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PRESIDENTE DA REPBLICA
J UCA F ERREIRA
FUNDAO NACIONAL DE ARTES FUNARTE
SRGIO MAMBERTI
Presidente
DIRETORA EXECUTIVA
MYRIAM LEWIN
CENTRO DE PROGRAMAS INTEGRADOS
TADEU DI PIETRO
Diretor
GERNCIA DE EDIES
MARISTELA RANGEL
Gerente
CENTRO DE ARTES VISUAIS
RICARDO RESENDE
Diretor
COORDENAO DE ARTES VISUAIS
ANAGILSA NBREGA
Coordenadora-Geral
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Carmen Maia
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2009 Carmem Maia
Todos os direitos reservados
SIMONE MUNIZ
SUELEN BARBOZA TEIXEIRA
Reviso
ANALUIZA MAGALHES
Arte-final digital
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AGRADECIMENTOS
Ao prprio Cildo, que me recebeu tantas vezes em seu ateli,
a Luisa Interlenghi, pelo voto de conana,
solicitude de Jos Carlos Martins, Suelen, Simone
e Maristela da Funarte,
a Pedro, que supervisionou Lui durante a escrita,
a Bernardo Damasceno e Catherine Bompuis,
que gentilmente cuidaram das imagens,
a Joana Regattieri, a primeira a ler e a me
inspirar segurana no texto,
a Diana e Donald, pelas consideraes sobre Fsica,
reviso por parte de Procpio Abreu e agradecimento especial
a Wilson Nascimento e a Marizar.
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SUMRIO
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Contexto histrico
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Cho de Cinzas
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Som e interpretao
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Jogos de linguagem
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Densidades
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Densidades e Sinestegias
63
Anamorfose
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Rebatimento
75
Des-ordens e entropias
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Escalas
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Memria
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SRGIO MAMBERTI
Presidente da Funarte
Artista consagrado em todo o mundo, Cildo Meireles conquistou plateias diversificadas e influenciou geraes de criadores. Neste
livro, esto reveladas sua rica trajetria profissional, bem como suas
ideias sobre o papel da arte, alm de detalhes do processo de concepo e produo de suas obras. Processo permeado pelas questes
sociais e polticas da vida brasileira e por experimentaes de novas
linguagens, estticas e materialidades para o objeto artstico. Essas
valiosas informaes lanam luz sobre a personalidade deste ilustre
carioca, conduzindo o leitor a uma reflexo sobre os conceitos e temas
explorados na contemporaneidade.
Para escrever Cildo Meireles, a pesquisadora Carmen Maia realizou uma srie de entrevistas com o artista, deixando-o falar livremente
sobre cada um de seus trabalhos. Reuniu ainda depoimentos do autor
registrados anteriormente em catlogos de mostras, revistas, jornais e em
um documentrio produzido para o cinema. Ao desvendar a trajetria e
o pensamento de Cildo Meireles, o livro resgata um captulo importante
da recente histria cultural brasileira e se torna indispensvel a artistas,
curadores, pesquisadores, estudantes e espectadores.
Com esta publicao, a Fundao Nacional de Artes Funarte
reafirma o compromisso de difundir saberes sobre arte e cultura,
estimulando a reflexo crtica e a formao intelectual de artistas e
plateias. Alm disso, presta homenagem a um dos grandes artistas
brasileiros vivos e preserva a memria de sua obra para as futuras
geraes.
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VEREDAS
Uma introduo obra de Cildo Meireles
Convidada a escrever, ou melhor, a tentar traduzir em palavras o trabalho de Cildo Meireles, iniciei uma srie de entrevistas
com o artista. Nelas no convidamos teoria alguma, apenas deixei
que ele prprio discorresse livremente sobre seus trabalhos. Incitado
a entrar em detalhes sobre algum, Cildo descreve, com amorosidade
e mincia, ponto por ponto cada um deles. E ao faz-lo, rapidamente lana luz sobre eles. Ele conversou sobre todos.
Por vezes, parecia desviar do assunto. Quando conta histrias,
e gosta de cont-las, Cildo j est falando sobre sua obra, j est produzindo reflexes importantes, que so ditas do modo mais casual
possvel. Como na tradio oral, sua fala assemelha-se s fbulas.
Assim, minha tarefa na coleo Fala do Artista ser a de organizar
esse material e instar o leitor a mergulhar numa das poticas mais
instigantes da arte contempornea.
Desafiador, o trabalho de Cildo Meireles seduz de modo enigmtico. Suas obras atraem e simultaneamente causam receio. Mas
por que espanto? Sobre a sensao de medo, retomo a prpria fala do
artista no filme Cildo:1 Quando sentimos medo, todos os sentidos
se aguam... Ao nos propor um caminho produtivo de saber, sua
potica nos conduz a um estado em que todos os sentidos se pem
em alerta. Intensa, sua arte tambm profundamente misteriosa.
1. Dirigido por Gustavo Moura, produo Matizar.
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CONTEXTO HISTRICO
SALO DA BSSOLA DO CORPO A TERRA INFORMATION
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CHO DE CINZAS
MISSO-MISSES OLVIDO SAL SEM CARNE CRUZEIRO DO SUL
Misso-Misses (1987) e Olvido (1987) so peas sobrecarregadas de material, ao contrrio de Cruzeiro do Sul (1969-1970),
um cubo mnimo feito em pinho e carvalho, materiais que, de
acordo com as culturas indgenas, se friccionados, fabricam fogo.
As duas so esculturas, mas o modo como Cruzeiro do Sul (19691970) estabelece relao com o espao a torna minimalista. Seu
tamanho mnimo. So 9mm numa escala, ou campo de atuao,
inversamente mximo. Entretanto, esse mdulo cbico no tem
a feio serial nem os materiais industriais caractersticos do movimento minimalista. Artesanal, Cruzeiro do Sul criada a partir
do engaste de duas madeiras. Perdida em exposio num espao
de no mnimo 200m2 e magistralmente iluminada, ela se expande
mais que uma bomba atmica... Pequeno a ponto de perder-se
dentro de uma unha, esse pequeno cubo tem densidade e presena duplamente explosivas, tanto pela escala em que se encontra
exposto, como pelo material virtualmente explosivo de que se
constitui. L ecoam sabedorias lendrias e finca-se com deciso
no espao e na memria.
J Olvido (1987-1989), alm de interrogar os projetos civilizadores, dirige-se para uma anlise das situaes de assimetria do
poder. Referida aos povos esquecidos ou olvidados a respeito
dos quais pouco se sabe at hoje, Cildo exibe uma tenda ou pirmide. Essa casa, que tambm um tmulo, est sobrecarregada de
notas de dinheiro de todos os pases da Amrica. Essencial para a
sobrevivncia desses povos, o dinheiro tambm pode representar
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acaba velando seu prprio aspecto fsico, j que nega pois nada
exatamente aquilo que se v e ao mesmo tempo suscita estmulo
tico. Causa estupor. Iluminada, essa histria tambm uma estria.
Fantstica, somos ns e no somos ns ao mesmo tempo, uma vez
que sendo nosso passado e antepassados, desdobra-se no tempo e
torna-se de novo presena.
Convocada como alternativa de atualizao cultural pelos
modernistas brasileiros da Semana de Arte de 1922, a ideia da
antropofagia presente em Misso-Misses assume um aspecto decididamente crtico e lembra a assertiva de Walter Benjamin para
quem todo monumento da civilizao tambm um monumento
barbrie. Ainda a respeito da antropofagia, em entrevista a Gerardo
Mosquera,15 o artista comenta: Acredito que a noo de antropofagia
uma contribuio positiva que a cultura brasileira pode trazer no
sentido de uma coexistncia das diferenas. Mas, na verdade, este
modelo de harmonia social irriga totalmente esta cultura, apesar de
suas perturbaes histricas, sociais e poltica.16 Em artigo, Guy Brett
complementa o raciocnio do artista e alude ao argumento de Maria
Moreira: a antropofagia teria sido um comportamento de sobrevivncia e estratgico por parte dos grupos historicamente oprimidos no
Brasil.17 Para Cildo, em resumo, a brasilidade seria mais uma nsia
que uma questo18 e o objetivo j no redescobrir, ou descobrir
finalmente, o que seja brasilidade.
Com materiais extremamente rudimentares, Misso-Misses
persegue a mesma escala de uma pea de aspecto to tecnolgico
como Babel (2001), verdadeira torre sideral de rdios. Tambm
enorme e remota como Babel, Misso-Misses atua como uma espcie
15. Interview. Gerardo Mosquera e Cildo Meireles. Catlogo Cildo Meireles. Londres. Ed. Phaidon, 1999. p. 2.8.
16. Moreira, Maria. Repersonalizao, enfrentamento e reversibilidade. Rio de Janeiro:
Revista Item, n. 5, p. 75-76, fev. 2002.
17. Moreira, Maria. Repersonalizao, enfrentamento e reversibilidade. Rio de
Janeiro: Revista Item, n. 5, p. 75-76, fev. 2002.
18. Morais, Frederico de. A brasilidade: uma nsia ou uma questo?. Artes Plsticas.
Rio de Janeiro: Jornal O Globo, 11.8.1992.
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SOM E INTERPENETRAO
LIVERBEATLESPOOL BL, BL, BL O SERMO DA MONTANHA
FIAT LUX ATRAVS BABEL MARULHO
DESVIO PARA O VERMELHO JE EST UN AUTRE
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Vozes e lnguas ininteligveis, nela, o somatrio de sons tornase estranheza. Babel liga-se vivncia do artista em Nova York, onde
morou entre 1971 e 1973. Caminhando em Canal Street, chamoulhe ateno tanto a diversidade como a quantidade de rdios e todos
os tipos de objetos de som. Inicialmente, projetou essa pea tanto
como ponte quanto como torre. A ideia principal era criar uma torre
de incompreenso por acumulao, j que cada rdio estaria numa
estao diferente. Assim, como Bl, Bl, Bl ou Liverbeatlespool,
Babel geraria um espao entrpico, pois, pelo excesso, impediria a
possibilidade de expanso dos corpos e do prprio ambiente. Como
cada cidade est sintonizada num espao determinado no dial, para
fazer ajustes quanto sonorizao mltipla da pea, o critrio utilizado foi o de regular o volume dos rdios num mnimo. O prprio
artista diz: Babel produz cacofania porque provoca uma entropia
acstica atravs da superposio. A continuidade dos rdios produz
cacofania: o simples fato de estar havendo uma emisso e essa emisso
ir se superpondo a outra, anulando uma a outra, ainda assim, cada
emisso pode ser percebida individualmente.
Em 1997, na II Bienal de Johannesburg, Cildo Meireles apresenta
Marulho (1991-1997) pela primeira vez. A instalao evoca o mar atravs
de um tapete de livros repletos de fotografias de superfcies ocenicas.
Contudo, Marulho um paradoxo visual. Sendo um mar de gua seca,
liga-se a Babel pelo fato de trazer em som a palavra mar falada em
todas as lnguas vivas, perfazendo at agora um total de 80. Em Marulho,
tambm o somatrio gera estranhamento: mulheres e homens, adultos
e crianas s geram um murmrio. Todavia, gera uma movimentao
sonora que metaforiza o mar, impresso criada a partir dos intervalos
entre as palavras: so os gaps entre as diversas emisses da palavra mar
que simulam as vagas do mar indo e vindo incessantemente. A produo
fictcia desse movimento da palavra mar falada em tantas lnguas foi
produzida a partir de grficos sonoros que determinavam que girassem
e ressoassem da direita para a esquerda e vice-versa.
Tambm uma construo semitica, Marulho mistura em seu
ttulo as palavras mar e barulho. Seu eco percorre a longa distncia
entre as coisas vistas e as ditas, entre as coisas e as palavras. As vozes
humanas tornam-se incompreensveis e, desse modo, invocam outro
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Catlogo
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hidrulico no qual a gua que sai volta para o mesmo espao, a pia.
O circuito de gua funciona com duas bombas atrs: uma que suga
e outra que injeta o lquido vermelho na pia.
Por outro lado, enquanto na primeira sala o som da gua caindo
era virtual e irreal, a terceira sala mostra o objeto que a primeira ocultava: a pia escoando. O nosso prprio movimento nas salas repete a
circularidade da gua que entra e sai da mesma pia uma vez que a imagem da primeira sala reativa no espectador a impresso da ltima.
Embora o conjunto dos ambientes do Desvio lide com as
intensidades, sobretudo as cromticas, segundo Cildo Meireles, a
circularidade aqui presente no tem relao com a noo de densidade. Assim, Desvio difere do percurso de Fontes (1977-2008). De todo
modo, a ideia de circuito um elemento de unificao na obra do
artista. Por meio dele, trafega-se entre materiais os mais diversos, sem
nunca prejudicar a coerncia e a racionalidade do conjunto.
Circuito presente, entretanto, no Desvio para o Vermelho,32 cada
sala singular. nico e particular, paradoxalmente, nos ambientes,
tudo ready-made: quadros, geladeira, mveis, objetos das geladeiras.
Pelo fato de constituir um circuito fechado, o Desvio para o Vermelho
tambm pode ser associado s mquinas celibatrias de Marcel Duchamp: corpos incomunicveis, nesse circuito s h comunicao por
meio de intensidades e ressonncias. Montada num perodo poltico
ainda tenso, segundo Frederico de Morais, alguns elementos do Desvio
j aparecem nos desenhos feitos pelo artista no final da dcada de 1960:
a pia inclinada, a tinta que sai da pequena garrafa, e, num deles, vemos
uma pia com um ambiente ao lado totalmente negro.
Desvio para o Vermelho vem sendo um dos trabalhos mais comentados do artista. Assim, recebeu interpretaes muito diversas: a imagem da
primeira sala tem correspondncia com a impregnao da cor vermelha,
como presente na pintura Atelier Rouge de Henri Matisse, de 1911;33 o
aspecto inquisitivo da terceira sala associado ao ambiente repressivo
32. Meireles, Cildo. Desvio para o Vermelho (1967-1984). Catlogo Cildo Meireles.
Tate Modern. Londres: Ed. Tate, 2008. p. 122.
33. Brito, Ronaldo. Desvio para o Vermelho. Museu de Arte Contempornea da
Universidade de So Paulo. So Paulo: 1986, p. 11.
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por parte do Estado ditatorial da poca; pelo fato de seu apelo sensorial
e vivencial, Desvio para o Vermelho tambm lembra os penetrveis de
Hlio Oiticica;34 manifesta no ato de colecionar da primeira sala, h nele
ainda uma espcie de construtivismo barroco.35 Por outro lado, o ato de
coletar tambm possui uma feio entrpica e o prprio excesso que
provoca essa perda.
No circuito Je est un Autre (1997), Cildo celebra um verso
de Rimbaud. Ali, a circulao lquida e o som de gua. Todavia,
diferente de Desvio para o Vermelho, Je est un autre percurso aberto.
O projeto que se chama Je est un Autre previa a ocupao de dois espaos dessa cutelaria transformada em centro de arte: Je est un Autre e
Chove Chuva. Realizado na cidade de Thiers, fabricante de canivetes
individualizados que so amolados nas pedras prximas aos rios __ os
encurvados e compridos laguiolles so considerados smbolos da cultura
francesa. Ao perceber simultaneamente a importncia da gua na regio,
o tema logo surgiu, conta o artista. De ocupao vertical, o ambiente
de Je est un Autre difere da horizontalidade de Desvio para o Vermelho.
Tambm um circuito, do lado de fora da primeira sala, h uma bomba
que puxa a gua do rio para dentro da sala e depois a devolve ao mesmo
ponto de partida. No centro do ambiente, v-se apenas uma bola com
aspecto semelhante quela de celofane presente em Atravs. De fato,
a prpria mangueira, de aproximadamente 1.000m de comprimento,
que, transparente e enrolada, deixa ver seu interior lquido e circulante.
Sintetizando manobra semelhante realizada por La Bruja (19791981) vassoura cujas cerdas se esparramavam para alm do local da
exposio , esse tubo transmissor de gua o prprio objeto de arte.
Ela atravessa o edifcio e une o dentro e o fora do espao expositivo,
antes de virar novelo.
Alm da mangueira, duas cmaras de vdeo filmam continuamente a entrada, a ab soro e a sada da gua. As imagens so transmitidas ao vivo e diretamente em duas telas situadas dos dois lados da
34. Cameron, Dan. Focus: Desvio. Catlogo Cildo Meireles. Londres: Ed. Phaidon,
1999, p. 92.
35. Rolnik, Suely. A shift towards the unnameable. Catlogo Cildo Meireles. Ed. Tate
Modern. Londres: 2008, p. 132.
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JOGOS DE LINGUAGEM
DADO: 1-DADO 2-TTULO
PERCEVEJO-CERVEJA-SERPENTE CRUZEIRO DO SUL
JE EST UN AUTRE PASTEL DE PASTEL
LA BRUJA TRES SONIDOS VOLTIL
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palavra, como seria tant donn do Marcel Duchamp, mas ela vira
objeto. Por outro lado, o objeto se desmaterializa. Palavra e objeto
funcionam como uma reiterao, e, sendo diferentes, compem uma
situao de igualdade matemtica, um enunciado, na verdade. A
palavra do lado de fora, voc olha, correto, dado, e dentro, o objeto,
tambm um dado.
No caso da srie Objetos Semnticos, ressalta o artista, as
palavras no tm um vnculo absoluto com os objetos e, no entanto,
um depende estritamente do outro para existir como PercervejoCerveja-Serpente (1980), exposto pela primeira vez em 1983.
Cildo mesmo descreve Percervejo-Cerveja-Serpente e detalhes da
montagem: Trata-se de trs varetas de madeira absolutamente iguais
e bem simples, todas com 3m de altura. Uma delas, a que tem dois
dentes de serpente, est no cho, na horizontal. J a vareta de madeira,
que tem um anel de lata de cerveja, tem um furo e nela est o anel da
lata de cerveja; situa-se altura dos olhos do espectador. Voc tambm
mal a v. E a vareta que tem uma rplica de percevejo de escritrio,
em ouro, fica na vertical; est amarrada e voc na verdade no a v, a
luz fica em cima dos olhos, ento per-cer-vejo. A extremidade voc
no enxerga, voc v apenas o reflexo. Constituindo um crculo, esses
nomes lidam com a palavra Ser. Esse deslocamento e descolamento
entre os sentidos das palavras perceber-ver-ser, presente nessa srie,
se repete em Pastel de Pastel (1976), que exibe, dentro de um invlucro, desenhos transparentes feitos com a tcnica de pastel. Jogo de
palavras, Pastel de Pastel pode ser considerado mais um objeto da srie
semntica, pois seu forro era de papel celofane ao passo que dentro
havia um desenho em pastel, mas apresentava-se como recheio do
pastel. Esse celofane em forma de pastel era na verdade, explica o
artista, um crculo dobrado. Imediatamente, esse dado nos lembra
a esfera de celofane no centro de Atravs.
A ligao de Cildo Meireles com as palavras no meramente
conceitual. La Bruja e Tres Sonidos so propositalmente em espanhol.
Percebe-se o humor e o prazer no jogo com as slabas e com a sonoridade das palavras. J Je est un Autre tem ligao direta com a poesia
de Rimbaud (1854-1891) e mostra, como sugere a prpria frase, o
aspecto reversvel de seus trabalhos.
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DENSIDADES
CRCULO
Para Cildo Meireles, trs de seus trabalhos incidem diretamente sobre a questo da densidade. Para ele, apenas estes esto
diretamente ligados s questes relacionadas com a massa e o volume: Casos de Sacos, A Diferena entre o Crculo e a Esfera o Peso e
Eureka- Blindthotland, Blindhotland-Gueto e Liverbeatlespool, sobre
o qual j falamos. Nesses casos, estamos nos referindo experincia
fsica da mesma. No caso de Blindhotland, a noo de densidade
surge a partir do cruzamento entre sinestesias e cinestesias corporais.
Os outros trabalhos O Sermo da Montanha: Fiat Lux e Fontes
lidam com densidades apenas tangencialmente.
Aquilo que logo chama ateno em Casos de Sacos (1976)
o aspecto utilitrio do material, pois so sacos de compras, feitos de
papel. Algo que se repete na trajetria do artista uma vez que retira
objetos do mundo cotidiano, tais como giletes, fsforos, emplastros,
dinheiro, rodos e pregos que muitas vezes so apresentados em funes
completamente diversas, o que lhes d outro significado. Entretanto,
com relao a estes, ele diz: Eu gosto de trabalhar com coisas paradigmticas, coisas que sejam reconhecidas pelo pblico em seu cotidiano,
coisas que so ao mesmo tempo matria e smbolo.38 Contudo, no se
trata de uma operao de transformao desses utenslios em fetiches e
sim de uma demonstrao da interao porosa entre a arte contempo38. Morais, Frederico de. Cildo Meireles entrevista Cildo Meireles e Frederico de
Morais. Catlogo Algum Desenho. Rio de Janeiro: Ed. Centro Cultural Banco
do Brasil, 2005. p. 60.
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vessa a tela de Ren Magritte: ceci nest pas une pipe, isto no um
cachimbo, objeto, isto a pintura de um cachimbo e a representao
de um objeto. Magritte chamava ateno para o fato de que entre as
palavras e os objetos podem-se criar novas relaes e caractersticas de
linguagem, usualmente ignoradas no cotidiano(...). Algumas vezes
o nome de um objeto pode tomar o lugar de uma imagem. Uma
palavra pode assumir o lugar de um objeto na realidade. Uma imagem
pode tomar o lugar de uma palavra numa proposio.39 Referindo-se
esfera e ao crculo, Cildo, em certo momento, alude eloquncia
do peso. Assim, acompanhando o texto de A Diferena entre o Crculo
e a Esfera o Peso no catlogo da exposio organizada por Vicente
Todoli e Nuria Enguita no Centre del Carme, lemos: A realidade
menos a representao da realidade igual ao peso.40 Podemos crer
que a prpria vida seja tambm densidade.
Num outro patamar, a instalao chamada Fontes (1977-2008)
tambm se refere s densidades. Experincia paradoxal, aqui, a vivncia da densidade se faz no percurso de uma instalao. Em meio a uma
floresta de metros, o som se produz medida que caminhamos entre
eles. Na definio do artista, seria uma tentativa de materializar uma
abstrao. O trabalhou concentrou-se inicialmente sobre nmeros e
comenta uma das primeiras abstraes do homem. J nas razes da
cultura ocidental, conforme descreve Werner Jaeger,41 no sculo VI,
nmeros, conhecimento de harmonia musical, filosofia e a prpria
lngua grega andavam juntos.
Em Fontes, os metros parecem ready-mades. Mas no so. Alis,
o primeiro passo do artista foi alugar uma fbrica de metros e criar
seu prprio padro. A esse respeito, ele explica: A ideia era alterar a
sequncia numrica e manter a distncia entre os nmeros ou alterar
a distncia e manter a sequncia numrica. A terceira leva de metros
39. Foucault, Michel. Aesthetics. Londres: Ed. James Faubion-Penguin Books, 1998.
p. 198.
40. A Diferena entre o Crculo e a Esfera o Peso. Catlogo Cildo Meireles. Ed.
Ivan __ Centro del Carme, 2005.
41. Jaeger,Werner. Paideia a formao do homem grego. So Paulo: Editora
Martins Fontes, 2003. p. 206.
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DENSIDADE E SINESTESIAS
EUREKA-BLINDTHOTLAND BLINDHOTLAND-GUETO
TRES SONIDOS ESPELHO CEGO KUKKA KAKKA
ENTREVENDO VOLTIL
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ANAMORFOSE
CANTOS OURO E PAU PARA PEDRO
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cantos de parede. Assim, o que dentro e pode simbolizar estrangulamento do espao vira fora, vira esquina, sada e abertura.
Essa continuidade tambm aparece nas passagens existentes entre os
desenhos ou projetos expresses bidimensionais e a categoria etc
ou instalaes geralmente tridimensionais. Ao mostrarem figuras
em via de se transformar em outras coisas, tanto os desenhos como os
Cantos criavam diferenas mediante a prpria noo de continuidade,
j que podiam ocorrer atravs de uma lgica contrria e, assim, criar
uma espcie de equivalncia entre espao interno e externo, como
vemos tanto em Cantos como em Espaos Virtuais: Cantos.
A respeito da influncia de Marcel Duchamp, Cildo afirma:
Algo que sempre me interessou no Duchamp que o conceito de
ready-made sempre fluido, nunca est fixado. Presente no percurso de Cildo, a noo de virtualidade vai atuar com configuraes
sempre diversas e assumir posies polticas e estticas estratgicas.
No caso desses espaos virtuais no s as categorias tradicionais das
belas-artes sobretudo as que ainda eram consideradas em concursos e sales de arte so burladas, mas o prprio territrio da
arte vai se dirigir para um mbito maior: ele abandona o objeto de
arte como lugar privilegiado de criao individual e busca simultaneamente novos modos de insero poltica. Ocultos e ao mesmo
tempo visveis, esses espaos virtuais que s se realizam mediante o
deslocamento de objetos e corpos, tambm operam entre o real e
o imaginrio e podem transformar-se de um simples ponto numa
dimenso espacial.
Volumes Virtuais, que tambm podem ser encarados como
anotaes ou projetos, teriam sido iniciados a partir do desejo do
artista de criar situaes espaciais a partir de sombras, o que significa
dar corpo e substncia invisibilidade e criar novos permetros alm
de solues plsticas inditas.
Provenientes de uma experincia grfica, os Volumes Virtuais
j estavam implcitos nos Cantos pelo fato de lidarem com problemas
semelhantes aos dos Espaos Virtuais. Um dos desenhos-projeto comea
com uma base quadrada, ou melhor, um prisma de base quadrada e
quando se chega ao teto, temos dois planos, duas diagonais. Esse desenho
ou plano a representao grfica de uma situao de anamorfose.
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REBATIMENTO
PARA PEDRO CINZA PLING-PLING CAMPOS DE JOGOS
PINTURA N0 1 OBSCURA LUZ
Constitudo de telas de 8m de comprimento por 3m de largura, com tinta acrlica nas laterais, Para Pedro tinha, de um lado,
tela branca com pontos pretos, e, do outro, tela preta com pontos
brancos e, no cho, brita. Ao fundo, de baixo para cima, uma srie
vertical de monitores de televiso mostra um percurso de imagens.
Uma das telas da torre de televiso mostra a imagem da brita e, assim,
estabelece relao com o cho; a segunda tela exibe um chuvisco,
demonstrando a ausncia de sintonia; a terceira reproduz a imagem
de uma das telas de lona, desta feita preto sobre branco; a quarta
mostra chuvisco de novo; e, na quinta, tela inverte-se a situao
da terceira, ou seja, surge a tela lateral que exibe um branco sobre
preto. Na verdade, diz o artista, a ideia de superfcie e a questo
do pontilhismo, s que de naturezas diferentes brita, chuvisco e
preto sobre branco e branco sobre preto, e o piso, que o prprio
material tambm. De maneiras diferentes, todos funcionam como
reiteraes ou extenses. H um processo de equalizao entre o
material e a superfcie bidimensional da pintura, neste caso, entre as
telas pintadas e suas projees nas televises, e tambm sobre a pedra,
elemento da escultura. Procedimento que compe um circuito entre
as imagens bidimensionais das telas de lona e as imagens nas televises.
H outro circuito ainda: entre a imagem eletrnica, imagem pintada,
e elemento o concreto, o objeto, a brita.
Primeiro trabalho realizado depois do nascimento de seu
primeiro filho, Pedro Ariel, Cildo Meireles aqui dialoga com Bruce
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O artista recorda que depois trabalhou com puras, representao bidimensional de objetos tridimensionais, caso de Campos de
Jogos, exposto em 1989, na Galeria Luisa Strina. Ali, trave, marcao
e grama de campo de futebol parecem estar onde no poderiam e,
da mesma forma, efetivam a ao de rebatimento, projeo de um
plano em torno de um eixo.
Outra situao de rebatimento e de virtualidade perceptvel em Pintura no1 (1999-2000). Trata-se de um tubo amarelo
de 600cm de comprimento e 45cm de dimetro, suspenso a 25cm
Perpendicular ao cubo, surge um cabo azul de 1cm de dimetro a
2m de altura. Apenas um foco de luz reala o ponto de interseo
das duas estruturas e faz com que a sombra do tubo azul projete sobre o tubo amarelo uma linha de cor azul. Por outro lado, a sombra
do tubo amarelo se lana sobre o tubo azul e cria nele uma zona de
cor amarela. Zona de sentidos, as cores, como os sons das palavras,
so regies de luz e tambm de sombras. Nessa interseo virtual, a
lei dos contrastes simultneos reduzida a um ponto no tangvel.
Princpio fundador da pintura moderna impressionista, que estabelece
a contiguidade em acordo com a presso de uma cor sobre a outra,
essa lei agora se apresenta suspensa. Ao mesmo tempo, cores distantes aparecem prximas: o amarelo, que luz e calor, e o azul, que
sombra e frio meia distncia da luz e das trevas se encontram
virtualmente. Extrato distendido no tempo e regio limtrofe entre
matria e forma, as cores, que sempre foram da ordem do fascnio e
do desejo de posse, aqui, suspensas, tocam-se de modo praticamente
imaterial: obscura luz.
O trabalho Obscura Luz, de 1982, superfcie de madeira e jogo
de luz e sombra, anuncia a ideia de ambivalncia to cara ao artista.
Neste caso, no se trata de cor, desenho ou pintura, porm a ideia de
rebatimento persiste. Uma luz que se projete como sombra contradiz
os princpios de luz e obscuridade. No obstante, esse paradoxo se
resolve com o personagem do malabarista, tambm parte da exposio. Realizada nas Galerias Luisa Strina e Saramenha, a atuao desse
figurante, segundo o artista, pode ser vista como metfora de seu
conceito-sntese de territrio: Algum que administra trs objetos
onde s cabem dois. Nesse caso, tem que introduzir o conceito de
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46. Meireles, Cildo/ Morais, Frederico de. Cildo Meireles fala de seu trabalho at
agora. Rio de Janeiro: Jornal O Globo, 16.3.1977.
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DES-ORDEM E ENTROPIA
OBSCURA LUZ ESTOJO DE GEOMETRIA:NEUTRALIZAO
POR OPOSIO OU ADIO ESPELHO CEGO PARLA
ELOS:IGUALDADE CONHECER PODE SER DESTRUIR
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ESCALAS
ESPAOS VIRTUAIS: CANTOS ARTE FSICA CRUZEIRO DO SUL
MALHAS DA LIBERDADE DESVIO PARA O VERMELHO
VIAGEM AO CENTRO DO CU E DA TERRA DESCALA
INMENSA FIO TWO TREES LA BRUJA
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forte, porque esses espaos virtuais atuam como Espelho Cego (1970),
que no reflete a imagem de quem o olha. Todavia, Espaos Virtuais:
Cantos podem ser considerados manifestaes da noo de escala em
seu trabalho: aquela que se d no jogo com o espao fsico em que as
obras se encontram inseridas.
Em Cruzeiro do Sul (1970) ainda a escala que relaciona a
materialidade da obra e seu campo de atuao. A desproporo entre
o tamanho da escultura e o espao no qual est inserida apresenta-se
unida a um movimento que de condensao um cubo mnimo
feito num material que gera fogo e a outro movimento, oposto e
concomitante, de disperso, patente no prprio tamanho da sala.
Nesse caso, a noo de escala, que de ordem fsica e espacial, tambm faz parte da linguagem simblica, pois Cruzeiro do Sul coloca
a experincia do longe como emocionante.
A aparncia simultaneamente medieval e high tech de Glove
Trotter redimensiona a escala do tempo. A imagem da estrutura
reticulada j estava em Malhas da Liberdade, de 1976, outro trabalho que dialoga com a noo de escala, alm de se ligar questo
da aparncia, pois trata-se de uma grade, smbolo de aprisionamento, que cria passagem por todos os pontos. Entre distrado
e concentrado, fazendo doodling, o artista enchia seus cadernos
escolares com esses mdulos. E explica-os assim: So mdulos que
evoluem interceptando-se mutuamente, pois um primeiro mdulo
intercepta os dois subsequentes pela metade, sendo interceptado
por um terceiro mdulo, isso em escala progressiva e em direo
ao infinito. A verso em metal, voc v como grade e, no entanto,
ela pode ser atravessada em todos os pontos. Tambm um trabalho
oral, pois faz parte de um grupo que denominei como fonmenos, so os fono-fenmenos. Os prprios Espaos Virtuais podem
ser verbalizados e agir como instrues. Na poca, eu e Raimundo
Collares conversvamos muito sobre isso, sobre a possibilidade de
os trabalhos poderem ser reproduzidos.
Matematicamente reproduzvel ao infinito, paradoxalmente,
a estrutura das Malhas da Liberdade traz grande potencial de desmaterializao. Assim, no deixa de ser uma escala do paradoxo.
Fenmeno oral, ela reverbera no tempo como os sons das palavras.
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partida para outras ramificaes. O tempo no uniforme: convergente, paralelo ou divergente, no conto, Borges fala da abrangncia
de todas as possibilidades, inclusive as ficcionais, e como na estrutura
das Malhas da Liberdade, esse jardim, sem continente ou contedo,
tambm no tem fim.52
Por ocasio da retrospectiva de sua trajetria de trabalho realizada em 2009 na Tate Modern, Cildo Meireles props uma verso
extraordinria das Malhas, a quarta, ao passo que para a maioria dos
trabalhos existem apenas trs verses, com algumas excees. Desse
modo, props uma quarta verso para as Malhas da Liberdade: mdulos de plstico encaixveis. Vinha acompanhada de instrues,
e sua montagem seria atribuio de cada espectador. Na viso do
artista, a execuo individual do projeto tornaria o raciocnio das
Malhas mais concreto.
Em 1982, Inmensa lana outro olhar sobre a noo de escala. Trata-se de um conjunto de mesas, com dimenses variadas,
criando relao umas com as outras e com o espao, como se pode
ver em Inhotim. Nas palavras do artista, Inmensa refere-se a coisas
cada vez maiores, se apoiando em coisas cada vez menores. Assim,
escala e densidade so referncias que se unem nessa esculturaarquitetura.
A indagao em torno da noo de escala no trabalho de
Cildo Meireles bastante multifacetada. No caso de Desvio para o
Vermelho, por exemplo, ela outra ordem, pois refere-se relao
entre continente e contedo, perceptvel na sala Entorno. No cho,
esparrama-se mais lquido que a capacidade da garrafa. Mas, para
o artista, Desvio para o Vermelho manifestaria ainda outra noo de
escala, neste caso uma dimenso fractal, pois um objeto leva ao outro
interminavelmente e, resvalando de um em um, chegamos pia no
ultimo ambiente, onde o circuito se fecha.
Fio (1990-1995) fez parte da exposio Ouro e Paus. No
centro da sala, vemos uma grande quantidade de feno, um total de
48 feixes. Palha, caixotes, pregos e ripas, material de embalagem
52. Borges, Jorge Luis. O jardim das veredas bifurcantes. Obra Completa. So
Paulo: Ed. Difel, 1986. p. 531.
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Projetada no mesmo perodo que Two Trees, La Bruja (19791981) sintetiza a indagao do artista para com a escala, a massa do
trabalho e sua relao com o espao, bem como com a mensurao
e o questionamento dos limites entre vida pblica e privada. uma
vassoura, e, como tal, objeto extremamente cotidiano. Confeccionada
artesanalmente, suas cerdas tm tamanho desproporcional ao seu
corpo. La Bruja se multiplica e j foi montada em cores e dimenses
diferentes: em So Paulo era branca e, assim, contrastava com o piso
escuro; foi terra e tambm preta. Virtualmente pequena, como
Cruzeiro do Sul, uma pea que se torna enorme, alm de surrealista. Expande-se no espao no apenas num sentido metafsico, mas
tambm literal, pois suas linhas correm para a calada e enlaam o
espectador desprevenido, como ocorreu na galeria Arte Futura, em
Braslia. Extensiva, como um polvo estende sua malha em desalinho
pelo espao das ruas, desordenando o pblico e a geometria das
caladas e transtornando a noo de bem privado.
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A figura do Camel pode ser considera um ponto nfimo nos sistemas mercantis, e, no entanto, quanto maior o centro, mais densa
a periferia. O Camel representa as estruturas gigantescas montadas
para produzir coisas de mnimo valor ou dimenso. Para o artista,
representa o espanto na constatao de algum viver da circulao de
mercadorias com aparncia e escala to insignificante como atividade,
labor e habilitao profissional.
A figura do Camel tem configurao pblica, j que est
exercendo uma funo social, mas ao mesmo tempo privado, pois
no est mapeado institucionalmente. Na concepo do artista,
modelo exemplar de humiliminimalismo, Camel se aproxima dos
vendedores de picols de Kassel, no sentido de serem as pontas do
sistema produtivo, ou seja, so aqueles que fazem com que os produtos
cheguem aos consumidores. No obstante, os Camels diferem do
sistema de picols porque a dimenso coletiva de um sistema organizacional considera-se una, ao passo que o Camel representa um
fragmento e uma unidade parte, no reconhecida e sequer prevista
por esse modelo. O camel pblico e privado pelo fato de exercer
uma funo pblica de modo privado. Ele atua de modo privado nos
espaos pblicos e fura a unidade da malha urbana. Nesse sentido,
alimenta-se de uma escala desfavorvel, como a de Cruzeiro do Sul
(1969-1970). Todavia, ocupando um espao mnimo, apresenta alto
teor de irradiao. Fora de controle e fiscalizao, como os circuitos
operacionais das Inseres em Circuitos Ideolgicos, as figuras dos
Camels so extremamente mveis.
Ocasio tambm versa sobre a interpenetrao entre a dimenso
pblica e privada. um trabalho de 2004 e ainda no foi montado
no Brasil. Projeto que remonta dcada de 1970, o sistema de salas
de Ocasio foi exibido pela primeira vez em Portikus, Frankfurt. Ali, o
espectador confrontado com o dinheiro. A cena se passa da seguinte
forma: numa sala vazia e luminosa, com espelhos em trs paredes,
vemos uma bacia branca sobre uma base de metal preta contendo
notas de banco e moedas em seu interior. Apenas isso. Entretanto,
o jogo dos espelhos fabrica uma situao simblica muito rica e que
se aproxima de uma tela de Diego Velsquez, intitulada As Meninas
de 1657. Em contrapartida, ao produzir imagens recessivas, Ocasio
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MEMRIA
ELEMENTO DESAPARACENDO-ELEMENTO DESAPARECIDO
STRICTU ANTES
Na XI Documenta de Kassel, em 2002, Cildo Meireles apresentou um trabalho que talvez condense sua obra, alm de resumir
muito do que j foi dito aqui. Chamava-se Elemento DesaparecendoElemento Desaparecido. Nele, o que mais chamava ateno eram os
picols que tinham formatos achatados, cbicos e cilndricos e podiam
ser identificados por trs cores diferentes: azul, verde e cinza. Essas
cores esto nos palitos dos picols e se repetem nas embalagens, mas
o gelo destes incolor e sem sabor.
Antes de comear a derreter o gelo, l-se no palito: elemento
desaparecendo. medida que o picol vai sendo consumido, aparece
outra inscrio no mesmo palito: elemento desaparecido. Os picols
de gua so parte da memria do artista: os picols de gua vendidos
na rodoviria de Goinia, onde o artista morou. Pobres, no tinham
sequer cor ou sabor. Objetos banais e comuns como so os materiais
utilizados pelo artista, os picols significam a precariedade, no s da
vida, como tambm dos suportes que do corpo operao artstica.
Os picols de Kassel s se realizam plenamente quando consumidos ou assimilados. Nesse momento, desaparecem como
arte e reaparecem como elementos, isto , como objetos, ou palitos.
Nos invlucros, os picols exibem-se na qualidade de mercadorias
e, dessa forma, manifestam-se como bens coletivos, j que so produtos, mas, apreciados de boca em boca, so ntimos e privados.
Como nos circuitos do artista, os picols so objetos contraditrios;
sua feio pblica quando sua mensagem ainda est camuflada;
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estabelecimento de relaes contratuais com provedores e funcionrios e venda da produo por intermdio de diversos carrinhos,
como bem o descreve Moacir dos Anjos.63 Carrinhos e vendedores
recm-contratados deviam circular durante a amostra e em todos
os espaos pblicos da cidade. Esse modo operativo no previa a
invaso de circuitos j existentes, sendo ele mesmo uma montagem
industrial. Contraditoriamente, o esquema montado no geraria
lucros, pois o valor gerado devia ser imediatamente repartido pelos
partcipes, ou seja, fabricantes e vendedores. Assemelhando-se ao
modo de atuar dos camels, os vendedores de picols participavam
de uma montagem com caractersticas de autogesto. Mas, como os
picols, tambm essa estrutura fabril tendia ao desaparecimento, j
que no previa lucros nem reposio de material.64 E, no entanto,
entre consumidores e trabalhadores, o comrcio de picols atraiu uma
massa de pessoas desproporcional ao empreendimento, mesmo ser
ter a lgica de apropriao presente no capitalismo.
Elemento Desaparecendo-Elemento Desaparecido atuaria como
ponto energtico nas trocas mercantis. Densos como os buracos negros, a despeito de seus alegres coloridos, provocariam momentnea
falta de equilbrio. Os picols compunham um circuito; no obstante,
como em Eppur si Muove, subvertiam a lgica de acumulao de capital e apresentavam um mecanismo de dissipao do valor gerado.
Nessa empreitada potica, no h paternalismo. Desaparecendo-Desaparecido so objetos que, embora apresentem laos
com o sistema de trocas, subvertem valores mercantis. Por excessiva
proximidade, os picols opem mercadoria e arte. E, contudo, so
rplicas em escala reduzida da estrutura bsica que os produz e faz
com que mercadorias girem.
Elemento Desaparecendo-Elemento Desaparecido inclua um elemento performtico, assemelhando-se Ocasio, uma vez que tambm
envolvia o testemunho do espectador. Mas o acento no era voyeurista.
63. Anjos, Moacir dos. A Indstria da Poesia. Dardo Magazine. Santiago de
Compostela. Junho-setembro de 2006. p. 87.
64. Anjos, Moacir dos. A Indstria da Poesia. Dardo Magazine. Santiago de
Compostela. Junho-setembro de 2006. p. 88.
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Alm disso, punha nfase no objeto slido que se oferecia ao consumo, mesmo que logo em seguida o dissolvesse. J em Ocasio,
era a estrutura da cobia, o objeto de desejo que estava em questo,
simbolizado pelo valor, nesse caso, pelo dinheiro. Em vez de diluir a
forma como os picols de Kassel, em Ocasio, era o jogo de olhares e
espelhos em rebatimento e contradio que dava forma ao invisvel
objeto-arte.
Como na tela As Meninas (1656), de Diego Velsquez (15991660), Elemento Desaparecendo-Elemento Desaparecido e Ocasio
mobilizam a estrutura da visibilidade e do desejo. Entretanto Elemento
Desaparecendo-Elemento Desaparecido, diferente de Ocasio, parece
atuar de modo semelhante s mquinas celibatrias de Marcel Duchamp, j que, ao produzir e consumir seu prprio alimento, gera e
zera desejo ao mesmo tempo. O resto do domnio da imaterialidade.
Mquinas libertrias de prazer voltil, os picols da Documenta de
Kassel tambm tm relao inversa e paradoxal com Strictu (19992000), composio diretamente referida ao circuito de arte. O projeto
de Strictu partiu de um convite: participar de uma coletiva da qual
inicialmente fariam parte 35 curadores conhecidos. Depois de dois
anos, o convite foi confirmado, mas agora s fariam parte da mostra
cinco curadores em Bonn, na Alemanha, e, finalmente, s Ian Hoet
foi confirmado. Era do conhecimento dos artistas a existncia de um
circuito predeterminado para a circulao do pblico.
A ideia de Strictu, uma espcie de escultura instalada, surgiu
quando Cildo Meireles estava em Nova York e ligou a televiso. Nela,
assistiu a um programa no qual lderes da Ku Klux Klan defendiam
o direito de participar a carter de uma passeata em que se comemorava o Thanksgiven. Num congresso televisionado, o lder desse
movimento racista, chamado Great Wizard, dirigia-se aos telespectadores: Ns queremos ocupar seu espao, confin-los, isol-los. Ns
queremos ocupar seu tempo, constrangendo-os, pressionando-os.
Ns queremos ocupar suas vidas. quando o artista decide expor
esse texto sobre uma mesa e dedica-o com ironia aos curadores. Ao
redor dessa mesa, veem-se duas cadeiras, h uma luz kafkiana e uma
corrente no cho. O espectador tem de percorrer a exposio com as
mos acorrentadas. Obrigados a vivenciar o percurso preestabelecido
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