio gigantesco,
que deslocaria talvez quatro mil toneladas”. (POE, 2002:68 e 69).
São “fantasmas de séculos extintos”, e o próprio navio parece ter idade imemorial,
escuro, úmido e poroso. M as, à revelia disso, o barco segue a pleno pano rumo ao
coração do que aparenta ser o pólo sul. E assim como a tormenta, a excitação do
narrador só faz aumentar:
“Julgo inteiramente impossível que alguém possa imaginar os horrores por que
passei; não obstante, a curiosidade de penetrar os mistérios destas espantosas
regiões predomina sobre o meu desespero” (POE, 2002:75). Aqui também
encontramos um apelo à nossa capacidade imaginativa, um chamado para que nos
lancemos ao inconcebível.
Acredito ser este o momento em que tanto Poe quanto Lovecraft nos convidam a
suspender nossas patrulhas da realidade para ultrapassarmos os umbrais do crível.
Posto isso, logo após este trecho encontramos o seguinte: “É evidente que nos
encaminhamos rapidamente para algum conhecimento excitante para algum
segredo que não deverá jamais ser revelado, e cujo final será a destruição” (POE,
2002:75). Temos aqui a genuína matéria do inefável manuseada com destreza
incomparável, o momento em que se dá o mergulho sem volta. Pouco depois, a
tormenta recrudesce e acaba por engolir o navio, de onde ouvimos o último e
desesperado apelo do narrador.
Uma derradeira observação em relação ao conto: lembremos que se trata, como diz o
próprio título, de um manuscrito encontrado em uma garrafa, espécie de relato
epistolar que dá liberdade ilimitada para o escritor fantástico confessar ao papel os
mais selvagens arroubos de sua imaginação, sem o ônus de que seu narrador em
primeira pessoa pereça no final, demolindo a lógica. O recurso foi novamente usado
por Poe no fabuloso Aventuras sem paralelo de Hans Pfaal e em várias outras
narrativas. Lovecraft, por sua vez, também recorreu a ele para descrever suas
Montanhas da loucura, que serão perscrutadas em breve.
5.6. WILLIAM WILS ON
Logo no início somos apresentados ao infame William Wilson, cujo nome real ele
prefere omitir para não ver “manchada” a folha de papel em que escreve. Ele já
começa se purgando por algo terrível que cometeu, que condenou sua existência a um
“auge de torpeza”, ao “horror” e aos “mistérios da mais estranha de todas as visões
sublunares” (POE, 2002:78). A descrição é minuciosa e detalhada, fruto da
atormentada alma que há muito guarda uma inconfessável verdade e enfim encontra
alguém com quem é capaz de se abrir. Tornamo-nos, assim, os analistas cúmplices,
os depositários de sonhos, regressões e delírios com que William, deitado no divã,
tenta justificar seu atual e odioso estado.
Devido ao seu gênio imperioso e ardente, o herói logo se impõe sobre todos os
coleguinhas. Todos, menos um: o aluno que coincidentemente também se chamava
William Wilson (o nome real é novamente omitido). Ambos rivalizavam em tudo,
sendo que o homônimo parecia existir simplesmente para tolher e negar o “original”,
causando-lhe inúmeros aborrecimentos. M as o que realmente enlouquecia o narrador
era a exímia imitação de si de que o segundo Wilson, apesar da limitação que reduzia
sua voz a um fraco sussurro, era capaz:
“Wilson dava-me a réplica com uma perfeita imitação de mim mesmo gestos e
palavras e representava admiravelmente seu papel. Meu traje era coisa fácil de
copiar, meu andar, minha atitude geral, ele fizera seus sem dificuldade e, a despeito
de seu defeito constitutivo, nem mesmo minha voz lhe havia escapado. “(POE,
2002:86).
Ademais, aqui a ideia é explorada com sutileza fantástica nos dois sentidos que a
palavra carrega, pois além da habilidade com que Poe nos conduz ao clímax, em
nenhum momento sabemos se o outro Wilson existe ou não. O que é certo é que a
situação levou o protagonista a querer pregar uma violenta peça no colega; porém,
entrando furtivamente em seu quarto à noite e iluminando o rosto adormecido de seu
rival, assustou-se mortalmente ao ver nele as feições que tinha certeza serem suas:
“Meu coração palpitou, os joelhos vacilaram, toda a minha alma foi tomada de um
horror intolerável e inexplicável” (POE, 2002:89).
Então foge alucinadamente da escola e vai para outra cidade, onde vive com certa
serenidade durante vários meses. M as lá também seus pendores para o vício só se
fortalecem e, enquanto participava de uma orgia de jogos, bebidas e “outras
seduções, mais perigosas”, ele é chamado por um criado, que anuncia uma repentina
visita: vê, diante de si, ninguém menos do que seu sósia, que com o temido sussurro
exclama seu nome. Transido, o narrador chega a perder os sentidos, e neste ínterim o
outro some.
Em dado momento, o narrador faz uma observação curiosa: “inúmeras vezes em que
ele atravessara o meu caminho, recentemente, jamais o fez senão para frustrar
planos ou derrotar ações que, se bem-sucedidas, teriam redundado em amarga
decepção” (POE, 2002:97).
Ponto final na vida dos dois, e nesta que é uma das mais corajosas expedições de Poe
pelas traiçoeiras profundezas da psique.
5.7. O CORVO
Caminhamos, assim, para a conclusão da análise a que nos propusemos fazer neste
capítulo. M as ela permanecerá incompleta se não devotarmos algumas linhas ao
pássaro que, após voar por céus ausentes, pousou para sempre nos umbrais de um
isolado e atordoado erudito: estamos falando d’ O corvo. Transcrevo-o aqui,
integralmente, na tradução em verso de Fernando Pessoa:
Pináculo da também prolífica poesia de Poe, O corvo tem todos os elementos que
consagraram a prosa do autor: o isolamento, a melancolia, uma violenta tempestade,
um personagem profundamente perturbado, os delírios, o terror claustrofóbico e
inúmeras menções a tempos imemoriais, como vemos nos seguintes versos:
Pouco depois bate à vidraça o corvo agourento, que entra e se acomoda sobre o
busto de Palas Atena sobre os umbrais do pobre homem. Fosse uma das histórias
extraordinárias, que por sinal já eram repletas de beleza poética, d’ O corvo
emanariam uma ambientação inigualável e uma incrível força narrativa, criada pela
intimidade e a cumplicidade existente entre os únicos personagens. M as não: para
narrar seu encontro com o destino, Poe escolheu cavalgar pelas imensas vastidões
poéticas.
A exclamação final ressoa como uma trovoada na tempestade que persiste. M as,
assim como a peça de Beethoven que segue reverberando mesmo após o último
acorde, O corvo continua a ecoar muito depois que seu interlocutor se silencia.
Porque no momento em que abrimos a janela e o deixamos entrar, permitimos que o
vento apague as velas, e encontramo-nos a sós, no breu total, com os mais
apavorantes espectros que existem: aqueles que habitam os desvãos abandonados
dos nossos próprios abismos, cujo despertar só depende do impassível grasnar de
um pássaro ou de um escritor sobrenatural. Apenas isso e nada mais.
6
H. P. LOVECRAFT: O VIAJANTE
CONFINADO
“Vivemos em uma plácida ilha de ignorância no meio de infinitos oceanos
negros, e não devemos viajar para longe”.
Lovecraft, O chamado de Cthulhu, pg. 01
Antes de tudo, é preciso dizer que Howard Phillips Lovecraft é tão misterioso
quanto a sua obra.
Reservado, introspectivo e, por diversos motivos, recluso, é também um dos mais
estranhos autores de que se tem notícia, cercado por uma névoa de isolamento que
só faz intensificar a particularíssima atmosfera de seus contos e novelas. Jamais saiu
da América do Norte, e mesmo assim viajou pelos meandros da imaginação como
poucos ou talvez ninguém antes jamais havia feito. Para encontrá-lo e observá-lo,
para se compreender a formação de um dos mais importantes escritores fantásticos,
é preciso viajar para as terras inconcebíveis de continentes adormecidos, é preciso
transpor as titânicas montanhas que ele ergueu ao redor de si para se proteger de
uma realidade que de várias formas tentou esmagá-lo. Pois, desde o início, a vida foi
inimiga de Lovecraft, fato que como veremos será determinante em sua obra.
Logo aos três anos enfrenta a primeira de inúmeras tragédias que lhe forjariam o
caráter: o pai sofre uma grave crise nervosa, que deixa sequelas indeléveis e o confina
em casas de repouso até o fim da vida. Assim, sua criação fica sob responsabilidade
da mãe e do avô, que instilou no neto o hábito de leitura desde cedo e arranjou para
ele versões infantis da Ilíada e da Odisséia, de Homero, e de As Mil e uma noites,
que lhe causariam profunda impressão. O avô também foi o responsável pelo
primeiro contato de Lovecraft com os clássicos da literatura gótica de horror, que o
influenciariam irreversivelmente.
Aos oito anos ele desvendou as maravilhas da ciência, primeiro através da química e
depois com a astronomia.
As coisas andavam bem para o suscetível garoto até que, em 1904, a morte do avô,
alicerce e provedor da família, assoma como um furacão. A dissolução de seus bens
lança filha e neto em sérias dificuldades financeiras, e os dois têm de se transferir da
confortável propriedade de até então para as modestíssimas cercanias da Angel
Street, uma mudança que devastou o já delicado estado de espírito do garoto. Ele
chega a cogitar suicídio, mas a recém-descoberta sede de conhecimento suplanta a
possibilidade, entretendo-o durante alguns calmos anos.
“Em 1914, quando a gentil mão do amadorismo me foi estendida pela primeira vez,
eu estava tão perto do estado de vegetação quanto qualquer animal pode estar (...)
Pela primeira vez eu pude imaginar que meus desajeitados sapateios sobre a arte
eram algo mais do que fracos lamentos perdidos em um mundo que se recusava a
ouvi-los.” (LOVECRAFT, 2007:112).
Foi também esta agitação que levou Lovecraft a retomar a pena da ficção para
conceber, no verão de 1917, A tumba e Dagon, este um dos maiores frutos de sua
incomparável habilidade em compor mitologias arcanas. Porém, sua produção
ficcional ainda era ocasional e esparsa, com o autor se ocupando majoritariamente
com ensaios, poemas e uma animada troca de correspondência durante este que foi
um período de inédita serenidade. Arrisco dizer até que, não fosse uma nova
tragédia, talvez Lovecraft chegasse ao ponto de fazer jus ao sobrenome, entregando-
se a escrever apaixona-das novelas de amor.
O que, felizmente para nós e infelizmente para ele, não foi o caso: em 1919 é a vez
de sua combalida mãe sofrer um colapso, sendo internada no hospital local para de lá
jamais sair. Ela morreu em 1921, fato que novamente despedaçou o filho. M as desta
vez ele foi capaz de se recompor com mais agilidade, reaparecendo socialmente
algumas semanas depois em uma convenção jornalística em Boston, onde conheceu
sua futura mulher, Sonia Green. Os dois se casaram três anos depois e Lovecraft
mudou-se para o apartamento dela, em Nova Iorque. As perspectivas eram boas: ele
conseguira se estabelecer como contista profissional após a renomada revista Weird
Tales aceitar inúmeros de seus trabalhos, e ela comandava uma bem-sucedida loja de
chapéus na Quinta Avenida.
M as naturalmente que a calmaria foi breve. A loja logo abriu falência, Lovecraft
recusou o posto de editor que lhe foi oferecido pela Weird Tales por implicar em se
mudar para Chicago, e a saúde de Sonia se deteriorou rapidamente, obrigando-a a
uma temporada em um sanatório. Ao sair de lá, em 1925, ela conseguiu um trabalho
em Cleveland, e Lovecraft foi forçado a se mudar para um apartamento de solteiro
na desoladora região de Red Hook, em NY. Iniciou-se um novo período de
depressão e isolamento na vida do autor, que, politicamente conservador, sentia-se
profundamente incomodado pela “massa estrangeira” da cidade, e ansiava mais e
mais pela sua querida Providence natal. Os trabalhos de então apenas refletem essa
situação: sua ficção vai da nostalgia pura e simples de A casa abandonada até a
profunda misantropia de Horror em Red Hook e Ele. Até que, em 1926, ele enfim
concretiza seu desejo de voltar para Providence e lá começar um negócio. M as a um
alto preço: sua família era contra o casamento com Sonia, judia e sete anos mais
velha, e, mesmo nutrindo forte afeição pela esposa, ele é forçado a pedir o divórcio,
que se consuma em 1929.
De volta à cidade de seu nascimento e agora sem grandes laços com o mundo além
dela, Lovecraft passa então a viver a década final de sua vida, que também foi a mais
prolífica. É quando ele se estabelece como o autor de “estranhos contos” da Nova
Inglaterra, é quando produz suas obras mais conhecidas, como O chamado de
Cthulhu, A sombra fora do tempo e Nas montanhas da loucura, é quando ele
encorpa sua já robusta comunicação espistolar e, enfim, é quando ele inspira a
carreira de jovens escritores da região, como August Derleth e Fritz Leiber. M as os
anos finais de sua vida são especialmente cruéis: sua tia preferida vem a falecer, um
de seus mais íntimos correspondentes comete suicídio e seus contos se tornam
longos e complexos demais para serem publicados.
Foi justamente o encontro entre estas duas realidades que deu origem à arte de
Lovecraft. Afinal, seus contos invariavelmente começam como quaisquer outros da
época, de forma corriqueira, possível, universal; são ora expedições que partem
rumo ao Polo Sul, ora relatos escritos à mortiça luz de uma vela na madrugada de um
claustro, ora retiros em regiões rurais isoladas e silenciosas; mas em algum momento
cruza-se a fronteira entre o plausível e o inverossímil, e o leitor se vê
irreversivelmente à mercê do demiurgo, em seus domínios.
Por fim, sugere-se também que a doença do autor, que causava hipersensibilidade ao
frio, pode tê-lo levado a ambientar a aventura nas congeladas plagas polares.
Por conta disso, suas frases são muito frequentemente longas, às vezes
descontroladas, vastamente descritivas e repletas de adjetivos. Um estilo bastante
diferente do de Poe, que costumava se entregar a arroubos verbais e frequentes
pontos de exclamação que, por sinal, são raros no texto de Lovecraft: a título de
curiosidade, nas 130 páginas de Nas montanhas da loucura encontrei apenas cerca
de uma dezena.
Voltando à história, acompanhamos então a equipe de Dyer embarcando no brigue
Arkham e na barca M iskatonic para zarpar, no começo de setembro de 1930, rumo
aos confins setentrionais. Pouco mais de um mês depois, a pequena frota se
aproxima do círculo antártico, e as descrições já ecoam uma espécie de delírio polar e
de profundo desolamento:
Logo em seguida, Lovecraft insere algumas das várias referências de que se serve
para tentar descrever o inominável algumas reais, como a menção às pinturas
asiáticas do místico artista Nicholas Roerich, outras de seu próprio arsenal
intelectual, como o habitué e insano árabe Abdul Alharzed, autor do Necronomicon
(ver o “Glossário”).
Nessa mesma página, ele evoca versos do ídolo Poe para descrever a substância que
corria pelo monstruoso monte Erebus: “qual torrente de lava que no solo / Salta,
vinda dos cumes do Yaanek / Nas mais longínquas regiões do polo / Que ululando
se atira do Yaanek / Nos panoramas árticos do polo” (LOVECRAFT, 1999:14 e
15), para confessar, logo em seguida, que “eu próprio me interessei (pelo
panorama) em virtude da cena antártica da única narrativa extensa de Poe a
perturbadora e enigmática Arthur Gordom Pym” (LOVECRAFT, 1999:15).
“10:05 da noite. Em voo. Depois tempestade neve, avistei cordilheira à frente mais
alta qualquer outra já vista. (...) Podem imaginar algo assim. Picos mais altos
devem ascender mais de 35 mil pés. Everest fora do páreo” (LOVECRAFT,
1999:22).
“Conquanto a formação calcária fosse, com a evidência de fósseis tão típicos como
ventriculados, positiva e inconfundivelmente comancheana e nem uma partícula
anterior, os fragmentos soltos no espaço vazio incluíam uma surpreendente
proporção de organismos considerados peculiares de períodos bem posteriores até
mesmo peixes, moluscos e corais rudimentares de uma antiguidade do Siluriano ou
Ordoviciano. “ (LOVECRAFT, 1999:28).
Aqui é Dyer quem interpreta os achados de Lake, que por sua vez trabalha a plenos
pulmões em busca de novas revelações até encontrar aquela que torna todas as
anteriores ínfimas, aquela que abre as portas para o aniquilamento de boa parte da
equipe e que inaugura a longa descida dos sobreviventes rumo às abomináveis
vastidões do horror. Ao som dos cães que ladram enlouquecidos, Lake e seus
exploradores acham um “fóssil monstruoso, em forma de barril, de natureza
inteiramente desconhecida”.
Logo a equipe também conclui que foi a criatura encontrada quem deixou as pegadas
na rocha e, pouco depois, outros treze exemplares do mesmo espécime são
descobertos, dos quais oito em perfeitas condições. Segue-se uma pormenorizada
descrição dos organismos, novamente com notável riqueza de detalhes:
“Cabeça grossa e inchada com dois pés de ponta a ponta, com tubos amarelados
flexíveis de três polegadas se projetando em cada ponta. Fenda no centro exato do
topo, provavelmente abertura para respiração. Na extremidade de cada tubo há
uma protuberância esférica onde uma membrana amarelada se retrai facilmente
para expor um globo vítreo irisado de vermelho, evidentemente um olho. “
(LOVECRAFT, 1999:32).
Nota-se que os espécimes possuem algo semelhante a braços musculosos, pseudo-
pés, asas de grande envergadura e aparatos como barbatanas e nadadeiras; observa-se
também que podem, ao mesmo tempo, pertencer ao reino vegetal e animal,
pendendo mais para este; conclui-se enfim que são imemorialmente antigos,
precedendo os protozoários não é possível conjecturar-se quanto à origem.
Nas páginas seguintes, Lake procede a uma laboriosa dissecação das criaturas, de
modo que continua com a empresa de descrevê-las minuciosamente, de esmiuçar o
inconcebível:
“Seu cérebro de cinco lobos era espantosamente avançado, servido em parte pelos
cílios ouriçados da cabeça, envolvendo fatores estranhos a qualquer outro
organismo terrestre. Provavelmente ele tem mais de cinco sentidos, razão por que
seus hábitos não poderiam ser previstos por qualquer analogia existente. “
(LOVECRAFT, 1999:37).
“Cada incidente daquele voo de quatro horas e meia está gravado em minha
memória em virtude de seu papel crucial em minha vida. Ele marcou a perda, aos
cinquenta e quatro anos de idade, de toda a paz e equilíbrio que a mente normal
adquire através da sua concepção costumeira da natureza externa.
“(LOVECRAFT, 1999:41).
Pois é durante a viagem que a ciclópica cordilheira é pela primeira vez observada
pelo narrador, e não intuída através de descrições, em passagens que mesmerizam e
assombram pela forma com que são compostas. Acredito que aqui o estilo
verborrágico de Lovecraft triunfou incontestavelmente, já que suas típicas frases-
parágrafo, lotadas de adjetivos, jorram da pena como se fossem frutos de um
método, exercícios mentais concebidos para proteger o narrador da insanidade que as
revelações de sua história podem causar. E é através desse arranjo exuberante que
enfim nos aproximamos, ou melhor, que somos atraídos para os píncaros malsãos,
cuja descrição é atemorizante.
Para piorar, logo notam um certo método nesse caos geológico: regularidades como
fragmentos presos às partes mais altas na forma de perfeitos cubos, que Dyer
novamente compara às paisagens oníricas de Roerich. Neste sentido, as referências
obscuras tornam-se abundantes, já que nos deparamos com o “planalto de Leng, nas
terras de Lomar”, com os “M anuscritos pnakóticos”, os “devotos de Tsathoggua”
e, naturalmente, com o livro dos mortos, Necronomicon. Todos oriundos da fértil
mente de Lovecraft (ver “Glossário”).
Tem início então um longo relato sobre os aterradores acontecimentos que varreram
inúmeras existências e a sanidade do jovem Danforth, companheiro de Dyer nas
investigações. Primeiro, a revelação de que o vento jamais seria capaz de mutilar os
corpos daquela forma, uma vez que: “(Os mortos) teriam se envolvido em algum
horrível combate, dilacerados e mutilados que haviam sido de maneira perversa e
totalmente inexplicável. A morte, até onde poderíamos julgar, havia ocorrido, em
todos os casos, por estrangulamento ou dilaceração. “ (LOVECRAFT, 1999:51).
Neste momento, Lovecraft concede seus últimos conselhos agora mais sérios e
graves do que nunca para os desavisados, eximindo-se assim de responsabilidade
pelos acabrunhantes efeitos que seu relato poderá provocar.
“Este será meu último aviso. Se os claros sinais de horrores antigos sobreviventes
naquilo que vou revelar não forem suficientes para impedir que outros se
aventurem no coração da Antártida ou, pelo menos, que vasculhem muito
profundamente por baixo da superfície daquela vastidão extrema de segredos
proibidos e profunda desolação, a responsabilidade por males inomináveis e,
talvez, incomensuráveis, não será minha.” (LOVECRAFT, 1999:55).
Feito isso, os dois embarcam para a viagem que mudará para sempre suas vidas.
M as antes, Dyer decide diminuir substancialmente a carga do avião para que ele
possa alcançar a altura necessária para cruzar o pico mais próximo e baixo; após um
rápido sobrevoo, chegam aos cerca de 20 mil pés necessários, atingindo também o
formidável clímax do trecho:
A partir daí, a descrição vai ficando cada vez mais complexa principalmente no
momento em que os dois decidem aterrissar para aprofundar a investigação. É
quando mergulhamos com extrema riqueza de detalhes na história intuída daquela
civilização, em todos os aspectos: geográficos, urbanísticos, arquitetônicos,
arqueológicos e até artísticos. Ao descrever o principal recurso decorativo da
“cidade”, um sistema universal de esculturas murais desenvolvidas em faixas que
ocupavam quase todas as paredes existentes, Lovecraft demonstra noções sensatas:
“A técnica, logo percebemos, era madura, acabada e esteticamente evoluída ao
mais alto grau da perícia civilizada, embora completamente estranha, em cada
detalhe, a qualquer tradição artística da raça humana (...). Os mínimos detalhes de
elaborada vegetação ou de vida animal eram realizados com espantosa vivacidade,
apesar da escala arrojada dos entalhes; enquanto os desenhos convencionais eram
maravilhas de complexa habilidade. Os arabescos revelavam uso profundo de
princípios matemáticos e eram formados por curvas e ângulos obscuramente
simétricos baseados na quantidade cinco (...). É inútil tentar comparar esta arte
com qualquer outra exibida em nossos museus. Os que analisarem nossas fotos
provavelmente encontrarão as analogias mais próximas em certas grotescas
concepções dos mais ousados futuristas. “ (LOVECRAFT, 1999:74 e 75).
M as a revolta das próprias criações não foi o único contratempo enfrentado pelos
Antigos em sua epopeia terrena; tiveram de lidar também com uma série de invasões
de outras criaturas vindas do espaço exterior, muitas delas já conhecidas de outros
contos pelos iniciados em Lovecraft.
Um novo achado acaba com qualquer dúvida: nos recantos deste odioso
acampamento, há dois espécimes, estes mais familiares, congelados e “perfeitamente
conservados”: os corpos de Gedney e do cão desaparecido.
Porque é uma queda que corresponde à incursão pelas catacumbas dos personagens
de O barril de Amontillado, aos calabouços e martírios enfrentados pelo condenado
de O poço e o pêndulo, à decadência perversa do protagonista de O gato preto, à
paranoia devoradora de William Wilson , ao mergulho nos confins marítimos de
Manuscrito encontrado em uma garrafa e a tantas outras descidas arquitetadas pela
fervilhante mente de Poe. Há também, um pouco mais à frente, quando Dyer tenta
descrever distantes e estranhíssimos sons, uma curiosa passagem cheia de
cumplicidade: “A leitura comum (de Poe) é que nos havia preparado a ambos para
fazer a interpretação, embora Danforth tenha aludido a estranhas noções sobre
fontes proibidas e insuspeitas às quais Poe deve ter tido acesso quando escreveu
seu Arthur Gordon Pym, há um século. Não custa lembrar que naquele conto
fantástico há uma expressão de significado terrível e prodigioso relacionada com a
Antártida, gritada eternamente pelas gigantescas aves espectralmente brancas do
coração daquela região maligna: “Tiquili-li! Tiquili-li!”. (LOVECRAFT,
1999:123).
Descendo pelo íngreme túnel final, os dois logo encontram as primeiras formas de
vida observadas em muito tempo: enormes pinguins albinos e cegos, divididos em
grupos esporádicos que erravam pelo escuro. Pouco depois, descobrem o que atraiu
os animais: quatro corpos de espécimes dos Antigos, cujas vísceras eram disputadas
ferozmente pelas aves. Dadas as condições dos cadáveres, as criaturas haviam
sucumbido a uma luta insana: todas foram retorcidas, retalhadas e decapitadas.
Neste momento, a razão do narrador e de seu companheiro está por um fio, e mais
um aviso, agora na forma de misteriosa autocensura, tem lugar:
“Antes nunca tivéssemos nos aproximado e fugíssemos com toda pressa daquele
túnel ímpio com seus pisos reluzentes e seus degenerados murais imitando e
zombando das coisas que haviam substituído que fugíssemos antes de vermos o que
vimos e antes de nossas mentes serem marcadas por algo que jamais nos permitirá
respirar livremente! “ (LOVECRAFT, 1999:120).
Chamo a atenção, neste trecho, para o primeiro ponto de exclamação com que
Lovecraft conclui uma frase no conto, o que, como já foi dito, difere em muito seu
estilo daquele exclamativo de Poe. M as conforme a narrativa se aproxima do final, as
exclamações se multiplicam, assim como paroxismos semelhantes a
“compreendemos a qualidade do medo cósmico em sua mais absoluta profundeza”
(LOVECRAFT, 1999:121). Isso porque aquele gotejar infernal, “ Tiquili-li! Tiquili-
li”, só faz aumentar, o que prenuncia a aproximação de algo alucinante, inexprimível.
Algo cuja movimentação desloca uma névoa sinistra e espiralada, de olor ainda mais
repugnante do que o das vísceras das criaturas mortas. O que se avizinhava parecia
ser volumoso, e neste momento o medo foi muito maior do que a curiosidade, pondo
Dyer e Danforth para correr desabaladamente em direção à saída e ao avião.
O que viram, Lovecraft opta por não descrever, ocupando o relato com expressões
abismadas como “pois àquele lampejo de visão pode ser atribuída metade do horror
que desde então vem nos assombrando” (LOVECRAFT, 1999:126), ou:
“Ela (a visão) estropiou de tal forma a nossa consciência, que fico cismado ao
pensar como foi que conseguimos reduzir a luz das lanternas conforme o planejado
e atingir o túnel certo na direção da cidade morta. “ (LOVECRAFT, 1999:127). Ou,
ainda, “De razão, pouca coisa, por certo, nos restou” (LOVECRAFT, 1999:127).
Agitado e à beira de uma crise de nervos, ele olhava obcecadamente para trás e para
os lados quando, no momento em que o avião cruzava as montanhas da loucura,
enquanto Dyer “tentava manobrar o aparelho com segurança através do
desfiladeiro”, ele lançou ao ar gelado um berro estridente, derradeiro e enlouquecido,
que quase os leva ao desastre. É o grito primevo de quem se reencontra com a
devoradora escuridão sideral de que alguns de nós somos feitos, a manifestação de
quem se dá conta da queda final, definitiva. É o último passo com que Danforth
enfim cruza os umbrais de qualquer racionalidade para, agora sim, abandonar-se
definitivamente ao horror cósmico, aos cânions devoradores que se abrem quando a
razão é ferozmente estremecida.
Escrito cerca de cinco anos antes de Nas montanhas da loucura, no verão de 1926, o
conto O chamado de Cthulhu é talvez o mais conhecido de Lovecraft por apresentar
em detalhes o mito de sua famosa deidade. É bastante menor do que o anterior, com
apenas 23 páginas; mas são páginas de puro horror cósmico e repletas de
poderosíssima imaginação, verdadeiro tour de force tanto para os iniciados quanto
para os neófitos no autor. O formato difere pouco de Nas montanhas... : aqui
acompanhamos o narrador, um jovem arqueólogo, em investigações sobre
estranhíssimos acontecimentos, que despertaram seu interesse após a misteriosa
morte de seu tio-avô, George Gammell, professor emérito de linguagens semíticas da
Universidade Brown, em Providence.
Wilcox era um jovem precoce, notadamente dotado de gênio mas também de enorme
excentricidade, e desde a infância despertara atenção devido às histórias insólitas e
aos sonhos inusitados que tinha o hábito de relatar.(...) Nunca privando muito da
companhia de seus pares, aos poucos se afastara do convívio social e era só
conhecido por um pequeno grupo de estetas de outras cidades. (LOVECRAFT,
1983:45 e 46).
Pois bem. Sucede que, de acordo com as anotações, Wilcox resolve recorrer aos
préstimos arqueológicos do professor Gammell para desvendar aqueles hieróglifos e
este, de forma ríspida, diz que aquilo nada tinha de correspondência com a
arqueologia. Foi a réplica poética do jovem que enfim capturou definitivamente a
atenção do acadêmico; pois ele disse que a esculpira na noite passada, após um
sonho com cidades estranhas. Sonhos “mais antigos que a cismarenta Tiro ou a
contemplativa Esfinge ou a Babilônia dos Jardins Suspensos” (LOVECRAFT,
1983:46). Então ele desanda a falar de forma desconexa e obscura, relatando fatos
como um pequeno abalo sísmico na noite anterior àquela, que lhe afetou
significativamente a imaginação, pois que, ao dormir, teve sonhos sem precedentes
com cidades ciclópicas de blocos hercúleos e monolitos colossais gotejando limo e
cercados de horror latente.
De volta aos desvairados sonhos de Wilcox, dizia ele que hieróglifos como aqueles
da escultura cobriam paredes e colunas das cidades, e que de algum ponto
indeterminado “vinha uma voz que não era uma voz; uma sensação caótica que
somente a fantasia podia transmutar em som, mas que ele tentou traduzir numa
mixórdia de letras, quase impronunciável: ‘Cthulhu fhtagn’” (LOVECRAFT,
1983:46).
Seguiram-se dez dias em que Wilcox mergulhou numa espécie de transe profundo,
durante o qual repetia à exaustão as descrições de seus sonhos e de algo gigantesco,
com “milhas de altura”, que se deslocava. No segundo dia de abril, ele despertou,
sentou-se ereto na cama e mostrou desconhecer por completo o que havia
acontecido. Todos os sinais de sua enfermidade haviam passado, e aqui se encerra a
primeira parte do manuscrito lido pelo narrador.
Procederemos, agora, àquela que acredito ser uma das passagens mais assustadoras
de toda a obra de Lovecraft, o que por si só já é uma inegável façanha. Pois o relato
que analisaremos a seguir concentra tanto o horror implícito quanto o explícito, já
que descreve com infernais pormenores o culto a Cthulhu. Trata-se da segunda parte
do manuscrito de Gammell, em que lemos o Relato do inspetor Legrasse, ocorrido
anos antes de Wilcox abordar o professor.
O cântico entoado pela massa implausível quando a polícia atacou, a muito custo
registrado pelos poucos guardas que resistiram, era algo como “Ph’nglui mglw’nafh
Cthulhu R’lyeh wgah’nagl fhtagn”, que, de acordo com os participantes do ritual que
foram capturados, significava “Em sua casa de R’Lyeh, o morto Cthulhu espera
sonhando”. E foi um desses prisioneiros, o velho Castro, quem depois contou sobre
o culto e suas divindades uma cosmogonia que é praticamente a mesma, porém mais
detalhada que aquela de Nas montanhas da loucura, a dos Grandes ou Mais antigos.
Estão lá os seres imemoriais em formas de estrelas filtrados dos abismos cósmicos,
que haviam erigido cidades colossais, e que haviam morrido muito antes de o homem
vir ao mundo.
Agora irremediavelmente absorto pelo caso e, acima de tudo, cético com relação às
macabras conexões que sua mente fazia entre tempos remotos e acontecimentos
recentes, o narrador decide empreender suas próprias investigações. Primeiro parte
em busca de Wilcox, encontrando um rapaz “moreno, frágil, e de aspecto um tanto
desleixado”.
Acreditando que ele tivesse usurpado da fama de seu avô para atribuir valor a um
trabalho premeditado, o narrador pretendia desmascará-lo. M as logo se convence de
sua absoluta sinceridade, notando que os sonhos lhe haviam influenciado
profundamente a arte e o espírito. Conforme ouve as descrições do jovem, percebe
que as conexões se fortalecem ainda mais.
Conta ele que zarpou, com onze homens e no comando da escuna Emma, do porto
de Callao, em 20 de fevereiro.
A matéria termina sem conceder mais informações, de modo que o passo seguinte do
obcecado narrador é partir sem demora à Noruega. Aqui é interessante atentarmos
para o fato de que o protagonista deste conto, ao contrário do anterior, não chega a
vivenciar o horror; ele é apenas sugerido através de relatos verbais e escritos, o que é
uma eficiente artimanha para a construção do atemorizante clima da narrativa.
Bem, ele assim embarca para os países nórdicos, e nós o acompanhamos para, mais
uma vez, ultrapassarmos definitivamente os umbrais do cotidiano rumo às vastidões
de uma imaginação decaída, maldosa, selvagem. Acompanhamo-lo para conhecermos
o último registro abissal do conto, oriundo não da voz do marinheiro Johansen, que
o narrador descobre já estar morto, mas de sua hesitante e trêmula mão, que deitou
ao papel, no silêncio de um claustro noturno, aquilo que ele jamais conseguiu
vocalizar. Pois quando chega ao endereço que lhe deram, o narrador encontra uma
mulher enlutada, a viúva, que pouco depois lhe entrega os manuscritos do marido
relativos àquela viagem, e que contam o verdadeiro ocorrido, cuja leitura ele
empreendeu já na navegação de volta a Londres.
Antes, alguns dos já familiares preâmbulos de Lovecraft nos preparam para o que
seguirá, como “narrarei sua essência em medida suficiente para mostrar porque o
barulho da água contra o casco do navio tornou-se tão insuportável que cobri meus
ouvidos com algodão” (LOVECRAFT, 1983:65), ou ainda:
“Nunca voltarei a dormir calmamente, por pensar nos horrores que espreitam
incessantemente por trás da vida, no tempo e no espaço, bem como naquelas
blasfêmias ímpias provenientes das estrelas, que sonham nas profundezas
oceânicas. “(LOVECRAFT, 1983:65).
Logo se depararam com uma imensa coluna de pedra que se projetava do mar, e a
seguir aportaram em um grotesco litoral de lama e lodo, recoberto por algas, que o
narrador tinha certeza de fazer parte da “substância tangível do supremo horror da
Terra”, da “cidade-pesadelo, o cadáver de R’lyeh”. Havia ali, segundo a descosida
narrativa de Johansen, uma geometria toda errada, povoada por vastos ângulos e
superfícies de pedra excessivamente descomunais, cuja descrição se aproxima muito
daquela que Wilcox fez de seus sonhos.
Johansen e seus homens desembarcaram naquela “monstruosa acrópole” e, movidos
por um mudo fascínio, empreenderam a subida pelos titânicos blocos gotejantes. O
primeiro a atingir o topo atiçou os demais com gritos alucinados, pois havia
encontrado a imensa porta esculpida com o já conhecido dragão-polvo. Uma
gigantesca porta de celeiro, de acordo com o norueguês.
Johansen logo mudou novamente o leme, zarpando com força total para longe dali.
M as não sem notar, com inenarrável pavor, que, no horizonte cada vez mais
distante, a “dispersa plasticidade daquela inefável criatura do cosmos estava
nebulosamente a se recombinar” (LOVECRAFT, 1983:69).
Termina assim, e com ela esta já extensa análise, a narrativa em que Lovecraft nos
coloca frente a frente com sua criatura mais alucinante e perene. Aqui, ao contrário
de Nas montanhas da loucura, a sugestão é ao final suplantada pelo horror visual,
real, plausível, gotejante. Se na primeira história chegamos muito perto de presenciar
a coisa-que-não-pode-ser, fugindo no último segundo, aqui ela vive, reina, baba,
devora sacrifícios e troça do pavor que causa nos pobres mortais.
E, uma vez que Lovecraft presume a familiaridade do leitor para com eles, faz-se
necessária uma resumida explicação para os “verbetes” citados neste livro:
Cthulhu: o maior, mais conhecido e mais temível entre estes seres. De proporções
gigantescas, sua aparência é praticamente indescritível. Em sussurros que
antecederam a loucura, aqueles que o viram fazem menção a imensas asas, tentáculos
na boca, garras e pouquíssimo mais.
R’lyeh: enorme cidade submersa em algum ponto do oceano pacífico onde vive
Cthulhu.
D a g o n : outra famosa entidade entre Os mais antigos, também habita as
profundezas oceânicas.
Yoth-S oggoth: pertence aos Outros deuses, entidades muito maiores e mais
poderosas do que qualquer um dos Mais antigos. Tudo sabe, tudo vê, vive fora das
dimensões existentes e é capaz de se transmutar em qualquer elemento conhecido.
Universidade Miskatonic: instituição de ensino fictícia localizada na também
fictícia cidade de Arkham, em M assassuchets. É frequentemente mencionada por
Lovecraft.
8
POECRAFT: RELAÇÕES ENTRE
EDGAR ALLAN E HOWARD
PHILLIPS LOVE
Seria um enorme exagero iniciar este capítulo fazendo referência às relações entre
“criador e criatura”. Tanto Poe quanto Lovecraft certamente jamais tomaram
consciência destas denominações para si próprios, até porque o primeiro deixou de
existir mais de quarenta anos antes que o segundo viesse à vida. M ais correto seria
tratá-los nas qualidades de “influenciador e influenciado”, já que, como vimos, o
próprio Lovecraft assume amiúde, tanto em sua obra de ficção quanto em seus
estudos literários, a profunda influência de Poe sobre seu espírito e sua arte.
Isso posto, o que faremos neste capítulo será, principalmente, sublinhar esta
influência, destacando a cumplicidade entre dois autores que buscaram, dentro de si,
a inspiração para amedrontar gerações as suas, as seguintes e as que ainda estão por
vir. Demonstraremos que tanto Poe quanto Lovecraft, mesmo tendo partido de
diferentes pontos de origem e em diferentes épocas, empreenderam jornada
semelhante embora em caminhos distintos através da literatura fantástica e atingiram
destino igualmente semelhante. Faremos isso identificando temas análogos,
apontando semelhanças entre contos e aproximando as motivações de ambos, de
forma a estabelecermos uma comunicação coerente e direta entre eles.
Antes de tudo, atentemos novamente para a influência de Poe sobre Lovecraft. Este
o cita inúmeras vezes tanto em obras de ficção como de não ficção, dedicando até
todo um capítulo ao malfadado mestre no seu O horror sobrenatural em literatura.
Logo no início, afirma que “seria difícil para qualquer crítico maduro e reflexivo
negar o valor tremendo de sua obra (Poe) e a potência persuasiva de sua mente
para abrir horizontes estéticos” (LOVECRAFT, 2007:61); ou seja, Lovecraft nunca
deixou de pagar tributo àquele que acredita ser seu “mais ilustre e desafortunado
conterrâneo”. Pouco mais à frente, vaticina que “Poe fez o que nenhum outro havia
feito ou poderia ter feito, e a ele devemos a moderna história de horror em seu
estado final e aprimorado” (LOVECRAFT, 2008:62). Também mostra que seu
conterrâneo é o primeiro a desobedecer a certas convenções literárias vazias “como a
do final feliz e a da virtude compensada”, e vai além, arrematando que Poe é o
responsável pela criação do “conto em sua forma presente”.
Em suma, Lovecraft apontava em seu conterrâneo “uma visão de mestre do terror
que nos rodeia e nos penetra, e do verme que se contorce e baba no abismo
pavorosamente próximo” (LOVECRAFT, 2007:64).
Como nos capítulos anteriores optamos por nos ater apenas aos contos de Poe, A
narrativa... não recebeu análise.
Porém, neste caso se faz necessário relatar brevemente o trecho do livro que nos
interessa: após duzentas páginas de uma inacreditável, selvagem e espetacular
epopeia marítima, o narrador Arthur Gordon Pym e seu camarada holandês Peters
encontram-se à deriva, e são resgatados por uma grande embarcação inglesa que
navega a todo pano em direção ao pólo sul, então inexplorado. Depois de alguns dias
chegam a um estranho arquipélago, e, ao se aproximarem de uma das ilhas, avistam
canoas repletas de selvagens de sombria aparência:
“Sua tez era de um preto retinto, e os cabelos, longos, espessos e lanosos. Estavam
vestidos em peles de um animal negro desconhecido, felpudas e sedosas, e talhadas
à medida do corpo com algum grau de aptidão, a pelagem voltada para dentro,
exceto onde virada para fora na altura do pescoço, punhos e tornozelos. “ (POE,
2010:197).
A partir daí, tanto os três quanto a narrativa entram em uma espécie de transe
crescente, um rondó delirante cujo ritmo é a inexplicável e ardente corrente marítima
que os leva aos extremos do planeta, cujo tema é o definitivo distanciamento do
mundo conhecido, e cujos misteriosos solfejos (“Tekeli-li!”, aqui grafado desta
forma) só são compreendidos após a leitura da nota final do livro. É provável, até
então, que nunca um personagem de Poe houvesse ido tão longe, que nunca um de
seus heróis houvesse mergulhado tão fundo nas insondáveis águas da desolação. Por
isso acredito ter sido exatamente este o trecho que mais influenciou Lovecraft, uma
vez que se trata de um daqueles momentos em que, segundo o próprio, Poe
ap resenta “um conhecimento analítico das verdadeiras fontes do terror que
duplicava a força de suas narrativas e o emancipava de todos os absurdos
inerentes à mera produção convencional de sustos” (LOVECRAFT, 2007:63).
Lovecraft, por sua vez, também recorre com frequência ao extremo sul e ao vazio
oceânico como imensas telas para compor suas civilizações gotejantes e cidades
ciclópicas, como é o caso de Nas montanhas da loucura, de O chamado de Cthulhu
e de grande parte de sua obra. É nestas vastidões que se dá o mais íntimo contato
entre os dois, que se pode estabelecer uma relação mais precisa entre as duas obras.
E por “vastidões” entenda-se também e principalmente os meandros da imaginação
dos dois autores, que, ao fim e ao cabo, são o objeto de análise deste livro. Em O
poço e o pêndulo, por exemplo, o condenado está sempre enclausurado, confinado a
exíguos espaços; mas, por não sabê-lo, preenche a narrativa com suposições
desenfreadas, frenéticas, em um elaborado exercício reflexivo, percorrendo o infinito
terreno das possibilidades com o fôlego que só os ameaçados de morte têm. Acredito
ser possível observar, neste conto específico, uma alegoria ao próprio
aprisionamento, à proscrição de que Poe foi ou de que julgou ser vítima, e na qual
Lovecraft também o acompanhou.
Charles Baudelaire, no texto Edgar Poe, sua vida e suas obras, que serve de
introdução às Histórias extraordinárias que traduziu para o francês, e com o qual
apresenta o autor americano à intelligentsia europeia de então, vai ainda mais longe,
revelando, não sem laivos de um agudo preconceito, que “Edgar Poe e sua pátria
não eram do mesmo nível”, que “lá Poe era um cérebro singularmente solitário
(...) e gozava privilégio cruel numa sociedade enamorada de si mesma desse
grande bom senso, ao modo de Maquiavel, que caminha à frente do sábio, como
uma coluna luminosa, através do deserto da história” (BAUDELAIRE in POE,
2010:274).
Ou seja, Poe, assim como Lovecraft pouco depois, foi uma espécie de pária em seu
próprio país, uma mente reconhecidamente superior, mas que, devido à “ferocidade
da hipocrisia burguesa”, foi insultada à porfia por críticos literários e colegas de
ofício, que não o pouparam nem após a sua súbita morte. Assim, o poeta francês
mostra como a rejeição dispensada ao colega americano teve forte influência em sua
obra, da mesma maneira que a saúde delicada e o desencaixe social marcaram a
criação de Lovecraft.
E é nesta seara da estranheza e das sínteses secretas que Poe e Lovecraft novamente
congregam, cada qual à sua maneira.
Conclui-se que, como já foi citado, os trajetos de ambos, mesmo tendo diferentes
origens em diferentes épocas, estão repletos de intersecções e atingem destinos
semelhantes: a legítima estranheza, as sombras, o inconcebível. É fato que os
personagens de Poe, lúcidos como poucos, raramente desviam-se da vereda da razão,
enquanto que os de Lovecraft, embora esclarecidos, são invariavelmente banidos dela
em nome dos ideais artísticos que representam.
Como vimos e como o próprio Lovecraft atesta, Poe mostrou-se, além de mestre da
poesia melancólica e elegíaca, um dos grandes responsáveis pelo conto como o
conhecemos em sua forma moderna. Escrevendo prosa essencialmente neste
formato, o que deixou para a posteridade foram pequenos e maciços diamantes da
genialidade, lapidados com a fúria de uma personalidade tempestuosa, e que até hoje
reluzem. Ou que talvez, em um misterioso efeito reverso, absorvem a luz e
escurecem qualquer ambiente em que estejam, seja qual for a linguagem em que se
apresentarem: literatura, teatro, artes plásticas, música.
M as foi o cinema quem melhor se entendeu com suas criações. Uma consulta em 16
de fevereiro de 2011 ao site IM DB ( Internet Movie Database) revelou que Poe
inspirou, direta ou indiretamente, cerca de 240 filmes dos mais diversos formatos.
Também, pudera: seus personagens cruéis e melancólicos, seus temas sombrios e
controversos, seus enredos surpreendentes, seu impecável manejo do suspense e seu
domínio da lógica constituem ingredientes preciosos para o banquete das telas,
mesmo que às vezes tenha sido preparado por cozinheiros de duvidosa categoria.
Uma herança que, da mesma forma, estende-se por todas as linguagens artísticas, e
que igualmente apresenta intensa relação com a música e o cinema. M as que, por sua
vez, é bastante mais restrita, circunscrevendo-se a estilos de caráter underground,
aos quais geralmente apenas aqueles que conhecem a obra com certa profundidade
têm acesso, em uma espécie de culto semelhante ao concebido pelo autor às suas
divindades arcanas. Lovecraft também inspirou enormemente a chamada cultura
nerd, mais especificamente histórias em quadrinhos, vídeo games, card games e
jogos de role playing, ou RPG, que se servem essencialmente de temáticas repletas
de fantasia e horror para compor aventuras.
Já o cinema, apesar da imensa devoção com que se inclinou a Lovecraft, teve e tem
muito mais dificuldades em retratá-lo, por um simples motivo: suas criações mais
potentes lidam com elementos de proporções cósmicas, inconcebíveis,
inimagináveis.