A Psicologia de Platão
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Plthos, 2, 1, 2012
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ISSN: 2236-5028
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Por que, para ns, no mago do dia pode aparecer alguma coisa, talvez, que no seja o dia, alguma coisa que,
numa atmosfera de luz e limpidez, representasse o arrepio de pavor de onde saiu o dia? (Nietzsche)
Introduo
Falar da psicologia [psuchlogos] de Plato trabalhar com sua concepo da alma
[psych], pois psicologia (formada pelas palavras gregas psych e logos) significa,
etimologicamente, estudo da psique, isto , da alma. Interessa-nos, especificamente, a
concepo fundada no modelo tripartite que Plato desenvolve no dilogo Fedro, pelo Mito
do Cocheiro segundo o qual a alma como uma fora natural, formada por um
cocheiro e por uma parelha de cavalos alados.
Tal modelo, que chamamos tripartite, revela, na verdade, no que se refere alma
humana, um dualismo de fundo entre duas figuras antitticas e complementares: o cavalo
negro e o cavalo branco. Segundo nosso ponto de vista, o cavalo negro e o cavalo branco
so dois impulsos antinmicos relativos, respectivamente, s divindades gregas Dionsio e
Apolo. O elemento dionisaco, na imagem do cavalo negro, representa o lado bestial e
monstruoso da alma humana, e o apolneo, na imagem do cavalo branco, o que h de
verdadeiramente divino no homem.
Apolo e Dionsio surgem na cultura grega como o conflito entre o dia e a noite, a
ordem e o caos, a aparncia e a profundidade, a moderao e o desregramento. Enquanto
Apolo o deus onrico, da serenidade, da harmonia, da razo e do respeito lei e ordem,
Dionsio o deus da loucura [mana], do desregramento e da desmedida, deus do vinho, dos
prazeres do amor, do que borbulha, transborda e palpita na natureza.
Para os gregos da poca de Plato, popularizava-se a concepo de que Apolo e
Dionsio eram duas entidades universais, antitticas e complementares. Como
manifestaes de um mesmo ser, o apolneo organiza e contm o mpeto e o turbilho
dionisaco.
As investigaes que concernem natureza da alma se inserem, no dilogo Fedro,
no contexto da fundamentao do amor-delrio por Scrates, estabelecendo contraponto
concepo do amorque o retrico Lsias ensina aos jovens. Com as categorias do apolneo e
do dionisaco, interpretaremos o dilogo Fedro a partir do embate dessas duas foras que
coexistem em um mesmo ser e lutam para govern-lo.
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O dilogo Fedro
No incio do dilogo, Scrates encontra-se na cidade [polis] com o jovem Fedro, que
acabara de tomar lies com o famoso retrico Lsias, trazendo escondido em seu manto
um discurso ertico proferido por ele. Encantado de curiosidade, Scrates sai das muralhas
da polispela primeira vez pois da opinio que apenas entre outros homens pode
aprender algo, e a natureza nada tem a lhe dizer para, junto com Fedro, encontrarem um
lugar fresco e ameno para a leitura do discurso.
No caminho, Fedro fala sobre mitos, enquanto Scrates mostra desinteresse: afirma
que antes de investigar coisas que no lhe dizem respeito, acredita ser necessrio cumprir o
preceito apolneo do orculo de Delfos e conhecer a si mesmo [gnthiseautn], saber se
uma besta mais furiosa e complexa do que a dos mitos, ou se uma criatura mais suave e simples,
que possui parentesco com os deuses e, por isso, pode aspirar a algo maior (229e - 230a).156
Enquanto a polis concerne ao domnio dos homens, estar fora de seus muros o que
Scrates nunca havia feito antes significa transpor os limites do humano: estar entregue
a tudo aquilo que est aqum e alm dele. Transgresso da justa medida [mtron],
desvirtuamento das palavras de Apolo: tal a significao da atitude de Scrates. Se nada se
conhecepara alm dos muros da cidade, ento Scrates, aparentemente, est se afastando
do preceito apolneo, afastando-se do conhecimento de si. Est se desencaminhando,
extraviando-se de si mesmo.
O local onde se instalam para a leitura do discurso ertico uma paisagem mgica e
selvagem, s margens do Ilisss: local consagrado s ninfas, com esttua do deus-rio
Aqueloo. O canto das cigarras a pairar sob o dia quente de sol e a brisa fresca convida ao
descanso; o rio murmureja e ambos sentam-se sombra de um enorme pltano.
, todavia, nesta atmosfera mtica que os discursos sobre o amor tero voz, e onde
Scrates ter a resposta para o problema que o atormenta: o de saber sua prpria natureza,
descobrindo o que ser um ser humano. pelo extravio de si que Scrates comear,
verdadeiramente, a conhecer a si mesmo o homem deve, antes de encontrar-se, perderse. Este encaminhamento do dilogo corresponde ao processo de ocorre na alma humana:
As indicaes de pargrafo sempre dizem respeito ao dilogo Fedro, exceto quando discriminadas ao contrrio. A edio utilizada foi a de 1975, traduzida por Carlos Alberto Nunes.
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para liberar a parte divina do homem, ou o elemento apolneo, este deve antes
experimentar seu lado monstruoso e obscuro: o dionisaco.
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inteligvel. Estas, quando percebem alguma imagem das coisas inteligveis, so tomadas
pelo entusiasmo perdem o domnio de si.
Para alcanar novamente a regio inteligvel, necessrio que a alma vislumbre as
verdadeiras essncias, relembrando-se delas, para que libere sua parte divina e aspire ao
retorno sua verdadeira morada. Por isso, conhecimento, em Plato, rememorao
(anamnese), relembrana das Ideias.
Apolo seria o deus responsvel por libertar a alma do corpo: o corpo , pois, a
priso, o crcere da alma. exatamente essa noo, notadamente rfica, que Plato expressa,
a partir dos seguintes dizeres, no Fedro: ... puros tambm e libertos deste crcere de morte
que com o nome de corpo carregamos conosco e no qual estamos aprisionados como a
ostra em sua casca. (250c). Mas Dionsio um deus deste mundo: ele traz a festa e a
exaltao da vida, sem ascetismo e sem fuga para o alm; sua presena anunciada pelo
falo [phalls].
Para Plato, o grande benefcio que o Amor, ou Eros, pode trazer aos homens ,
justamente, ser o termo iniciatrio da jornada da alma que busca ascender ao mundo
inteligvel. Agora, no confronto da teoria do mundo inteligvel de Plato com a proposta de
recolocao do problema do Amor no dilogo Fedro, poder-se- perceber como o Amor
torna a ascenso da alma possvel.
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causa de tudo o que belo. Por isso, uma coisa bela na medida em que, ao se revelar e
ocultar, neste alternar entre claridade e sombra, guarda certo grau de participao com o
Belo absoluto.
A Beleza, dentre todas as ideias inteligveis, a mais fcil de ver, pois possui um
brilho peculiar e incomparvel; o seu resplendor, ou as sombras dele, pode ser parcialmente
captado por meio da viso, que tambm nosso mais brilhante sentido. A verdadeira
finalidade do Amor, ao se destinar ao Belo absoluto, a procriao na alma. Ela pode apenas
ser alcanada pela relao ertica entre amante [erastas] e amado [eromenos], pois ela
necessariamente tem objetivo superior: a filosofia.
A relao entre erastas e eromenos, como docncia ertico-filosfica, consiste na
busca conjunta para contemplao das realidades inteligveis, das verdades eternas que so
as ideias. A Ertica, em Plato, deve proceder a partir de uma srie contnua de
desparticularizaes e abstraes: passando do amor aos belos corpos contemplao do
Belo em si, da verdadeira essncia. Por isso, o que no comeo era amor [Eros] no final deve
transformar-se em amizade [Phillia].
Isso s pode surgir a partir de uma relao de reciprocidade, incompatvel com a
relao ertica, que , por princpio, assimtrica o amante, mais velho, desempenhando
papel ativo, o amado, mais jovem, passivo. Para que a simetria se d necessrio que, num
primeiro momento, o amado tambm ame. Ora, pelo caminho dos olhos reflui para o
amado a corrente da beleza (255c) e, assim, ele se torna, tambm, amante. A relao se
torna plenamente recproca e simtrica quando aqueles que eram, inicialmente, amante e
amado se tornam amigos em busca da verdade, em amigos da sabedoria, isto , filsofos.
Plato preconiza a renncia ao contato fsico, a abstinncia, a continncia, a
austeridade, o exerccio difcil e penoso de controle de si mesmo, resistindo aos prazeres do
corpo e aos falsos desejos que impedem a alma de ascender regio inteligvel,
deixando-a cega para as verdadeiras essncias e entregue ao sensorial, ao corpo, crcere da
alma. Trata-se da estilizao do desejo, por meio da qual a alma se volta para o que,
segundo Plato, seria o desejo verdadeiro de imortalidade, e afasta-se de suas sombras, pela
contemplao das essncias.
A noo de enkrateia central aqui, pois diz respeito ao exercer domnio sobre si,
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comandando seus desejos e prazeres: o homem deve poder ser senhor de si mesmo, isto ,
fazer uso da parte racional da alma, isto , a divina, subjugando aquela sua parte inferior,
voltada aos instintos, s sensaes, aos desejos enfim, aquela sua parte que mais o
aproxima do animal.
Se for capaz de conter o elemento dionisaco que pulsa nele, tornar-se- um
verdadeiro amante-filsofo em busca da verdade, ascendendo continuamente regio
inteligvel; caso contrrio, estar entregue s suas paixes, que nada lhe podem oferecer
alm do terreno incerto das paixes, buscadas com uma fome sempre renovada, e nunca
inteiramente satisfeita.
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irracional. Enquanto o cavalo branco obediente, voltado para a razo e para o bom senso,
o cavalo negro bravio e indmito; indcil e selvagem,eleest entregue s paixes [pathos],
busca o prazer e a satisfao de seus desejos concupiscentes. O cocheiro tenta dar uma
direo aos cavalos e, no obstante, talvez ele no seja mais que a resultante de duas foras
antagnicas que lutam pelo controle do homem.
O homem tem, pois, uma alma hbrida, mistura improvvel de um elemento bestial,
monstruoso, e de um elemento do divino: "se dermos rdea para o primeiro, tornamo-nos
indistinguveis das bestas, se permitimos que o segundo governe, tornamo-nos capazes de
nos assemelhar, mesmo que temporariamente, ao estatuto divino."157 (ROWE, 1991: 228).
Est claro que, para Plato, o cavalo branco deve domar e subjugar o cavalo negro.Trata-se de
uma ascenso apolnea.
Scrates procurava sobre a natureza de seu ser, mas a resposta que encontra mostra
a natureza do ser humano em geral: o homem um ser intermedirio, posto que, sem estar
completamente entregue animalidade e sem ser, tampouco, completamente divino, tem a
difcil tarefa de conciliar estes dois opostos que nele se renem, sendo o intervalo a partir
do qual estes elementos antinmicos se ligam.
O estatuto intermedirio do homemd a dimenso exata de sua condio, que
implica a faculdade de compreender o que denominamos ideia, isto , ser capaz de partir
da multiplicidade de sensaes para alcanar a unidade mediante a reflexo." (249b-c)
Como ser intermedirio, ele estabelece a transio entre a besta e o deus, entre o sensvel e
o inteligvel, partindo da multiplicidade de sensaes daquele para alcanar a unidade que
este preconiza, pelo intelecto.
Da multiplicidade unidade, do caos ordem (ou, qui, de Dionsio Apolo?)
apenas o homem, como um ser ambguo, capaz de unir em si polaridades antagnicas,
tornando-as elementos de um mesmo ser, eternamente em guerra, digladiando-se consigo
mesmo.
Traduo livre. No original: On his view, all of us contain within us both a monstrous, or bestial, element, and an element of the divine: if we give rein to the first, we become indistinghishable from beasts; if we
allow the second to rule, we become capable of assimilating ourselves, if only temporarily, to the state of
gods.
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A jornada da alma
A alma humana diferencia-se da alma de um deus porque os cavalos dos deuses so
ambos brancos, bons e de raa nobre. A parelha dos deuses, de todo homognea, de fcil
equilbrio e direo.A dos seres humanos, por outro lado, como sabemos, composta,
formada por um cavalo branco e por um negro. Por isso, entre os homens, muito difcil a
direo das rdeas.
A alma se define (245d) como imortal por essncia e como princpio de todo
movimento ela sempre dirige e governa o que no tem alma, ou seja, o corpo. Quando
perfeita e alada, caminha nas alturas e governa o mundo em universal. (246c). Se a alma
perde suas asas, entretanto, cai at bater em algum corpo de terra, ao qual passa a mover.
A asa, das coisas que se relacionam com o corpo, o que em mais alto grau
participa do divino (246d). As qualidades do divino o belo, o sbio, o bom e tudo o
mais do mesmo gnero fazem crescer as asas da alma. Por outro lado, o feio, o mal e
tudo o mais que se ope quelas qualidades fazem as asas murchar e perecer.
Zeus e o squito divino, composto de mais onze deuses, seguem com seus carros
alados no cu, cada um ordenando e cuidando de tudo o que diz respeito a sua respectiva
esfera, podendo ser acompanhados por aqueles que os querem seguir. Os deuses
alimentam-se das essncias, e quando vo banquetear postam-se no dorso da abboda
celeste.
Sendo as parelhas divinas de todo homogneas, equilibradas e de fcil direo, por
serem compostas por cavalos bons e nobres, sobem depressa. As outras, que as seguem, s
o fazem com muita dificuldade, pois o corcel de raa ordinria, quando no foi
devidamente educado pelo auriga, em vista de seu peso puxa o carro para a terra. a mais
rdua provao com que a alma se defronta. (247b).
As almas divinas, alcanando o dorso da abboda celeste, pem-se a contemplar as
realidades inteligveis, as Ideias sem corpo e sem forma, apenas percebidas pelo intelecto.
Elas contemplam as essncias, isto , como as coisas so em si mesmas. Aps ter se
alimentado das realidades verdadeiras, mergulha a alma de novo no interior do cu,
retornando para sua morada.
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A medida do homem
Do que ficou dito at aqui, observamos que Eros uma fora sobre-humana que se
apodera do homem e que o lana em direo a outro, por quem est apaixonado. Ao estar
fora de si pela loucura, ao lanar-se para fora de si pelo outro, o amante passa a conhecer
outro lado de si mesmo; Eros essencial para a atividade filosfica posto que envolve,
mesmo que paradoxalmente, o conhece-te a ti mesmo.
Segundo o jogo de Eros e Anteros (que significa eros correspondido, retribudo, mas
tambm oposto e rival), o amado capaz de desencadear no amante foras perigosas,
capazes de destru-lo, caso no possam dom-las domestic-las. O momento em que a alma
contempla a beleza terrena tambm quando ela se relembra da ideia do Belo; , portanto,
quando pode libertar sua parte divina o cavalo branco, elemento apolneo da alma. Por
outro lado, tambm o momento em que ela entra em contato com o que foge
racionalidade, com o bestial, o apetitoso o cavalo negro, elemento dionisaco.
Isso porque Dionsio tem o poder de esfumaar as categorias e oposies ntidas
que do coerncia e racionalidade ao mundo tais limites so uma marca propriamente
apolnea, como mostra a terminologia schopenhaueriana do principiumindividuationis
[princpio da individuao]. Dionsio elimina a distncia que separa os deuses dos homens,
e estes dos animais (VERNANT, 2006: 78).
Ver, a esse respeito, o dilogo O Primeiro Alcibades: quando Alcibades envelhecera e todos os amantes o
abandonaram, Scrates vem ao seu encontro e mostra que seu verdadeiro amante, pois no est apaixonado
por seu corpo (como os outros), mas por sua alma, a qual se esfora para melhorar.
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Sem dvida, isso pode sugerir certa hbris: afinal, liberar o elemento apolneo da
alma, fazendo-o prevalecer sobre o outro, j no tentar transcender a prpria condio
humana, que consiste em conviver com os dois? Talvez. Mas, por outro lado, parece que
Plato reconhece ambos como elementos inalienveis da alma humana, de modo que se
pode e se deve domar o dionisaco, mas nunca expurg-lo por completo: no se pode extirplo totalmente sem deformar a alma humana, torn-la caqutica, ao retirar a metade sem a
qual no pode ser todo.
A condio do homem est em ser sempre intermedirio. Por isso, h limites para
essa tentativa de aproximao com os deuses. Talvez esteja a a grande diferena entre
Plato e o cristianismo: este quis, de uma vez por todas, e definitivamente, destruir as
paixes [pathos].
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Porm, aqueles que seguiram uma vida menos nobre, em momento de embriaguez
ou de descuido, incapazes de dominar-se, so conduzidos pelos dois cavalos intemperantes
de cada parte, que encontram indefesas as tais almas, e se decidem por aquilo que o vulgo
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No h prises infalveis...
Sim, Apolo aprisionou Dionsio. Mas, por quanto tempo? A ascenso apolnea
determinou a ndole, por assim dizer, dos grandes empreendimentos culturais do
Ocidente: na filosofia, na cincia, na poltica, na religio, na arte, na tica, etc.
(PESSANHA, 1991: 80).
A noo de alma do dilogo Fedro explora a duplicidade dos cavalos negro e branco;
o cocheiro, como terceiro elemento do conjunto, talvez pudesse ser comparado ao que
contemporaneamente se chama conscincia. O cavalo branco nunca entra em conflito
com o cocheiro, de modo que o elemento apolneo da alma se aproxima da categoria do
eu. O cavalo negro, por outro lado, surge para contestar essa ordem aparente e
desestrutur-la. Dionsio, no por acaso, encarna a figura do outro.
curioso o uso do uso da figura do cavalo como metfora para a alma humana,
pois ele, na mitologia grega, associa-se tanto s profundezas ctnias quanto ao mundo
celeste: Pgaso criatura de Posdon, que surge na fronteira da noite, mas tambm se ala
aos cus como portador do raio e do trovo de Zeus (DETIENNE, 2008: 170). Associase, pois, gua e ao fogo, noite e ao dia, ao feminino e ao masculino.
O homem, qual o cavalo, uma criatura inquietante e misteriosa, cujas prprias
foras podem lev-lo destruio, caso no sejam contidas. O freio do cavalo, to
comentado no dilogo Fedro, as rdeas que o condutor deve puxar para conter o cavalo
negro, so entrave sua violncia. O freio instrumento apolneo, de medida e moderao:
em momento algum o cavalo branco sofreu com a ao dele.
Na parelha divina, o cocheiro desempenha o papel de mero guia e condutor, que
deve conjugar e harmonizar a direo dos cavalos brancos. Na parelha dos homens, o
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cocheiro no pode confiar na potncia do cavalo negro: deve subjug-lo. O apolneo nega a
imensa potncia da vida presente na fora dionisaca, prdiga, exuberante e catica, em
nome de outro mundo o inteligvel.
Mas, como diz Ovdio em Ars Amatoria, no h prises infalveis. Mesmo Plato, no
Fedro, reconhece as muitas recadas e recorrncias daqueles atos que no tem a aprovao
da alma toda.
Este breve trabalho no teve como intuito seno sublinhar e esboar toda a tenso
que envolve as categorias do apolneo e do dionisaco, como se manifestam no pensamento
de Plato, e, mais especificamente, no dilogo Fedro.
No pensamento grego antigo, a ordem surge de um fundo catico, e o mundo
luminoso dos deuses olmpicos teve que se afirmar aprisionando monstros e criaturas
terrveis. O dia emergiu da mais profunda noite. Mas o cavalo negro est sempre espreita
dentro de cada um.
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Psicopatologia
Fundamental,
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