A Ética Da Prisão No Utilitarismo Clássico e Contemporâneo
A Ética Da Prisão No Utilitarismo Clássico e Contemporâneo
A Ética Da Prisão No Utilitarismo Clássico e Contemporâneo
CONTEMPORNEO
RESUMO: Este artigo procura fazer uma sntese histrica do surgimento dos
modelos contemporneos de priso no contexto ocidental, tomando como ponto de
partida o perodo de afirmao do capitalismo e do Estado Moderno (considerando
como o tal o sculo XVI e seguintes) e dando destaque para o papel desempenhado
pela filosofia utilitarista nesse processo. Depois disso, busca refletir sobre as
transformaes da instituio carcerria e da tica por trs da punio at o sculo
XIX, visitando o conceito do Panptico de Bentham. Por fim, objetiva criticar o
sistema prisional a partir de uma releitura dos autores utilitaristas clssicas (Jeremy
Bentham e John Stuart Mill) e das formulaes dos utilitaristas contemporneos - R.
M. Hare (prescritivismo universal) e Peter Singer (igual considerao de interesses).
1. Introduo2
Desde que adquiriu a forma que conhecemos hoje 3, a questo punitiva 4 suscita
debates acalorados, tanto na academia quanto na sociedade civil. As temticas
mudam ao longo do tempo e dependendo do local, mas a imperatividade da
existncia da instituio carcerria permanece pouco questionada (ao menos no
senso comum), tendo se constitudo como um verdadeiro dogma.
Entretanto, a situao catica enfrentada h dcadas pelo sistema prisional, no
Brasil5 e em boa parte do globo, tem motivado indagaes profundas nas cincias
criminais que contriburam para o esclarecimento, relativizao e desconstruo das
funes sociais que os crceres cumprem. O presente artigo se alinha s correntes
crticas que buscam sua superao6.
Essenciais as consideraes de Zaffaroni (2001, p. 12 e segs), que alardeou que
o sistema penal, se observado na Amrica Latina, seria indefensvel, tamanho o
distanciamento entre seu discurso legitimador e sua prtica.
Neste sentido, impossvel se desligar dos argumentos de cunho sociolgico
que evidenciam uma grande imposio de sofrimento a determinados grupos por
conta da existncia dessa instituio, sobretudo num contexto com questes sociais
2 Este artigo busca dar prosseguimento a Um P Libertrio Na Porta Da tica Liberal:
Proposta De Apropriao Crtica da Filosofia Utilitarista Pelo Fim do Crcere, apresentado
na XVI Jornada de Iniciao cientfica de Direito da UFPR, em 2014. Dessa forma, resgatase parte do que foi ali exposto, sobretudo no que diz respeito exposio sobre o
surgimento do pensar vinculado utilidade e do sistema prisional contemporneo.
3 Esta idia ser desenvolvida no ponto 2.
4 Entendida, neste caso, como a gama de discusses relativas incidncia do poder
punitivo oficial isto , por parte de um poder estatal - e de forma verticalizada.
5 Pas com a terceira maior populao carcerria em nmeros absolutos. (Cf. com BRASIL
PASSA A RSSIA..., 2014).
6 Isto , sua modificao substancial ou extino, pelas razes expostas no ponto 4.
2
fim,
uma
observao:
deve-se
notar
que,
mais
ou
menos
Pavarini (2006, pp. 21-25) afirmam que a privao de liberdade, enquanto punio
por si prpria, no existia em contextos sociais com modo de produo prcapitalista. Ressaltam os autores, sem delimitar um perodo especfico do medievo,
que, nas sociedades feudais (da Europa ocidental continental, subentende-se), se
noticiava o enclausuramento por tempo determinado no regime penitencirio
cannico, com objetivo final de arrependimento do pecador (e no sua pretensa
regenerao tica ou social). No contexto secular, entretanto, a cadeia tinha uma
funo sobretudo processual e um carter de retribuio e expiao.
Ento, conforme o ttulo do clebre trabalho historiogrfico-criminolgico, que
assume uma posio declaradamente marxista, a priso - como a conhecemos hoje
e a fbrica possuiriam um nascedouro comum, vinculado ao desenvolvimento do
capitalismo. Tal origem remontaria a duas instituies surgidas entre a segunda
metade do sculo XVI e a primeira metade do sculo seguinte (momento em que se
noticiava um movimento intenso de migrao de trabalhadores camponeses para as
cidades por conta do perecimento do modo de produo feudal e efervescncia da
atividade econmica urbana). So as casas de trabalho e de correo, primeiros
estabelecimentos laicos sem a finalidade de custdia na histria do crcere,
conhecidas como workhouses, houses of correction ou, popularmente, bridewells11
na Inglaterra, e rasp-huis12 na Holanda (MELOSSI; PAVARINI, 2006, p. 33 e segs).
No um acaso que justamente essas naes tenham representado uma
vanguarda nesse processo, j que, na viso Melossi e Pavarini (2006, p. 33), elas
desempenharam um papel bastante ativo no desenvolvimento do cenrio polticoeconmico da poca a primeira, enquanto bero da revoluo industrial; a
segunda, como ponta-de-lana do trfico mercantil aps sua independncia.
Em comum entre os pases pode-se destacar, dentre outros, 1) a demanda
por mo-de-obra num perodo de declnio demogrfico no continente europeu; 2) um
enorme contingente de pessoas desocupadas e esfaimadas - se formando nos
11 Nome derivado do Castelo de Bridewell, que, por ordem do rei, serviu de albergue aos
vagabundos, ladres e pequenos delinqentes na metade do sc. XVI.
12 Datando a primeira de 1596. Seu nome deriva do trabalho de raspagem de madeira
comumente pau-brasil para a obteno de p corante que os internos tinham que
desempenhar.
5
as
rasp-huis
holandesas,
antes
com
funo
disciplinadora
influenciada
pela
nfase
na
utilidade
consequente
modo de pensar o crcere e tica das aes humanas como um todo. Trata-se de
Jeremy Bentham (1748-1832), que Melossi e Pavarini (2006, p. 71) definem como
um dos representantes mximos da burguesia inglesa em ascenso, e Foucault
(1999, p. 86), por sua vez, considerava (...) mais importante para nossa sociedade
do que Kant, Hegel, etc. porque (...) programou, definiu e descreveu da maneira
mais precisa as formas de poder em que vivemos.
um fundamento notrio de sua filosofia que Bentham cria que as pessoas
(governantes, inclusive) deviam tomar suas atitudes com base em um norte o
prazer, ou felicidade de modo a maximiz-lo, evitando, por sua vez, seu oposto a
dor, de modo que observando-se esse princpio produzir-se-ia a maior felicidade
possvel (BENTHAM, s.d., p. 14). Tratando do assunto de modo mais profundo, Dias
(2007, p. 20) afirma que Bentham referia-se poltica e a moral como cincias,
seguindo a corrente do racionalismo clssico predominante seu tempo, que
considerava a certeza e a verdade como bases e objetivos finais para construo do
conhecimento. Alm disso, o filsofo ingls era empirista e operacionalizava sua
epistemologia por meio de duas classes de entidades a perceptiva, relativa ao
conhecimento do sensorial (e orientado sobretudo pela dor e pelo prazer), e a
inferencial, relativa a idias sem correspondncia material. Direito, lei, justia e
obrigao estariam no ltimo grupo, e, como dependentes de uma construo
humana intelectual baseada na sua experincia, seriam manipulveis a fim de
promover mais prazer no seio da sociedade (DIAS, 2007, pp. 32-33) 13.
Alm de ter construdo um modo de pensar extremamente instrumentalizvel
para as transformaes produtivas em curso 14, e talvez demonstrando o maior
13 Nas pginas seguintes a autora ainda expe sua opinio de que a busca pelo prazer no
seria uma atitude egosta se o indivduo compreendesse que na verdade ele deve buscar a
ao mais til para a comunidade e no para si.
14 Isto porque sua concepo de saldo de felicidade social era um vazio conceitual (a
despeito das formulaes com pretenso matemtica de Bentham a seu respeito), que
permitia aos governantes criminalizar as condutas que bem entendessem sobre a
justificativa de violarem o interesse da maioria (a mendicncia, a vagabundagem, a
criminalidade patrimonial de bagatela, o direito de greve e de organizao poltica contrahegemnica so exemplos possveis). Bentham, inclusive, incentivava a manipulao da lei
penal nesse sentido em contrapartida, inovou ao apregoar a proporcionalidade da punio
em relao ao dano social causado. (BENTHAM, p. 25).
7
68): tal como a filosofia utilitarista que floresceu no sculo precedente, a dogmtica
penal do sculo XX seguiu a tendncia das cincias modernas de alinhamento ao
cartesianismo, de modo que nesta poca vigorou processo criminal orientado pela
busca da verdade em sua instruo probatria.
Retomando, porm, o foco para o campo da tica (e voltando ao sculo XIX),
preciso procurar compreender mais propriamente as transformaes pelas quais o
uso do aparato penal passou do ltimo sculo para o presente.
Assim, traz-se tona s formulaes de John Stuart Mill, discpulo e crtico de
Jeremy Bentham e aquele que se estabeleceu como o grande nome da filosofia
utilitarista aps este ltimo. Merece destaque seu estudo da moral, a qual procurou
diferenciar da justia, associando esta ltima sano penal, que seria, para ele, a
essncia do direito.20 A aplicao dessa sano deveria ser conduzida de acordo
com ideais de bem comum em sentido semelhante aos pautados por Bentham,
exaltando-se, assim, a funo de preveno geral negativa (Bentham, s.d., p. 65-71)
- uma caracterstica, de fato, comum dos benthamistas.21
Nos mesmos anos em que Stuart Mill escrevia suas obras, dois
acontecimentos merecem ateno: o paradigma positivista, que tomava de assalto
as cincias em geral (e a criminologia no constitui exceo, de modo que a
discusso criminal passou a se para a esfera da periculosidade, avaliada a partir da
observao de relaes de causa e efeito com base estatstica ou meramente
emprica PAVARINI, 2003, p. 43) e a situao dos Estados Unidos, laboratrio da
inveno penitenciria (MELOSSI; PAVARINI, 2006, p. 151).
Na continuao de Crcere e Fbrica, Melossi e Pavarini (2006, p. 153)
elucidam que at o fim do sc. XVIII pobreza e crime no foram alvo de grande
preocupao na antiga colnia inglesa alis, o sistema prisional estadunidense era
bastante incipiente at este sculo. J nas primeiras dcadas aps a independncia,
se noticiou uma escalada industrial e um desenvolvimento populacional urbano sem
precedentes, que modificaram a composio de classes sociais no territrio do pas
20 Cf. com Bentham (s.d., p. 14) e Mill (s.d., p. 33)
21 Cf. com Beccaria (s.d., p. 8).
10
31 Se uma soma relevante gasta para, por exemplo, reprimir o trfico de drogas e punir os
traficantes, no seria mais til utilizar estes recursos na melhora de condies sociais das
pessoas com ele envolvidas, na informao dos usurios e na recuperao dos
dependentes?
32 Neste sentido o filsofo se aproxima muito do kantismo. Ele assume isso dizendo que seu
mtodo uma resposta essencialmente utilitarista [...] por uma rota kantiana. (HARE, 1989, p. 187
apud BONELLA, 2009, p. 144)
14
sobre a realizao de determinado ato deve ser feito levando em conta as vontades
daqueles que sero afetados por este ato e atribuindo-lhes o mesmo peso), mas
tratou isso como o fundamento primeiro da igualdade, por considerar as demais
formulaes filosficas insuficientemente abrangentes (SINGER, 2002, p. 30 e
segs).36 O filsofo tambm agregou uma varivel circunstancial igual considerao
de interesses: a diminuio da utilidade marginal, princpio emprestado da
economia, que impe que um interesse possa ser priorizado em detrimento de outro
para diminuir uma desigualdade material37.
O grande diferencial de Singer em relao ao seu mentor, entretanto, que ele
levou a teoria tica de Hare s ultimas consequncias e a aplicou a questes
polmicas ou complexas, como o aborto, a eutansia, a explorao animal e a
pobreza mundial. Percorrendo este caminho, Singer colocou a igual considerao de
interesses acima at da ordem jurdica estabelecida em determinada sociedade: se
as partes no participaram de sua formulao e elas no atendem a suas
necessidades, por vezes a violao da lei e a composio so desejveis para o
ordenamento pacfico de uma sociedade igualitria (SINGER, 2002, p. 317).
De fato, parece que Singer se dirigia tambm a administrao da lei penal
quando formulou essa ponderao. E, como j se procurou demonstrar nas linhas a
respeito do prescritivismo universal, do modo como ela aplicada atualmente em
nosso contexto nacional est distante de atender a um ideal de igualdade no que diz
respeitos aos interesses considerados.
5. Concluso
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REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
S.d. Disponvel em
Acesso em 15 de
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