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Teorias Da Comunicacao No Brasi - Vera Veiga Franca, Alessandra A

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VERA VEIGA FRANA

ALESSANDRA ALD
MURILO CSAR RAMOS
(ORG.)

Teorias da Comunicao no
Brasil
reflexes contemporneas

SALVADOR - BRASLIA | EDUFBA - COMPS | 2014

ALESSANDRA ALD, MURILO CSAR RAMOS E VERA FRANA


(ORG.)

Introduo
Teorias da Comunicao: entre
avanos, resgates e reconstrues
Esta coletnea resultado de um edital lanado
pela Comps no segundo semestre de 2013, que
fez uma chamada para artigos sobre avanos em
teorias da Comunicao no Brasil. Ao devolver para
a comunidade da rea os trabalhos selecionados,
entendemos que este conjunto apresenta uma
dupla contribuio para seus leitores: o interesse
das abordagens e conceitos tratados em cada
artigo, mas tambm a visada mais ampla que ele
possibilita. A resposta a esta chamada sinaliza
aquilo que esta comunidade identificou e sinalizou
como sendo as reflexes mais significativas e

inovadoras do campo. O que significa dizer: esta


coletnea tem tambm um carter de diagnstico.
Como
indagaes
prvias,
poderamos
perguntar: que temticas so aqui contempladas?
Os trabalhos aqui reunidos apontaram alguma
nfase mais acentuada, indicaram algum eixo de
concentrao ou de convergncia? Quais foram as
fontes tericas privilegiadas as referncias
tericas so inovadoras?
Trata-se de um conjunto diversificado, reunindo
leituras e aportes de diferentes matizes e origens;
a organizao da coletnea, bem como a forma de
apresenta-la, representou para ns um desafio.
Dentre os muitos desenhos possveis de
agrupamentos, optamos por uma estruturao em
duas partes: a primeira delas tem como eixo uma
abordagem mais ampla da questo comunicacional,
seja discutindo as caractersticas desse campo
disciplinar ou a especificidade do objeto
comunicativo,
seja
tratando
de
algumas
perspectivas (ou reas temticas) que o
atravessam. A segunda parte congrega textos que
se constroem em torno do recorte e reflexo de
certos conceitos que se mostram caros para os
estudos comunicacionais, mostrando sua incidncia
na configurao das teorias.

Apresentamos a seguir uma panorama geral das


questes discutidas em cada um, buscando, ao
final, alinhavar a reflexo que este trabalho de
costura nos suscitou.
PARTE 1 O CAMPO DA COMUNICAO
Neste primeiro bloco, temos cinco textos e seis
autores: Felinto, Rdiger, Marcondes Filho, Picado,
e Marques e Martino assinando um quinto texto.
Erick Felinto inicia a reflexo com uma crtica
ao fechamento, fragmentao e falta de
atualizao dos estudos comunicacionais no Brasil.
Para ele, nossa rea, no empenho de tornar-se
uma disciplina autnoma, fechou-se num processo
de disciplinarizao, e seu desenvolvimento, que se
deu ligado ao sistema de comunicao massiva,
no explorou o impacto das tecnologias digitais e
no se mostra apto a responder aos novos
desafios.
Neste novo cenrio, e frente complexidade do
cenrio tecnocultural, necessrio, ele argumenta,
recorrer interdisciplinaridade, e optar pela
produo de um saber colaborativo e de fronteiras
constantemente permeveis. Essa perspectiva foi
apontada por Vilm Flusser em meados dos anos

1970, com a proposta de criao de uma nova


cincia,
a
comunicologia,
centrada
na
investigao interdisciplinar de todo o campo do
comrcio simblico do homem. Flusser concebia o
campo da teoria da Comunicao como espao de
experimentaes voltado para o exame de todo o
nosso
horizonte
cultural
sob
um
olhar
comunicacional, um ponto de cruzamento e de
convergncia das cincias humanas, levando total
reconfigurao do campo das humanidades. Esse
olhar pioneiro de Flusser est em sintonia,
argumenta ainda Felinto, com a proposio de
autores contemporneos Stefan Mnker, Claus
Pias (ambos alemes) que tematizam a
centralidade do problema da medialidade e falam
inclusive em um medial turn.
Francisco Rdiger, por sua vez, recupera a
ascenso epistmica da categoria comunicao,
para lembrar que ela uma inveno recente (no
tem um sculo de existncia) que se instalou de
forma naturalizada e passou a dominar nosso
pensamento dentro e fora da academia. Citando
Foucault, ele ressalta o quanto os saberes
institudos se impem com fora de verdade,
silenciando outros conhecimentos; a comunicao
virou uma certeza, e levar adiante um projeto

epistemolgico impe indagar sobre as hipotecas


derivadas de seu a priori histrico, estudar suas
origens e condies de desenvolvimento. Dentro
dessa perspectiva, o texto traa um panorama dos
primeiros estudos, no final do sculo XIX e incio do
sculo XX, em que o termo surge inicialmente
associado aos meios de transporte, passando
depois, com os primeiros autores da Escola de
Chicago (Albion Small, Charles Cooley, John
Dewey), a tratar dos veculos e aparatos sociais de
comunicao, em seu papel de estimular as
habilidades sociais e relacionamento intelectual
entre as pessoas. Seu desenvolvimento, no
entanto, se d sob a gide da propaganda que se
torna o conceito central no campo do saber criado
em torno dos fenmenos de opinio pblica. Alguns
autores legitimam e apontam a necessidade das
prticas de propaganda, outros denunciam os
mecanismos de controle da mente e conduo da
opinio pblica; fala-se da propaganda negativa,
pura manipulao, e de outra positiva, voltada para
a educao e os bons valores. Aps a guerra houve
por bem trocar o nome de propaganda por
comunicao sem que isso levasse a alteraes
na base da episteme comunicacional desenvolvida
na primeira metade do sculo passado.

O
desenvolvimento
e
importncia
das
tecnologias no ps-guerra, bem como a
consolidao da sociedade de consumo no final do
sculo, apontam para uma mudana, e a era
sistmica e mercadolgica da mdia eletrnica (cf.
Lucien Sfez) comea a substituir a fase poltica da
propaganda: neste novo momento, parece ser a
cibercultura que se converte em nova chave
epistmica.
Marcondes Filho trata da questo do que , de
fato, estudar a comunicao: para ele, a cincia da
comunicao tem sido to somente um campo de
aplicao de outros saberes (da Sociologia, da
Poltica, da Lingustica). hora, ele nos diz, de nos
dedicarmos aos fenmenos comunicacionais e
sua
emergncia;
estudar
o
fenmeno
comunicacional em si supe obedecer aos
pressupostos de uma objetividade radical (cf.
Husserl), buscando a verdade embutida na
prpria experincia vivida.
H dois tipos de fenmenos comunicacionais,
nos diz Marcondes: os abertos e os fechados.
Abertos so fenmenos que se transformam
enquanto esto sendo produzidos, e que recebem a
participao das pessoas envolvidas; fechados so
produtos que circulam prontos, e aos quais os

que sofrem a ao podem reagir ou no. No


primeiro caso cria-se uma corrente de energia que
aumenta ou decresce; no segundo, h uma
dialtica entre os dois lados: o indivduo que se
depara com a obra, e a obra, que busca seduzi-lo.
Esses dois tipos provocam duas formas de
comunicao: nos processos ao vivo h um
processo de provocao, e as pessoas saem
transformadas (ou incomodadas). No segundo tipo
sobrevive a individualidade das percepes, a
forma diferenciada como cada um sente o
fenmeno e vive a sua comunicabilidade.
O fenmeno comunicacional, assim, diz respeito
natureza de nossa experincia com o processo
e/ou obra, e dimenso de nossa transformao.
O mtodo para estud-lo implica buscar a
verdade embutida na prpria experincia vivida.
Trata-se, para Marcondes, de seu quase-mtodo,
ou metporo, que consiste na observao de um
fenmeno enquanto est acontecendo, buscando
captur-lo instantaneamente e sem conceitos, por
meio da intuio sensvel.
Benjamin Picado introduz o vis do
entrecruzamento entre comunicao e esttica
atravs de dois percursos tericos. O primeiro
deles, de espectro crtico mais amplo e bastante

reconhecido, volta-se para a crescente presena da


intermediao
tcnica,
problematizando
a
racionalidade instrumental no domnio da cultura
enquanto instncia articuladora da experincia da
modernidade. Trata-se de uma reflexo oriunda da
filosofia crtica da Escola de Frankfurt que se
espraia para outros domnios tericos, e acentua a
predominncia da instrumentalidade tcnica no
domnio cultural associada no apenas aos modos
de fazer, mas tambm e sobretudo como fenmeno
ligado aos regimes do ser e do aparecer. A
dimenso esttica da comunicao tratada a a
partir das caractersticas imanentes dos objetos
comunicacionais, e teve como base um problema
que era apenas parcialmente coligado s matrizes
originrias de uma reflexo esttica.
Benjamin Picado defende a busca de uma
esttica da comunicao que no fique restrita ao
mbito dos produtos, mas se dirija sobretudo aos
processos sensveis, afetivos, vividos pelos sujeitos.
Nesta perspectiva, ele se remete contribuio de
trs autores brasileiros, Muniz Sodr, Marcondes
Filho e Jos Luiz Braga, que, numa vertente mais
domstica, promove uma segunda entrada no
tratamento da questo. Em que pese a distino
dos enfoques construdos por cada autor, eles

teriam como ponto de cruzamento o fato de


deslocar a interrogao esttica para o mbito dos
processos intersubjetivos e das dinmicas
interacionais. O uso e o cruzamento dos conceitos
de interao, mediatizao e recepo ativa
promovem a confluncia entre experincia esttica
e interao mediatizada; e uma sociabilidade
atravessada por uma dimenso esttica da
comunicao faz um deslocamento que
verdadeiramente epistemolgico, conclui Picado.
Lus Martino e ngela Marques, no quinto
texto desta sequncia, tambm trabalham no
campo de uma interseo, dessa vez entre
comunicao e tica. O pressuposto dos autores
que as teorias da Comunicao, ao elegerem seus
objetos, mtodos e conceitos, esto tambm
indicando sua interpretao do mundo, da relao
entre as pessoas e das aes prticas delas
esperadas (ou deduzidas). Pode-se da inferir as
dimenses ticas que elas carregam, pois, em suas
palavras: Nas luzes e sombras do discurso
epistemolgico, sobretudo em sua reflexo sobre a
realidade e a prtica, esto os elementos
constitutivos das prerrogativas de ao normativa.
Com essa perspectiva, Martino e Marques
empreendem uma reviso das principais teorias da

rea, que eles organizam em uma grade trplice,


conforme a relao de poder entre os interlocutores
vislumbrada pelas teorias: (a) assimtrica, com o
poder colocado ao lado dos meios de comunicao;
(b) simtrica, equivalendo, em espaos diferentes,
produtores e receptores; (c) paritria, com
interseco entre ambos em uma cultura da
participao.
Na primeira delas so alinhados os estudos
pioneiros da Escola Funcionalista Americana e a
Escola de Frankfurt (com desdobramentos ticos
distintos); na segunda, teorias que se desenvolvem
sob a inspirao dos estudos culturais. A terceira
grade se refere a teorias que indicam intersees
entre produtores e receptores no mbito de uma
cultura da participao e apontam a prtica da
coproduo de discursos e sentidos entre agentes
miditicos e agentes sociais. Trata-se, sobretudo,
das reflexes em torno das comunicaes via meios
digitais.
Esse terceiro grupo implica uma alterao das
questes ticas sugeridas nos agrupamentos
anteriores e a formulao de novas questes.
preciso, no entanto, nos adverte os autores,
atentar para o fato de que a pretensa igualdade
que se instaura entre emissores e receptores nas

redes sociais, tambm esconde desigualdades, e


tanto se pode constatar uma novidade terica no
entendimento do apagamento de fronteiras
emissor-receptor como mister constatar uma
dinmica na qual os poderes se espalham sem se
dissolver o que remonta a reflexes instauradas
sob a gide da comunicao de massa.
PARTE 2 CONCEITOS
Agrupam-se aqui sete textos, apresentados por 18
autores e coautores: Eduardo Yuji Yamamoto;
Carlos A. Carvalho e Leandro R. Lage; Paula
Simes; Wilson Gomes e Samuel Barros; Dulcdia
Buitoni; Rousiley Maia e oito coautores[1];
Waldomiro Vergueiro e Roberto Elsio dos Santos.
O primeiro texto aqui apresentado, de Eduardo
Yamamoto, se constri em torno do conceito de
comunidade. Seu primeiro movimento reconstruir
a genealogia do conceito nas cincias humanas e
sociais, a partir da estrutura dicotmica proposta
por Tnnies (a Gemeinschaft
x Gesellschaft),
seguindo sua diversificao semntica em quatro
matrizes epistmicas: o positivismo, marxismo,
hegelianismo e desconstrutivismo. Em seguida, o
autor identifica seu percurso no campo das teorias
da comunicao, atravs de duas perspectivas: em

oposio sociedade moderna (e aos seus


sistemas ideolgicos) e integrada a ela, como
componente da chamada sociedade civil. Mostra
que o conceito foi marcado pela vocao
dicotmica, pela associao com classe social, por
certa aura romntica, e foi sempre assombrado
pelo risco do essencialismo. A vinculao
comunicao e comunidade se desdobrou em
conceitos como comunicao alternativa, popular,
comunitria.
Num novo momento, e particularmente
relacionado com o surgimento e fortalecimento do
territrio infotecnolgico conhecido como rede,
novas reflexes iro indicar uma concepo de
comunidade com base em um pluralismo integrador
e relacionado com novas formas de associao e
sociabilidade. No atual estado de arte das
pesquisas sobre comunidade, sobretudo na
Comunicao, as etnografias e os estudos de casos
em torno dessas singularidades (experincias
micropolticas, prticas artsticas, fenmenos no
subjetivos) so sintomticos de uma mudana
radical na forma de se pensar a comunidade, nos
diz Yamamoto.
Narrativa, ao, acontecimento so os conceitos
enfatizados pela reflexo de Carlos A. Carvalho e

Leandro Lage, resgatando as contribuies de


Paul Ricoeur para pensar a comunicao. No
momento da comemorao dos 100 anos do
nascimento do filsofo (2013), os autores
ressaltam a fora e importncia da hermenutica
ricoeuriana, bem como as inmeras apropriaes
de ordem terica e metodolgica que dela vem
sendo feitas por pesquisadores da Comunicao.
No presente texto, Carvalho e Lage se propem a
resgatar contribuies de ordem epistemolgica, e
tomam como ponto de partida o conjunto de
pressupostos que fundamentam a hermenutica
narrativa de Ricoeur, relativos principalmente
atividade mimtica e tessitura de intrigas.
Em seguida, os autores exploram a dimenso
pragmtica de sua abordagem hermenutica, que
nos impele frente, que nos coloca o desafio
permanente da busca de sentidos, fazendo-nos agir
sobre o mundo e nossos modos de nele e com ele
interagir. Finalmente, eles situam a contribuio
de Ricoeur para pensar o acontecimento, a partir
da centralidade do esquema narrativo para atribuir
sentido e inteligibilidade experincia humana.
O conceito de acontecimento tambm o eixo
central do artigo apresentado por Paula Simes,
que empreende um triplo movimento. Inicialmente

a autora resgata o fundamento pragmatista do


conceito, nucleado pela noo de experincia
conforme o pensamento de G. H. Mead e J. Dewey.
Para estes, a experincia uma sorte de
travessia, e diz da interao permanente que se
processa entre organismo e meio ambiente, uma
dinmica de agir e sofrer.
Esta base pragmatista o fundamento da
concepo de L. Qur, apresentada em seguida:
marcando a distino de outras abordagens
(construtivistas, ritualsticas), este autor enfatiza
que o acontecimento no se restringe sua
dimenso representativa; est inscrito numa
dimenso temporal; se inscreve na experincia e
tem repercusses pragmticas (no campo da
ao); tem um potencial hermenutico, ou seja,
incide no campo dos sentidos, alarga o horizonte
dos possveis, provoca novas interpretaes e
novas possibilidades de ao.
Com base nesses fundamentos tericos, e
resgatando dois eixos centrais do conceito de
acontecimento seu poder de afetao e seu
poder hermenutico Simes elenca, na terceira
parte de seu texto, alguns estudos que tanto
exploram a aplicabilidade e alcance do conceito
quanto so utilizados na leitura de acontecimentos

recentes na sociedade brasileira.


As contribuies da segunda e terceira geraes
da Escola de Frankfurt, e particularmente os
conceitos de deliberao e reconhecimento, so
tratados no artigo apresentado por Rousiley Maia
e oito coautores: Regiane Lucas Garcz, Vanessa
Veiga, Edna Miola, Brulio Neves, Alicianne
Gonalves, Patrcia Rossini, Digenes Lycario e
Danila Cal. Ressaltando a importncia e
contribuio da pesquisa poltico-filosfica da
Escola de Frankfurt, cujos postulados vm
repercutindo nos estudos comunicacionais desde o
incio do sculo XX, o texto se dedica aos avanos
trazidos pelas geraes subsequentes da escola.
Inicialmente, foram cotejadas as obras de Jrgen
Habermas e Axel Honneth, com o intuito de
localizar as preocupaes tericas centrais desses
filsofos como guias de agendas de pesquisa no
campo da Comunicao. Em seguida (partes 3 e 4),
apresentam-se alguns estudos que vm sendo
desenvolvidos sob inspirao da obra desse
autores, orientados pelos conceitos de democracia
deliberativa
(Habermas)
e
reconhecimento
(Honneth).
As
pesquisas
de
orientao
habermasiana mostram as diversas interfaces da
esfera pblica e da deliberao democrtica com as

prticas comunicativas dos sujeitos e das


instituies miditicas. Os estudos fundados na
obra de Honneth, por sua vez, voltam-se para o
exame das condies que promovem ou impedem
a autorrealizao dos sujeitos e exploram as
diversas interfaces entre as prticas individuais
cotidianas e os media de massa.
O artigo de Wilson Gomes e Samuel Barros,
tratando da hiptese do efeito de terceira pessoa
(ETP), diz respeito a uma abordagem mais
contempornea no tratamento dos estudos dos
efeitos dos meios de comunicao perspectiva
esta que representa um captulo importante e
volumoso no quadro das teorias da Comunicao.
Na primeira parte, o artigo cuida da explicitao da
ETP: ela no diz respeito aos efeitos das
mensagens sobre o que as pessoas pensam, mas
ao que as pessoas pensam sobre influncia das
mensagens nos outros, e de como a impresso que
elas tm de tal influncia acaba impactando a sua
atitude e o seu comportamento acerca de
determinados contedos. Essa hiptese vem sendo
desenvolvida e ampliadas nos Estados Unidos
desde os anos 1980 por diferentes autores:
Davison, Gunther, Golan, Delorme, Rucinski e
Salmon, entre outros.

Na segunda parte do artigo apresentado um


estudo emprico desenvolvido por Gomes e Barros,
buscando testar a hiptese junto a um grupo de
estudantes no nordeste do Brasil, em torno da
questo da descriminalizao da maconha. O artigo
apresenta a metodologia, as hipteses, os
resultados da pesquisa.
Imagem e estudos sobre a visualidade foi a
temtica tratada por Dulclia Buitoni. As imagens
esto em todos os lugares: as tecnologias
favoreceram sua expanso, ampliaram as
possibilidades de gestionar significados; estud-las
se
torna
uma
dimenso
epistemolgica
fundamental do campo da comunicao. De forma
particular, o artigo vai tratar da fenomenologia da
imagem desenvolvida por Josep Catal, atravs de
conceitos tratados pelo autor imagens
complexas, imagens transitivas, interface, novas
relaes entre o visvel e o tempo.
Num segundo momento, a autora procura
aproximar a base terica apontada por Catal da
reflexo suscitada pelos trabalhos de Arthur Omar
e Dziga Vertov, bem como na anlise de alguns
documentrios brasileiros.
Finalmente, um ltimo texto, de Waldomiro
Vergueiro e Roberto Elsio dos Santos, dentro

de um vis mais especfico, promove uma reviso


dos estudos sobre as histrias em quadrinhos, bem
como da maneira como diferentes vertentes
tericas no campo das teorias da Comunicao
contriburam e promoveram a sua leitura. Na
segunda parte do artigo, Vergueiro e Santos
procuram traar um panorama do tratamento dos
quadrinhos no Brasil, identificando eventos
inaugurais, autores e pesquisas que contriburam
para a sua incluso no campo das cincias da
Comunicao, promovendo, em grandes traos, o
estado da arte desse tema em nosso pas.
SNTESE FINAL GUISA DE DIAGNSTICO
Indagamos
inicialmente
pelas
temticas
contempladas e pela eventual existncia de
nfases ou pontos de convergncia entre os
diferentes enfoque. As snteses apresentadas acima
nos mostraram um quadro diversificado, e
trabalhos que tanto promoveram uma leitura do
quadro geral das teorias da Comunicao como
buscaram apresentar conceitos e/ou a contribuio
de autores especficos.
Na abordagem mais ampla, tanto h uma crtica
disciplinarizao da rea e uma convocao
abertura de fronteiras, s investigaes de cunho

interdisciplinar (Felinto) como uma chamada a uma


abordagem
especfica
e
radicalmente
comunicacional (Marcondes Filho). As teorias da
Comunicao so escrutinadas quanto sua origem
vinculada ao vis da propaganda (Rdiger), so
vistas em sua interface com a esttica (Picado) e
investigadas quanto s dimenses ticas que esto
imbricadas na escolha de seus objetos e mtodos,
bem como na interpretao do mundo que
promovem (Martino e Marques). Se identificamos
um movimento oposto no que tange s fronteiras e
delimitao de nosso objeto de estudo, houve uma
ligeira confluncia nos trabalhos de Felinto e
Rdiger, que veem no cenrio tecnocultural e na
cibercultura uma nova chave epistmica.
Os conceitos evocados se inscrevem em campos
e preocupaes tericas distintas: comunidade
(Yamamoto), narrativa (Carvalho e Lage),
acontecimento
(Simes),
deliberao
e
reconhecimento (Maia et al.), efeito (Gomes e
Barros) e imagem (Buitoni). Uma ligeira
convergncia pde ser identificada em torno do
conceito de acontecimento e seu fundamento
pragmtico; ele foi o eixo central no trabalho de
Simes, e surge tambm na reflexo empreendida
por Carvalho e Lage em torno da narrativa

hermenutica ricoeuriana (que vai se entrelaar


com as noes de ao/acontecimento). Yamamoto
reencontra a nfase no cenrio tecnocultural e
redes sociais enunciada por Felinto e Rdiger. Alm
das mdias digitais, evocadas por esses autores,
apenas Vergueiro e Santos se ocuparam de uma
outra mdia pouco tratada na literatura da rea
que so as histrias em quadrinho.
Do ponto de vista das referncias tericas,
tambm encontramos um quadro plural. No o
caso aqui de resgatar o extenso leque das
bibliografias citadas, mas resgatar remisses mais
fundantes. Tradies anteriores Escola de
Chicago, a tradio funcionalista americana, a
Teoria Crtica constituram o pano de fundo no
desenvolvimento de algumas reflexes. J outros
trabalhos se desenvolveram fundados mais
claramente em um ncleo articulador (um autor, ou
uma vertente): Flusser (e autores alemes
contemporneos Stefan Mnker, Claus Pias);
Ricoeur; o pragmatismo de Mead, Dewey (e sua
leitura promovida pelo socilogo francs Qur);
Habermas e Honneth; a vertente norte-americana
contempornea que atualiza a teoria dos efeitos
(Davison, Gunther, Golan, Delorme, Rucinski e
Salmon); o espanhol Josep Catal. Autores

clssicos da filosofia foram lembrados Husserl,


Foucault. Um texto retoma a articulao de autores
brasileiros que tratam das dinmicas interacionais
(Muniz Sodr, Marcondes Filho, Jos Luiz Braga),
bem como os autores pioneiros no tratamento dos
quadrinhos (lvaro Moya, Moacyr Cirne).
Como dissemos no incio, esta coletnea, ao lado
da contribuio especfica trazida por cada texto,
nos brinda com o cenrio de nossa rea.
Naturalmente, um quadro impressionista com
traos inacabados, e uma imagem apenas
esboada. Indica a variedade e riqueza das
referncias e preocupaes; tambm a inexistncia
de consensos estabelecidos. O que aponta inclusive
o caminho para uma nova reflexo e desafio:
selecionar algum dos pontos tratados e convocar a
comunidade a debater/se posicionar em torno
deles. Controvrsias, assim como pontos de
sedimentao, estruturam e solidificam um campo
cientfico.
NOTA
[1] Regiane Lucas Garcz, Vanessa Veiga, Edna Miola, Brulio Neves,
Alicianne Gonalves, Patrcia Rossini, Digenes Lycario e Danila Cal.

O CAMPO DA
COMUNICAO

ERICK FELINTO

Os riscos da prudncia: teoria da


Comunicao, disciplinaridade e
a comunicologia de Vilm
Flusser
Disciplinas nascem, vivem e morrem. Sua
institucionalizao decorre no apenas de bases
epistemolgicas, seno tambm econmicas,
polticas e culturais. A sobrevivncia de uma
disciplina depende, portanto, de sua eficincia
aqui, de novo, avaliada segundo parmetros de
ordem epistemolgica tanto quanto econmica ou
poltica. Isso parecer ainda mais evidente numa
era na qual a eficincia constitui o grande fio
condutor da existncia. Sim, as disciplinas no
existem em um platnico cu das ideias no qual o
imperativo do conhecimento reina absoluto, livre
de quaisquer outros interesses que no sejam
unicamente cientficos. No necessitamos sequer

recorrer a Foucault e sua associao entre o


desenvolvimento das disciplinas acadmicas e as
formas de poder e controle na base do sistema
penal da modernidade. (FOUCAULT, 1995) Basta
observar a proliferao contempornea dos
discursos sobre a crise das humanidades num
cenrio em que disciplinas como a Filosofia, por
exemplo, parecem cada vez mais afastadas da
experincia humana, caracterizada hoje por
demandas hipertecnolgicas de consumo e
hedonismo radicais. Desse modo, a potica e
provocativa sentena de Fabin Luduea (2013, p.
10), segundo a qual faz muitos sculos que teve
lugar a morte do ltimo filsofo adquire hoje um
sentido muito concreto.
No campo da Comunicao, o fato de que muitas
teorias anteriormente consagradas nos paream
hoje antiquadas ou inadequadas diante das
transformaes tecnolgicas em curso pode dar a
impresso de que se trata de uma reestruturao
fundamentalmente epistmica. Todavia, tambm
aqui atuam nos bastidores do saber agentes de
outras ordens. Tomemos rapidamente o exemplo
da ciberntica, um saber (disciplina?) que aps
grande xito inicial caiu na obscuridade por anos a
fio apenas para ensaiar, recentemente, um retorno

vigoroso no domnio da chamada cibercultura. Se,


no momento de sua origem, a ciberntica podia ser
definida prioritariamente como uma ontologia do
inimigo (GALISON, 1994), ou seja, um saber
devotado prioritariamente ao esforo de guerra no
qual ele encontrou sua gnese, seu renascimento
contemporneo
parece
repousar
no
reconhecimento da centralidade dos processos de
feedback,
armazenamento,
transmisso
e
processamento para a cultura informtica. Tambm
seria possvel associar o retorno da ciberntica
importncia conquistada nos ltimos anos pelo
tema do ps-humanismo, antecipado pela cincia
de Wiener em sua equiparao dos sistemas vivos
e maqunicos. (HAYLES, 1999; WOLFE, 2010) O
ocaso e a segunda vida da ciberntica oferecem,
assim, um interessante estudo de caso para o
entendimento das relaes entre epistemologia e
determinantes culturais. Nesse estudo de caso, a
dinmica saber/poder se revela como elemento
fundamental e, de fato, componente essencial das
discusses travadas a respeito da ciberntica nos
ltimos anos. (TURNER, 2006)
Entretanto,
em
sua
obra Teorias
da
Comunicao: muitas ou poucas?, Luiz Claudio
Martino (2007, p. 25) critica as abordagens que,

ancoradas na sociologia da cincia, deslocam a


questo do conhecimento pela do poder. Para ele,
a questo epistemolgica ainda fundamental e
ainda est por resolver. O que necessrio
reduzir a confuso terica e a disperso que tm
caracterizado as teorias da Comunicao em sua
(breve) histria. Se existem muitas ou
paradoxalmente poucas teorias da Comunicao,
o problema que se dedicou pouco espao
discusso
epistemolgica
do
objeto
da
Comunicao, que foi naturalizado sem a devida
reflexo. Ao contrrio do que podem pensar alguns
pesquisadores, a fragmentao de vises e
perspectivas no atributo particular da
Comunicao. Ou seja, no h nada intrnseco
nossa
rea
que
permita
defini-la
como
especialmente inter-, trans- ou antidisciplinar. Essa
uma vicissitude de todos os campos de
conhecimento (no, porm, das disciplinas). Nesse
sentido, segundo Martino (2007), teramos muito
que aprender com o que se passa em outras reas.
O que pretendo inicialmente, portanto, tomar a
recomendao ao p da letra e empreender uma
aproximao entre a teoria da Comunicao e o
caminho j trilhado por outras disciplinas.
(MARTINO, 2007, p. 124) Trata-se de analisar a

situao no domnio dos estudos literrios (mais


especificamente, na disciplina de literatura
comparada), historicamente caracterizados por sua
proximidade com a Comunicao e de forma
ainda mais decisiva no contexto brasileiro.
Contudo, o resultado que espero nessa comparao
um pouco diferente daquele ansiado por Martino.
Em lugar de militar em prol da disciplinaridade o
que me parece hoje um investimento tardio e
pouco rentvel , quero sugerir que a teoria da
Comunicao teria muito a lucrar com o exemplo
dos estudos literrios em sua flexibilizao de
fronteiras e permanente reproposio de objetos.
Em seguida, apresentarei esquematicamente a
proposta da comunicologia de Vilm Flusser como
precursora de uma reforma intelectual mais ampla
que apenas agora adquire plena fora, e cujo
principal mrito reside precisamente em seu
carter de hibridismo e impureza.
Tomo como referncia o relato de um autor,
Hans Ulrich Gumbrecht, cuja obra poderia ser
classificada facilmente como um percurso situado
entre os estudos literrios e as teorias da
Comunicao. A escolha se torna ainda mais
relevante se considerarmos o interesse que o autor
e
suas propostas vm despertando em

pesquisadores de Comunicao brasileiros desde


pelo menos meados dos anos 2000 entre muitos
outros, podemos citar Felinto (2001); S (2004);
Hanke (2006). No artigo The Future of Literary
Studies? (1995), Gumbrecht parte de uma situao
bastante concreta para analisar o estado atual
(claro, mais uma vez, de crise) dos estudos
literrios, especialmente no contexto norteamericano. Submetido anlise de um comit
destinado a definir a estruturao administrativa e
institucional dos estudos literrios na universidade
de Stanford, o inovador departamento de literatura
comparada no qual Gumbecht milita se viu
confrontado com uma situao paradoxal: por um
lado, o comit reconhecia claramente as
conquistas, o renome e o carter vanguardista do
trabalho desenvolvido pelos pesquisadores. Por
outro, questionava se o termo literatura
comparada era de fato adequado para descrever o
que Gumbrecht (1995, p. 500) e seus colegas
estavam fazendo. A justificativa dos pesquisadores
era que a etiqueta literatura comparada vinha
sendo reconhecida como designadora de um
espao intelectual e institucional onde um
pensamento experimental relevante para o futuro
das humanidades poderia ter lugar. Em sua

relao com outros subcampos dos estudos


literrios (os das literaturas nacionais, por
exemplo), a literatura comparada aparecia como
aquele domnio singular devotado a tematizar seu
prprio futuro, assim como o das disciplinas de sua
vizinhana. Dessa forma, a literatura comparada s
poderia adquirir seu pleno sentido quando pensada
em relao com o horizonte mais amplo das
cincias humanas. Aqui valeria a pena perguntar se
a teoria da Comunicao no deveria cumprir papel
semelhante em nosso campo. Como veremos
adiante, essa , de fato, a proposta formulada por
Vilm Flusser j em meados dos anos 1970.
No livro mencionado anteriormente, Martino
critica a atitude de alguns tericos da Comunicao
que, em vez de se dedicarem a uma
fundamentao mais slida de seu saber (a partir,
por exemplo, do exame comparativo com outras
disciplinas), preferem desconstruir a cincia e
reinventar o conhecimento. (MARTINO, 2007, p.
123) De fato, no difcil concordar com a tese de
que uma desconstruo ingnua da cincia no iria
resolver nossos problemas. Contudo, tambm no
muito difcil levantar algumas provocaes ao
resto dos argumentos. Uma nos oferecida ainda
pelo texto de Gumbrecht, segundo o qual no ncleo

da crise enfrentada pelos estudos literrios


encontra-se uma crise de conceitos como
verdade, objetividade ou mesmo consenso. O
que est em jogo, portanto, o carter
representacional da teoria; a assuno de que a
finalidade de uma teoria representar, mais ou
menos adequadamente, um mundo de referncias
(seja
esse
mundo
considerado
como
essencialmente
estvel
ou
como
sempre
cambiante). No momento em que a crena na
representao entra em crise, torna-se necessrio
repensar radicalmente todo o arcabouo e a
funcionalidade da atividade terica.
Claro, sempre possvel adotarmos posies
muito diferenciadas face a essa crise, numa escala
que vai do otimismo mais ingnuo quanto aos
poderes da cincia ao questionamento radical de
todo fundamento slido para o saber. Porm, isso
no muda o fato de que as cincias humanas se
empenharam (e continuam se empenhando)
decididamente na desconstruo de diversas
noes que lhe serviam como fundamento,
inclusive da prpria noo de humanidade situada
em sua base. Alis, o questionamento dessa
noo que representa uma das contribuies mais
interessantes da Filosofia, da Antropologia e da

teoria da mdia (ao menos da assim chamada


teoria da mdia alem[1]) nos ltimos anos. Se as
cincias
duras
ainda
podem
defender
orgulhosamente sua eficcia e capacidade de
produzir resultados, muito mais modesta deve ser a
posio das humanidades. Parece-me sintomtico
que o escndalo da farsa perpetrada por Alan Sokal
sua publicao de um artigo recheado de
nonsense e arbitrariedades tericas na revista
Social Text em 1996 tenha cado to rapidamente
no esquecimento. No obstante as virulentas
(algumas delas possivelmente acertadas) crticas
de Sokal a mestres intelectuais como Lacan,
Derrida e Latour (SOKAL; BRICMONT, 1998), no
se nota nenhum declnio significativo na
popularidade desses autores no horizonte das
cincias humanas; muito pelo contrrio.
Para Gumbrecht (1995, p. 507), o ambiente
epistemolgico em que nos encontramos hoje
ocasiona
a
transformao
da
ideia
do
desenvolvimento das teorias na expectativa de
uma interminvel proliferao de teorias onde
novas posies emergem a partir de uma constante
problematizao mtua de seu status. Acrescentese a isso a dissoluo do prprio conceito de
literatura, para o qual j no se pode encontrar

mais um denominador comum transnacional e


trans-histrico. Talvez no seja muito diversa a
situao do termo comunicao, com a diferena
de que este ltimo sempre foi de difcil definio e
delimitao.
E
essa
definio
parece
particularmente
problemtica
na
contemporaneidade. Se a emergncia da disciplina
da teoria da Comunicao estava ligada ao
desenvolvimento do sistema da comunicao
massiva e podia ser recortada, assim, a partir da
ideia de mediao tecnolgica, a ascenso das
tecnologias digitais no apenas problematizou uma
srie de certezas referentes ao modelo massivo,
seno tambm o prprio cerne da Comunicao. De
fato, os ltimos anos testemunharam uma
avalanche de questionamentos a respeito de
conceitos antes tidos como menos misteriosos:
meio, mediao, informao, subjetividade etc.
Talvez, mais interessante que analisar o trabalho
de fundamentao de outras disciplinas seja
observar o quanto muitas delas, especialmente no
mbito das humanidades, tiveram de alargar suas
fronteiras e esfumaar seus objetos. Recorrer
interdisciplinaridade seria, assim, no tanto um
recurso equivocado de pesquisadores inseguros de
sua identidade (MARTINO, 2007, p. 122) quanto o

reconhecimento da necessidade, face crescente


complexidade do cenrio tecnocultural, da
produo de um saber colaborativo e de fronteiras
constantemente permeveis. H que se admitir,
porm, o desgaste da palavra, no tanto porque
ela carea inteiramente de sentido, mas pelo fato
de ter se tornado hoje to corriqueira (ao menos
em campos como o dos estudos literrios) que
qualquer
tentativa
de
apresentar
a
interdisciplinaridade como algo inovador soa
levemente ingnuo. (GUMBRECHT, 1995, p. 505)
Mas no apenas o diagnstico de Gumbrecht
sobre os estudos literrios que poder interessar
Comunicao. Tambm suas sugestes para o
futuro da disciplina, estruturado na forma de
tarefas tericas mais que em novas teorias em
sentido estrito, oferecem importantes pistas para
ns. Alis, para os estudiosos da Comunicao
fenmeno da maior importncia o que poderamos
definir como uma virada tecnolgica no domnio
dos estudos de Literatura. Tanto o paradigma de
pesquisa das materialidades da comunicao
como a teoria da mdia alem, entre outras
perspectivas emergentes, se desenvolveram a
partir de propostas de reconfigurao nos estudos
literrios que foram duramente criticados pelos

tericos mais tradicionais em seus campos. Uma


viso estritamente disciplinarista poderia, inclusive,
acusar Gumbrecht e seus parceiros de uma
indevida invaso de territrio intelectual. Afinal,
depois de sculos se preocupando apenas com os
significados dos textos literrios, a proposio
agora consiste em investigar de que modo se d a
emergncia do sentido.
Em outras palavras, os estudos literrios
comearam a se debruar sobre a medialidade do
fenmeno literrio. Dessa nova preocupao
derivou, portanto, um conjunto de perguntas a
respeito do impacto das configuraes materiais e
tecnolgicas dos meios sobre os corpos e as
culturas. E tudo leva a crer que no se trata de um
fenmeno no limitado ao campo da Literatura. De
fato, Stefan Mnker fala em um medial turn que
atravessa tanto a Filosofia como os estudos
culturais na sequncia de uma srie de outras
viradas (lingustica, pragmtica, performativa etc.).
Como explica Mnker (2009, p. 20), os meios j
no se deixam apreender como transmissores
neutros de informao eles constituem nossa
relao com o mundo e descrevem, com isso, as
condies transcendentais do pensamento por
excelncia. Desse modo, se a tese levada a seu

extremo, todos os problemas filosficos devero


ser reformulados como problemas mediais. Praticar
filosofia significaria, ento, praticar filosofia dos
meios (Medienphilosophie). No correr a
Comunicao, com isso, o risco de perder seu
estatuto de espao privilegiado de investigao da
medialidade?
Uma consulta aos temas que vm sendo
favorecidos, cada vez com maior intensidade, no
vasto campo das cincias humanas parece
confirmar essa premissa. A ascenso dos novos
materialismos (COOLE; FROST, 2010), de uma
filosofia dirigida aos objetos (HARMAN, 2010) e
dos estudos ps-humanistas (BRAIDOTTI, 2013),
ainda
que
largamente
desconhecidos dos
pesquisadores brasileiros de Comunicao, indicam
a necessidade de se repensar ou ao menos
questionar certos fundamentos bsicos do saber
comunicacional
corrente.
Exemplar
dessa
necessidade premente de reconfigurao o caso
da noo clssica de rudo, verdadeiro impensado
do saber comunicacional e que agora, no por
casualidade, comea a se tornar tambm tema de
interesse da bibliografia recente. (KRAPP, 2011)
Por outro lado, tudo isso pode indicar uma
oportunidade mpar para a teoria da Comunicao,

pois a contribuio especial que ela pode oferecer


nesse cenrio de transformaes um olhar
especificamente comunicacional para a diversidade
de fenmenos que nos cercam. Certo, esse olhar
dever ser acompanhado por algum relaxamento
das fronteiras disciplinares e do anseio pela
constituio
de
metodologias
exclusivas.
Gumbrecht (1995) imagina que as alteraes no
ambiente dos estudos literrios (e mais
especificamente da literatura comparada) devero
gerar resistncia dos setores mais conservadores.
O que acontecer quando os estudos literrios
deixarem de se dedicar unicamente com a
interpretao da literatura? Ser realmente sensato
abandonar o conforto da segurana disciplinar em
tal contexto?
bem possvel que essa seja um caminho
inevitvel, tanto para os estudos de Literatura
quanto para a teoria da Comunicao. Esse
caminho j havia sido esboado por Vilm Flusser
em meados dos anos 1970. Sua proposta de
criao de uma nova cincia, a comunicologia
(Kommunikologie), centrava-se na investigao
interdisciplinar de todo o campo do comrcio
simblico do homem. Mais que exatamente uma
disciplina com fronteiras bem demarcadas, o que se

prope, na verdade, que a comunicologia seja


estabelecida como saber que engloba todas as
cincias do homem. Observando a crescente
popularidade das escolas de Comunicao no
perodo, Flusser no hesita em afirmar sua
centralidade e importncia para o futuro da
humanidade. E interpreta mesmo a to propalada
crise das cincias humanas e das artes como a
passagem dessas disciplinas todas para o mbito
das faculdades da Comunicao. Certo, a imerso
da Sociologia, da Msica ou da Filosofia nas
instituies
comunicacionais
possivelmente
transformar as feies dessas disciplinas a ponto
de talvez torn-las irreconhecveis (oft zur
Unkenntlichkeit), pois passaro a constituir
aspectos interdependentes do complexo problema
da comunicao humana. Nesse sentido, a teoria
da Comunicao dever consistir em uma espcie
de ponto focal das reflexes tericas concernentes
nossa situao cultural. (FLUSSER 2007a, p.
242)[2] A ela caber um papel que antes era
reservado Filosofia.[3] Flusser esboa, assim, os
princpios de uma teoria geral das cincias
humanas
(allgemeine
Theorie
der
Geisteswissenschaften), cuja competncia se
estender a tudo que tem a ver com cultura e,

portanto, a economia, a religio, o direito e as


formas sociais.
Essa nova cincia dever eliminar o conceito
metafsico e reificado de esprito o Geist das
Geisteswissenchaften. Antes, o que ocupar seu
centro ser a noo fenomenal e funcional da
transmisso simblica de mensagens. (FLUSSER
2007a, p. 245) Em lugar de pressupor a existncia
dessa entidade misteriosa e imaterial, presumida
fonte da razo e do sentido, Flusser adota uma
perspectiva funcionalista e ciberntica dos
processos comunicacionais. Essa abordagem
ciberntica reforada pela forma como o
pensador trabalha os conceitos envolvidos
(transmisso, mensagem, smbolo). Sua reduo
do problema a termos caractersticos da teoria
matemtica da informao informao (alterao
de forma), canal (acoplagem) e cdigo
(convenes) permite-lhe concluir que o essencial
no processo reside na armazenagem de
informao. Desse modo, evita-se inserir na
definio conceitos que no correspondem a
nenhum fenmeno observvel (como, por exemplo,
esprito, criatividade, liberdade e assim por
diante). (FLUSSER 2007a, p. 247) No poderamos
afirmar, assim, que Flusser antecipa em seus

escritos dos anos 1970 problemticas ligadas ao


ps-humanismo ou mesmo ao primado tecnolgico
dos meios, a exemplo do que recentemente vm
realizando tericos como Friedrich Kittler e Niklas
Luhmann? E no ser essa antecipao, ao menos
em parte, devida ao fato de que muitos desses
novos tericos empreenderam um retorno
ciberntica e teoria dos sistemas?
fcil, de fato, notar aqui as semelhanas da
tese comunicolgica com as proposies da
ciberntica. A comunicologia seria um saber que,
semelhana da ciberntica, permitiria conquistar
um olhar sinptico e aglutinante de todas as
cincias humanas, atravessando, assim, fronteiras
disciplinares. No mbito da comuninicologia, a
comunicao humana deveria ser desideologizada
(des-ideologisieren), e entendida, pois, apenas
como mais uma dentre as muitas diversas espcies
de transmisso (de informao) presentes na
natureza. Numa perspectiva convergente com a da
recente teoria da mdia alem, Flusser (2009, p.
39) define a cultura, ao modo da Comunicao,
como um mecanismo graas ao qual informaes
adquiridas so armazenadas, processadas e
retransmitidas. Esse processo de informao pode
e deve ser entendido tambm em um sentido

radicalmente material. Uma faca, por exemplo,


constitui um saber memorizado, in-formado em
uma substncia material. A transmisso de
informaes um processo que acontece tanto na
cultura como na natureza. Se na segunda os rudos
(tudo aquilo no previsto no repertrio dos
cdigos) funcionam como mutaes, na primeira
constituem o elemento que lhe confere justificao,
que lhe dota de carter progressivo. (FLUSSER,
2007b, p. 309) Em outras palavras, sem rudo no
existe mudana, diferena, progresso.
preciso, evidentemente, ler a proposta de
Flusser no contexto histrico de sua elaborao. O
excitante cenrio cultural de ento era favorvel ao
desenvolvimento de expectativas utpicas e de
projetos
grandiosos
para
a
revoluo
comunicacional. Se as teses de Flusser podem
parecer exageradas em determinados momentos,
abordagens mais recentes, como a de Stefan
Mnker acima citada, podem contribuir para uma
defesa de suas intuies essenciais. Como vimos,
para Mnker (2007) a filosofia do porvir dever ser,
antes
de
tudo,
devotada
ao
problema
comunicacional
central
da
medialidade.
Paralelamente
ao
desenvolvimento
e
institucionalizao de uma teoria dos meios que

ainda continua a acontecer desdobra-se a


questo pelo conceito de meio, que se efetiva em
boa parte para alm das fronteiras desse domnio,
afetando uma srie de disciplinas.
Nesse sentido, tambm as reflexes de Claus
Pias sobre a evoluo da teoria da mdia
(Medienwissenschaft) na Alemanha podem ser
ilustrativas. Para Pias, a Medienwissenschaft vive
um paradoxo marcado pela convivncia entre um
estado de permanente crise e xito estrondoso.
Uma disciplina acadmica se estrutura, seja sobre
um limitado nmero de objetos por ela abordados,
seja por metodologias especficas. Ou se
multiplicam os objetos e se mantm estveis as
metodologias, ou se renovam estas ltimas em
torno dos mesmos objetos. Quando os objetos e as
metodologias so igualmente limitados, as coisas
se tornam rapidamente enfadonhas. Porm, no
caso da Medienwissenschaft as duas frentes de
transformao ocorrem paralela e continuamente:
assistimos tanto a uma multiplicao incessantes
dos objetos quanto a uma desestabilizao de suas
metodologias. Contudo, ela [a teoria da mdia]
no reclama para si o status de um meta-saber,
como fez por vezes em certo sentido a teoria
filosfica do conhecimento, mas antes opera a

partir das diferentes disciplinas e seus saberes


especficos. (PIAS, 2011, p. 16) Claro, se ela
decidisse assumir essa posio (de um metasaber), tal qual no projeto flusseriano, o problema
estaria resolvido. Enquanto no o faz, seu estatuto,
segundo Pias, s pode ser parasitrio de outros
discursos cientficos j correntes. Se tomamos esse
argumento em sua fora mxima, a teoria da mdia
j no poderia, pois, ser considerada uma
disciplina, mas sim um questionamento especfico,
que pode emergir em diferentes disciplinas. (PIAS,
2011, p. 17) Independentemente de seus possveis
exageros ou equvocos, a contribuio de Flusser
para a teoria da Comunicao na era digital
inegvel. Ela nos oferece uma espcie de
arqueologia da cultura digital que , ao mesmo
tempo, esboo instrutivo de problemticas e temas
de pesquisa que, somente muitos anos mais tarde,
iro se consolidar nos repertrios dos discursos
tericos. Nas palavras de Michael Hanke (2006, p.
2),
Flusser, como um pioneiro, desenvolveu uma teoria
genuinamente complexa dos meios em contextos
modernos. Ou seja, a formulao dessa teoria
constitui menos uma questo de anlise de contedo
e crtica
ideolgica,
numa
aproximao
comunicao de massa desde fora, do que do
escrutnio
das
condies
tecnolgicas
que

determinam a comunicao, chegando mesmo a


produzi-la em muitos aspectos. Desde o incio,
Flusser situou um entendimento dos meios orientado
histrica e tecnicamente no cerne de suas reflexes.

Analisadas em suas linhas essenciais, as


proposies de Flusser encontram ressonncias em
teorias contemporneas sobre a Comunicao,
especialmente em seus desdobramentos digitais.
No obstante toda a centralidade que noes
semiticas tiveram em sua obra, Flusser sempre fez
da ateno materialidade dos meios um
componente central do seu pensamento. Em alguns
momentos, mesmo quando se refere cultura
digital, ele demonstra a extrema atualidade de
suas concepes ao identificar as imagens
sintticas com a noo de cultura materializadora
antes que com a ideia de imaterialidade. (FLUSSER,
2010, p. 31) Sua fenomenologia das coisas
demandava uma apreciao sensorial e sinestsica
da carne do mundo. Nesse sentido, esboava uma
posio j prxima, por via inclusive de sua afeio
pela Escola de Toronto, da proposta das
materialidades da Comunicao, ou seja, investigar
todos aqueles fenmenos e condies que
contribuem para a produo do sentido sem serem,
eles prprios, sentido. (GUMBRECHT, 2004) Mais
que isso, Flusser concebia uma viso da teoria da

Comunicao como espao de experimentaes


capaz de reconfigurar a totalidade das cincias
humanas, numa proposio tambm prxima da de
Gumbrecht para a literatura comparada como
domnio onde um pensamento experimental
relevante para o futuro das humanidades pode
acontecer. (GUMBRECHT, 1995, p. 500)
Em ltima instncia, Flusser (2009, p. 24)
almejava inclusive a reunio das cincias humanas
com as cincias naturais, ultrapassando o que
considerava como a perniciosa (verderbliche)
separao
entre
elas
estabelecida
pela
modernidade. Desde pelo menos Natural: Mente
(1979), suas reflexes sobre o par natureza/cultura
apontam para um pensamento de hibridao e da
impureza que ir tomar plena forma na obra (hoje
extremamente popular) de Bruno Latour. Por outro
lado, o desenvolvimento de novas reas de
pesquisa como as chamadas digital humanities
deixa entrever, nos ltimos anos, aproximaes
antes dificilmente pensveis entre as cincias duras
e as humanidades. Professadas por autores como
Lev
Manovich,
as
humanidades
digitais
incorporam tcnicas informticas como data
mining, estatstica e visualizao de dados ao
arsenal metodolgico e conceitual das cincias

humanas. Ligando problemas tradicionais das


humanidades com ferramentas digitais, a nova
rea tambm acaba por questionar paradigmas
tericos
vigentes,
fomentando
abordagens
inovadoras e originando questes inauditas. A
proposta de Flusser (1977), porm, ainda mais
radical que a das digital humanities, pois no se
trata de resolver questes tradicionais com novas
ferramentas. Praticar comunicologia significa
reexaminar todo o horizonte das humanidades sob
uma perspectiva comunicacional. Se o essencial da
revoluo cultural que atravessamos a mudana
das formas como a cultura comunicada, ento a
teoria da Comunicao se torna um ersatz da
filosofia do passado. Sustentadas por uma teoria
que estabelece mltiplas pontes entre saberes
diversos para solucionar novas questes e novos
problemas, as escolas de Comunicao formaro
ento no apenas os mandarins do futuro, seno
tambm os seus analistas crticos.
Sem dvida existe muito a ser criticado e
atualizado nas concepes flusserianas sobre a
Comunicao (e suas teorias). Por exemplo, sua
insistncia na polarizao entre sociedade de
massa e sociedade telemtica, com a crtica radical
da primeira e a otimista defesa da segunda, hoje

ir nos parecer equivocada. Percebemos que o


telemtico no aboliu as formas de experincia e
estruturas tpicas do massivo (antes, parece t-las
reconfigurado), e atentamos para os perigos
presentes no horizonte da digitalizao da cultura.
Entretanto, o reconhecimento do pioneirismo e da
importncia de sua obra ponto pacfico, ao menos
no rigoroso contexto acadmico alemo. Dieter
Mersch (2006, p. 136), por exemplo, afirma que
Flusser pode ser considerado como fundador e
impulsionador cada vez mais importante da atual
teoria dos meios. Nesse sentido, valeria a pena
perguntar por que ele continua sendo, na terra que
o acolheu por 32 anos, uma figura academicamente
marginal. Muitas razes poderiam ser enumeradas
para dar conta do fenmeno. Em funo do espao
limitado, irei explorar apenas um percurso
argumentativo.
A teoria da Comunicao desenvolveu-se
tardiamente no Brasil, especialmente a partir de
dilogos com o campo da Literatura, e favorecendo
metodologias de base lingustico/antropolgica,
como semitica e o estruturalismo. Sintomtica,
nesse sentido, a coletnea Comunicao e cultura
de massa, que, publicada pela Tempo Brasileiro em
1970, reunia autores como Luiz Costa Lima,

Eduardo Portela e Francisco Dria numa tentativa


de apreender um problema central da histria dos
nossos dias (PORTELA et al., 1970, p. 2) a partir
de percursos eminentemente literrios e filosficos.
As abordagens aqui privilegiadas eram de
fundamentao hermenutica e, como no resto da
Amrica Latina, tendiam a valorizar as leituras
ideolgicas dos meios. Na variedade de
metodologias que foram se seguindo (anlise do
discurso, estudos de recepo etc.), continuava
firme o privilgio do significado como foco da
investigao comunicacional. Por outro lado,
McLuhan e a Escola de Toronto foram lidos
rapidamente e rapidamente esquecidos. No
pioneiro volume Teoria da cultura de massa , por
exemplo, Luiz Costa Lima (1969, p. 142) acusa o
McLuhan de evolucionismo atrasado, classificando
sua teoria como anticientfica, defasada e
ideolgica. Os autores mais populares por
exemplo, Barthes, Eco, Benjamin eram lidos de
forma pouco sistemtica e sempre ainda numa
perspectiva exclusivamente hermenutica (mesmo
no caso de um autor to evidentemente
preocupado
com
a
medialidade,
como
Benjamin).[4]
A partir dessa origem fundamentalmente impura

e interdisciplinar, a teoria da Comunicao investiu


num longo processo de disciplinarizao, em
constante tentativa de definio de seu objeto,
metodologias e fronteiras. Ainda que importante
talvez mais do ponto de vista poltico e institucional
do que propriamente epistemolgico tal processo
parece continuar se desdobrando e dificulta que a
teoria da Comunicao possa no somente alcanar
algum consenso efetivo, seno tambm um estado
de maturidade que lhe permita debruar-se sobre
novos objetos e novas problemticas. De fato, as
bibliografias dos estudos de Comunicao no Brasil
costumam ser significativamente defasadas,
agarrando-se a vises e tradies comunicacionais
j bastante consagradas (por exemplo, a
semitica), mas muito pouco afeitas ao novo ou
experimentao.[5] No admira, assim, que os
saltos disciplinares, o singular estilo de escrita e as
ideias pouco convencionais de Flusser tivessem
dificuldade de encontrar pousada neste solo. Por
outro lado, a rea da teoria da Comunicao no
Brasil pouco ou nada explorou o impacto das
tecnologias digitais, mantendo-se ancorada a uma
forma mentis tpica das estruturas da comunicao
massiva. Esse desinteresse pela cultura informtica
e seus mltiplos influxos no cenrio contemporneo

consequncia correlata de bibliografias que


apelam, muito justamente, aos clssicos da Escola
de Frankfurt, das investigaes da lingustica e dos
estudos marxistas, mas que no abrem espao a
debates mais recentes, como os dos software
studies ou da ecologia da mdia.[6]
Desse modo, no obstante a riqueza e
profundidade de muitos trabalhos no campo da
teoria da Comunicao, o cenrio brasileiro
permanece fragmentado e pouco apto a entabular
conversaes que ultrapassem os horizontes
nacionais. A proposio central deste ensaio que
um retorno a Vilm Flusser (inclusive com
pesquisas que se debrucem detalhadamente sobre
os milhares de tiposcritos ainda inditos) poderia,
paradoxalmente, nos ajudar a alar um olhar para
o futuro. Esse defensor do pensamento
contraintuitivo, que teve a oportunidade, em sua
identidade desenraizada, de observar de perto
nossas qualidades e mazelas, acreditava no poder
das zonas de passagem e das instabilidades,
defendendo uma forma de conhecimento baseada
na elaborao de perguntas mais que busca de
respostas. Numa poca em que as cincias
humanas parecem cada vez mais avessas aos
excessos de certeza e empfia do cientismo,[7]

esses elementos podem constituir qualidades


desejveis no mbito da pesquisa e da produo do
conhecimento. Porm, menos que ler Flusser na
forma da scholarship tradicional, em busca de
precises conceituais ou da interpretao correta
de suas ideias, nos caberia colocar Flusser em
dilogo com o presente e, desse modo, explorar as
potencialidades de sua teoria da Comunicao para
o futuro.
Essa proposta est muito longe do projeto,
algumas vezes defendido, de constituir uma teoria
da Comunicao com inflexo brasileira. Teorias
no possuem certido de nacionalidade e
demonstram sua fora na capacidade de atravessar
tanto as fronteiras nacionais como as disciplinares.
Menos que desenvolver uma teoria brasileira, o
que precisamos de teorias que permitam dialogar
com o resto do mundo em p de igualdade. Esse
talvez tenha sido um dos segredos de Flusser, que
conseguiu ser checo, brasileiro, alemo e francs,
mas evitando, todavia, fixar-se em qualquer
categoria. Sem abandonar necessariamente certas
conquistas da cincia ou as seguranas do mtodo,
as teorias da Comunicao teriam a ganhar com a
superao de sua, por vezes excessiva,
preocupao disciplinar e uma flexibilizao de seu

campo de viso. Aps alguns bons anos de busca


do rigor e da preciso, um pouco de risco no nos
faria mal. Pelo contrrio, repetindo as palavras de
Gumbrecht (1995, p. 515), o que ns
definitivamente no podemos nos permitir uma
cautela excessiva.
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NOTAS
[1] O termo German media theory, curiosamente consagrado no
contexto anglo-saxo, designa um conjunto heterogneo de
pensadores extremamente diferentes, mas que se renem a partir
do interesse comum pela dimenso material dos meios. Em outras
palavras, partem do princpio de um a priori medial. Por essa razo,
segundo Parikka (2012, p. 63), a teoria da mdia alem tambm

costumeiramente designada como materialist media theory. Alm


disso, tal teoria reconhecida por sua abordagem eminentemente
histrico/culturalista, o que teria inclusive ocasionado o
desenvolvimento de um novo paradigma de pesquisa, conhecido
como arqueologia dos meios (Medienarchologie).
[2] A data aqui a da edio consultada. A primeira edio de 1996,
mas o volume compila textos que foram provavelmente elaborados
j entre 1973 e 1974.
[3] Todavia, escreve ainda Flusser, a teoria da comunicao se
efetivar em um clima particularmente no filosfico, j que
dominado por estruturas comunicacionais profundamente avessas
filosofia. As escolas de Comunicao, por sua vez, se tornaro
lugares da investigao crtica do futuro. (FLUSSER, 2007a, p.
243)
[4] A bem da verdade, no mbito dos estudos de Comunicao no
Brasil, Benjamin se tornou autor de um texto s, o clebre ensaio
sobre a obra de arte na poca de sua reprodutibilidade tcnica.
[5] Por volta dos anos 1970, a posio de Flusser quanto teoria da
Comunicao no Brasil costumava ser extremamente crtica. J em
1968, ao ser consultado sobre uma nova proposta de currculo para
o curso de comunicao da Fundao Armando Alvares Penteado
(Faap), Flusser manifesta-se, sem papas na lngua, nos seguintes
termos: para falar rudemente, considero sua proposta inepta e
diletante (documento preservado no Flusser Archiv, 1968). A crtica
de Flusser centrava-se na denncia do que ele considerava uma
formao tecnicista, mas incapaz de preparar os estudantes
criticamente para os novos cenrios comunicacionais que
comeavam a se desdobrar. Para uma breve recenso de alguns
posicionamentos crticos de Flusser em relao a autores como Luis
Beltro ou Marques de Melo, ver Hanke (2012).
[6] Claro, sempre prudente evitar o excessivo entusiasmo e os
lugares comuns dos discursos ciberculturais que pregam a
revoluo arrasadora do digital. Entretanto, curioso observar que
mesmo uma das mais populares coletneas de teoria da

Comunicao evita inteiramente qualquer meno ao campo dos


estudos das mdias digitais, mesmo que crtica. Cf. Hohlfeldt, Frana
e Martino (2001). O digital , assim, provavelmente o grande
impensado da teoria da Comunicao brasileira, com a interessante
exceo do trabalho de Muniz Sodr, Antropolgica do Espelho
(2002).
[7] Sobre o cientismo, a danosa alegao de que a cincia
inteiramente desinteressada e extrassocial, ver a importante obra de
Wallerstein (2004).

FRANCISCO RDIGER

Teoria e histria: da era da


propaganda ao pensamento
comunicacional
Segundo Foucault (1978), prprio da crtica que
floresceu em seu tempo foi uma metamorfose que
redirecionou as baterias desse tipo de atividade
contra as teorias globais do indivduo, da cultura e
da sociedade. Na ocasio, crtica se revelou a
cumplicidade das cincias com alguns dos
problemas denunciados pelas prprias teorias as
quais elas haviam dado origem. O marxismo, a
psicanlise e a engenharia social pretendiam
diagnosticar e pr fim explorao econmica,
represso sexual e aos problemas humanos, mas
aconteceu que essas disciplinas se tornaram
frmulas de novos tipos de sujeio. A emergncia
de revoltas pontuais por parte das minorias e a
formao do que o autor chamou de saberes locais

entre as feministas, os jovens, os imigrantes, os


homossexuais, os usurios de drogas e outros
grupos abalaram as crenas na cientificidade e nos
estabelecimentos que, da universidade mdia, a
elaboram discursivamente para a sociedade.
Desde ento, a crtica passou a relativizar suas
pretenses de guiar a prtica e deter o monoplio
da verdade. Estabeleceu-se uma nova relao
entre ela e o processo social. A atividade abriu mo
de suas ambies tericas em favor de um maior
cuidado com a erudio histrica, para tentar
provocar os referidos saberes e abrir novas vias
reflexo. Os saberes institudos assumiram a
hegemonia e se impuseram vida intelectual,
excluindo da capacidade de dizer a verdade os
discursos alheios s suas teorias. A crtica a suas
pretenses epistmicas e seus efeitos de poder, ao
contrrio, passou a acoplar a pesquisa histrica e a
reflexo poltica com as lutas setoriais, visando
colaborar com a emergncia dos conhecimentos
locais e saberes dominados.
Por tais, entende o autor os conhecimentos e a
experincia cotidiana profana, hbrida e conflituosa
que, onde no foram silenciados, acabaram, por
razes de combate e estratgia, sendo forados a
se esconder dos discursos e das instituies

dominantes. Os esquemas de ao, a sabedoria


prtica e as tcnicas de vida que, tendo perdido
sua serventia ou por terem sido vencidos por outros
melhor
encaixados
na
situao,
foram
marginalizados pela ordem do saber cientfico: eis
o ncleo de um saber marginal e contrahegemnico. Os saberes dominados so, portanto,
estes blocos de saber histrico que esto presentes
e mascarados no interior dos conjuntos funcionais e
sistemticos [da episteme dominante] e que a
crtica est ajudando a fazer reaparecer, atravs do
instrumento da erudio. (FOUCAULT, 1979, p.
170)
Diante das pretenses que, volta e meia, como
ondas, surgem no sentido de converter os estudos
da comunicao em cincia autnoma, cremos que
o caso de se levar em conta todas essas
observaes. A comunicao se tornou h algum
tempo figura bvia e inconteste, que parece dada e
evidente, a tal ponto que, em vez de ser
questionada, passou a ser algo cujo tratamento
exige fundamentao epistemolgica. A prova de
que ela se converteu em um dos princpios
instituntes da episteme contempornea est no
fato de que, falando genericamente, ningum
contra a comunicao. Os prprios crticos da

comunicao, em sua maioria, no a questionam


de verdade, na medida em que se limitam a pedir
por uma outra, melhor ou com menos prejuzos,
menos deformada, mais livre e transparente. A
comunicao virou uma certeza, toda a dvida
estando em saber quais so os verdadeiros
fundamentos cientficos de seu estudo e o modo de
promov-la de acordo com sua essncia.
Ocorre que a comunicao, no sentido difuso e
impensado com que a expresso circula entre ns,
na sua capacidade de ofuscamento e ambio
imperialista, no uma evidncia primeira com que
se pode avanar um projeto de fundamentao
epistemolgica. Antes, pode-se e deve-se esperar
desse projeto a devida reflexo sobre suas
circunstncias e limites, sobre as hipotecas
derivadas de seu a priori histrico e processo de
posio em nosso horizonte de conhecimento.
Visando contribuir para o desenvolvimento dessa
tarefa, pretende-se, neste captulo, estudar alguns
elementos formadores do seu solo arqueolgico
para, ento, seguir ou identificar as linhas de fora
com base nas quais a comunicao conseguiu se
impor nossa conscincia, dentro e fora da
academia. Sempre que se fala em comunicao,
regra pensar o termo como dado, em vez de o

tratarmos como problema: a reflexo sobre o


assunto, no ele mesmo, seria polmica, creem os
seus tericos. No entanto, verifica-se que a
expresso mesma e, por esta via, o prprio
processo no so evidentes, luz de uma
investigao histrico-filosfica e em que pese os
mais srios esforos feitos em sentido contrrio,
como revela Peters (1999).
De acordo com nossa pesquisa, a comunicao
, em essncia, uma inveno recente, que tem
pouco mais de um sculo de vida, mas, muito
rapidamente, passou a dominar o nosso
pensamento, fora e dentro da academia, na
medida em que, entre outras razes, articulou o
reagenciamento da figura da propaganda requerido
pela conscincia de uma era liberal, individualista e
democrtica.
Trata-se no que segue de apontar alguns
elementos que justificam pensar nessa direo,
reativando a memria da experincia histrica
reprimida pelo processo que, logrando converter
uma inveno poltica em categoria epistmica,
aclimatou a comunicao em nosso pensamento no
perodo
ps-guerra.
Academicamente,
a
propaganda se tornou hoje referncia de um saber
dominado, mas ela, convm registrar, teve seu

tempo. O resgate, ainda que breve, desse fato ,


neste captulo, estratgico para relativizar a figura
da comunicao, conquistar novos meios para
explicar as circunstncias de sua ascenso
epistmica e, por essa via, questionar as
pretenses dos que, ignorando o ponto, com ela
desejam hoje fundar uma autoridade acadmica.
ORIGENS DA COMUNICAO COMO OBJETO DE
TEORIA
Quando se diz que a comunicao um invento da
humanidade moderna (MATTELART, 1994) convm
tomar a sentena pelo seu valor de face e ir alm
das generalidades. A compilao de informaes
relacionadas com o assunto importante, ajuda a
entender seu aspecto de fenmeno total mas no
se pode ficar s nisso. A presena do conceito
precisa ser documentada no que tem de especfica,
e isso se obtm procurando sua articulao
reflexiva. Raymond Williams (1997) relata bem,
nesse sentido, que o termo surgiu no final da baixa
Idade Mdia, mas que s ao trmino da era
vitoriana comeou a ter algum interesse para a
conscincia cotidiana.
Antes disso, Locke (2012) comeara a avanar
em relao a seu prvio entendimento como

contato entre as coisas, falando da inveno da


linguagem como resultado da necessidade de
compartilhar as ideias, enquanto Condillac (2001),
invertendo o raciocnio, esboara a tese de que
essas, ao contrrio, so efeitos do desenvolvimento
da nossa faculdade de comunicao. (MORRE,
1986) Por sua vez, DAlembert chegou a falar em
uma cincia da comunicao das idias, em sua
introduo Enciclopdia (1751), mas com isso
no foi alm de uma traduo dos princpios da
retrica clssica na linguagem da doutrina das
ideias moderna.
A cincia da comunicao das ideias no se limita a
p-las em ordem, deve tambm aprender como se
expressa cada uma delas o mais claro possvel e,
assim, a aprimorar os signos destinados a lhes
exprimir: [em resumo] o que, pouco a pouco, os
homens [de fato] fazem. (DALEMBERT, 1751, p.
10)

Durante as primeiras dcadas do sculo


passado,
embora
o
termo,
usado
predominantemente no plural, ainda servisse para,
sobretudo, referir os meios de transporte e vias de
circulao, acrescidos ento da telegrafia e
telefonia, surgiram, contudo, novos sinais em sua
semntica. Houve uma primeira apropriao
acadmica e reflexiva da expresso. Albion Small

(1903) e Charles Cooley (1929) comearam a


elaborar conceitualmente o termo, retomando as
metforas organicistas com que Schaffle esboara
sua sociologia, mas tambm o esforo de reflexo
histrico-sistemtica sobre os meios de transporte
de informaes feito por Knies. Provocando os
doutrinadores liberais, defenderam os autores que
os peridicos e outros meios de transporte de
smbolos e sinais no so simples instrumentos de
que se utiliza a sociedade, mas uma de suas partes
vitais, na medida em que se encontram [...] em
interdependncia com todos os seus demais
rgos. (SMALL, 1894, p. 329)
Antes deles, Knies (1898) vira no processo de
desenvolvimento dos meios de transporte,
especialmente os de transporte de informaes
(que ele chamava de notcias), uma forma de o
homem cultivar suas habilidades como ser social,
aprimorando suas vrias relaes com seus
semelhantes. Schaffle (1903), por sua vez,
sofisticara essa perspectiva, chamando a ateno
para o fato de que o desenvolvimento da
sociedade, em especial o de sua conscincia
comum, depende no apenas da contnua criao
de smbolos, mas da permanente inveno de
veculos capazes de permitirem o relacionamento

intelectual entre as pessoas, ao envolverem


conhecimento, julgamento e deciso. (HARDT,
1979)
Seguindo essas pistas, Small (1894, p. 370)
descobriu [...] a imensa importncia dos aparatos
sociais de comunicao, cujos servios na
sociedade atuam de forma anloga aos do sistema
nervoso no corpo animal. Para ele, a comunicao
pode ser vista como o sistema nervoso da
sociedade (SMALL, 1894, p. 215), constituindo um
sistema que permite o contato psquico entre suas
vrias partes. Os circuitos de comunicao
funcionam de maneira anloga s fibras nervosas
que regem os centros de controle e coordenao do
organismo nos animais, mas de maneira psquica.
Os elementos pessoais do organismo social no se
mantm pelo contato fsico por meios materiais, mas
por laos psquicos. Os movimentos na sociedade
so ocasionados por impulsos psquicos. A ao social
depende da comunicao de pensamentos atravs
de todo o organismo. (SMALL, 1894, p. 261-262)

A sociedade se estrutura com base no


desenvolvimento de rgos especializados na
produo e distribuio de riqueza, tanto quanto
naqueles especializados na coordenao e
sustentao desses ltimos. Entre estes, esto os
que [...] disciplinam e desenvolvem os poderes

psquicos do indivduo, os sistemas relacionados


com a criao e comunicao de influncias
psquicas: conhecimento, sentimentos e vontade,
por meio de instituies, que vo da famlia e o
Estado, at o telgrafo e a imprensa. (SMALL,
1894, p. 211) As comunicaes so, do ponto de
vista do contedo, psquicas; e fsicas, do ponto de
vista dos meios pelos quais os impulsos psquicos
so transmitidos. O contedo espiritual; a forma
material. As pessoas so clulas de um
organismo em que os meios servem para preservar
a memria e superar as distncias, sem alterar o
princpio de transmisso dos impulsos psquicos,
que nascem com a palavra trocada de indivduo
para indivduo. (SMALL, 1894)
Os aparatos tcnicos e agncias de comunicao
(correios, telgrafo, transportes, impressos) servem
para materializar e transportar os smbolos dos
impulsos psquicos, formando uma rede de
comunicaes e abrangncia cada vez mais ampla,
at fazer surgir um sistema que, no limite, alcana
dimenses planetrias. Esta estrutura usada
pelos sistemas reguladores de todos os grupos,
grandes ou pequenos, da famlia ao estado. Mas
apenas um meio tcnico para se comunicar
simbolicamente, e no tem ao ou efeito como

influncia psquica. (SMALL, 1894, p. 220-221)


Charles Cooley convergiu em entendimento com
Small, explorando teoricamente a tese de que [...]
o desenvolvimento da sociedade depende da
acurada, rpida e livre comunicao dos impulsos
psquicos. (SMALL, 1894, p. 246) Para ele, [...] a
sociedade resultado do encontro dos homens uns
com os outros. (COOLEY, 1897, p. 74) A
comunicao seria bem definida, por sua vez, como
o [...] mecanismo atravs do qual as relaes
sociais existem e se desenvolvem todos os
smbolos espirituais, mais os meios de fornec-los
atravs do espao e preserv-los atravs do
tempo. (COOLEY, 1909, p. 61) Na medida em que
os encontros que formam a sociedade [...]
resultam da comunicao entre os homens, a
concluso que se impe tirar a de que [...] a
histria desta ltima o fundamento de toda a
histria restante. (COOLEY, 1897, p. 74)
Durante a maior parte da histria, os
relacionamentos, sempre que escapavam ao
costume e tradio, sucumbiam em meio fora ou
violncia. Desde a Revoluo Industrial, surgiu,
porm, uma nova perspectiva. Os mecanismos de
comunicao comearam a passar por uma
profunda mudana, a criar um novo mundo para

ns. (COOLEY, 1909, p. 65) Atravs deles, a


sociedade comea a se tornar orgnica em amplas
dimenses e, por a, a desenvolver novas formas
de sociabilidade, cujas relaes, cada vez mais, se
caracterizam por ter base na escolha e simpatia.
(COOLEY, 1897, p. 78)
Graas aos meios tcnicos surgidos com a era
moderna, as pessoas esto se colocando sob a
influncia umas das outras em escala cada vez
mais ampla, que lhes permitem se tornarem mais
reflexivas e individualizadas. As ferrovias, o
telgrafo, o telefone e a imprensa de massas esto
permitindo estender nosso poder de expressar e
receber ideias em termos cada vez mais globais e
diferenciados. Os livros e peridicos so, contudo,
os mais importantes, porque viabilizam a formao
da opinio pblica e o desenvolvimento do
conhecimento.
[Todos estes meios] tendem a fortalecer e
diversificar o fluxo de pensamento e sentimentos,
multiplicando as possibilidades de relacionamento
social. [...] Eles tornam todas as influncias mais
rpidas em transmisso e mais gerais em sua
incidncia. Elas ficam mais acessveis a grandes
distncias e junto a um maior nmero de pessoas.
(COOLEY, 1897, p. 81)

Cooley (1909) e Small (1894) expressaram

teoricamente assim a formidvel expanso que, em


seu tempo, estava ocorrendo nas formas e
instituies com que se transmitiam e se recebiam
as ideias. Quando as pessoas se informam e
discutem, notou o primeiro, elas desenvolvem uma
vontade e isso, mais cedo ou mais tarde, impacta
nas instituies da sociedade. (COOLEY, 1909, p.
70) Associados ao nascimento do consumo de
massas e difuso dos institutos democrticos,
estavam emergindo fenmenos novos, como a
imprensa popular, a indstria de anncios, as
prticas de publicity e os servios telegrficos de
utilidade pblica. De incio percebidos e elaborados
no registro da imprensa e suas circunstncias e,
apenas secundariamente, da comunicao (que
abrangia os transportes e suas vias), aps a guerra
esse campo de experincia, todavia, passou a ser
discutido a partir de outra figura, a da propaganda,
enquanto as discusses sobre a opinio mudavam
de foco, da liberdade e do progresso para o
controle e a manipulao.
IMPRENSA E PROPAGANDA
Provinha do sculo XIX o consenso de que, apesar
de sujeita corrupo, a funo da imprensa
consistia em instruir ou educar o povo. (FRMY,

1866; LASSALE, 1903) Havia uma conexo entre os


conceitos de imprensa e propaganda, que se
institura sob a gide do projeto iluminista contido
na existncia da primeira. De acordo com tanto, os
impressos eram vistos como [...] um incomparvel
objeto de propaganda, embora propaguem tanto o
erro quanto a verdade. (DUBIEF, 1892, p. 309)
Partia-se do entendimento de que, embora fosse
lcita a tentativa de influenci-las, as pessoas eram
livres e racionais. Isto , eram capazes tanto de
persuadir quanto de serem persuadidas, com base
na tese da vitria do melhor argumento. (LEWIS,
1875) A formao da opinio era, em ltima
anlise, funo do indivduo, considerado eixo
soberano do processo social-histrico. A imprensa
era, portanto, vista como [...] uma espcie de
instrumento: podia servir a fins diversos, ao mal e
ao bem, ao progresso ou derrocada [de uma
causa]. (DUBIEF, 1892, p. 308)
Desde o final do perodo, entretanto, a crescente
organizao empresarial da imprensa comeou a
determinar uma reviso na linha de entendimento
do assunto at ento adotada pelos defensores do
liberalismo e da social-democracia reformista. A
reorientao da atividade no sentido comercial e
mercadolgico descortinou-lhes o que lhes pareceu

ser um novo e problemtico processo de influncia


na formao da opinio pblica: a manipulao da
informao atravs da poltica editorial do
noticirio. De fato, aconteceu de o jornalismo
comear a se tornar objeto de suspeita e eventual
falta de legitimidade pela conscincia pblica
ilustrada. A converso da imprensa em puro e
simples negcio, em que as motivaes
doutrinrias iam caindo para segundo plano,
passou a saltar vista dos seus estudiosos.
(BCHER, 1901; LBL, 1903; HOLT, 1909)
Destarte, a crtica foi se endereando, cada vez
mais, aos mecanismos de seleo, distoro e
supresso das notcias, ao emprego mais ou menos
consentido das prticas de publicity com objetivos
polticos pelas pginas dos jornais, sua falta de
imparcialidade na apresentao do noticirio.
(IRWIN, 1969; RUSSELL, 2004; ROSS, 1912) Ainda
em 1914, Wilhelm Bauer (2009, p. 214) observava,
sem qualquer reserva ou sinal de preocupao, que
[...] todos os meios de expresso confluem no
sentido de organizar a propaganda, peculiar a todo
movimento espiritual de certa importncia. Depois
da I Guerra Mundial, a perspectiva, contudo, se
tornou problemtica. A relao entre imprensa e
propaganda que se havia estabelecido em favor da

primeira foi invertida. A propaganda se tornou o


conceito mais central com o qual o saber passou a
se ocupar dos fenmenos de opinio pblica e
formao
da
conscincia
na
sociedade
contempornea.
Nos Estados Unidos, em especial, os setores
intelectuais conservadores convergiram com a
intelectualidade progressista para refletir e avaliar
os rumos que estava tomando o processo de
formao da opinio pblica em um momento de
crescente interveno propagandstica, nacional e
internacional, por parte de partidos, empresas e
governos. A propaganda que, insidiosamente,
parecia, havia posto o pas no conflito e, agora,
procurava engajar os cidados em movimentos
totalitrios, mas tambm as prticas de publicity
pblicas e privadas, que distorciam aquele
processo, se tornaram foco de ampla e significativa
discusso por parte de educadores, empresrios,
jornalistas, polticos, acadmicos e sindicalistas.
(SPROULE, 1997)
Grosso modo, formaram-se dois partidos a
respeito do assunto. Os setores politicamente
conservadores e tecnocrticos predicaram a
necessidade e a legitimidade das prticas de
propaganda, seguindo uma posio exemplarmente

elaborada por Lippmann e Lasswell. Os setores


politicamente progressistas e humanistas, antes a
denunciaram, passando a pregar o combate sua
influncia atravs educao, conforme fica claro
lendo autores como por Lumley e Dewey. Os
primeiros viram na propaganda um instrumento
para o manejo poltico dos diversos assuntos
sociais numa era de crescente massificao,
procurando justificar o emprego dos seus meios e
tcnicas com vistas preveno de crises e
manuteno da ordem, agora que no h mais
como mant-las exceto explorando as formas de
medir e administrar o pblico. (SPROULE, 1997,
p. 71) Os segundos viram na propaganda um novo
meio de influncia e disputa social, procurando
revelar o emprego politicamente negativo dos
meios de comunicao, sem deixar de crer na
capacidade do pblico, com a ajuda desses meios,
pensar por conta prpria e aprender a respeito de
seus prprios interesses, visando [...] assumir seu
devido papel como cidados na Grande Sociedade.
(SPROULE, 1997, p. 52)
De acordo com Edward Bernays, porta-voz do
esprito do tempo, a sociedade progrediu no
sentido de uma massificao que, agora, nos fora
a abrir mo de muitas de nossas prerrogativas

individuais em favor de um padro de conduta que


uns poucos forjam para ns, capturando nossa
conscincia de acordo com os interesses das suas
respectivas
instituies.
Na
democracia
contempornea, existe [...] um governo invisvel,
que dita nossos pensamentos, dirige nossos
sentimentos e controla nossas aes. (BERNAYS,
1928, p. 61) A crtica a tanto merece ser feita,
porque as pessoas responsveis por ele podem ser
mal intencionadas, mas a propaganda, em si
mesma, no, j que pura e simplesmente
necessria manuteno da ordem social na
atualidade.
Talvez fosse melhor se tivssemos, em vez de
propaganda, comits de sbios escolhendo nossos
governantes, ditando nossa conduta pblica e
privada, decidindo sobre os melhores tipos de roupas
e tipos de alimentos para ns. Porm, escolhemos o
mtodo oposto, o da competio aberta e, agora,
precisamos descobrir um jeito de fazer essa livre
concorrncia funcionar suavemente. Para tanto, a
sociedade concordou que a competio seja
organizada pela liderana e pela propaganda.
(BERNAYS, 1928, p. 11-12)

Contemporneo de Lord Northcliffe e Randolph


Hearst, explica o autor que a sociedade
democrtica moderna optou por dispensar o
emprego da fora para manter a ordem e mobilizar
a ao, desenvolvendo, em vez disso, mecanismos

de controle da mente e conduo da opinio


pblica. Divergindo do entendimento feito a
respeito por gente como Goebbels e Mnzenberg,
partia ele, mesma poca, da premissa de que,
em vez de serem enquadradas ou enganadas, as
pessoas consentiriam em ser comandadas pelos
que as manipulam atravs dos meios de
propaganda,
devido

sua
competncia,
inteligncia e posicionamento social.
Qualquer que seja nossa atitude em relao a essa
condio, continua sendo fato que, em quase todas
as situaes da vida cotidiana, seja na esfera da
poltica ou dos negcios, seja na conduta social ou no
pensamento tico, somos dominados por um
nmero relativamente pequeno de pessoas [...], que
entende os processos mentais e padres sociais das
massas. So elas que puxam os cordeis com que se
controla a mente do pblico, que pem arreios nas
velhas foras sociais e impem novos meios de ligar
e de guiar o mundo. (BERNAYS, 1928, p. 9-10)

Gostemos ou no, conclui o autor, a propaganda


se tornou a pea central do mecanismo que
controla a mente do pblico. (BERNAYS, 1928, p.
18) O emprego propagandstico dos meios tcnicos
o recurso com que, numa era de gigantismo, se
pode arregimentar as massas, moldar a mente das
massas [...] em uma direo desejada e institui
uma espcie de governo invisvel da sociedade.
(BERNAYS, 1928, p. 19-20)

DEWEY E AS ORIGENS DA UTOPIA DA


COMUNICAO
John Dewey acompanhou o surgimento da era da
propaganda assim caracterizada e lhe submeteu
dura critica desde um ponto de vista liberal e
emancipatrio. (DEWEY, 1927, 2008) O principal
aqui, porm, o fato de ele ter pensado os
fundamentos tericos com que se poderia articular
uma reao ao seu avano e renovar a democracia
moderna. Dewey aparentemente tomou de Cooley
o conceito de comunicao como processo de
coordenao das relaes sociais por meio de
smbolos, salientando o entendimento, apenas
entrevisto por aquele outro, de que ela deve ser
analiticamente distinguida dos aparatos tcnicos
que a agenciam. O ponto decisivo, contudo, que
o encarou como fundamento estratgico para a
reconstruo da vida poltica na era da mquina e
do que chamou de grande sociedade. O autor,
noutros termos, concebeu a utopia de acordo com
a qual a comunicao pode servir de base para a
construo de uma nova cultura, capaz de
expressar as possibilidades imanentes civilizao
material da era da mquina, libertar o que
distintivo e potencialmente criativo nos indivduos,
tornando-os os criadores de uma nova sociedade.

(DEWEY, 1927, 2008, p. 109)


Para ele, o aparato tecnolgico criado pela
cincia moderna que serve propaganda no est
blindado sua transformao por parte de uma
ao poltica organizada. Dispomos hoje de meios
fsicos de comunicao como nunca tivemos. O
problema que os pensamentos e aspiraes
congruentes com eles no so comunicados e,
portanto, no so comuns. Os simbolismos
dominantes possuem um cunho essencialmente
propagandstico. A tarefa a que precisamos nos
dedicar, portanto, consiste em desenvolver aquela
comunicao, porque, sem ela, o pblico
permanecer
sem
forma
e
na
sombra,
espasmodicamente procurando por si mesmo, para,
em vez de sua substncia, apenas apanhar sua
sombra e nela permanecer. (DEWEY, 1927, p.
142) O eclipse do pblico promovido com o avano
da propaganda pode ser superado com a recriao
da democracia, via a converso do seu aparato em
meio de comunicao. A comunicao no se
confunde com a propaganda, dilogo, em vez de
discurso, por mais que aquela no exista sem este,
e, por isso, em ltima anlise, a democracia s
pode ter base [...] nos relacionamentos pessoais
da comunidade local. (DEWEY, 1927, p. 218)

A palavra impressa parcial, e o pblico que dela


resulta est apenas parcialmente informado, at que
os significados que ela prov passem de boca em
boca, [...] circulem pelas comunicaes da
comunidade local: apenas isto confere substncia
opinio pblica. (DEWEY, 1927, p. 219)

O efeito de conjunto desse entendimento a


proposio de uma plataforma de reforma da
sociedade baseada na pesquisa e desenvolvimento
de novos processos, formas e usos da
comunicao.
Os padres de pesquisa mais elevados e difceis
devem, justamente com as artes da comunicao
mais sutis, delicadas, vvidas e responsveis, tomar
posse do maquinrio fsico de transmisso e
circulao das ideias, insuflando-lhe vida. Quando a
era da mquina assim aperfeioar seus maquinrios,
ela passar a ser uma forma de vida, e no sua
desptica dominadora. A democracia chegar a ser o
que , porque democracia o nome de uma vida
em comunho livre e enriquecedora, que s ter sua
consumao quando a pesquisa social independente
for indissoluvelmente ligada arte de se comunicar
plena e agilmente [atravs dos aparatos disponveis].
(DEWEY, 1927, p. 184)

Dewey viu a sociedade numa encruzilhada, em


que havia as opes do regime totalitrio e da
democracia plebiscitria e tecnocrtica, mas
tambm a chance de recriar a democracia
participativa. A propaganda e o controle da
conscincia eram a via das duas primeiras. A

comunicao
e
o
desenvolvimento
do
conhecimento pblico poderiam ser a via da ltima
perspectiva. As massas no precisam dispor de
meios de saber e pesquisa especializados para
desenvolverem um modo de vida democrtico. O
essencial , antes, adquirir a habilidade de julgar o
peso do conhecimento sobre problemas comuns
que nos fornecido, e isso s pode ser obtido se
passarmos a dispor de aparatos que, em vez de
servirem ao propagandstica, promovam a livre
a comunicao, visto que essa, a comunicao
livre, aberta e horizontal, [...] a precondio de
existncia de um pblico efetivo e genuno.
(DEWEY, 1927, p. 142)
GUERRA IDEOLGICA: COMUNICAO VERSUS
PROPAGANDA
Malcolm Willey (1935) pode ter sido influenciado
por Dewey, como o foi pelos porta-vozes da nova
indstria do rdio e da televiso (SIMONSON 2010),
para, no perodo entre-guerras, propor que a
expresso propaganda fosse, pelo seu cunho
polmico, substituda pelo termo comunicao de
massas, visto que [...] a propaganda, no
importa a definio dada, deveria ser vista como
uma, apenas, das formas de comunicao de

massas. (WILLEY 1935 apud GLANDER, 2000, p.


27) Ainda assim, nessa poca, o termo
comunicao
seguia
expressando,
predominantemente, os servios de transporte e
transmisso de dados, como em parte ela no
deixou de designar at a atualidade. A palavra
seguiu tendo um sentido genrico e no
comparecia nas discusses que galvanizavam a
conscincia ilustrada e os porta-vozes do esprito
que dominava o tempo at o incio dos anos 1950.
Entrementes, John Marshall rompeu a tendncia
no sentido de discutir os processos de formao da
conscincia unicamente com o termo propaganda,
propondo que se desenvolvesse uma teoria geral
da comunicao. Coordenador de projetos da
Fundao Rockfeller e leitor de Dewey, ele, de
incio (1938), pretendia estudar o impacto e
possibilidades do emprego dos meios tcnicos nos
processos
de
formao
da
cidadania
e
desenvolvimento educacional da populao. Com a
ecloso da II Guerra Mundial, o foco do grupo de
acadmicos intelectuais que reunira para estudar o
assunto, contudo, passou a ser o seu papel na vida
poltica e, em seguida, o seu uso como meio de
guerra psicolgica. Recaiu-se, por conseguinte, no
entendimento
dessas
tecnologias
como

instrumento de propaganda que passara a dominar


a partir de 1914.
Atravs de cuidadosa anlise documental, Brett
Gary (1999), contudo, nos revela que, para evitar o
seu endosso como termo denominador da reflexo,
resolveu-se,
na
poca,
adotar
o
termo
comunicao, para distinguir entre propaganda
democrtica e totalitria. Diante das conotaes
pejorativas adquiridas pelo termo, acordou-se entre
os principais pesquisadores do assunto que havia
uma diferena entre a comunicao (democrtica)
e a propaganda (totalitria), porque enquanto
aquela seria um processo de duas mos, esta seria
linear e impositiva.
No relatrio final dos trabalhos do grupo,
concluiu-se, com efeito, que a relao entre os
regimes democrtico e ditatorial com o pblico e
sua opinio no era a mesma. O primeiro se
distinguiria do segundo porque [...] no pode
sobreviver sem uma comunicao de duas mos.
Contrariamente s ditaduras, [...] a democracia
requer o consenso inteligente, mas tambm o
dissenso e a discusso, para obter seus
propsitos. (GARY, 1999, p. 105)
Contudo,
conservaram
seus
autores
o
entendimento de que a comunicao pode se

converter em poderoso [canal] de propaganda.


(GARY, 1999, p. 106) O fato era que, em ltima
anlise, o consenso pode ser manufaturado para os
que esto no poder e desejam dispor da
conscincia pblica para exercerem sua liderana
sobre a sociedade. Afinal, escreveram, [...]
dispomos hoje de mtodos de pesquisa que podem
fornecer informao confivel acerca da conscincia
pblica e sobre o modo como ela ou pode ser
influenciada em relao aos assuntos pblicos
(atravs dos meios de comunicao). (GARY,
1999, p. 103)
Conforme comenta o autor de que temos nos
valido para dar este relato:
A pressuposio de que a pesquisa em comunicao
era uma nova e segura arma para obter objetivos
democrticos atravs do controle da opinio pblica
subjaz ao relatrio, porque se acreditava que, com
elas [a pesquisa e a comunicao], se pode ajudar
os lideres a entender a conscincia pblica e seus
preconceitos, ajudar a transformar os preconceitos
problemticos, acalmar os temores pblicos em meio
a crises, mediar entre o pblico e seus lderes e,
enfim, contribuir para aperfeioar os processos
democrticos, porque elas ajudam os lideres a obter
mais facilmente o consenso, e o consenso dos
governados a base da democracia. (GARY, 1999,
p. 103)

Noutros termos, pode-se concluir que, sob a

oposio entre propaganda e comunicao,


estabeleceu-se uma competio entre dois
entendimentos da propaganda: um primeiro,
fechado, impositivo e ditatorial, que seus autores
no hesitaram em condenar; e um segundo,
aberto, competitivo e democrtico, mas no menos
instrumentalizvel, que inclusive seria elaborado
teoricamente, em seguida ao final do conflito, do
ponto de vista da comunicao, com, por exemplo,
o conceito de engenharia do consentimento,
proposto por Edward Bernays.
Retomando as teses de seu tratado sobre a
propaganda (BERNAYS, 1928), sem fazer uso da
expresso, o publicista observa que a formidvel
expanso das comunicaes est fornecendo ao
mundo o mais penetrante e efetivo aparato de
transmisso de ideias. O recurso engenharia do
consentimento, por ele pregado, consiste no
emprego cientificamente calculado desses canais
de comunicao para influenciar os outros, de
acordo com o prprio interesse. A liberdade de
expresso que nos confere os regimes liberais a
legitima, porque a engenharia do consentimento
a prpria essncia do processo democrtico, o
exerccio da liberdade de persuadirmos e
sugestionarmos [uns aos outros]. (BERNAYS,

1966, p. 222-223)
O conhecimento poder e, nas circunstncias de
uma sociedade democrtica e liberal, este consiste,
sobretudo, em saber usar os sistemas de
comunicao, para manejar os outros e obter seu
consentimento. A comunicao a chave para
manejar o consentimento necessrio consecuo
da ao social, a partir do momento em que se
torna objeto de [...] mtodos organizados e um
slido planejamento estratgico. (BERNAYS, 1966,
p. 233) O fato que precisamos todos aceitar que,
em nosso tempo, [...] apenas com o domnio das
tcnicas de comunicao se pode atuar
frutiferamente na arte de conduzir o pblico no
vasto mundo que o da democracia. (BERNAYS,
1966, p. 221)
Em funo disso, pode-se entender porque, alm
do crescente estmulo empresarial e do interesse
puramente acadmico, o campo de estudos a
respeito da comunicao tenha, nos seus
primrdios, se desenvolvido sob o impacto da
pesquisa a respeito da propaganda e da recmintroduzida
noo
de
guerra
psicolgica.
Comeando no perodo da II Guerra e se
estendendo pelo menos at meados dos anos
1960, nota Christopher Simpson, houve uma

tendncia a ver na comunicao um nome menos


embaraoso e mais contagiante ideologicamente
para se estudar e desenvolver o que era, at o
incio dos anos 1940, chamado pura e
simplesmente de propaganda. Durante todo aquele
perodo, a propaganda foi [...] o objeto de fixao
da pesquisa de ponta em comunicao, como
chegou a dizer Schramm, em 1954 (apud SIMPSON,
1994, p. 115)
Responsvel pela criao dos primeiros
programas
de
formao
acadmica
em
Comunicao (1947), este, quase inequivocamente,
procurou fundamentar a pesquisa em propaganda
nas cincias sociais e, com isso tambm, fornecer
propaganda a legitimao que as guerras mundiais
lhe haviam privado e as urgncias da Guerra Fria
recomendavam que, camuflada pela nova
nomenclatura,
fosse
conquistada.
(CHAFFE;
ROGERS, 1997) Por isso, no deve surpreender
que, mesmo onde no houve influncia poltica e
empresarial direta, a comunicao tendeu a ser
tratada como um conjunto de fatores (emissor,
mensagem, canal, receptor), passvel de ser
mensurado discretamente (contextualizado apenas
em relao a seus intermedirios), com vistas
obteno de conhecimento til no desenvolvimento

de projetos e aes institucionais.


Em geral, o fenmeno foi entendido basicamente
como a transmisso de mensagens com que,
explorando a devida tcnica, se podia, em tese,
alcanar objetivos polticos, seno obter controle
social, embora se reconhecesse que o processo
mais complexo e os efeitos pretendidos, se
logrados, no dependem apenas de sua mecnica.
Na prtica, as principais revistas acadmicas daquela
poca no demonstraram muita preocupao com o
que a comunicao . Em vez disso, concentraramse na forma como a tecnologia poderia ser usada
pelas elites para manejar com a mudana social e
extrair concesses polticas, ou obter decises
favorveis de audincias especficas. [...] O processo
da comunicao foi reduzido aos termos de um
modelo simplificado, baseado na transmisso de
mensagens persuasivas e, em ltima anlise,
coercitivas. (SIMPSON, 1994, p. 62)

Ironicamente,
aconteceu,
portanto,
que
comunicao, um termo de carter originalmente
orgnico ou expressivo, acabou, aps a guerra, ao
menos, sendo adotado como mscara de um
entendimento dos processos de relacionamento
social que era predominantemente instrumental na
prtica. Lazarsfeld e Merton deixam isso muito
claro em sua sntese sobre o assunto, observando
que a comunicao a base para uma forma mais

sutil de controle social e explorao psicolgica das


massas por parte do poder econmico. Isto , para
o que, em seu tempo, e por eles tambm, ainda
era chamado de propaganda: Cada vez mais, os
principais grupos de poder, entre os quais as
empresas organizadas ocupam posio de
destaque, passaram a adotar tcnicas para
manipular o pblico de massa, atravs da
propaganda, em lugar de meios mais diretos de
controle. (LAZARSFELD; MERTON, 1985, p. 24)
Agora, o objetivo de controlar as pessoas no
mais alcanado atravs da fora, mas atravs da
propaganda disseminada atravs dos meios de
comunicao de massas (LAZARSFELD; MERTON,
1985, p. 24), como dizem os autores, e, entre suas
tcnicas, uma das mais recentes consistia,
precisamente, em se valer da descoberta,
supostamente feita por sua escola, de que o fluxo
dessa comunicao filtrado ou mediado para o
pblico pelas suas lideranas pessoais. Isto , a
propaganda pode ser mais eficiente, se empregar
em seu favor os formadores de opinio acreditados
para influir na opinio e, eventualmente, manejar a
conduta dos diversos grupos sociais passveis de
recorte em meio s massas. (SIMPSON, 1994)

A CIBERNTICA, A MDIA E O ECLIPSE DA


PROPAGANDA
Cabe notar, contudo, que, nessa altura, o contexto
histrico, poltico e terico mais amplo estava se
alterando radicalmente, devido paralela
emergncia do pensamento ciberntico. Os
inventos
desenvolvidos
durante
a
guerra
impulsionaram o fetichismo tecnolgico. De motivo
de preveno, a propaganda se foi tornando
palavra antiquada e de mau gosto. A teoria da
informao foi chamada a servir de matriz para dar
conta do processo da comunicao. Projetou-se em
todo um novo mbito ou perspectiva a utopia da
comunicao que, pioneiramente, havia sido
pensada pelo pragmatista John Dewey. A soluo
dos nossos problemas numa era de progresso
tecnolgico, passou-se a crer, no deveria mais ser
buscada em projetos polticos ou doutrinas
filosficas, mas no remanejamento ciberntico da
comunicao entre homem e mquina.
Segundo Norbert Wiener, principal arauto dessa
viso, a experincia nos ensinou que aqueles
projetos e doutrinas s nos levam guerra e
destruio. O avano para uma era de bem-estar
individual e paz universal passa pelo seu abandono,
pela elaborao terica e o desenvolvimento

operacional de um pensamento ciberntico.


[De acordo com ele h] primeiro, a absoluta
necessidade de o homem ser reconhecido como ser
comunicativo e que suas capacidade sejam utilizadas
neste sentido; em seguida, a das maquinas
passarem a ter o estatuto social que elas merecem e
que a elas seja transferida a responsabilidade dos
processos de comando e deciso [sobre a
existncia]; e enfim, a de que a sociedade se
autorregule, graas retroatividade e ao carter
aberto das vias de comunicao [entre homem e
mquina]. (BRETON, 1995, p. 60)

Amparada no impacto cada vez maior da


informtica no desenvolvimento das atividades
sociais e sua crescente influncia no agenciamento
da subjetividade do homem contemporneo que
promana da apropriao cotidiana de seus meios
tcnicos, a ciberntica revelou-se, assim, uma fora
decisiva no processo de atravs do qual o conceito
de propaganda vem sendo eclipsado pelo de
comunicao: isto , se imps [...] a ideia de que
o desenvolvimento dos seus meios e a liberdade de
expresso so as condies essenciais do progresso
das sociedades. (BRETON, 1995, p. 9)
Por outro lado, aconteceu tambm, por esta
poca, que, consoante o formidvel ciclo de
crescimento econmico e explorao cotidiana de
novas tecnologias, consolidou-se uma cultura de

consumo de massas, cujas frmulas expressivas,


em vez da propaganda, passaram a provir da
publicidade e em meio a qual, entendida como
mdia, se tornou estratgico o conceito de
comunicao. Em seguida ao final da II Guerra,
retomou-se nos Estados Unidos, para em seguida
espalhar-se pelo mundo, o movimento no sentido
de tornar o mercado no apenas um meio de
satisfao das necessidades, mas o contexto em
que as relaes sociais deveriam adquirir sua plena
significao, conforme havia sido ensaiado naquele
pas nos anos 1920.
Naquela poca, os movimentos contra o regime
econmico vigente e o avano do socialismo foram
contidos com um misto de represso e
desenvolvimento de um conjunto de instituies
oriundo da atividade empresarial, no mbito de um
vasto processo de reorganizao do capitalismo. O
americanismo, conforme os europeus o chamaram
poca, consistiu, com efeito, em um processo de
integrao das camadas assalariadas ordem
econmica estabelecida, mediante a expanso do
seu poder de consumo. O desenvolvimento da
cidadania poltica, prometido pelos democratas, e o
controle do processo de produo, sonhado pelos
seus intrpretes socialistas, comearam a ser

desviados para o cultivo da vida privada, atravs


da converso dos hbitos de consumo em prtica
de lazer e base do modo de vida. (EWEN, 1976)
Depois da guerra, as corporaes encontraram
uma situao econmica e um estgio de
desenvolvimento tecnolgico altamente favorveis
para, mais ou menos por todo o mundo, passarem,
pouco a pouco, a promover um sistema de vida
baseado no consumismo. O mercado e seus meios
de articulao ideolgica foram convertidos no
principal fator estratgico, via o que foi chamado
de indstria cultural, por Theodor Adorno e Max
Horkheimer,
em
seu
livro Dialtica
do
esclarecimento ([1944] 1947, 1985).
Na falta de espao para aprofundar o relato,
concluiramos levantando a hiptese de que a
emergncia, em meados do sculo passado, do
chamado campo da Comunicao representou,
desde um ponto de vista crtico e reflexivo, uma
emanao, ao mesmo tempo utpica e ideolgica,
da superao desta era poltica, que foi a da
propaganda, por, pelo menos, dois novos princpios
de comando da vida social no mundo capitalista. O
primeiro o da indstria cultural, o do processo de
transformao da cultura em mercadoria, que hoje,
a passos rpidos, se vai reduzindo ao negcio com

a notcia e o entretenimento. O segundo, ainda


mais radical, o da cibernetizao, o do processo
de reduo da existncia informao eletrnica,
que, vivenciado atravs das manifestaes da
chamada cibercultura, etapa superior da indstria
cultural, nos empurra para os limites da utopia da
comunicao, a julgar pelo que dizem suas
vanguardas. (HUGUES, 2004; MORE, 2013)
CONCLUSO
Desde bom tempo, os filsofos e historiadores das
cincias vm polemizando a respeito do carter de
seu desenvolvimento, acabando por se dividirem
em dois grupos. Os externalistas advogam que a
autonomia da pesquisa cientfica muito relativa,
evoluindo basicamente a partir de estmulos
oriundos de outras esferas da sociedade. Os
internalistas, em contraponto, sustentam que essa
influncia, embora exista, no decisiva no
processo do desenvolvimento cientfico, movido
antes pela criao e desdobramento de suas
prprias questes. (ALSTON, 1998)
O presente trabalho sugere que essa perspectiva
problemtica, se pensada em relao ao campo
dos estudos sobre comunicao. O fato que,
nessa rea, a reflexo e pesquisa andam a reboque

da fortuna dos meios e processos que ensejaram o


surgimento e avano do prprio conceito. A
comunicao, convm que fique claro de uma vez
por todas, no algo dado, um objeto ao alcance
da mo ou que se possa apontar de maneira
emprica e imediata.
O estudo do tema enquanto tal sempre
abstrato e terico, embora as proposies que dele
resultem possam, circunstancialmente, mas apenas
assim, intervir e orientar na pesquisa objetiva e
concreta sobre o que tem a ver com o que, no
nosso contexto de discusso, mais interessa: os
fenmenos de mdia, jornalismo, publicidade,
internet etc. A comunicao uma construo
histrico-ontolgica de carter coletivo e annimo,
uma categoria formadora de mundo prpria de
nosso tempo, mas dele apenas, cujo entendimento
e manejo exigem essa reflexo, isto , a
conscincia de sua relatividade, sob pena de,
empregando-a no trabalho intelectual, se sucumbir
na ingenuidade e reificao.
Ocorreu de a figura da comunicao ter sido
ligada a fenmenos como jornais, televisores e
servios de internet e, mais, passado a servir para
designar um campo de estudos acadmicos a seu
respeito mas isso produto das circunstncias,

carece de necessidade gnosiolgica, conforme


procuramos indicar neste breve captulo. A
formao desse campo por certo a projeta num
novo patamar, na medida em que, passando a lhe
exigir a teorizao capaz de lhe dar legitimidade
intelectual, estimula o surgimento de uma
reflexividade ontolgica em cima da categoria.
O pensamento, todavia, no pode se submeter
ontologia; precisa ser crtico, histrico e analtico,
se quiser continuar sendo verdadeiro pensamento,
em vez de mero esprito do tempo (por maior que
seja sua elaborao) e, por isso, as postulaes e
reivindicaes das teorias da Comunicao, no caso
de serem pertinentes, tero sempre validade
circunscrita, limites epistemolgicos e histricos.
Quais so esses limites no se pode afirmar a
priori, mas a cada caso, mediante o confronto de
ideias e a apresentao de argumentos. O principal
a levar em conta no caso, portanto, que tudo isso
nos obriga a entender reflexivamente a
comunicao no plano do saber, em vez do da
cincia propriamente dita, para valermos-nos de
uma distino proposta por Michel Foucault (1972).
Foucault, recordemos, distingue entre cincia e
saber. O saber, ao contrrio da cincia, o
conhecimento mundano carente de autonomia

formal e gnosiolgica, visto se desenvolver em


conexo com as prticas sociais e o processo
histrico abrangente, atravs da mediao do que
chamou de episteme. A episteme, com efeito,
refere-se aos cdigos fundamentais que ordenam
intelectualmente uma cultura, ao regime discursivo
que comanda o emprego da linguagem enquanto
conhecimento, rede nocional que estrutura e
orienta o nosso pensamento em funo de
urgncias transcendentes a seu prprio princpio de
desenvolvimento. (FOUCAULT, 1972)
No Ocidente, a episteme, assim entendida,
passou, segundo o filsofo, por, no mnimo, trs
etapas. At o fim do sculo XVI, teria predominado
a figura da similitude. Em seguida, passou a
imperar o princpio da ordem. Por volta de 1800, a
histria comeou a tomar o seu lugar, mas isso no
impede que hoje tenhamos o sentimento de que
alguma coisa de novo esteja em vias de principiar
[no horizonte do pensamento]. (FOUCAULT, 1978
p. 499)
Apoiando-nos na obra de Lucien Sfez,
afirmaramos que essa novidade a figura da
comunicao. Desde o final do sculo passado, a
histria, com efeito, ps-se em crise. Oriunda das
prticas cientficas e centros de pesquisa

tecnolgica, como quer o autor, mas tambm das


prticas profissionais e da economia de mercado,
como pensamos, apareceu uma nova episteme
para comandar o saber e orientar a prtica do
homem contemporneo. O fato de a comunicao
transcender a condio de tema de estudo e tipo
de atividade para, reflexivamente, ter adquirido o
status de princpio epocal de instituio do
conhecimento e da prtica social em geral o que,
segundo o autor, nos autoriza a tambm falar dela
como:
[...] uma forma simblica ou filtro atravs do qual
ns podemos enquadrar no apenas as relaes
individuais e sociais mas, ainda, nossas relaes com
o mundo; como um esquema que pouco a pouco
estaramos interiorizando, a tal no ponto de no
mais ser percebido como filtro, ou meio de
conhecimento entre outros, mas como matriz
doadora de uma nica forma de apreenso da
realidade. (SFEZ, 1992, p. 18-19)

Na impossibilidade de desenvolver o ponto,


basta-nos, para reiterar, observar que, lanando
alguns elementos para entender a pr-histria
dessa figura, procuramos pesquisar aqui a hiptese
de que a comunicao uma espcie de emanao
ao mesmo tempo ideolgica e utpica, no plano do
saber, do processo que vem nos levando da era
poltica e tecnocrtica da propaganda para a era

sistmica e mercadolgica da mdia eletrnica, do


que, primitivamente, foi chamado de indstria da
cultura e hoje se desenvolve com o nome de
cibercultura. A tarefa, cremos, se justifica em
termos prticos: acusar a converso da categoria
em chave de episteme e a relatividade histrica
desse evento como matriz de saber pode servir
para nos manter em livre relao com suas
circunstncias e, assim, nos ajudar a escapar das
pretenses abusivas e do fetichismo intelectual que
eventualmente dominam o pensamento a respeito
da comunicao.
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CIRO MARCONDES FILHO

A nova forma de pesquisar a


comunicao: a engenharia das
emoes, o autmato espiritual
e um campo de conhecimento
que se constitui
COMUNICAO COMO FENMENO INSONDVEL
H dois tipos de fenmenos comunicacionais, do
ponto de vista do produto: os abertos e os
fechados. Abertos so os fenmenos que se
transformam enquanto esto sendo realizados,
exibidos, produzidos. So vivos. So as matrias
jornalsticas realizadas como live transmission, os
programas que se transformam seguindo as
reaes do outro (programas de auditrio ou de
entrevistas, rdio ao vivo, shows, palestras, aulas,
dilogos diretos ou por computador). Fechados so
os
produtos
editados
e
transmitidos

sincronicamente para grandes pblicos (cinema,


televiso, rdio gravado), assim como aqueles cuja
recepo individualizada e no sincronizada
(jornal, revista, livro), da mesma forma que os
demais produtos em que o articulador j no
participa mais diretamente, ausentou-se ou j
morreu. Esses produtos no so exatamente
mortos, pois continuam a exercer sua fora
comunicativa, mas sua vitalidade depende
daquele(s) que os recebe(m). So como que
congelados. Teatro, audio de msica clssica,
declamao ou dana seriam tecnicamente
fechados, apesar de os protagonistas poderem
alterar a performance maior ou menor empatia
segundo sua sensibilidade em relao percepo
do pblico.
A diferena entre os produtos do primeiro e do
segundo tipo que no primeiro h um
acontecimento comunicacional no terminado
proponente(s) e as pessoas a quem se dirige
consideram as reaes uns dos outros e participam
conjuntamente no desenvolvimento do fenmeno.
A comunicao da surgida algo coletivo,
socializado, comum. Cria-se uma corrente de
energia que aumenta ou decresce segundo o
envolvimento e a participao dos envolvidos. s

vezes, esse acontecimento confunde-se com as


formas de reao coletiva descritas por Georges
Bataille, em que um fato toma conta de todas as
pessoas, as fazendo sentirem juntas essa energia
do processo. o caso das torcidas de futebol, das
manifestaes polticas ou religiosas, que,
entretanto, nada tm a ver com a Comunicao.
No segundo tipo, os que sofrem a ao deparamse com formas prontas e podem reagir ou no a
elas. Dois lados entram em jogo aqui: a fora
expressiva da obra (sua apurao tcnica, seu
apelo efetivo, sua qualidade enquanto capacidade
de envolvimento) e a abertura da pessoa que a
recebe. H algo como uma dialtica entre esses
dois lados da questo: o indivduo fruidor, que se
depara com a obra, e a prpria obra, que busca
seduzi-lo. Nesse encontro, existe a chance de
interferir um elemento inesperado, um incorpreo,
que promove a alterao na pessoa que entra em
jogo com esse objeto ou essa ao. O mesmo
fenmeno ocorre nas formas do tipo anterior, as
formas abertas, quando se d um choque,
especialmente entre os participantes mas no
necessariamente s neles.
A diferena entre os produtos transmitidos
sincronicamente para grandes pblicos e aqueles

desfrutados de forma no sincrnica e individual


que os primeiros podem conduzir a pessoa
participante, lev-la a certos desenvolvimentos,
embal-la, enquanto que os segundos tambm o
podem, mas h a possibilidade de serem brecados
pela temporalidade imposta pelo espectador ou
leitor (ele pode suspender a leitura) e pela
recepo isolada, que no supe a sintonia com as
demais pessoas.
Digamos, provisoriamente, que nessas duas
formas ocorrem dois tipos de comunicao. Nos
processos ao vivo, h a provocao por parte de
um agente que joga com a comunicao
observando o pblico, sentindo-o, capturando suas
mais sensveis mudanas, adaptando-se s
menores oscilaes. Ele age como um mgico ou
um prestidigitador, que conta com a ateno do
outro, que busca domin-la. Ele trabalha com
insistncia, persistncia, repeties e retroaes. A
comunicao aqui um fenmeno que opera com o
tempo, que pode se estender e exigir sempre
novos reincios. O resultado comunicacional vem no
final, como coroamento, como consecuo, como
realizao da virada. As pessoas saem
transformadas. Ou ento, se no saem, ficam
incomodadas, intrigadas, perplexas, j no so

mais as mesmas. O prprio provocador pode sair


alterado. As transformaes do outro, suas
reaes, suas observaes, seu mal-estar tambm,
tudo isso exige do provocador uma recomposio,
uma rearticulao, um novo formato que utilizar
na prxima vez. Sua virada pode ter sido menor,
mas no foi inexistente. A comunicao, assim, no
um fenmeno de dupla mo. Ela acontece
somente de um lado, o lado que sofre a ao, que,
paradoxalmente, poder, num segundo momento,
ser o lado do promotor do evento, quando se torna,
ele tambm, objeto da reao do que o recebe.
Invertendo-se os polos, cada um , a seu tempo,
algum objeto dos sinais do outro, realizando a
comunicao. Isso s acontece com a comunicao
do primeiro tipo.
O fenmeno aqui, majoritariamente presencial
(pois h que se considerar as formas eletrnicas de
comunicao viva), considera corpos em presena
que sinalizam pela fala, pela postura, pelo agir e
reagir, as sensaes que esto vivenciando. A
interao, o campo de foras psicolgico que se
cria, o peso da presena e do imprevisto, tudo isso
atua junto. Pessoas, ambiente, procedimentos se
combinam numa espcie de dana, de coreografia
espontnea coletiva, e a prpria surpresa dos

resultados o fator de maior engajamento, de


prazer, de gosto pela participao.
Diferente a comunicao do segundo tipo,
proporcionada pelos objetos ou pelas situaes
predefinidos. Sobrevive a individualidade das
percepes, a forma diferenciada como cada um
sente o fenmeno, as reaes so pessoais e
intransferveis, mas j no h a fora e a
insistncia de um provocador. Um programa de
rdio, um filme, uma instalao esto l esperando
pela presena de um apreciador. No estamos mais
num jogo entre olhares, expectativas, alteraes
de falas e de condutas, caractersticos do primeiro
tipo. Sem ns, nenhuma dessas obras, nenhuma
dessas produes existe, por mais bem acabadas
que sejam, por mais esteticamente nobres que
tenha sido sua elaborao, por mais reverenciadas
que tenham sido em outras pocas. preciso que
entremos em contato com elas para vivermos sua
comunicabilidade e a nossa. A arte do provocador
est inteiramente depositada na e somente na
obra: ela tem vida prpria e dever falar por ele.
Raramente aprecio uma obra de forma
totalmente nova. Um arquelogo pode encontrar
uma pea de cermica milenar e encantar-se com
ela, ou descobrir afrescos em uma parede de uma

residncia soterrada h vrios sculos. O valor


desses achados lhes confere a dignidade de uma
grande obra. Mas raramente apreciamos os
produtos culturais dessa forma. Geralmente
procuramos uma exposio, um filme, um
programa de TV cujas informaes anteriores nos
tenham chamado a ateno. A indstria da
divulgao trabalha para isso: para nos instigar a ir
a um espetculo porque este ou aquele especialista
nos aconselhou. Esse fato faz com que a apreciao
imediata, espontnea, livre e pessoal seja quase
impossvel. Mas nem sempre o . Sem
necessitarmos de uma indicao anterior, podemos
nos
deparar
com
imagens,
construes,
elaboraes que nos encantam naturalmente,
imprevisivelmente, at mesmo magicamente.
Fato que a maioria dos fatos com os quais nos
deparamos j vm sugeridos. Vendo as telas, as
esculturas, as instalaes de um museu ou de uma
galeria posso me deixar encantar por elas, mas a
legenda, a inscrio de que se trata de uma
grande obra ir confirmar meu prazer em
observ-la, ir me fazer mais seguro do meu gosto.
De alguma forma, a opinio especializada estar
soprando aos meus ouvidos que eu acertei, que
escolhi a boa obra, que estou diante de uma

master piece. A mim, ento, s me caber


reafirm-la ou no. Se confirmar, estarei
corroborando aquilo que vejo e me sentindo de
acordo com um padro oficial e estabelecido. H
srias dvidas de que isso seja comunicao.
Principalmente porque, especialmente para esses
objetos, a sensao nos aparece quase como de
encomenda.
Em qualquer caso, a questo do tempo
decisiva. diferente se assistimos a um filme ou se
vivenciamos outro produto qualquer na sua
extenso cronolgica e no de forma instantnea.
Apreciar uma fotografia semelhante a desfrutar
uma tela. Temos diante de ns uma cena, um
olhar, um quadro. A percepo imediata, um ato
momentneo, dura apenas alguns segundos. A no
ser que entremos na cena, que a faamos se
movimentar, que construamos um contexto, uma
vivncia, um prolongamento indefinido da
percepo. Que lhe demos uma vida mais longa. A
magia do cinema vem exatamente disso. Eu posso
ter recebido informaes, comentrios, crticas,
resumos, apreciaes diversas sobre um filme, mas
nada disso ser a vivncia desse filme em sua
extenso. Um filme me toma 30, 60, 90 minutos,
no importa. Importa que ele me retm, fixa minha

ateno, me insere numa situao em que eu sou


como que um participante invisvel. Eu estou nessa
cena. Nisso ele se assemelha s formas de
comunicao do primeiro tipo: algum est
realizando alguma coisa e eu estou acompanhando.
Naturalmente, essa pessoa no me v nem altera
seu comportamento por eu estar ali. Esse detalhe
no existe. Mas o fato de eu fazer a imerso na
cena me coloca simuladamente num contexto em
que eu vivencio os humores, os temores, as
angstias e as alegrias dos personagens. De
alguma forma, sou contaminado por eles, por todos
esses sentimentos e emoes.
Do ponto de vista tcnico, a percepo aqui
funciona de dois lados: o da produo
esteticamente elaborada de uma pea artstica ou
cultural, que dispensa a presena de um ser
humano para trabalh-la junto aos que a fruem, e
o da vontade destes mesmos em fazer a imerso
nela. O primeiro eixo dessa dualidade, a qualidade
intrnseca da produo (flmica, radiofnica ou
televisiva) usa-se de recursos de edio para
administrar as sensaes daquele que a recebe. A
engenharia das emoes cuida para que uma cena
mais longa, acompanhada de uma trilha sonora
especfica, trabalhando com processos de

identificao entre personagens e pblico


assistente gere criao de vnculos e, com isso,
cative
emoes,
participaes
e
mesmo
transferncias. O que o personagem sente,
mantidas as condies de acoplamento da vivncia
minha dele, eu irei tambm sentir. Isso faz com
que sejamos eventualmente capturados pelo prazer
ou pela dor, pelo lacrimejar, pelo impacto em
situaes que no estvamos necessariamente
esperando sentir. Ou, ento, pode ocorrer o
inverso, a provocao de total desprendimento, de
desvinculao do pblico em cenas ou temas que
seriam teoricamente envolventes ou trgicos, de
forma a se tornarem banais e inconsequentes. Os
processos de edio podem administrar pela
tcnica os nveis de engajamento conforme
procedimentos dramatrgicos mais ou menos
envolventes, independentemente dos temas. Em
sntese, segundo os critrios de edio, da
engenharia das emoes, podemos ser levados a
um envolvimento total com a cena ou a uma frieza
absoluta diante da temtica, seja ela qual for. Esse
lado da comunicao no depende de ns.
parecido com o que Deleuze chama de
automatismo da imagem cinematogrfica, que o
cinema faz acoplar com nosso autmato espiritual,

enquanto seres humanos perceptores. (DELEUZE,


1984, 1990)
Deleuze acredita que o cinema instiga a que
pensamentos se fabriquem em ns enquanto
assistimos a um filme. Quando falamos aqui que
uma engenharia de produo de afetos ou emoes
mobilizada para neutralizar a dramaticidade de
um assassinato, de cenas de tortura ou de estupro,
ou, ao contrrio, para nos fazer chorar diante da
morte de um animal de estimao ou de um velho
canalha, o que est acontecendo a provocao
em laboratrio de sensaes a partir de recursos
psicolgicos de envolvimento, a partir da
manipulao tcnica de imagens. Mas Deleuze
aposta que o cinema faz mais do que isso, que ele
avance
tambm na
produo de
novos
pensamentos, o que, entretanto, mais discutvel,
visto que, para isso, no se trata agora apenas de
um jogo maquinal com supresso e estimulao de
sensaes,
como
pressupe
a
psicologia
comportamental, mas de evocao de algo que
transcende essa mera engenharia tcnica e entra
no campo metafsico das questes existenciais. A
ns nos parece que isso precisa do concurso do
prprio recipiente, como ser exposto a seguir.
Um filme, uma pea de TV, um radioteatro nos

comandam. Ns os seguimos. A comunicao, se


ocorrer, se dar no durante, na nossa exposio ao
tempo de exibio ou apresentao. Podemos,
naturalmente, desistir de acompanhar a narrativa e
sair, desligar o aparelho, abandonar a recepo.
Mas, se ficarmos, estaremos assim mantendo um
voto de confiana naquilo que estamos recebendo
como som, imagem ou cena em movimento.
Queremos ver mais, temos curiosidade, precisamos
saber em que dar tudo isso... a que um
segundo nvel concorre com o primeiro, o da
tecnologia, exposto acima. Se eu assisto a um filme
que mostre cenas fortes, com contedo de alta
violncia ou desespero e no me influencio por
elas, algo foi construdo na edio do filme que me
levou disperso. A cena no foi fiel, os
personagens no convenceram, a estrutura geral
da ambientao foi falsa. Dispersamos.
A empatia entre os dois polos, espectador-fluxo
de imagens (ou sons), ser bem-sucedida se, da
parte daquele que assiste, houve no apenas o
interesse, a vontade, o desejo de receber aquela
narrativa, mas tambm a colaborao (a
aceitao), e isso escapa ao plano de Deleuze. Eu
me deixo envolver pela trama na medida em que
ela convincente, real, simula de forma razovel

as cenas cotidianas da vida. No basta eu ser


capturado pela emoo criada pela engenharia
tcnica das emoes; as telenovelas provocam isso
sem realizar a comunicao. Elas obtm, do grande
pblico, uma participao, um acompanhamento
dos captulos, uma necessidade de seguir, de saber
em que vai dar tudo aquilo. Mas no comunicam...
Nada se altera no cotidiano das pessoas, na sua
organizao de vida, nas suas ideias e
pensamentos. Terminada a telenovela, tudo volta
ao normal. Foi mais um passeio inconsequente.
Uma conexo precisa surgir entre uma produo
construda de forma tecnicamente aprimorada e
uma
expectativa,
conexo
que
interfira
efetivamente na sensibilidade daquele que est
assistindo. O produto tem que mexer de fato com
aquele que o recebe, mas a qualidade da
comunicao est exatamente nos efeitos
possveis, alcanveis dessa conexo, a saber, se
eles foram s aparentemente penetrantes ou se,
de fato, provocaram resultados inovadores; se eles
no s fizeram sentir, mas tambm mexeram com
a cabea, subvertendo padres.
Nas formas comunicacionais de primeiro tipo, a
comunicao acontece na prpria vivncia, no estar
junto atravs de insistncias e persistncias por

parte do elaborador, do incitador, do realizador. Ele


sente e v resultados. Nos outros, e, em alguns
casos, at em si mesmo. Especialmente aqueles
que recebem se sentem diferentes, percebem que
coisas mudaram em seu modo de sentir, viver,
perceber o mundo. Nas formas comunicacionais do
segundo tipo, a comunicao acontece apenas no
lado dos que recebem, em conjunto ou
isoladamente.

uma
experincia
interior
especfica, pessoal, nica, intransfervel.
COMO PESQUISAR A COMUNICAO?
Isso posto, chegamos segunda parte deste
captulo, que interessa mais diretamente
Academia. Como trabalhar os processos de
comunicao ou quase comunicacionais que nos
interessam? Como estudar efetivamente o
fenmeno comunicacional por meio de um
procedimento
especfico,
particular,
no
cumulativo, sem pretenses a generalizaes ou
inferncias?
O trabalho do pesquisador obedece, antes, aos
pressupostos de uma objetividade radical, da
forma como o pensava Husserl, em que a
verdade estaria embutida na prpria experincia
vivida. Isso s possvel se a cincia da

comunicao deixar de ser histria da comunicao


e dos eventos significativos de outros tempos,
deixar de ser sociologia da comunicao, tratando
das repercusses micro e macrossociais de
processos comunicacionais, deixar de ser poltica,
economia, psicologia ou estudo das estruturas
lingusticas ou semiticas da comunicao, em
suma, se Comunicao deixar de ser apenas um
campo de aplicao de outros saberes.
Isso porque a contemporaneidade evidencia um
flagrante paradoxo epistemolgico: enquanto a
comunicao campo emergente que habita todos
os espaos e levanta indagaes e questes
absolutamente atuais, carentes de trabalhos
investigativos
imediatos,
so
os
saberes
constitudos em outros contextos e em outras
pocas, que atendiam a demandas sociais outras,
que se colocam na condio de estud-los. Ora,
preciso virar essa mesa, dotar os estudos
comunicacionais stricto sensu da precedncia que
lhes cabe. A hora de nos dedicarmos aos
fenmenos comunicacionais e sua emergncia
como o grande fenmeno da contemporaneidade
com estatuto de campo prprio e autnomo.
O procedimento investigativo para tanto,
considerando as proposies da primeira parte

deste ensaio, o da utilizao do quase mtodo,


ou metporo, em que o desenvolvimento se faz no
durante, no prprio ato da pesquisa, a saber,
observando-se um fenmeno enquanto est
acontecendo. O fenmeno-sendo-visto o que
condiciona a organizao de nossa experincia; ns
assistimos sua realizao, o capturamos
instantaneamente e sem conceitos, por meio da
intuio sensvel. Fenmenos comunicacionais so
diferentes de outras ocorrncias de massa descritas
atrs. Distinguem-se, por exemplo, da euforia das
torcidas futebolsticas, que entram em verdadeiro
delrio coletivo e se entregam a mais autntica
orgia quando juntas as pessoas vivenciam uma
conquista do campeonato, distinguem-se delas
porque esse evento no um evento
comunicacional, visto que no h a figura de um
agente interessado em comunicar, em envolver o
outro, em conquist-lo, mas apenas uma festa
coletiva e emocionada, soma das expectativas
acumuladas e energias represadas de todos, que
acabam se combinando numa corrente de
vitalidade vibrante. O fenmeno comunicacional
de outra natureza. Para haver comunicao, a
primeira condio a de que haja intencionalidade
explcita ou subentendida de um agente.

Mais ainda: a emoo vivenciada pela massa


durante a realizao de um evento social
importante funciona como fator de unio,
congregao, fuso, em uma palavra, confirmao
de pressupostos j existentes. Seu carter
consolidador, de estreitar laos, de manter unidos,
de cristalizar formas, jamais de pr em xeque,
causar trepidaes, introduzir novas sensaes,
percepes, ideias, tpicas, ao contrrio, dos
fenmenos comunicacionais.
Observa-se o acontecimento enquanto ele est
ocorrendo, o fenmeno no se subordina a um
mtodo predefinido pelo pesquisador, este
simplesmente observa e tenta apreender o sentido
que se constri no ato. O fenmeno doa sentido, o
exprime. No contato imediato com o acontecer da
coisa, obtm-se um conhecimento imediato,
carnal, notico. Vivencia-se a coisa. O sentido ou
a expresso so derivados da prpria produo
realizada pelo acontecimento, sua face espiritual,
noemtica.

Caso 1
O pesquisador quer estudar o processo de
comunicao que se realiza numa igreja
evanglica. Para observar a ao, ele apresenta-se

ao responsvel e passa a frequentar a igreja como


um fiel, igual aos demais. Na convivncia
continuada, ele passa a conhecer de forma mais
intensiva os demais participantes da cerimnia e
perceber suas reaes ante as palavras do pastor.
Ao cabo de algumas semanas, ele j pode se
considerar um membro regular do ofcio. Isso lhe
permitir avaliar as transformaes produzidas pela
palavra do pastor em um ou outro membro da
comunidade de ouvintes. Estar em condies de
constatar que alguns j eram adeptos seita,
outros, ainda no. Esses outros podero ou no
demonstrar transformaes progressivas derivadas
da frequncia regular ao culto. No ser estranho
se ele ouvir da voz do prprio participante, depois
de uma srie de observaes, que sua vida se
transformou a partir do contato com a religio, com
as palavras do pastor, com a audio atenta das
passagens bblicas. Essa virada repentina teve um
momento, um estalo, um golpe que tornou esse
fiel outra pessoa. O pastor em questo o agente
comunicador que por seguidas insistncias busca
convencer os fiis das verdades que est
transmitindo. Sua meta a submisso completa, a
total adeso, a conquista da conscincia atravs de
suas falas, de seu comportamento, de seus

milagres, de todas suas realizaes. O


pesquisador, acompanhando esse desdobramento,
identifica a passagem, a mudana de estado, se
tiver sorte, inclusive a intervenincia do incorpreo,
mudando o atributo de sua conscincia. Toda a
cena litrgica doa sentido, exprime-se nele.
O modelo pode se aplicar tambm em situaes
de ensino, no quando o ministrante repassa uma
tcnica, um aprendizado mecnico, uma regra
lingustica ou matemtica, mas quando suas
aspiraes transcendam o campo fsico e busquem
o metafsico, o choque de ideias, de concepes
estticas ou morais, que no se voltam aplicao
prtica, mas reflexo daqueles que participam da
aula como alunos.

Caso 2
A sociedade entra, de um momento para outro, em
situao de ebulio. Organizam-se passeatas,
protestos, produzem-se palavras de ordem,
msicas, faixas e discusses. Num contexto dessa
natureza, o estudioso da comunicao acompanha
o desenrolar do movimento social consultando
todos os canais possveis: dos grandes meios de
comunicao, passando pelas declaraes dos
polticos e pessoas influentes na opinio pblica,

at as plataformas individuais e grupais de troca


eletrnica (blogs, twitters, facebooks, mensagens
do WhatsApp). Ele prprio participa fisicamente do
movimento e tenta trabalhar a evoluo e seus
desdobramentos possveis, considerando o clima, a
tenso, o medo das pessoas e dele prprio diante
dessas situaes. Tecnicamente, h pelo menos
quatro agentes funcionando juntos. Os lderes
polticos, as lideranas mediticas, as vozes
subterrneas das redes e a vivncia pessoal dos
acontecimentos. Todos colaboram intensamente na
constituio do recheio dessa cena meditica que
envolve toda a populao, o contnuo atmosfrico
dos meios de comunicao. O pesquisador trabalha
com todas ao mesmo tempo, observando o incio
do movimento, seus desdobramentos nos dias
sucessivos e seu esvaziamento. A inteno
apreender at que ponto o movimento como
sujeito altera a mente das pessoas e as faz pensar
diferentemente. Neste caso, distinto do exemplo
citado atrs, das torcidas futebolsticas, h
instigadores do acontecimento, mesmo que este,
posteriormente, adquira vida prpria e se desligue
de seus estimuladores.
O trabalho de pesquisa consta no mapeamento
das mudanas de posio da grande imprensa, do

rdio e da televiso durante esses dias, das


declaraes dos homens pblicos e dos lderes
diversos, o que dar ao pesquisador um quadro
mais ou menos fiel do posicionamento dos
proprietrios das redes clssicas de comunicao e
de seu envolvimento ou no com o status quo
poltico. Essas informaes sero checadas com as
dos meios subterrneos de informao, os agentes
desestabilidadores do contnuo meditico, que so
as redes informais eletrnicas. A comparao entre
um e outro, e entre ambos, e o movimento
vivenciado nas ruas permitir ao pesquisador
visualizar, como um observador, todo o
desenvolvimento do acontecimento. Se ele gerou
ou no comunicao, isso se evidenciar atravs da
mudana de postura dos seus participantes e do
alcance dessa mudana. Ele poder sentir em que
medida o envolvimento das pessoas com o
movimento de rua as fez ver diferentemente a ao
do governo, dos grandes meios de comunicao e o
alcance de seus prprios instrumentos de ao, no
caso, as redes sociais.

Caso 3
Um grupo musical apresenta-se a um pblico. Que
comunicao acontece a? H uma situao

eventualmente
comunicacional
entre
os
executantes e o pblico assistente. H outra
situao potencialmente mais comunicacional entre
os prprios executantes e sua interao recproca
tocando a melodia, entrando em entrelaamento
harmnico, gerando, a partir disso, novas
descobertas. Do ponto de vista comunicacional,
uma audio musical tem poucas chances de
efetivar-se como comunicao stricto sensu. O que
se tem, em geral, so confirmaes emotivas,
passionais, vivenciais, vindas de uma capacidade
que possui a msica de evocar sentimentos
passados, acoplados a situaes anteriores em que
a msica foi ouvida. A msica evoca esse tipo de
memria, lembrana recorrente carregada de
emoes, o que faz reviv-las. Esse tipo de
sentimento confirmador, ele reata com o vivido,
reforando-o, no havendo experincia de ruptura.
Quando se participa de uma audio musical
improvvel
a
ocorrncia
da
comunicao,
principalmente porque o pblico a assiste para se
reencontrar com suas emoes, para reviver
audies antigas, em suma, para estender essas
aes sobre o presente. O tempo de um espetculo
tambm colabora para dificultar as chances de
acontecer a comunicao. O novo, se aparece, no

tem a chance cronolgica de provocar um efeito de


quebra. Por isso, mais provvel que entre os
prprios executantes, quando se trata de um grupo
musical, isso possa ocorrer. Pelo fato de tocarem
juntos, de j se conhecerem e circular intimidade
entre eles, no momento da apresentao, como
refinamento dessa prpria intimidade musical,
pode-se chegar a um novo sentido: as inovaes,
as descobertas, as ousadias tm a capacidade de
provocar a alterao e a proposio de novidades e
verdadeiras
descobertas,
muitas
vezes
desconcertantes.
O pblico que acompanha um determinado
grupo musical poder transformar radicalmente seu
gosto esttico por influncia desse mesmo grupo,
na medida em que este surpreender sua prpria
platia com arranjos ousados, letras incomuns,
performances espetaculares. Cria-se, com isso,
uma cultura especfica desse grupo ou do lder do
grupo, que instituir uma aceitao automtica e
continuada de suas criaes posteriores. Essa
virada, que se d pela quebra do padro anterior e
pela instituio de um novo, corresponde, sem
dvida, a um evento comunicacional significativo,
visto que produziu um novo sentido.

Caso 4
O cinema tem uma grande capacidade de realizar o
acontecimento comunicacional. Ele conta que a
extenso do tempo, a durao da assistncia de
um filme suficiente para gerar, no espectador, um
processo interno de questionamento de posies ou
opinies. Alm do mais, por ser um produto criado
sob a ordem ficcional, ele permite a esse mesmo
espectador uma abertura maior para as
representaes que so mostradas na tela. Junto
com isso se acrescenta o ambiente fechado,
escuro, a fora expressiva do som ou da trilha
sonora, e o fato de ser uma experincia coletiva:
outros esto, da mesma forma que esse
espectador, participando, como num ritual, de um
mesmo espetculo.
Se o filme comunicou ou no, isso j sentido
no prprio comportamento do pblico ao sair. H
plateias que saem felizes, animadas, conversando
de forma entusiasmada, rindo ou lembrando de
cenas alegres. Em So Paulo, aps a exibio de
Tropa de elite [Jos Padilha, 2007], pessoas se
levantavam e aplaudiam de p. No se pode dizer
que ocorreu a comunicao; o que se teve, de fato,
foi uma confirmao e um reforo de uma postura
de manuteno de certo princpio, de certas aes,

em
suma,
de
certa
viso
da
relao
polcia/criminoso (a ao implacvel contra os
bandidos). O filme foi um reforo disso tudo.
Da mesma forma, a provocao do choque, do
impacto nervoso, da tenso, colaboram para
manter a plateia magnetizada,
Ao decorrer do filme aprendi uma coisa: As reaes
fsicas de um corpo em angstia so intensas.
Quando senti na pele a ansiedade que o filme
provoca, percebi o quanto so interessantes as
reaes corporais intensas e involuntrias e como
s percebemos que elas agiram sobre ns quando
elas cessam. Ao final do filme, encontrei-me
ofegante, e pior, no me lembro em nenhum
momento de ter prendido a respirao. Acredito que
entrei em uma espcie de transe, de maneira que
fiquei hipnotizado pelas cenas. Pois, ao mesmo
tempo em que elas eram chocantes e intensas,
eram tambm esteticamente muito belas. H uma
cena que ilustra de maneira sublime a exteriorizao
da tenso no corpo humano. Closes em mos
trmulas, olhos arregalados, pescoos que se
movem por causa de respiraes intensas, foram as
imagens utilizadas. A ponto de eu ter percebido em
mim a manifestao de parte dessas mesmas
reaes. Era como se eu tivesse obedecido, passo a
passo, uma ordem externa de um sentir o que me
foi mandado. (SILVA JR., 2012)

s vezes a prpria narrativa cinematogrfica


apresenta um fenmeno comunicacional quando o
personagem, em contato com outro, vai se
alterando e refazendo suas posies. o caso do

Meu jantar com Andr (Louis Malle, 1981), em que


o diretor transforma um espetculo de cinema em
um dilogo, que provoca, pouco a pouco, a
abertura da cabea do protagonista. Wally, em
verdade, no estava muito animado com o
encontro com Andr, achava mesmo que seria
enfadonho e pensava em criar tcnicas para tornlo pelo menos um pouco interessante. Contudo,
Andr que assume o dilogo e suas narrativas so
cada vez mais interessantes, de forma que
capturam o interesse, o envolvimento e mesmo a
reflexo de Wally, que, aps o jantar, pode-se
dizer, ficou incomodado e comeou a pensar...

Casos 5 e outros
O YouTube goza de prestgio similar ao do cinema.
No se trata de mensagem manipulada, como
ocorre com frequncia na TV, mas de escolha
pessoal. Da mesma forma, no h as imposies
da censura, na maneira como a conhecemos nos
meios tradicionais de comunicao. um mundo
ainda relativamente livre e aberto, gozando por
isso de ampla aceitao popular. Pessoas assistem
vdeos, acompanham sries, vo atrs de certas
modas e as abandonam com a mesma rapidez com
que a elas aderem.

o caso do fenmeno Irmos Green e sua


comunidade de seguidores. As pessoas que
acompanham essa srie de vdeos buscam
participar efetivamente das realizaes da dupla:
alm do trivial, que o fato de repetirem em suas
casas as receitas, tomarem juntos os mesmos
sucos produzidos, participam interativamente das
cerimnias. Quando Hank completou 30 anos, John
pediu s pessoas da comunidade que plantassem
rvores e mandassem fotos e vdeos das mesmas.
Nas primeiras reaes, j se tinha notcia de que
mais de 10 mil rvores haviam sido plantadas em
todo o mundo. No caso, as proposies da srie
conduziram pessoas ao. No tivessem
assistido, possivelmente as rvores no teriam sido
plantadas. Se, a partir disso, sero mais cuidadosas
com a questo ecolgica, no se sabe; contudo, os
atos no revelam apenas adeso cega a uma
ordem, mas uma deciso racional, que no entra
em conflito com a conscincia.
s vezes, uma visita a um museu funciona como
um choque, uma verdadeira imerso num
ambiente, cuja inteno, da instituio, declarada
ou no, a de despertar sensibilidades. A
comunicao menos evidente na visita a obras
clssicas, de amplo conhecimento, em que o

visitante aparece para rever, confirmar e consolidar


impresses j tidas ou sabidas por outras fontes. A
imprensa cultural cunhou o termo conferir,
quando se trata, de fato, de ver, participar, sentir
as obras. Conferir, ao contrrio, carrega um sentido
fortemente conservador e clssico na visita ao
museu ou galeria.
Um exposio, uma bienal, no esto l para
serem conferidas, mas para evocarem emoes
outras. H o espao da inovao, da provocao,
do fino trabalho de provocar trepidaes no
conceito convencional esttico e conservador da
arte.
Algumas
exposies,
instalaes,
experimentaes so ali dispostas exatamente
para despertar o visitante para outras estticas,
outras apreenses de mundo, outros olhares. E,
nesse caso, quebram expectativas.
Assim como a arte e o filme, o livro tem tambm
a alta capacidade de quebrar expectativas e de
alterar posies assumidas. O livro uma espcie
de dilogo em que o leitor apenas ouve e o redator
ou escritor tem tempo, espao e circunstncia para
expor longamente sua viso de mundo. Ele se
contrape a um hbito contemporneo de no
ouvir o outro ou ouvi-lo de forma fragmentria e
rudimentar. Tambm os debates em pequenas

rodas, se submetidos a regras de exposio de


argumentos e de permanncia dentro do tema, tm
demonstrado capacidade comunicativa, na medida
em que fazem com que cada um se sinta
provocado a expor suas ideias, ao mesmo tempo
em que levado a ouvir o outro. No so raros os
casos em que o evento comunicacional estudado
fique em plano inferior e no debate com os demais
construam-se
novas
posies,
exatamente
derivadas do entrechoque de opinies. No caso, o
evento comunicacional originrio vai para segundo
plano e se cria um novo momento comunicacional,
mais rico e animado, que leva a reposicionamentos
e mudanas de opinio.
REFERNCIA
BATAILLE, Georges. A experincia interior. Traduo de Celso Libnio
Coutinho, Magali Montagn e Antonio Ceschin. So Paulo: Editora
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DELEUZE, Gilles. A Imagem-Tempo. So Paulo: Brasiliense, 2007.
DELEUZE, Gilles [1984]. 67 - 30/10/1984 - 4 - La voix de Gilles
Deleuze. Disponvel em: <www2.univ-paris8.fr/deleuze/article.php3?
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HUSSERL, Edmond. Logische Untersuchungen II, I. Halle: [s.n.],
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SILVA JR., Valdir da. Pesquisa sobre os efeitos do filme O Anticristo,
de Lars Von Trier. Festival Metaprico, edio 2012. Arquivos do
FiloCom, ECA-USP, 2012.

BENJAMIM PICADO

Entre os dispositivos de
interao, as simulaes do
comum e o sedimento afetivo da
sociabilidade: paradigmas
crticos de uma discursividade
esttica nas teorias da
Comunicao[1]
H duas maneiras principais de acessarmos a
importncia e a oportunidade com a qual se
entrecruzam as referncias tericas do campo da
pesquisa
sobre
fenmenos
e
processos
comunicacionais e os registros conceituais e
heursticos da disciplina filosfica chamada de
esttica: no primeiro deles, de espectro crtico
mais amplo e historicamente mais remoto em suas
origens, reflete-se sobre a crescente presena dos
elementos da mediao cultural proporcionada

pelos modernos meios de comunicao, por sua vez


tomados em sua presumida dimenso de
veiculao de determinados valores prprios a uma
experincia cultural caracterstica da modernidade;
o corolrio desta interrogao se define por uma
disputa acerca da dimenso possivelmente mais
nobre das variedades simblicas, lingusticas (e,
em ltima instncia, artsticas) de uma cultura
constituda pela presena desses meios no tecido
histrico da contemporaneidade.
Em uma outra perspectiva desse debate, uma
que mais modesta e domstica, avaliamos
como que um determinado pensamento
comunicacional vem organizando por vezes at
de maneira involuntria uma caracterizao dos
sedimentos conceituais e heursticos de nossas
prticas de pesquisa: nesse outro extremo do arco
dos discursos em nosso campo de estudos, h uma
inflexo crtica um pouco distinta sobre as supostas
confluncias entre a esttica e as teorias da
Comunicao. Assim sendo, poderamos explorar as
diversas vozes atravs das quais o debate
epistemolgico conduzido em nosso campo parece
manifestar essa importncia atribuda aos regimes
experienciais correlatos aos produtos e processos
de nosso universo de interesse em especial,

naquilo que implica uma avaliao crtica a certos


de seus pressupostos, por demais tementes aos
vocabulrios clssicos das ciencias sociais.
Esses dois percursos de formulao inspiram a
problematizao que buscamos fazer aqui sobre
certas discursividades tericas, por sua vez
originrias dos esforos em aproximar as teorias
estticas e a pesquisa em Comunicao, no
decorrer dos ltimos anos. No primeiro deles,
caracterizamos a histria mais remota dos enlaces
mais genricos entre esttica e mediatizao, no
modo como certas tradies fundadoras do discurso
de nosso campo os fixaram: identificamos a a
centralidade de toda uma axiologia crtica,
constituda em torno do eixo fornecido pela
problematizao da racionalidade tcnica e
instrumental, enquanto elemento articulador da
experincia societria e histrica da modernidade
sobretudo naqueles aspectos que provocam os
posicionamentos mais caractersticos das cincias
sociais, no decorrer do sculo passado. Sendo este
um aspecto originrio do pensamento sociolgico
do sculo XX, ele perpassa as discusses praticadas
em nosso campo sobre as correlaes que se
estabeleceram entre os produtos mediticos e os
sistemas de valores culturais que configuravam a

tradio das artes.


Do outro lado desse espectro, avaliamos o modo
como certos debates mais prprios ao nosso
contexto mais restrito da reflexo epistemolgica
da pesquisa em Comunicao valoriza certas
dimenses da comunicao atinentes ao esttico,
mas ainda sem deixar de reforar esta herana que
as
teorias
da
Comunicao
receberam,
genericamente falando, do vocabulrio crtico das
cincias sociais nos ltimos dois sculos: neste
ltimo aspecto, examinaremos o modo como certas
categorias comunicacionais (em especial, a da
interao e a da recepo) so frequentemente
lidas, em nosso campo de estudos, a partir de sua
caracterizao enquanto fenmeno matricial dos
processos intersubjetivos da socializao, o que
favorece sua rentabilidade heurstica, a partir dos
quadros descritivos da Sociologia, da Antropologia
e da Psicologia social. Na predileo pelos marcos
conceituais desses campos de estudo, as intuies
sobre uma dimenso esttica dos processos
comunicacionais ficam condicionadas a uma
mediao epistemolgica das questes da
sensibilidade e dos afetos pelo seu aspecto de
vetor sensvel de interaes sociais, o que
veremos que compromete, em ltima instncia,

uma melhor definio daquilo que h de mais


genuinamente atinente a uma questo esttica em
nossos objetos de exame mais frequentes.
Na estrutura argumentativa deste captulo, essas
duas chaves da compreenso delineam duas
grandes ordens de discurso para nosso interesse
sobre como se entrelaam os saberes estticos em
nosso campo de estudos: no primeiro caso,
propomos uma espcie de genealogia crtica da
esttica da Comunicao, atravs dos autores mais
frequentemente restitudos s matrizes mais
remotas dessa discursividade nas teorias da
Comunicao (nesse contexto, emergem as
referncias ao pensamento de Frankfurt, mas
tambm os marcos mais recentes de uma
valorizao das materialidades e da dimenso
constitutiva das extenses tcnicas, sobretudo a
partir dos escritos de McLuhan). No momento
seguinte, apreciamos trs grandes eixos do debate
epistemolgico em nosso universo mais restrito da
pesquisa em comunicao, atravs dos debates em
torno do estatuto preciso de nossos objetos de
estudos (no modo como essa fala se desenvolveu
entre certos escritos de Jos Luiz Braga e Ciro
Marcondes Filho) e, finalmente, no modo como o
problema da gesto meditica das paixes e da

sensibilidade
assume
um
aspecto
momentaneamente central da reflexo de Muniz
Sodr
sobre
as
estratgias
sensveis,
caractersticas de uma cultura pautada pelos
fenmenos da mediatizao.
Ao correlacionarmos esttica e comunicao,
seja em percursos de interrogao terica e
epistemolgica ou no contexto mais prtico do
ensino
de
disciplinas
como
Esttica
da
Comunicao ou Esttica da Cultura de Massa ou
Comunicao e Experincia Esttica (presentes na
estrutura curricular de boa parte dos cursos de
graduao
em
Comunicao
no
Brasil),
encontramos a implicao de um repositrio de
vocabulrios e conceitos sem contar uma inteira
historicidade de discursos tericos na qual se
relacionam as questes estticas, os fenmenos e
processos comunicacionais e discursividades crticas
prprias do discurso filosfico da modernidade.
evidentemente necessrio, entretanto, que se
esclarea um pouco mais o entendimento
tacitamente partilhado entre os praticantes desse
gnero de interrogaes tericas sobre o
significado mesmo da correlao entre tais
domnios (muito especialmente aqueles que pem
em jogo uma orientao esttica para a pesquisa

em Comunicao). Sem considerarmos as diversas


variantes
dos
discursos
que
articularam
historicamente a comunicao mediatizada e a
experincia esttica, reconhecemos na base de
suas tpicas mais recorrentes a noo de que os
meios de comunicao (especialmente os casos da
imprensa e da fotografia, e posteriormente o rdio,
o cinema e a televiso) constituiriam um fator de
tal ordem original na sua emergncia histrica que
a discusso sobre seus aspectos de eficcia
simblica e de alcance social suscitava que se
construsse para esses fenmenos uma modalidade
de aproximao terica e axiolgica de novo tipo.
Pois em um tal contexto intelectual que se
pode avaliar, entre tantos outros aspectos, aquela
cifra privilegiada da crtica cultural dos meios de
comunicao desenvolvidas a partir da segunda
metade do Novecento (manifestas em um linguajar
caracteristicamente histrico e sociolgico), como
aspecto fundamental das prticas heursticas das
teorias da Comunicao. Essa discursividade crtica
(que implica um acento presumidamente esttico
das teorias da Comunicao) se constitui
originariamente sobre uma duplicidade de posies
tericas nas cincias sociais da primeira metade do
sculo XX: de um lado, na rejeio das conexes

entre arte, tcnica e racionalidade instrumental (na


letra da filosofia social de Frankfurt, especialmente
com Adorno, mas tambm por certas questes da
fase tardia da filosofia de Heidegger); do outro
lado desse espectro, vemos um anncio adventcio
das modalidades experienciais, a partir de um
enfrentamento no traumtico dessa mesma
predominncia das engenharias tcnicas na
contemporaneidade (o caso exemplar aqui o do
ensasmo de Benjamin sobre os signos mais
patentes de uma experincia histrica da
modernidade).
Mais precisamente, a questo da tcnica que
inflete decisivamente esses discursos crticos sobre
a modernidade, naquilo em que tentam pr em
cena as relaes (quase necessariamente
conflitantes) entre o universo dos modernos meios
de comunicao de massa e a ordem cultural
precedente, esta ltima justificada aqui em termos
variados: seja como uma relao livre com a
natureza do mito e com seus modos prprios de
concatenao, em Adorno e Horkheimer, ou ainda
como a manifestao da unicidade do objeto
esttico como sintoma de sua relao com as
formas da transmisso dos contedos da tradico
cultural, em Benjamin, ou, finalmente, como a

identificao dos movimentos originrios da


constituio do ser, baseados em um princpio
potico que constitui uma tecnicidade como forma
originria do aparecer, em Heidegger.
Nesses termos, pensar a Comunicao e o
conjunto de seus dispositivos e produtos implicaria
no reconhecimento de uma modalidade da
sensibilidade gestada, por assim dizer, nos modos
prprios da tcnica: ora, se essa mesma questo
sobre a predominncia da instrumentalidade
assumiu uma posio central, nas correlaes entre
a definio do objeto da comunicao e sua
localizao no contexto histrico da modernidade,
porque a se visa a um novo padro experiencial
(cultural e histrico) que assume, por sua vez, a
centralidade da tcnica enquanto seu carter
definidor. No obstante a aparente distncia entre
Adorno e Benjamin, por exemplo, sobrevive em
todas essas proposies a identificao de um
ncleo esttico desse novo quadro experiencial: ele
se identifica especialmente com um certo estatuto
da artisticidade que originaria o modo de
qualificar a experincia cultural, como um todo.
Assim sendo, em face deste carter
artisticamente derivado dos fenmenos estticos
que poderamos examinar como variam esses

sinais da reflexo sobre a presena da


racionalidade tcnica, no domnio da cultura. Mais
adiante ainda, veremos como que se pode
relativizar essa implicao algo imediata entre
tcnica, esttica e artisticidade.
Primeiramente evocado a partir da constatao
de uma predominncia dos padres mediticos e
massivos na circulao de bens culturais na
contemporaneidade (implicados a os aspectos de
estratgias discursivas associadas vigncia
simblica destes produtos), este vis de anlise
que privilegia um carter esttico de todas essas
interrogaes se define por um aspecto de
discriminao valorativa desse estado de coisas,
sobretudo em face da necessidade de estipular
para o universo da cultura dos modernos meios de
comunicao um lugar que no os deixasse
imiscudos com os objetos da tradio artstica, por
exemplo. Numa boa medida, poderamos dizer que
este acento mais estetizante das teorias da
Comunicao parece mais delineado pelos sistemas
de valores que definem o argumento que, na
tradio
frankfurtiana,
nasce
dos
escritos
benjaminianos e respinga em certas formulaces
tardias de Marcuse, por exemplo: a propsito,
quando nos defrontamos mais tarde com a franca

comodidade na qual os escritos de McLuhan tecem


a inevitvel correlao entre o reino da cultura e o
universo das extenses tcnicas que a
constituem, parece-nos anunciado o cenrio no
qual a interrogao esttica sobre a Comunicao
pode ser finalmente demarcada, com a
singularidade que lhe ser devida, da por diante.
Dessa forma, o vis esttico que passou a
predominar nos estudos comunicacionais se
confundiu
frequentemente
com
certas
consideraes sobre o reino das tecnologias e seu
papel na constituio de um tecido cultural, no
apenas do ponto de vista de sua estrita
materialidade (termo da moda nos dias que
correm), mas tambm na dos valores associados a
essa centralidade valorativa das extenses tcnicas
(especialmente no modo como elas reestruturam a
prpria significao que atribumos experincia
cultural, em seu todo). Se alguma lio pode ser
extrada de todo esse percurso (que nasce das
reservas frankfurtianas at o alegre profetismo
mcluhaniano) a de que nossa cultura mesmo
atravessada
por
uma
predominncia
da
instrumentalidade tcnica, associada no apenas
aos modos de fazer, mas tambm, e sobretudo,
como fenmeno ligado aos regimes do ser e do

aparecer.
Entretanto, esse elogio implcito da tcnica pode
nos conduzir a equvocos de apreenso quanto ao
real lugar de um tal matiz esttico no interior do
composto discursivo das teorias da Comunicao: o
fato de que a pertinncia desses meios na
contemporaneidade se restitua a uma linhagem
das extenses tecnolgicas no significa que a
interrogao
esttica
sobre
questes
comunicacionais devesse ficar necessariamente
rendida numa mera contemplao dessas relaes
entre os meios de comunicao e sua constituio
enquanto dispositivo meditico. Em suma, o
destaque feito sobre os aspectos tecnologicamente
determinados
da
experincia
cultural
contempornea

uma
vez
que
sejam
frequentemente
afirmados
como
elementos
definidores daquilo que mais central s pesquisas
em
comunicao

no
constituem
necessariamente o umbral mnimo e intransponvel
da orientao esttica que se possa imprimir ao
exame
dos
processos
e
fenmenos
comunicacionais. Para sermos mais claros, a
contribuio de uma discursividade esttica no
campo da comunicao, pode-se dizer, foi
constituda historicamente na base de um problema

que era apenas parcialmente coligado s matrizes


originrias de uma reflexo esttica.
No o caso de entrarmos em maiores detalhes
sobre as questes que nos motivam a restituio
de toda essa forte linhagem de discursos tericos
que ainda tem enorme presena no debate (ainda
que num plano mais pedaggico do que
propriamente heurstico): a necessidade de
conferirmos um eixo em torno do qual se possam
discriminar as qualidades mais prprias dos
fenmenos com os quais nos confrontamos sempre
nos conduziu a esta estranha predileo pelas
materialidades, pelos dispositivos e pelos
processos de mediatizao, como se nesses casos
se exprimisse uma dimenso central dos
fenmenos societrios e culturais, na medida em
que fossem axiologicamente inacessveis s
disciplinas mais tradicionais das humanidades e das
ciencias sociais. De nossa parte, basta constatar
que o recurso inicial a uma certa perspectiva
esttica dos estudos comunicacionais pareceu
marcada pela suposio de que essa direo da
pesquisa permitiria incluir ao debate os objetos de
nosso interesse, a partir de uma certa valorizao
dos mesmos que seria organizada em torno das
caractersticas mais intrnsecas dos objetos e

produtos desse universo.


Ora, esse um aspecto que, nascido das
reservas crticas contra a predominncia da
racionalidade instrumental no campo da cultura,
ainda encontra um forte eco em uma boa poro
dos discursos de nosso campo que reclamaram o
vis esttico como definido pela construo de
axiologias aplicveis ao exame de obras ou
gneros artsticos da cultura contempornea. De
nosso ponto de vista, esse esforo absolutamente
legtimo, no que respeita sua dimenso de
enquadramento crtico dos objetos de estudo aos
quais nos dedicamos; mas no constitui, por isso
mesmo, um problema de natureza rigorsamente
esttica, sendo este o ponto que nos parece digno
de interrogao. Tratar uma dimenso estetica da
Comunicao a partir da suposio de que esta
tenha origem em caractersticas imanentes dos
objetos comunicacionais (de ordem lingustica,
sonora, plstica ou semissica) constitui um
equvoco ao qual frequentemente estamos
submetidos, no dilogo em torno de certos
problemas centrais de nosso campo de estudos.
No lugar de um sistema de valores, acessrio
aos juzos crticos sobre produtos mediticos,
tomado como parti pris esttico, devemos nos

restituir questo sobre como se manifesta nestes


a juno entre sua significao e seu sentido
propriamente estetico. Ao avaliarmos a estrutura
semisosicamente constituda desses produtos (no
apenas por programas de efeito, mas tambm
em sistemas semnticos ou textuais), devemos
coloc-las em correlaco com a dimenso do
vnculo perceptivo e afetivo, que igualmente
originrio de sua manifestao expressiva.
necessrio, portanto, destituir de uma possvel
esttica da comunicao as relaes histricas que
nosso campo de pesquisas manteve com o carter
judicativo do exerccio de anlise e da crtica do
universo cultural contemporneo: em seu lugar,
devemos introduzir, neste contexto da reflexo
sobre uma cultura meditica, os fundamentos
afetivos e sensacionais sobre o qual se constri o
sentido social e intersubjetivamente partilhado dos
juzos do gosto que correspondente a cada uma
dessas manifestaes.
Por outro lado, no que diz respeito ao problema
dos padres de mediatizao (que carcaterizam
para tantos de ns o modo como a comunicao
assumiu um lugar mais proeminente na tessitura
dos regimes da sociabilidade contempornea), o
exame de uma dimenso esttica desses

fenmenos nos requer o distanciamento com


respeito ao signo no qual esta relao entre
comunicao e sociabilidade tem sido constru.
Nesses termos, consideradas as formas nas quais a
apario sensvel da sociabilidade mediada pela
lgica dos dispositivos tcnico-mediticos, o lugar
de uma abordagem esttica da comunicao no
inteiramente assimilado a este registro quimrico
das estratgias sensveis da mediatizao do
historico, do social e do poltico. Ao considerarmos,
enfim, que os processos mediticos carregam em si
uma dimenso atinente s abordagens estticas de
anlise, no podemos confundir essa dimenso da
mediatizao com um fenmeno de origem
potica: com isto, queremos dizer que seu
fundamento no se encontra na ordem das
estratgias produtivas que caracterizam sua
gnese concreta, mas sim no carter relacional que
fornece as bases de qualquer poiesis que se queira.
Ora, esse aspecto fundante da eficcia com a
qual uma potica se programa, nas obras em que
se encarna, precisamente o fenmeno esttico
que nos interessa e que destacamos para a
ateno de uma teoria da Comunicao. Ou seja,
se a dimenso esttica no estritamente
derivada da ordem produtiva dos sentidos da

mediatizao, ento essa dimenso deve ser


examinada em seu carter necessariamente
interacional, aquele no qual as competncias e
faculdades espectatoriais esto jogadas em cena,
desde o incio do processo, aquele no qual essas
faculdades sero definidas tambm em sua
dimenso de fatos de comunicao. Em tais
condies, uma esttica da comunicao no
concerne apenas aos produtos da mediatizao,
mas tambm aos processos em que se joga com a
competncia
presumida
de
sujeitos
da
sensibilidade e dos afetos.
Curiosamente, o campo da Comunicao no
Brasil tem refletido algumas destas questes, no
modo como pareceu insistir em escapar a certos
predicamentos sociolgicos da formulao de
nossos objetos de estudos, numa perspectiva mais
ampla: o debate espistemolgico que atravessa
constantemente certos discursos da pesquisa sobre
a Comunicao parece exibir, de uma maneira
quase involuntria, as vantagens (mas tambm
muitos dos problemas) resultantes da adoo de
uma perspectiva de construo de questes
tericas e analticas que valorizem a centralidade
dos processos interacionais e da instncia da
recepo indicando uma maior proximidade com

uma espcie de paradigma esttico das teorias da


Comunicao. Pois bem, atravs desse caminho
mais domstico das disputas intelectuais em
nosso campo de estudos que pretendemos restituir
certas questes que constituem uma discursividade
esttica na reflexo sobre meios e processos
comunicacionais, assim como a paradoxal
sobrevivncia
nesses
mesmos
discursos
contemporneos dos sistemas conceituais e
axiolgicos que articularam a existncia e a
legitimidade desses objetos ao universo da tradio
cultural.
Em alguns de seus escritos mais recentes, Muniz
Sodr tem explorado essa possvel dimenso
esttica dos fenmenos culturais associados ao
universo da Comunicao em uma perspectiva que
se descortina como uma outra forma de enxergar
essa centralidade da mediatizao: por exemplo,
quando percorremos a linha argumentativa de As
estratgias sensveis (SODR, 2006), ficamos com
a promissora e inicial impresso de que finalmente
as questes mais importantes de nosso campo de
estudos (em seus aspectos simultanemente
antropolgico, histrico e poltico) recebero
aquele selo de problema atinente s cincias
sociais, mas formuladas a partir desta dimenso

em que suas variveis sensoriais e afetivas so


colocadas mais ao centro das formulaes.
Quando recupera este valor prprio das
situaes enunciativas em que o sentido
constitutivo de alteridade define a prpria interao
lingustica (instaurando questes como: quem
este outro com que falo?), Sodr recupera um
sentido particular da noo de estratgia para
definir o lugar preciso da sensibilidade nos
processos interacionais. Separada de suas
conotaes
propriamente
instrumentais,
a
estratgia aqui se manifesta como elemento de
uma dinmica intersubjetiva pela qual essa
diferena constitutiva da conversao e da
comunicao se define como um processo de ajuste
e de aproximao s condies necessrias para o
prolongamento dinmico dessa interao. Definidas
por seu carter hipoteticamente mais espontneo,
essas estratgias sensveis constituiriam um dos
ncleos menos tematizados dos processos
comunciacionais.
particularmente visvel a urgncia de uma outra
posio interpretativa para o campo da comunicao,
capaz de liberar o agir comunicacional das
concepes que o limitam ao nvel da interao entre
foras puramente mecnicas e de abarcar a
diversidade da natureza das trocas, em que se
fazem presentes os signos representativos ou

intelectuais, mas principalmente os poderosos


dispositivos do afeto. Nos fenmenos da simpatia, da
antipatia, do amor, das emoes, mas igualmente
nas relaes em que os ndices predominam sobre os
signos com valor semntico, algo passa, transmitese, comunica-se, sem que nem sempre se saiba
muito bem do que se trata. (SODR, 2006, p. 1213)

No deixa de ser curioso que esse aspecto de


um posicionamento sobre a epistemologia da
Comunicao parea tambm se refletir em outras
vertentes dessas teorias, nesse contexto mais
domstico.
Partindo
de
plataformas
consideravelmente distintas do pensamento
comunicacional, as ideias sobre um universo das
estratgias sensveis se assemelham um tanto com
certas posies de Ciro Marcondes Filho;
especialmente quando se trata da identificao da
centralidade da interao, enquanto fenmeno
comunicacional de preferncia, os dois autores
parecem ressoar uma mesma preocupao,
especialmente no que respeita o necessrio
deslocamento
que
essa
valorizao
das
condicionanetes
mais
pragmticas
da
comunicao impe a certas demarcaes
epistemolgicas e heursticas de nosso campo de
pesquisa. No lugar do exame dos produtos
comunicacionais, busca-se valorizar os processos

intersubjetivos no apenas instaurados ou


vetorializados pelos mesmos, mas precisamente
como instncias constitutivas da eficcia mesma
dos processos mais cannicos da comunicao
mediatizada.
Esse encontro de perspectivas tericas nos
interessa pelo modo como nele relativamente
fcil presumir que a definio da comunicao seja
aqui partilhada como constituindo uma interao,
pela qual surge algo verdadeiramente novo
(MARCONDES FILHO, 2011, p. 171): ao mesmo
tempo em que isso parece disparar a possibilidade
de uma concepo sociologicamente menos
ortodoxa do objeto de nossos estudos, ainda assim
ela nos restitui a uma incompreenso final do
registro mesmo dessa novidade sobre a qual se
instaura a comunicao, enquanto assunto de
pesquisa.
H de se reconhecer especialmente no mrito
da crtica de Marcondes Filho aos maus costumes
epistemolgicos da pesquisa em nosso campo o
fato de que esse registro de seu discurso tem o
propsito expresso de produzir um radical
deslocamento do modo costumeiro pelo qual
fixamos a dependncia da comunicao com
respeito prescindncia de uma ordem social que

estabelece, por razes diversas (lingusticas,


polticas, histricas ou que tais), aquilo que pode
ser comunicado. Assim sendo, o valor mais
genrico de suas ideias corresponde a esta
assuno pela qual aquilo que pode ser
socialmente institudo pela comunicao no
deveria, em uma medida muito importante, ser o
objeto de nossa ateno pois a comunicao
propriamente dita estaria, rigorosamente falando,
em outro lugar (ou, quem sabe, at antes de tudo
isto). Nos termos dessa deflao de uma dimenso
de pertinncia semntica da comunicao,
possvel estabelecer, ao menos na partida desses
dois pensamentos, uma igual valorizao dos
elementos da interao que antecedem aquilo que
tardicionalemente identificamos como prprio aos
contedos dos processos comunicacionais.
Pressente-se a inspirao de uma dimenso
esttica em argumentos desta espcie no modo
como se valoriza aqui a centralidade do impacto
momentneo que caracteriza um certo modo de
pensar os efeitos da comunicao, em contextos
interacionais: pois, em certas vertentes de uma
esttica da comunicao, a introduo desta
categoria dos efeitos ou da resposta (central
em certas teorias estticas) aquilo que

dimensiona a nuclearidade dos afetos e da


sensibilidade,
como
elementos
de
uma
comunicabilidade incoativa da prpria recepo
sensvel. Ao nos restituir a uma certa srie de
pensamentos acerca das qualidades prprias dos
processos interacionais, Marcondes Filho identifica
nas ideias de Martin Buber e Emmanuel Lvinas
uma interessante fonte para um deslocamento a
ser feito sobre o real momento da comunicao,
para alm daquilo que resulta do encontro agnico
entre duas foras subjetivas: nesses termos, a
comunicao que nasce de uma interao
precisaria ser explanada por aquilo que d sentido
radicalmente relacional a este encontro.
Num encontro entre duas pessoas, assim, no h
exatamente um processo de recepo, de um, da
fala do outro. H a interpenetrao de dois seres,
um, nada querendo saber do outro, ou seja, no se
colocando, no encontro, nenhum fundamento
gnosiolgico: eu no me encontro com o outro para
saber nada, eu me encontro para participar de uma
relao fundamental didica, sntese de evento e
eternidade, em que sou introduzido na existncia do
outro a partir da relao, da linguagem, da cena
[...]. A comunicao como dilogo foi incorporada
por Lvinas, que a ela atribui adicionalmente um
compromisso tico, que no nos interessa por ora,
mas apenas o fato de ele expandir a relao
dialgica,
enquanto momento comunicacional,
elevando o outro a uma importncia excepcional:
ele que permite a comunicao, pois eu, abrindo-me

a ele, esvaziando meu ego autossuficiente, o insiro


em
meu
contexto,
transformando-me.
(MARCONDES FILHO, 2012, p. 3)

Um mrito igualmente importante do argumento


de Muniz Sodr, por seu turno, o de que essa
dimenso sensvel da comunicao que perpassa
seu argumento no se define (como na
discursividade esttica que se desenvolveu
historicamente entre ns) a partir de quaisquer
diagnsticos acerca das relaes entre o
predomnio social da mediatizao e os critrios da
artisticidade reclamados para certos de seus
produtos: razo pela qual o lugar de uma
interrogao esttica sobre a comunicao passa a
se situar no mbito dos processos interacionais e
no como suposta inscrio de valor a obras
manifestas (que comporiam apenas uma parte do
fenmeno, precisamente como mediadores ou
vetores da interao); situadas numa certa
condio de transcendncia com respeito
normatividade do ordenamento simblico ou
lingustico, a interao prpria comunicao se
definiria primordialmente por esta potncia
emancipatria (mas, sobretudo, existencialmente
vinculante) do sensvel e do afetivo, razo mesma
pela qual uma esttica da comunicao definiria
seu objeto.

Explorando com erudio admirvel todas as


nuances
filosificamente
interessantes
dessa
valorizao de uma dimenso esttica da
comunicao, Muniz Sodr nos conduz a todo esse
outro endereo terico de problematizaes, em
que o esttico e o comunicacional se definem no
carter constitutivo da experincia da compreenso
e na reflexividade definidora da experincia
esttica: em especial, nos interessa essa
construo discursiva que, desde a terceira Crtica
de Kant, vinculou o juzo de gosto (e sua
capacidade
de
representar
os
estados
momentneos da sensibilidade) ao sentido da
partilha comunicacional dos afetos que eles
implicitam, at alcanarmos as formulaes mais
recentes das estticas da recepo, em Jauss, na
valorizao do sentimento catrtico, definido como
aquele no qual a sensibilidade esttica se encontra
mais patemicamente empenhada na relao com o
destino alheio. Nessas linhagens de uma
dsicursividade esttica, a comunicabilidade se
define como condio de possibilidade de uma vida
sensvel, na medida em que, mesmo originadas de
um sentimento subjetivo do prazer ou do
desprazer, apenas adquirem seus contornos
fenomnicos quando aspiram universalidade,

prpria estrutura judicativa do gosto.


Sem confundir esse ltimo aspecto com o papel
possivelmente pedaggico do exerccio crtico do
juzo sobre as artes, Sodr recupera dessa
comunicabilidade do sentimento esttico aquele
aspecto pelo qual ela define nossa prpria condio
existencial face ao mundo, atravs de nossas
disposies passionais: ao valorizar esta juno
entre o juzo e o pathos, ele recobra uma linha
discursiva da filosofia pragmatista que, nascendo
na teoria das paixes de Hume e chegando
pragmtica de Parret, se descortina como uma
possvel esttica da comunicao. Nesse contexto,
o fundamento normativo de nossa orientao por
crenas no poderia ser completamente afastado
de um sentimento (pelo qual apreendemos a
fora instituinte de uma certeza socialmente
firmada), tampouco da ideia de que esse pathos se
exprime necessariamente na forma de um juzo.
Neste aspecto, Parret chama a ateno para a
funo quase judicativa da paixo: As razes da
paixo so valores e a paixo sempre regulamente
os estados de coisas, que so objetos de valorao.
No que concerne osmose da episteme e do
pathos, Hume atribui s crenas o poder de competir
com as impresses, conferindo-lhes uma influncia
anloga sobre as paixes. Basta que as crenas se
igualem em fora e vivacidade s impresses para

que tenham este mesmo poder: a simples


concepo vigorosa e intensa de uma idia j
suficiente. Mas o inverso tambm verdadeiro.
Hume escreve que se a crena quase
absolutamente necessria para despertar nossas
paixes, tambm as paixes, por sua vez,
favorecem grandemente as crenas. (SODR, 2006,
p. 51-52, grifos do autor)

Mas esse aparente deslocamento do objeto da


comunicao que promovido pelos argumentos
de Sodr e de Marcondes Filho parecem limitar-se
por uma viso um tanto restritiva do carter
adventcio
da
transformao
ou
da
emancipao pelas quais se pretende demarcar a
centralidade antropolgica, social e histrica da
comunicao. Do lado de Sodr, esse encurtamento
do horizonte esttico da comunicao se manifesta
na quebra que se instaura, na passagem de sua
argumentao nos dois primeiros captulos de As
Estratgias Sensveis: nesse intervalo, aquilo que
uma perspectiva esttica anunciava como
promissor, na perspectiva especfica da renovao
epistemolgica de nosso campo de estudos (pela
valorizao das condies pragmticas da
interao), se dissolve no reforo de um
vocabulrio tradicionalmente crticas dos regimes
da
mediatizao,
enquanto
manifestaes
simulacrais da experincia do comum.

Definidas a partir da tese mais remota de que os


modernos meios de comunicao instauraram uma
ordem social do vivido que se caracteriza por um
processo hipertrofiado de virtualizaes (designado
como bios meditica), suas ideias sobre o carter
sensivelmente
vinculante
da
sociabilidade
finalmente manifestam seu propsito mais claro de
fornecer uma espcie de matriz eidtica da
interao afetiva como elemento motriz de uma
sociabilidade
historicamente
emancipada: a
experincia esttica dotada desse carter
emancipatrio seria, portanto, aquela que
carateriza os aspectos da pasionalidade ainda no
capturados pela lgica simuladora da mediatizao.
Pois precisamente nesse aspecto que se pode
identificar os distintos pontos de inflexo entre
suas posices e aquelas de Marcondes Filho, no
que respeita o estatuto sensvel e afetivo da
interao, como fator a ser examinado pelas
teorias da comunicao. Em Sodr, essa
discursividade que traria as questes estticas para
o centro das teorias da Comunicao no chega a
fazer um deslocamento radical dos pressupostos
epistemolgicos de uma crtica aos processos de
mediatizao da sociabilidade, muito pelo
contrrio: a rigor, uma esttica da Comunicao, na

perpsectiva desenhada por seus escritos, apenas


a reiterao de um discurso j estabelecido em
nosso campo sobre os aspectos histrica e
ideologicamente
determinados
da
eficcia
simblica dos produtos de uma cultura meditica.
O espetculo de hoje resulta, assim, de uma
sobredeterminao
histrica
da
imagem.
A
espetacularizao , na prtica, a vida transformada
em sensao, em entretenimento, com uma
economia poderosa voltada para a produco e
consumo de filmes, programas televisivos, msica
popular, parques temticos, jogos eletrnicos. Efeitos
de fascinao, moda, celebridade e emoo a todo
custo permeiam sistematicamente esta forma de
vida emergente, em que a estesia detm o primado
sobre velhos valores de natureza tica. O fenmeno
esteetico torna-se insumo para a estimulao da
vida, doravante dirigida para a indstria e o mercado.
, portanto, mais aisthesis do que ethos embora s
epossa falar de um ethos da esttica, ou seja, de
uma inteligibilidade do sensvel capaz de levar a uma
tica ou uma arquitetura social de valores. (SODR,
2006, p. 116)

A perspectiva em que Marcondes Filho apresenta


esse aspecto adventcio de uma concepo sobre
os processos interacionais, tomados como base
daquilo que se deve examinar nas teorias da
Comunicao, tem a pretenso de (ao menos, em
seus pressupostos) oferecer um quadro renovado
da epistemologia a partir da qual poderamos
operar. Assim sendo, a valorizao dos aspectos

mais impactantes e imediatos da interao


intersubjetiva seriam aqueles que definiriam a
centralidade fenomnica da comunicao a que
visamos teoricamente; no contraste com a
argumentao de Sodr sobre os processos de
mediatizao e da simulao do comum, a
perspectiva de Marcondes Filho estaria mais
identificada com os quadros de uma crtica
epistemolgica de nosso campo de estudos.
Ainda assim, no sentido mais metaporoso com
o qual se pensou o status desse impacto existencial
da interao comunicacional, Marcondes Filho
pareceu
destacar
os
aspectos
puramente
afecccionais do contato intersubjetivo, isolando-o
de tudo aquilo que nos faz pensar nessa dimenso
primria da sensibilidade como vestbulo da
formao de um patrimnio comum da interao e
promotor de sua continuidade dinmica portanto,
como elemento ontogentico (portanto, de reforo
valorativo e operante) dos processos genuinamente
societrios. Na viso que parece depreender-se dos
escritos em que ele elabora sua nova teoria da
comunicao, apenas importariam os aspectos
puramente fusionais da relao entre corpos e
mundos, sem relao com aquilo que despontaria
nas afeces originrias como indicativo de uma

partilha intersubjetiva ou como elemento de uma


permanente ainda que tentativa anamnese dos
processos sensoriais.
Ora, nesse contexto preciso (e na perspectiva
que desejamos de uma maior explicitude dos
horizontes estticos das teorias da Comunicao),
precisaramos introduzir o contraste entre essas
ideias sobre o aspecto epistemologicamente
adventcio da interao entre sujeitos (enquanto
definidora do que prprio aos estudos
comunicacionais) e as alternativas tericas que se
apresentam no debate sobre essas questes. A tal
ttulo, gostaramos de introduzir aqui a interlocuo
que Marcondes Filho e Jos Luiz Braga
estabeleceram em variados veculos, no decorrer
dos ltimos anos, acerca dos fundamentos
epistemolgicos da pesquisa em nosso campo,
atentando para o fato de que certos aspectos de
uma
abordagem
esttica
dos
fenmenos
comunicacionais se fazem notar nesta discusso,
passando muitas vezes despercebidos do debate e
de suas consequncias em especial, no mbito da
comunidade cientfica que vem acompanhando
essa rica troca de ideias.
A perspectiva que Braga nos aporta, pelo carter
mesmo da origem epistemolgica de sua

formulao, parece mais ajustada a um certo


cnone da reflexo sobre os fundamentos da
Comunicao, prpria herana das cincias
sociais. Assim, apareceria a ns como mais
apropriada a cumprir a funo de antpoda de uma
discursividade genuinamente esttica supondo-se
que, no campo da Comunicao, esta ltima tenha
tentado promover deslocamentos mais profundos
nos costumes epistemolgicos da reflexo sobre o
carter socialmente comprometido dos valores
sensveis e emocionais dos contedos da interao.
Ainda assim, sua proposta neste debate tem
mritos que decorrem do esforo que ele parece
estatuir para fixar o objeto da comunicao numa
instncia no to estrita, como parece ser o caso
de Marcondes Filho: ainda que reconhea, de sada,
que a definio das interaes sociais como
lugares de comunicao o espao no qual se
pode examinar a instituio da novidade (que
essencial ao conceito mesmo dos objetos de nosso
campo), Braga tem suas reservas quanto ao
carter radicalmente excepcional dessa novidade,
do ponto de vista de sua descoberta, como objeto
de exame. Diferentemente de Marcondes Filho, os
processos de mudana de percepo devem ser
examinados no mbito de uma processualidade

dinmica e duradoura e no como episdios


pontuais de uma experincia comunicacional. Ponto
para ele.
Com especial ateno aos processos de
aprendizagem, implicados que esto no papel de
interaes constantes, a transformao subjetiva
que se pode examinar ali algo que exige uma
maior latitude do olhar sobre a dinmica
comunicacional, pois a novidade se instaura por um
acmulo de pequenas transformaes, que no
podem ser dissociadas entre si, tampouco
abstradas de uma conscincia autorreflexiva e
terminal desse sentido de mudana. Assim sendo,
no apenas h uma diferena entre escalas da
experincia comunicacional da mudana, como
tambm uma integrao entre seus diferentes
nveis de intensidade, na perspectiva dos sujeitos
de conhecimento.
claro que h tambm modificaes extraordinrias
(raras) do indivduo, atravs de sentimentos
ocenicos, de processos de revelao, de insights
por definio sbitos, do heureca repentino. Mudam
tambm as sociedades e instituies, por processos
revolucionrios, por perodos de revises abrangentes
de ideias, dos comportamentos e das relaes
produtivas.
Entretanto,
mesmo
estas
transformaes rpidas e espetaculares se preparam
por transformaes incrementais em diferentes
ngulos, aspectos e setores que, na conjuntura de

sua entrada em relao mtua, acabam disparando


a fasca desencadeadora. Vejo com clareza a
incidncia comunicacional no lento solapar/assorear
mais do que no rompimento repentino dos diques.
(BRAGA, 2012, p. 29, grifos do autor)

fato, contudo, que esses argumentos refletem


uma posio epistemolgica da autocompreenso
mais geral de nosso campo de estudos que no
reclama um radical afastamento de uma
normalidade da cincia que se pratica nesse
contexto da pesquisa: as posies de Braga
manifestam um acordo geral em relao s balizas
histricas
da
constituio
dos
estudos
comunicacionais, enquanto partes do repertrio
discursivo das cincias humanas e sociais, nos
ltimos dois sculos, pelo menos. Particularmente
sintomtico desse aspecto teoricamente mais
conservador de suas posies o prprio modo
como concebe a valorizao das prticas da escuta,
como um elemento axial dos processos interativos
(tomados enquanto nucleadores de situaes
comunicacionais). Se fato, de um lado, que as
pesquisas sobre a recepo que predominam em
nosso campo pareceram implicar historicamente
uma espcie de virada no modo de pensar o fluxo
comunicacional (em contraste aos modelos
informacionais que predominaram at o incio dos

anos 1960 do ltimo sculo), igualmente notvel


como Braga parece valorizar essas perspectivas
analticas de novo tipo, como se nelas se
concentrasse tudo aquilo que possvel
estabelecer acerca do carter ativo da recepo
(ou seja, como necessria reelaborao crtica ou
de resistncia a contedos informacionais
socialmente dominantes).
Outro ponto de sintonia entre nossas perspectivas se
refere nfase no que poderamos denominar de
mbito do recebimento [...]. Aprecio efetivamente
como relevantes tais proposies. Contrariamente a
perspectivas mais tradicionais, que enfatizam a
mensagem e seu emissor, adoto a frmula de que a
comunicao est na escuta. Os estudiosos da
recepo vm estudando com boa produtividade
este ngulo da questo comunicacional. (BRAGA,
2012, p. 30)

Nesse ponto, parece escapar a seu argumento


precisamente
aquela
imensa
tradio
de
pensamento sobre a recepo esttica (explicitada,
por exemplo, na argumentao inicial de Sodr
sobre os enlaces entre a comunicao e a
sensibilidade), oriunda dos estudos literrios e de
suas
condicionantes
fenomenolgicas
e
pragmticas, segundo as quais o prprio status da
compreenso (na leitura de textos, por exemplo)
no algo que se deva confundir exclusivamente

com a manifestao emprica da figura situada do


receptor dos processos comunicacionais. Algumas
dessas teorias tm uma relativa impactao nos
discursos tericos de nosso campo, mas uma
imensa dificuldade em corresponder aos critrios
cientficos demandados por nossa tradio de
pesquisa, na circulao social de seus resultados
ou
seja,
justamente
conferir
um
valor
empiricamente observvel (a partir de critrios de
densidade sociomtrica) a certas teses acerca do
carter
potencialmente
comunicacional
da
sensibilidade e da afetividade da recepo, nos
processos interacionais e nos produtos da cultura
meditica.
De nossa parte, as inquietaes a respeito de
uma tal compreenso acerca das relaes entre
esttica e Comunicao nascem, em primeiro lugar,
da ideia mesma de mediatizao definida de
diferentes modos, por Braga e Muniz Sodr, como
processo interacional preferencial nas sociedades
contemporneas. Atravs desse conceito, redefinese a processualidade mesma das interaes sociais,
algo que provocado em larga escala pelo
modo como os meios de comunicao se instituem
historicamente como agentes predominantes
destes mesmos processos. A mediatizao o

termo pelo qual se definem vrios dos aspectos da


interacionalidade pelos quais se veem reformulados
certos padres da sociabilidade dos quais
destacamos, em primeiro lugar, o das condies
espaciais da interao. Nesse contexto, as
interaes interpessoais vo perdendo seu fator de
centralidade na modelao da sociabilidade, como
um todo; nessas condies, vai ganhando mais
importncia a ideia de que o tecido da
sociabilidade passa a incorporar a seu repertrio o
regime de funcionamento que caracteriza os
dispositivos mediticos.
Se, na perspectiva de Muniz Sodr, essa
predominncia da interao mediatizada a base
de sua tese sobre a constituico de um bios
virtual, em Braga, por seu turno, o cruzamento
entre a interao, a mediatizao e os poderes
reconfiguradores da recepco redundam na
confluncia entre os conceitos de experincia
esttica e a interao mediatizada, ou seja:
ainda que uma interrogao esttica tenha lugar na
comunicao (precisamente por valorizar no carter
esttico
dos
produtos
a
processualidade
interacional que eles avanam), h algo dos
produtos
mediticos
que
determina
a
especificidade de uma problematizao esttica, no

campo da Comunicao. Esse carter especfico de


uma esttica da comunicao se manifestaria na
ideia de que a interao que nos interessa aquela
que se derivada de um dispositivo meditico que
promove e vetorializa a experincia do espectador.
Pelo percurso que nos conduziu da materialidade
extensional dos sentidos promovida pelos meios
at a interacionalidade mediatizada na sociedade,
o que parece descortinar-se como uma esttica da
comunicao , em suma, uma espcie de teoria
ampliada dos dispositivos sociais de mediatizao.
O que acaba por sobreviver, neste percurso que
nasce de uma ateno aos padres subterrneos
da mediatizao, a ideia de que se concentra na
operatividade dos dispositivos mediticos o
elemento constitutivo de sua positividade
comunicacional,
na
promoo
de
vetores
experienciais (incluindo a aqueles de natureza
esttica): curiosamente, um critrio de eficcia
na instrumentao dos meios que se deriva do
modo como a maior parte das teorias da
Comunicao evoca questes originrias de uma
discursividade esttica. No que respeita o problema
dos padres de mediatizao que carcaterizam
para tantos de ns o modo como a Comunicao
tece os regimes da sociabilidade contempornea, o

exame de uma dimenso esttica desses


fenmenos nos requer o distanciamento com
respeito aos signos costumeiros mediante os quais
essa relao entre comunicao e sociabilidade
tem sido teoricamente construda. Nesses termos,
ainda que se considere as formas nas quais a
apario sensvel da sociabilidade mediada pela
lgica dos dispositivos tcnico-mediticos, o lugar
de uma abordagem esttica da Comunicao no
inteiramente assimilado a esse registro ora
ilusrio, ora adventcio das estratgias
sensveis.
Ao considerarmos que os processos mediticos
carregam em si uma dimenso atinente s
abordagens estticas de anlise, no podemos ficar
restritos noo de que a mediatizao seja
tratada como fenmeno originrio desse processo.
A partir do momento em que a Comunicao
pensada na sua correta dimenso esttica, algo de
muito grave incide sobre uma ordem inteira do
pensamento comunicacional e para o qual os
pensadores desse domnio dedicam pouqussima
ateno: na ideia de que a receptividade encontrase valorizada enquanto qualidade esttica das
interaes sociais, a prpria concepco de
sociabilidade que vai ser deslocada em seus

fundamentos na sua condio de condutora dos


efeitos que atribumos aos processos e aos
produtos
da
experincia
cultural
na
contemporaneidade. E esse outro modo de pensar
uma sociabilidade atravessada por uma dimenso
esttica da comunicao faz um deslocamento que
verdadeiramente epistemolgico, no que respeita
os modos de se enderear Comunicao
enquanto fato social e historico.
Se podemos sumariar os sedimentos dessa
inflexo heurstica de nosso campo de estudos, na
direo da valorizao de uma dimenso esttica
dos fenmenos comunicacionais, ele envolveria trs
admisses crticas: em primeiro lugar, no registro
fenomenolgico
de
uma
experincia
da
comunicao, essa dimenso esttica manifestase sob o signo de uma unidade que se define pela
interao (no apenas a interpessoal, mas
tambm aquela que da ordem fenomnica da
compreenso e do estar no mundo); essa unidade
potencialmente dinamizadora de processos de
mudana, mas que no podem ser confundidas com
o carter aterrador das certezas e valores (que
exprime o problema limtrofe da sublimidade como
experincia esttica). Assim sendo, essa novidade,
enquanto qualidade sensvel e afetiva que unifica a

experincia, um elemento constitutivo das


prticas interacionais mais ordinrias, muitas vezes
sumariadas sob o signo do comum ou do
ordinrio. Do mesmo modo, no plano
propriamente comunicacional de sua admisso, a
sensibilidade no pode ficar apartada da ordem
predicativa dos juzos e de seus horizontes
axiolgicos: assumir a dimenso partilhada dos
contedos que se exprimem pelo gostar e pelo
prazer que decorre desse sentimento (assim como
seus valores opostos) j implica, pelo fato de se
exprimir em valores e no por contedos, um
horizonte judicativo que parte constituinte do
entendimento (sem estar a este submetido).
Segunda admisso de inflexes estticas nas
teorias da Comunicao: necessrio no
confundir a centralidade histrica e cultural dos
processos de mediatizao, como elementos da
interao social, com a noo de que estes se
constituam
como
transcendentes,
quando
interrogados sob o aspecto das condies
pragmticas de sua eficcia, mesmo em se
considerando sua particular fora instituinte na
cultura contempornea; se no consideramos essa
clusula de restrio, transformaremos a esttica
da Comunicao em uma teoria social que

apenas a descrio da operatividade socialmente


justificada dos dispositivos mediticos, tomados
agora como valores a priori dos vrios regimes da
sociabilidade contempornea (na poltica, na
histria, na cultura e at mesmo na vida ordinria).
Uma esttica da Comunicao se constituir, num
vetor inverso a este, como exame das condioes
pragmticas (portanto intersubjetivas e relacionais)
nas quais os dispositivos mediticos operam as
competncias performativas da recepo e da
valorao dos processos interacionais, como
derivadas de uma herana antropolgica (portanto,
cultural e histrica) que transcende essa mera
materialidade e operosidade dos modernos meios
de comunicao.
Em terceiro lugar, finalmente (na linha contnua
de
uma
valorizao das processualidades
interacionais e de suas condies pragmticas e
fenomenolgicas), seria necessrio destituir da
dimenso esttica da Comunicao a conotao
crtica que certas de nossas tradies de estudo
ainda inscrevem ao problema da mediatizao:
num vis contrrio quele que deriva das vises
debordianas e baudrillardianas da simulao e da
espetacularizao, fundamental valorizar na
estesia
dos
fenmenos
e
processos

comunicacionais, no largo espectro dos regimes e


ordens da sociabilidade e da subjetividade em que
as encontramos perfeitamente funcionais, o
aspecto constitutivo e transcendente de sua
eficcia simblica, para no ficarmos enfim
entretecidos na noo de que os processos de
mediatizao se definam necessariamente como
produco de puras aparncias, ou como
falseamento ilusrio dos repertrios e valores
sensoriais e afetivos da experincia societria (em
sua dimenso histrica, cultural e poltica).
No devemos renunciar s dimenses crticas
que demarcam muito claramente a historicidade
profunda que atravessa o exame que se pode fazer
sobre os processos de estetizao que decerto
caracterizam
uma
sociabildiade
que
foi
genericamente sequestrada pelos processos
industriais de mediatizao, no capitalismo
contemporneo: mas talvez seja necessrio
compreender
a
inflexo
verdadeiramente
epistemolgica de uma esttica da Comunicao,
tomando-a a partir de uma inverso dos
paradigmas da pesquisa em nosso campo;
parafraseando as anotaes de um jovem Marx
sobre a filosofia da histria de Feuerbach, em 1845,
ousamos propor, no sem falsa modstia, que o

sentido transformado da realidade a que visamos


em teoria no dispensa a necessidade de
reconhecermos (mediante boas interpretaes) que
essa realidade j se constitui, sob o signo de uma
dinmica em que os aspectos estticos cumprem
um papel central e no apenas decorativo. Num
sinal mais contemporneo e familiar dessa mesma
inverso da crtica da ideologia, Barthes quem
nos recorda, num posfcio de suas Mitologias, que
no haver denncia sem um instrumento de
anlise fina.
REFERNCIAS
BRAGA, Jos Luiz. Interao como contexto de comunicao.
Matrizes, So Paulo, v. 6, n. 1, p. 25-41, 2012.
MARCONDES FILHO, Ciro. Duas doenas infantis da comunicao: a
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______. A comunicao no sentido estrito e o Metporo: ou porque a
Nova Teoria no estudo de recepo, etnografia, nem tem a ver
com Edgar Morin. In: ENCONTRO NACIONAL DA COMPS, 20.,
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<http://www.compos.org.br/biblioteca.php>. Acesso em: 13 jul. 2013.
PARRET, Herman. Esttica da comunicao: para alm da pragmtica.
Traduo de Roberta Pires de Oliveira. Campinas: Unicamp, 1997.
SODR, Muniz. As estratgias sensveis: afeto, mdia e poltica.
Petrpolis, RJ: Vozes, 2006.

NOTA
[1] Este texto foi originariamente apresentado como interveno oral
na I Jornada de Estudos sobre Comunicao e Experincia Esttica,
realizada pelo grupo de trabalho Comunicao e Experincia Esttica
da Associao Nacional dos Programas de Ps-Graduao em
Comunicao (Comps), nos dias 24 e 25 de outubro de 2013, na
Escola de Comunicao da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Sou especialmente grato aos colegas Carlos Mendona, Cesar
Guimares, Denilson Lopes, Eduardo Duarte, Felipe Trotta, Jeder
Janotti, Joo Freire Filho, Jorge Cunha Filho e Maurcio Lissovsky, por
todas as observaes, reparos e crticas feitas naquele momento,
esperando que as mesmas tenham encontrado uma boa
repercusso no texto na sua forma presente.

LUS MAURO S MARTINO E NGELA CRISTINA SALGUEIRO


MARQUES

Existe uma tica nas teorias da


Comunicao? Perspectivas
conceituais nas apropriaes
brasileiras
INTRODUO
As discusses a respeito das teorias da
Comunicao no so habitualmente articuladas
com questes ticas. A rigor, seria possvel mesmo
notar, a partir de uma observao superficial, certa
distncia entre questes terico-epistemolgicas da
Comunicao, pensadas no domnio conceitual, nas
discusses de rea e suas demandas, e as
problemticas
normativas
e
deontolgicas,
consideradas
seja
em
sua
dimenso
especificamente voltada para a prtica profissional
(MEYER, 1986; MARTINO, SILVA, 2013), seja
trabalhada do ponto de vista de uma tica

comunicativa. (MARQUES, 2011)


Nos cursos de Comunicao, se possvel tomlos como um ndice, h pouca ou nenhuma
interseo entre os programas de teorias da
Comunicao, voltados para o estudo das
chamadas escolas tericas dentro de uma notvel
disperso epistemlogica (MARTINO, 2011, 2012),
e tica ou tica e Legislao, no qual se trabalham
temas voltados para as questes de carter
profissional. (CHRISTOFOLLETTI, 2011) Espalhadas
em momentos diferentes nas matrizes curriculares
das habilitaes, parecem no manter muitas
relaes entre si, como se o conhecimento das
teorias, em um momento geralmente nas sries
iniciais no estivesse ligado ao conhecimento das
prticas e responsabilidades dos profissionais no
momento de sua graduao.
Dentre as excees, pode-se assinalar os
trabalho de Barros Filho (1995) e Karam (1997,
2005) como aportes nos quais a questo tica
inserida no contexto de teorias da Comunicao, no
caso de Barros Filho, e teorias do Jornalismo ou
Semitica, no trabalho de Karam. No entanto,
esses estudos sugerem uma apropriao das
teorias da Comunicao para o estudo dos temas
da tica, sem focalizar especificamente o que

poderia ser pensado como uma tica presente nas


teorias da Comunicao, algo sugerido por Signates
(2005, p. 2), em sua afirmao que desde o
princpio, o objeto da comunicao tico e que,
portanto, sua definio implica em parmetros
ticos.
Este captulo busca delinear algumas das
dimenses ticas presentes nas teorias da
Comunicao, procurando observar, dentro de seus
principais postulados, quais so suas perspectivas
no
que
diz
respeito
aos
elementos
extraepistemolgicos que podem ser entendidos
como uma interpretao a respeito do mundo a
partir da qual se esperam ou deduzem aes
prticas.
A tica, de modo geral, poderia ser examinada,
a partir de sua primeira sistematizao aristotlica
em suas duas ticas, a partir de duas dimenses
principais desdobradas da noo de ethos. A
primeira diz respeito ao ethos como modo de ser,
como modo de vida que garante aos sujeitos o
estabelecimento de uma identidade e vnculo com
um entorno. nessa dimenso que definimos quem
gostaramos de ser e refletimos sobre disposies
normativas que nos orientam a agir. Em segundo
lugar, o ethos como princpio habitual de ao.

Nesse sentido, a tica tambm apresentaria um


carter social e comunicacional, pois embora
centrada no indivduo, ela domnio de interrelao, das relaes sociais no interior das
instituies e das comunidades.
Diante desse quadro, possvel perguntar quais
problemas ticos so trabalhados nas teorias da
Comunicao? Essa pergunta requer alguns
cuidados no uso dos conceitos. (BOURDIEU, 1983)
Se trabalhos exclusivos a respeito de tica ou
teoria da Comunicao j demandam uma
complexa elaborao conceitual, a tentativa de
construo de uma articulao entre ambos poderia
sugerir uma abertura de foco eventualmente
incompatvel com o fazer de pesquisa. Aproximar
essas duas questes, portanto, requer algumas
definies que, embora discutveis, so necessrias
para se partir de algum lugar.
O objetivo deste captulo delinear algumas
interseces e intermitncias das teorias da
Comunicao em relao s questes ticas
presentes na rea. Conquanto o termo e o objeto
por ele designado possam ser objetos de
questionamento, entende-se que possvel tomar
como ponto de partida a apropriao feita de
conjuntos tericos, objetivadas tanto nos livros

intitulados Teoria da Comunicao quanto


quelas mencionadas nos espaos institucionais e
acadmicos de discusso epistemolgica.
Entende-se que enquanto discurso, pensado
como produo articulada de saberes de uma rea,
as teorias da Comunicao no se desligam dos
espaos de sua produo, bem como das
concepes a respeito de sociedade, poder,
emancipao, participao, autonomia, hierarquias
e comportamentos que se articulam com sua
produo. Nesse sentido, o texto de Bennett (1983)
intitulado
sintomaticamente Teorias da Mdia,
Teorias da Sociedade se apresenta como uma
possibilidade de trabalho prxima da deste
captulo, considerando que no h uma teoria da
Comunicao que no se articule, tanto em seus
pontos de partida e chegada quanto em seus
desenvolvimentos, com uma teoria da sociedade.
Assim, por tica dentro das teorias da
Comunicao faz-se referncia no exatamente ao
que poderia ser um estudo sobre as vrias ticas,
mas, de maneira prxima a uma metaobservao,
procura-se compreender as concepes de um
princpio de ao dentro desse quadro de teorias.
Uma teoria da Comunicao, na medida em que
lida com elementos humanos em dimenses

cognitivas, polticas, sociais e histricas, traz


implcita uma srie de consideraes a respeito do
que o humano, a sociedade, o que se pode, ou
deve, fazer e, sobretudo, como isso se aplica no
terreno das relaes com os meios.
A PARTIR DE QUAIS PERSPECTIVAS POSSVEL
PENSAR EM UMA TICA DAS TEORIAS DE
COMUNICAO?
Emerge das ambivalncias presentes nas teorias da
Comunicao
uma
abordagem
normativodeontolgica
decorrente
das
concepes
apresentadas
a
respeito
dos
meios
de
comunicao, sejam de qual tipo forem, e a
sociedade com o qual se articulam. Retomando a
argumentao de Barros Filho (1995), ao
especificar efeitos, articulaes, apropriaes
e resistncias na relao entre indivduos,
comunidades e meios de comunicao, se est
implicitamente
sugerindo,
ou
deixando
subentendido, o que pode ser feito. No parece ser
possvel, em alguns casos, separar o diagnstico de
um certo prognstico, ainda que isso no seja feito
no sentido de palavras de ordem, manifestos ou
incitaes ao. Para o autor, o normativo, nesse
sentido, mais uma decorrncia do epistemolgico

do que propriamente uma causa sui direcionado a


normatizar uma prtica.
Nas luzes e sombras do discurso epistemolgico,
sobretudo em sua reflexo sobre a realidade e a
prtica, esto os elementos constitutivos das
prerrogativas de ao normativa, em especial
porque se volta, igualmente, para a prtica da qual
foi haurida. Assim, se o epistemolgico se articula
com a prtica no estabelecimento de conceitos e
ideias que serviro de base para o normativo, esse
normativo igualmente se articula com a prtica, da
qual novamente o epistemolgico pode retirar
alguns de seus elementos de anlsie.
Em outras palavras, um dos pontos de
interseco entre o tico e o epistemolgico revelase no fato de que a explicao sobre o que
acontece pode ser igualmente vista como uma
proposio o que se deve fazer a partir disso.
Revelam-se no exame das teorias da Comunicao
concepes de um ethos e de formas dissensuais
de expresso e interao que inventam modos de
ser, ver e dizer, configurando novos sujeitos e
novos modos e cenas de enunciao coletiva,
naquilo que Esteves (2007) chama de agonstica da
vida coletiva.
As teorias da Comunicao podem nos ajudar a

pensar como essas interaes so desenhadas


eticamente, sobretudo em suas vertentes
simtricas e assimtricas, enfocando as posies de
produtores e receptores que, investidas de marcas
distintivas de poder atribuem aos sujeitos posies
sociais, espaos de visibilidade ou invisibilidade,
limitaes de discurso e de participao nas
discusses e decises coletivas.
Nesse sentido, possvel, apenas para efeitos de
clareza, delinear trs tipos principais de
perspectivas ticas dentro das teorias da
Comunicao: (1) teorias que postulam uma
assimetria ontolgica entre emissores e receptores,
deixando reflexo conceitual a tarefa de
denunciar os aspectos de controle, poder e
dominao entre esses polos; (2) uma segunda
perspectiva trabalha uma certa simetria entre
mdia e pblico, entendido como um elemento de
fruio/reconstruo da mensagem e, portanto,
valorizado tambm na reflexo terica como parte
ativa do processo; (3) a identificao de uma
perspectiva de interseo entre mdia, indivduos e
sociedade da qual emerge uma tica pautada no
exame de formas de poder que, eventualmente
exgenas mdia, manifestam-se nos dispositivos
miditicos e de controle da sociedade.

Vale notar que essas trs perspectivas, embora


tenham
tido
desenvolvimentos
histricos
diacrnicos, apresentam-se dentro dos estudos de
Comunicao como perspectivas operacionais
ativas nos espaos epistemolgicos de pesquisa,
nos quais manifestam suas premissas ticas
implcitas/explcitas. A cronologia, em outras
palavras, no deve ser tomada como sinnimo de
sucesso.
A PERSPECTIVA ASSIMTRICA
Uma separao que talvez ajude a problematizar
as questes ticas dentro das teorias da
Comunicao observar certa ambivalncia entre
teoria da Comunicao, o nome, e a ao de
observar as prticas e processos comunicacionais
de maneira a extrair da algum tipo de elaborao
conceitual coerente ao que se poderia chamar de
teoria relacionada, no caso, com a Comunicao.
Se pensarmos dessa maneira, a dimenso tica das
teorias pode ser realada.
Tomando como ponto de partida o critrio
cronolgico, a preocupao terica com a
Comunicao nasce
no mbito de
uma
compreenso poltica dos efeitos dos meios de
comunicao sobre a sociedade no contexto do

final da Primeira Guerra Mundial. Os estudos


levados a efeito pelos chamados pais fundadores,
em particular Lasswell (1927), Merton e Lazarsfeld
(1948), de uma das vertentes da Teoria da
Comunicao nos Estados Unidos estavam
pautados, ainda que no de maneira explcita, na
maneira como os meios poderiam influenciar a
personalidade dos indivduos no que diz respeito
formao de uma opinio pblica em relao ao
conflito. Os estudos pioneiros de Lasswell (1927;
1931; ver tambm Varo, 2010 e Martino, 2012)
refletem essa temtica na considerao de que um
elemento de poder, no caso, a mdia, teria
relevncia no comportamento polticos dos
cidados, influenciando, inclusive, na tomada de
decises eleitorais.
As primeiras teorizaes sobre Comunicao
pautam-se em uma assimetria presumida entre os
meios e os indivduos que se relacionarem com
eles. A noo de massa assume aqui um espao
fundamental no sentido de classificar a audincia
como um todo homogneo sobre o qual vai se agir.
Essa assimetria reserva o poder, em boa parte, aos
meios de comunicao pensados em uma dimenso
quase que exclusivamente poltica (mais tarde
ideolgica) na qual se relega a segundo plano

qualquer considerao econmica. O poder dos


meios de comunicao se refere, tambm nesse
sentido, a uma perspectiva relacionada ao pblico:
enquanto massa, o potencial de manipulao
palavra que se tornar cara aos estudos de
Comunicao de vrios matizes seria
consideravelmente alto, reforando a assimetria
entre o carter dos cidados atingidos por uma
mdia potencialmente nefasta.
Em sua vertente crtica, o exame da mdia
indicava uma ressonncia dessa assimetria em
relao aos grupos e indivduos. Nesse sentido,
mesmo um trabalho de flego como o captulo
sobre
indstria
cultural
na Dialtica do
Esclarecimento, de Adorno e Horkheimer, ou nos
textos posteriores de Adorno sobre o assunto
exclui-se o estudo pioneiro de Horkheimer (2006)
intitulado Arte e Cultura de Massa se mantm
caudatrio de uma perspectiva de desigualdade
entre um polo emissor, nos quais identificam uma
poderosa influncia da economia poltica, e um
polo receptor constituido de indivduos merc
desse sistema. A segunda gerao da Teoria
Crtica, representada principalmente por Jrgen
Habermas e suas reflexes publicadas na dcada
de 1960, perpetua e amplifica essa dimenso

assimtrica, destacando o modo como os meios de


comunicao, alm de impedirem a emancipao
subjetiva, minam a constituio de esferas pblicas
de livre manifestao de pontos de vista e
justificao recproca de argumentos.
Habermas (1984, p. 218) avalia a transformao
da imprensa de opinio em imprensa comercial,
destacando a perda de seu carter crtico-reflexivo
em favor da entrada de interesses privados
privilegiados na esfera pblica. Para ele, por um
lado verdade que o mbito da esfera pblica se
ampliou com a contribuio da mdia, mas, por
outro lado, o equilbrio de interesses e as intenes
do emissor continuam se firmando no bem-comum,
sem contudo satisfaz-lo. (HABERMAS, 1984, p.
233) Apesar de Habermas, em 1992, ter revisto sua
afirmao de que havia um desenvolvimento linear
de um pblico politicamente ativo para um pblico
recluso numa privacidade perversa indo de um
pblico que debate cultura para um consumidor de
cultura (HABERMAS, 1984, p. 438) , ele nunca
deixou de considerar a assimetria entre produtores
e receptores de informao, nem o carter dbio
de ao da mdia no mbito da formao de
esferas pblicas. Segundo ele, se de um lado os
meios de comunicao conferem visibilidade aos

discursos de atores localizados em diferentes


arenas comunicativas, de outro, os profissionais da
mdia produzem um discurso de elite, alimentado
por atores que disputam entre si por acesso e
influncia. (HABERMAS, 2006, p. 417)
No seria talvez exagero dizer que, com
variaes crticas, essa posio assimtrica
encontrou larga ressonncia e descendncia nas
pesquisas sobre Comunicao, estabelecendo uma
srie de posicionamentos ticos mais ou menos
explcitos no que diz respeito s suas concepes.
Um primeiro tpico seria o postulado de um ser
humano indefeso, incapaz de raciocinar por conta
prpria sem o material dos meios de comunicao.
A noo de alienao, tomada muitas vezes em
um sentido vulgar descolado de sua origem
marxiana, uma das palavras sintomticas dessa
perspectiva. Se o receptor parte de uma massa
desprovida de qualquer autoconscincia de sua
condio e, portanto, suscetvel de influncia
considervel no fluxo de suas atividades cotidianas
pelas mensagens dos meios de comunicao,
talvez no seja de todo errado presumir que ele
esteja desprotegido diante do poder da mdia.
Dessa maneira, sua tomada de decises, seja no
mbito poltico, seja mesmo no mbito pessoal,

decorreria de um recurso constante s mdias como


forma de adquirir algum tipo de conhecimento a
respeito do mundo.
Se mdia caberia dominar e ao receptor
obedecer, como a reflexo terica poderia apontar
caminhos e trajetrias outras aos sujeitos, capazes
de auxili-los em seus projetos identitrios, na
construo de sua autonomia e de sua cidadania?
Parece advir da o segundo componente de carter
tico vinculado s origens das teorias da
Comunicao.
A tica da teoria, nesse caso, seria denunciar
esses mecanismos de ao e a palavra
mecanismo usada intencionalmente no sentido
de realar a perspectiva dessas elaboraes
tericas no auxlio ao indivduo, seja na proteo
do jogo democrtico, seja na prpria perpsectiva
de tir-lo de uma condio de alienao. Em ambos
os casos, parece haver, nos textos de Adorno e
Horkheimer, e apesar de sua profunda descrena
na capacidade crtica dos sujeitos, uma vaga
pressuposio de uma atuao auto-outorgada da
teoria no sentido de libertar (ou esclarecer, ou
emancipar) os indivduos nessas condies.
O convite reflexo tica que parece emergir
dessa perspectiva assimtrica refere-se ao estudo

terico como um elemento responsvel por


restaurar um eventual equilbrio entre emissores e
receptores, entendidos como polos desiguais de
ao. Isso imediatamente poderia levar pergunta
referente a existncia de uma postura igualmente
assimtrica entre o pblico e as pessoas
responsveis (especialistas, intelectuais) pelo que
seria sua emancipao: parece haver um
pressuposto implcito de que o pblico deva ser
libertado, acordado ou mesmo salvo de
potenciais influncias dos meios de comunicao e
de seus produtos. Ainda assim, emancipar-se pela
voz crtica dos intelectuais no conduz o sujeito a
tomar a palavra, a fazer-se interlocutor em cenas
de dissenso e a conquistar sua autonomia via troca
comunicativa pblica. Falar em nome do sujeito ou
em sua defesa no significa emancip-lo e sim
assujeit-lo, torn-lo dependente do discurso e das
habilidades de outrem. (SPIVAK, 2010)
De algum modo, Eco (1995) identifica essa
postura como representante de uma perspectiva
que coloca um desnvel entre pesquisadores e
pblico, ao mesmo tempo em que convida aqueles
que compartilham das premissas de pesquisa a se
observarem como pertencentes a um lado
especfico dessa ruptura. Referindo-se s pesquisas

crticas, Eco (1995, p. 42) lembra que no fundo, o


apocalptico consola o leitor indicando que o
exerccio da reflexo em si j o separaria de uma
massa atingida pela mdia. Em contraposio, o
prprio Eco (1997, p. 12) igualmente menciona que
no h separao, diante dos meios de
comunicao, entre o pblico em geral e aqueles
epistemologicamente preparados para entender
essas mensagens.
Ainda no mbito da emancipao do sujeito, a
contribuio de Habermas aponta no no sentido
de um esclarecimento vindo dos especialistas, mas
oriundo da prpria atividade comunicativa dos
sujeitos. (MARQUES, 2013) Em sua obra, o vis
pragmtico da linguagem que delineia a tica como
forma e princpio de ao diante de problemas de
ordem moral. (MARTINO; MARQUES, 2012) De
modo a revelar como, por meio da interao
discursiva na esfera pblica, os indivduos poderiam
alcanar sua autonomia poltica e chegar a um
mtuo entendimento acerca de seus interesses e
necessidades, Habermas (1995) procurou esboar
um conjunto de procedimentos normativos, a tica
do discurso, capaz de evidenciar como o uso
comunicativo da linguagem capaz de promover
emancipao, alcanada pelo desenvolvimento de

habilidades
comunicativas
de
exposio
argumentativa e justificao pblicas. A tica do
discurso tambm contempla a busca de uma
autocompreenso tica que, inspirada nas
consideraes de George Herbert Mead, coloca o
sujeito constantemente em relao a uma segunda
pessoa, em um processo de leitura constante de
gestos significativos em busca de reconhecimento e
do atendimento s expectativas alheias.
No podemos deixar de salientar que a
conquista da emancipao e da autonomia poltica,
em seu vis relacional, depende de componentes
externas aos sujeitos, ou seja, de dimenses
comunicativas, sociais e institucionais que,
consideradas as assimetrias de poder e de discurso,
os permitam participar da vida pblica, sendo
respeitados, ouvidos e valorizados.
A SIMETRIA POSSVEL
Uma segunda postura dentro do que se chama aqui
de tica das teorias da Comunicao procura
modificar a perspectiva anterior no sentido de
encontrar um ponto de equilbrio entre as
mensagens produzidas pelos media e os seus
destinatrios, pensados no mais em termos de
uma massa, mas como receptores ativos,

responsveis por atribuir sentidos s mensagens


dentro de um processo de negociao, mais do que
em um modelo estritamente linear-causal.
De sada, nota-se nesse modelo uma
preocupao em ressaltar as caractersticas
prprias do receptor, pensado no como um alvo
de um processo, mas como um sujeito a ser
recuperado em suas dimenses histricas, polticas
e sociais. Em particular, um sujeito que articula
suas vivncias e, portanto, suas condies
materiais e histricas de percepo, com o
contedo dos meios e, por que no, com os
prprios meios.
Essa segunda perspectiva obteve considervel
acolhida na rea de Comunicao, sobretudo a
partir dos anos 1990. (JACKS, 2010; JACKS;
ESCOSTEGUY, 2005) No entanto, seria talvez
precipitado buscar na cronologia uma homologia
com qualquer desenvolvimento em termos de
sucesso ou superao: os modelos assimtricos
continuaram no apenas em vigor como tambm
pautaram considervel volume de pesquisas na
rea.
A ideia de simetria aqui no significa, em
absoluto, uma equivalncia institucional de poderes
entre os meios de comunicao de massa,

caracterizados como grandes conglomerados


empresariais, e o receptor. Essa postura parece
encontrar os pontos de resistncia e mesmo de
recusa s mensagens da mdia no mbito da
articulao de sentidos, mostrando um receptor
que no apenas est diante dos meios, mas
tambm participa de seus significados.
Mais do que ser protegido ou fortalecido por
uma pesquisa que procura denunciar efeitos, a
postura, sem perder o vis crtico em relao aos
meios de comunicao, procura entender de que
maneira os sujeitos recebem e reconstroem as
mensagens dos meios. O sujeito passa a ser
conhecido como uma fonte de contrapoder
identificado pela teoria como contraponto s mdias
de massa. O receptor, em sua rede de interaes,
parafraseando uma expresso de Martn-Barbero
(1997), o lugar no qual a comunicao
propriamente acontece, a despeito de todo o
aparato tcnico e empresarial das mdias.
A tica do sujeito receptor no o coloca em p
de igualdade institucional, mas parte do princpio
de que qualquer mensagem da mdia ser
reconstruda por indivduos responsveis por trazer
novos significados, trabalhar com sentidos e
estabelecer leituras para alm de todo e qualquer

contrato previamente estabelecido pelos meios. A


dimenso subjetiva destaca-se da perspectiva de
massa, e sua tica tambm diferente.
Sob uma constelao de influncias que inclui
desde estudos literrios at Gramsci, Foucault e os
ps-estruturalistas franceses, a formulao dos
estudos culturais uma das primeiras tentativas de
trazer uma nova perspectiva na racionalidade
prtica a respeito dos receptores. Se os estudos de
recepo literria de Jauss[1] (2004) ou,
recuando ainda mais, Walter Benjamin (1986)
indicavam uma alternativa para pensar os
receptores como parte inalienvel do processo de
construo da obra, entendida como algo que
existe na medida em que se articula com um
leitor/espectador, so os estudos culturais que vo
sugerir de maneira objetiva a perspectiva no s
de uma resistncia, mas tambm de contrapoder.
Nos trabalhos de alguns de seus fundadores,
como Hoggart (1983) e Thompson (1995), j
possvel encontrar indcios de uma tica do sujeito
receptor, ressaltados principalmente nos trabalhos
de Hall (1981). Nesse sentido, textos posteriores
de McRobbie (1990) e Lewis (1994) se estabelecem
como clssicos para indicar formas de consumo
cultural e resistncia s mensagens da mdia no

momento de sua reelaborao, ou mesmo de uma


apropriao crtica das mensagens (HEBDIGE,
2000) na forma de reelaboraes e apropriaes
cotidianas. (FISKE, 1993a, 1993b)
Na tica desses desenvolvimentos tericos, o
poder
dos
meios
de
comunicao

contrabalanado
pelo
poder
dos
vnculos
construdos por um receptor multidimensional, que
reconstruir o contedo dos meios a partir de suas
vivncias polticas, histricas e afetivas. Os dois
espaos de poder se interseccionam, se completam
e se desafiam mutuamente na construo de
hegemonias e resistncias, em um equilbrio
dinmico decorrente da simetria identificada, e
longe de ser esttico em qualquer circunstncia.
Na Amrica Latina h uma srie de
desenvolvimentos desse ponto de vista objetivado
nas vrias apropriaes da chamada Teoria das
Mediaes, elaborada por Martn-Barbero (1997)
em seu estudo inicial, Dos meios s mediaes. Em
sua larga descendncia, o livro de algum modo
abriu caminho para que a perspectiva assimtrica
poder das mdias/vulnerabilidade do receptor se
traduzisse em poder da mdia/mediaes do
receptor como construo de sentidos e
significados.

Os trabalhos de Lopes, Borelli e Resende (2004),


Baccega (2006), Jacks (1999), Escosteguy (2001) e
Jacks e Escosteguy (2005), entre inmeros outros,
sugerem essa tendncia ao articular o receptor
dentro de uma trama discursiva na qual ele o
protagonista mas um protagonista igualmente
polifnico, dentro de uma perspectiva na qual suas
mltiplas vinculaes, como gnero, faixa etria,
classe social, afetos e razes, so pensados como
itens indispensveis na formao no s de sua
condio de receptor, mas de ser humano. Da a
perspectiva tica desse discurso terico trazer em
si uma concepo de natureza humana distante da
primeira: no lugar do indivduo atomizado da
massa, encontra-se um indivduo pertencente a
uma comunidade na qual conversa, discute e
trabalha os significados.
Isso abre espao para a terceira perspectiva, da
tica de um receptor-produtivo.
INTERSEES ENTRE PRODUTORES E RECEPTORES
NO MBITO DE UMA CULTURA DA PARTICIPAO
Uma dimenso terica da Comunicao em
especial advoga a prtica da coproduo de
discursos e sentidos entre agentes miditicos e
agentes sociais: aquela ligada s prticas

colaborativas de produo das informaes e de


construo discursiva de acontecimentos no espao
virtual. Nela, o receptor produz discursos e circula
sentidos, trabalhando ao lado de agentes
miditicos para a elaborao conjunta no s de
discursos, mas das cenas nas quais esses discursos
so encenados e reelaborados enquanto so
tambm reelaborados os prprios sujeitos que os
enunciam.
A redefinio das alternativas epistemolgicas
da Comunicao interseccionada com o mbito das
mdias digitais e da cibercultura uma das razes
de extenso debate, no sentido em que indicam as
reflexes de Felinto (2011), Pimenta (2011),
Rdiger (2011) e Ferreira (2012), entre outros,
podendo um recuo temporal indicar ainda as
propostas de Lankshare (2003), Trivinho (2003) e
Santaella (2003). As insuficincias postuladas em
relao ao modelo emissor-mensagem-receptor,
apontadas j em dcadas passadas conferir
Beltrn (1978) recrudescem quando a teoria da
Comunicao se articula com os cenrios empricos
da cibercultura.
Se a discusso dessas relaes est ainda em
elaborao, possvel observar, diante de
pesquisas elaboradas por pesquisadores em

diversas abordagens, a transposio e alterao


das questes ticas sugeridas nos itens anteriores
e formular outras questes. Nos ambientes digitais
e na cibercultura, na medida em que discutvel a
existncia de uma relao emissor-receptor, faria
sentido ainda pensar em simetrias ou
assimetrias entre um e outro polo? Alis, seria
possvel de fato falar em polos dentro de uma
cultura participatria, como lembra Jenkins
(2008), na qual o domnio das linguagens
ultrapassa o monoplio de alguns tipos de
comunicao? Na medida em que, no argumento
de Shirky (2008), cada indivduo um produtor de
mdia ou faz parte de um ncleo constitutivo da
inteligncia coletiva, na conhecida expresso de
Lvy (1999), questionvel se haveria diferenas a
serem pensadas. Finalmente, preciso considerar
se as formas de associao e engajamento cvico
e/ou poltico nas redes sociais digitais, como
sugerem, entre outros, Altheman (2012), Marques
(2011), Merkl (2010), Papacharissi (2009) e
Recuero (2012), poderiam ser entendidas como
formas de rearticulao de poderes, discursos e
aes na sociedade.
Nesse sentido, as teorias que discutem a
comunicao nos ambientes digitais parecem

substituir uma dicotomia simetria/assimetria por


uma outra dinmica pautada pela conexo e
desconexo
entre
esferas
discursivas
e
atores/interlocutores, ou ainda por uma forma
especfica de interseco e articulao. As
mensagens da mdia de massa, que no deixam de
continuar existindo, no so apenas reelaboradas
ou frudas por receptores localizados e localizveis
no mbito de um espao e tempo determinado,
mas so refeitas, ressignificadas, comentadas e
reelaboradas
em
contextos
discursivos
absolutamente diversos de sua produo. Mais
ainda, essas produes so compartilhadas no
espao das mdias digitais, ganhando repercusso e
outros direcionamentos que escapam, pela prpria
estrutura da rede e vale, sobre isso, ver os
trabalhos de Leo (1999), Lemos e Santaella
(2011) e Recuero (2008) , ao controle das mdias
de massa.
Assim, mdia, produtores e receptores aglutinamse de maneira multimodal em inmeros ns da
rede, nas quais as relaes de poder, adaptadas a
uma estrutura rizomtica de interao (DELEUZE;
GUATTARI, 1999) se espalham sem ser
necessariamente
constitutivos
de
outras
ressonncias no mesmo sentido em alguma

medida, esse o argumento de Siegel (2005) ao


examinar os usos das mquinas e redes digitais.
A cultura dos fs, por exemplo, indica no
apenas reapropriaes dos produtos da indstria
cultural mas a existncia de reelaboraes
bastante pessoais, em alguns momentos levadas
para direes fundamentalmente opostas quelas
de seus produtores, como sugerem textos de
Amaral (2010), Auxlio, Martino e Marques (2013),
Braga (2009), Jenkins (2006, 2008) e Santaella
(2003, 2005, 2013).
Por outro lado, a prpria interao em rede no
escapa
s
vicissitudes,
demandas
e
constrangimentos da sociedade na qual se insere,
includo nisso os ditames de uma economia de
mercado na qual todo e qualquer espao pode ser
objeto de apropriao pelo capital em suas
diversas formas. O exame da economia poltica da
internet e das mdias digitais, bem como de seus
elementos cognitivos e de diferenciao social,
apontam para outra tica. Se no possvel fazer
um recenseamento completo de todas essas
abordagens, vale ao menos buscar sumariz-las na
medida em que so indicativas de uma tica
prxima, em alguns aspectos da perspectiva
assimtrica indicada.

O problema poltico referente ao controle e


regulao, mas tambm de crtica incluso
indicado por Cazeloto (2008) ou Brittos (2010),
entre outros, manifesta-se como parte de um
pensamento tico que trabalha a internet em
termos de conflito de poderes e, portanto,
caudatrias de uma postura crtica em relao ao
receptor. No mesmo sentido, as pesquisas sobre
vigilncia, transparncia e visibilidade dos
indivduos na internet, temas tratados nos
trabalhos de Bruno (2003), Sibila (2005) e Antoun
(2008) sugerem uma postura contrria a do
fortalecimento
dos
usurios/receptores/interagentes nos ambientes
digitais.
A diluio de fronteiras entre esfera privada e
esfera pblica, lembra Papacharissi (2008), bem
como as formas de solido geradas nos e pelos
ambientes digitais (TURKLE, 2005) insinuam um
cenrio no qual se nota um enfraquecimento dos
laos polticos e sociais.
A pretensa igualdade que se instaura entre
emissores e receptores nas redes sociais, tambm
esconde desigualdades que se materializam
sobretudo no desenho discursivo das redes para
conversao e debate. Ainda que, no mbito da

cibercultura, receptores sejam saudados como


produtores no s de informaes, narrativas,
produtos culturais e bancos de dados, mas tambm
de suas prprias mdias e canais de difuso os
usos sociais dos meios e a produo social de
meios tm que vencer barreiras que vo desde as
limitaes impostas pelas arquiteturas discursivas
de plataformas projetadas por poucos at
constrangimentos
associados
a
presses
mercadolgicas (manuteno de veculos digitais
via marketing), institucionais e polticas.
preciso que tenhamos sempre em mente que a
comunicao em rede intermediada por
softwares, por agentes mediadores e condicionada
por protocolos que delimitam os contedos e os
formatos de interao. A assimetria entre
interagentes nos espaos virtuais de dilogo coloca
em dvida se os atos de fala e a liberdade
comunicativa so minimamente equilibrados nas
interaes entre os que dominam ou entendem os
cdigos e os que no entendem. (SILVEIRA, 2009)
Tais assimetrias nas relaes e oportunidades de
acesso rede interconectada dificultam a
participao paritria dos indivduos e a prpria
constituio de esferas pblicas on-line.
A cautela em apontar espaos on-line como

esferas pblicas deriva do fato de que os diferentes


tipos de arquitetura discursiva dos espaos on-line
possuem tanto o potencial de constranger quanto
de facilitar a abertura, o uso da razo, a
criatividade cultural, a auto-organizao e a
solidariedade. O que est em tela nas trocas
conversacionais on-line o questionamento das
ordens hierrquicas e consensuais nas quais a fala
de cada um e o lugar ocupado pelas pessoas so
definidos em termos de sua apropriao e de sua
adequao a uma funo previamente definida
como tal. (ALTHEMAN; MARTINO; MARQUES, 2013)
Associada a essa questo, nota-se um
recrudescimento das perspetivas de vigilncias
institucionais, das formas de controle e deteco
das aes do indivduo na proliferao do que
Agamben (2012) chama de dispositivos no
sentido mesmo de proteger o cidado, lanando
mo de controles e formas de prescrutar a vida
individual alm de qualquer perspectiva crtica
assimtrica. Assim, o cidado estaria relativamente
desprotegido no ambiente das mdias digitais.
Finalmente, mas talvez com menos nfase
poltica, uma perspectiva terico-tica dentro da
cibercultura e das mdias digitais postula a
existncia de um receptor claramente inepto para

participar ou gerir esses ambientes, tornando-se


presa fcil de sua prpria incapacidade, como
especificam os trabalhos de Keen (2008). At certo
ponto seria possvel observar, neste ltimo item,
duas perspectivas opostas. Se, em termos ticos,
h uma novidade terica no entendimento do
apagamento de fronteiras emissor-receptor na
noo de um usurio gerador de contedos, ao
mesmo tempo a continuidade e transformaes do
capitalismo e a proliferao dos dispositivos se
apresenta, no terreno terico, como parte de uma
reflexo na qual os poderes se espalham sem se
dissolver, e o usurio no estaria muito distante, o
que no deixaria de ser paradoxal, das concepes
de uma perspectiva da comunicao de massa.
CONSIDERAES FINAIS
A interseco entre o tico e o epistemolgico no
mbito das teorias da Comunicao pode no se
apresentar imediatamente apreenso no mbito
de estudos especficos de uma ou outra parte,
pensados sobretudo separadamente. No obstante,
afirma-se como uma possibilidade de retomar a
perspectiva de que as teorias da Comunicao,
enquanto objetivao de um discurso reflexivoconceitual a respeito de um campo da

experincia (DELEUZE; GUATTARI, 1999), no se


desliga, como toda produo de discursos, das
condies especficas de sua origem, mediadas por
outras
circunstncias
de
apropriao
e
reapropriao institucional e epistemolgica. A
existncia do que poderia ser denominada uma
poltica na delimitao do espao conceitual
trabalhado pelas teorias da
Comunicao
(FERREIRA, 2003), bem como nas condies de sua
institucionalizao (MARTINO, 2012) sugerem uma
das premissas exploradas neste texto.
A perspectiva de que os discursos tericos
sobre Comunicao esto relacionados, de maneira
mais ou menos explcita, a pressupostos ticos
derivados no apenas de seus vnculos
epistemolgicos, mas tambm das proposies
apresentadas. Em particular, destacam-se as
proposies referentes s relaes entre os meios
de comunicao, definio elstica e explorada em
suas diferentes formas ao longo do tempo, e os
indivduos e comunidades que, de alguma maneira,
estaro ligados a esses meios. As condies
histrico-sociais, bem como epistemolgicas e
conceituais, dessa ligao sugerem as inferncias
passveis de anlise a partir das quais este captulo
se estruturou.

Variando de perspectiva no que diz respeito s


relaes entre emissores, meios e receptores (em
uma perspectiva anterior s mdias digitais) ou s
perspectivas de reelaborao e participao, no
caso do ambiente digital e interacional da internet,
as teorias da Comunicao parecem se delinear
no apenas como reflexo a respeito dos
elementos conceituais e metodolgicos para
compreender um fenmeno, mas tambm de uma
normatividade especfica que, de certo modo,
prope um protocolo anterior, muitas vezes
subjacente, relativo maneira como se deve
observar essas relaes entre ambientes, mdias e
sociedade.
Em outras palavras, as teorias da Comunicao,
ao elegerem seus objetos, mtodos e conceitos,
mostram quais sero os modos de entendimento
propostos em relao s pessoas e s coletividades
em suas prticas e vivnvias, mediadas ou no
pelos meios.
A identificao conceitual do indivduo diante de
uma tela (e posteriormente inserido em um
contexto atravessado por vrias mediaes), por
exemplo, variando entre massa, receptor, fruidor,
usurio e f, no indica apenas modos de
apropriao epistemolgico de um fenmeno de

interao (mais controlado em uma concepo,


mais livre em outra), mas tambm as perspectivas
ticas dessas modalidades no espao no de uma
tica da Comunicao, mas na perspectiva de
pensar uma tica das teorias da Comunicao
no necessariamente para alm do epistemolgico,
mas em sua articulao. nessa interseo que
podemos observar concepes especficas de ser
humano, de suas relaes polticas e econmicas e,
de certo modo, em escala metarreflexiva, do
prprio lugar das atividades de pesquisa.
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NOTA
[1] Ver tambm Cruz (1986).

CONCEITOS

EDUARDO YUJI YAMAMOTO

As matrizes epistmicas da
comunidade na Comunicao:
uma genealogia
INTRODUO
Em disciplinas constitudas pragmaticamente a
partir de aportes da Sociologia (como foi o caso da
Comunicao), a ideia de comunidade consolidouse atravs de uma certa interpretao da obra de
Ferdinand Tnnies, Gemeinschaft und Gesellschaft,
qual seja, enquanto forma social diametralmente
oposta figura dominante da Gesellschaft
(sociedade racional, urbana e industrial).[1]
Neste captulo especulamos acerca das principais
matrizes
epistmicas
responsveis
pelo
desenvolvimento de tal interpretao, desde o
mbito da Sociologia at as apropriaes
comunicacionais.
Positivismo,
marxismo,
hegelianismo e desconstrutivismo compem os

ramos
genealgicos
(no
obrigatoriamente
histricos) do desdobramento semntico da
comunidade. Como pretendemos apresentar aqui, o
desenvolvimento de tal interpretao em cada
ramo ser observado segundo uma dupla
determinao: o movimento geral das cincias
sociais brasileiras e as crticas epistemolgicas
relacionadas s apropriaes do referido conceito.
COMUNIDADE NAS CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS
Para o historiador da Sociologia, Robert Nisbet, a
descoberta do conceito de comunidade no sculo
XIX[2] constituiu um divisor de guas do
pensamento social. Isso porque, alm de
influenciar disciplinas importantes como a Filosofia,
a Histria e a Teologia, tal conceito permitiu a
consolidao da Cincia Social propriamente dita,
extraindo da noo comunitria no apenas o seu
objeto (o social), mas as estruturas fundamentais
da pesquisa sociolgica (princpios epistemolgicos,
teorias e metodologias).[3]
Conforme Nisbet, se a comunidade serviu como
referncia ao social era porque a heterogenidade
que caracterizava o cenrio europeu do sculo XIX
explicava-se, razoavelmente, por meio de um
parmetro histrico ou lgico que fazia da

comunidade o ponto de partida do qual as


diferentes formaes humanas correspondiam a
diferentes nveis de desenvolvimento social, poltico
e econmico.
Nesse contexto fragmentrio, e sob a gide do
universalismo ocidental, cumpre observar uma
dicotomia estruturadora do pensamento que se
avultou
nesse
perodo:
a Gemeinschaft x
Gesellschaft, de Tnnies. Baseada na diversidade
das formaes sociais, e inicialmente voltada a
estudos comparativos, tal dicotomia, a partir de
uma interpretao positivista, viria a sugerir uma
unidirecionalidade
para
o
desenvolvimento
humano.[4]
O estudo tipolgico da ideia de comunidade constituiu
a principal contribuio da Sociologia ao pensamento
social moderno, emprestando tal conceito a outras
cincias sociais, sobretudo no estudo de naes
subdesenvolvidas
do
mundo
contemporneo.
Atravs dessa tipologia, a importante transio social
do sculo XIX, prpria do contexto histrico europeu,
de seu carter, em grande parte, comunal e
medieval, sua forma moderna, industrializada e
politizada, transformou-se em um quadro mais geral
de anlise aplicvel s transies anlogas em outras
regies do mundo. (NISBET, 1966, p. 71, grifos
nosso)

Assim, conforme Nisbet, o modelo tipolgico de


Tnnies, conhecido pelas imagens opositivas entre

o campo e a cidade (ou entre o sistema arcaico do


feudalismo e o capitalismo urbano-industrial),
estender-se-ia no apenas para a compreenso do
desenvolvimento desigual entre regies do mundo
ou de um mesmo pas, mas para a identificao
dos possveis problemas e, claro, de solues
para sua integrao.
Acreditamos que essa estrutura dicotmica
(Gemeinschaft
x Gesellschaft), investida pelo
mpeto desenvolvimentista da poca quer dizer,
de um dever moral de elevao do esprito humano
a um patamar civilizatrio ideal (a partir de uma
interveno verticalizada) , embasou a nossa
principal matriz cognitiva da comunidade.
Na Sociologia latino-americana (e, por extenso,
na Comunicao), ela pode ser encontrada numa
concepo de comunidade que Juan Farr
denominou construtivista e instrumental, isto , a
planificao de um suposto sociolgico: a
Gemeinschaft.
A moderna concepo expressivista da comunidade
(herdada do romantismo), que identifica o nexo
social comunitrio com um vnculo de pertena e com
a auto-criao a partir da vivncia na intimidade
plena, foi se convertendo sob a figura da
Gemeinschaft em uma positividade, em uma
construo terica e em um campo de interveno
das Cincias Sociais contemporneas. H diversos

matizes que as Cincias Sociais introduziram nessa


ideia expressivista da comunidade, e um dos mais
notrios concerne ao sentido construtivista e
instrumental que se atribui comunidade na
interveno de carter comunitrio: ao mesmo
tempo em que se concebe como um lugar natural da
solidariedade espontnea, do sentimento de
pertencimento e da intimidade plena, a comunidade
se torna um objeto de planificao, instrumentao,
coordenao, gesto cultural e desenvolvimento com
o propsito de criar e potenciar laos comunitrios,
concebidos como um valioso recurso. (FARR, 2010,
p. 73-74, grifo do autor)

A ideia de campo de interveno, como observa


Farr, define bem a nossa concepo expressivista
da comunidade, ou seja, o significado que tal
conceito assume em nosso pensamento, logo, em
nossas
prticas
investigativas
(sociolgicas,
antropolgicas e comunicacionais).
Se atualmente esse significado expressivista
ainda persiste, sua gnese decorre da referida
estrutura tipolgica que foi incorporada pelas
teorias desenvolvimentistas de meados do sculo
XX, algumas das quais se consagraram no Brasil e
na Amrica Latina rendendo muitos trabalhos,
como foi o caso da Teoria da Modernizao.
Bastante questionada por investigadores da poca
sobretudo pelo socilogo mexicano Rodolfo
Stavenhagen (1981), que a considerou um grande

dogma, uma verdade inquestionada das cincias


sociais latino-americanas , essa teoria chamava
ateno pelo modo como reduzia as singularidades
regionais a um jogo dualista.[5] Reproduzindo
quase que mecanicamente as imagens idealizadas
de
Tnnies,
ela
institua
dois
mundos
completamente distintos entre si, cuja conciliao
dividia as opinies entre progressitas e
conservadores nos departamentos de pesquisa.
Enno Liedke Filho, historiador da Sociologia
brasileira, resumiu assim essa teoria:
A Teoria da Modernizao concebe o processo de
desenvolvimento como uma transio de uma
sociedade rural tradicional para uma sociedade
industrial moderna [...] Essa transio, quando
incompleta, acarreta a coexistncia de ambas as
formas societrias dentro de uma mesma sociedade
nacional, caracterizando-a como uma sociedade dual.
Ressalte-se que esta tese teve ampla aceitao
internacional na sociologia do desenvolvimento, assim
como no mbito das agncias internacionais como a
UNESCO. (LIEDKE FILHO, 2005, p. 386)

Tal dualidade societria, entretanto, perdurou


por muitos anos como modelo explicativo das
disparidades entre as regies do pas, e mesmo das
diferenas urbanas, advindo da aproximaes
entre o campo e a favela (Gemeinschaft) como
entraves geogrficos e civilizatrios das cidades

(Gesellschaft). Como afirma Licia Valladares (2011,


p. 22), percebidas atualmente como um fenmeno
tipicamente urbano, as favelas foram consideradas
durante a primeira metade do sculo XX um
verdadeiro mundo rural na cidade. De fato,
poca de efervescncia dos estudos sobre a
favelizao na Amrica Latina e no Brasil,
circulavam teses antropolgicas como a do norteamericano Oscar Lewis que replicavam aquela
dicotomia atravs de expresses como a cultura
da pobreza e a teoria da marginalizao social.
Segundo seu modelo de interpretao [Lewis], os
habitantes de bairros pobres, de origem rural, teriam
adotado um estilo de vida especfico, caracterizado
por valores e comportamentos diferentes da cultura
dominante. Subcultura produzida e reproduzida por
eles, o que explicaria suas reaes atravs de traos
culturais especficos s situaes sociais s quais
eram confrontados. Essa cultura da pobreza
passaria de uma gerao a outra, mantendo assim
um crculo vicioso capaz de garantir aos pobres
condies de sobrevida na sociedade moderna.
Segundo Oscar Lewis, tal modo de vida terminaria
por gerar uma sndrome especfica das populaes
pobres, em que tanto se manifestava um esprito de
resignao e fatalismo frente ao futuro, quanto uma
certa alegria de viver e uma forte dose de calor
humano, tornando as dificuldades cotidianas mais
suportveis. (VALLADARES, 2011, p. 128-129)

A presena marcante dessa dicotomia nos anos


de 1960 e 1970, poca das primeiras pesquisas em

Comunicao no Brasil,[6] nos leva a supor a sua


influncia tanto na produo de um significado
conceitual de comunidade para o campo, quanto
nos temas arrolados na Comunicao Alternativa,
importante setor de pesquisas comunicacionais da
poca.[7] bem verdade que a essa dicotomia se
associaram outras igualmente atuantes do perodo
(comunismo
x
capitalismo;
localismo
x
globalizao; cultura popular x cultura de massa;
mundo da vida x sistema etc.). Todavia, longe
desses cruzamentos colocarem prova o modelo
dicotmico
generalizante,
ou
mesmo
o
simbolismo
aglutinador
da Gemeinschaft
(NISBET, 1966), esses ganharam ainda mais fora.
COMUNIDADE NA COMUNICAO
A estrutura Gemeinschaft x Gesellschaft, disposta
no vis do desenvolvimentismo (modernizao),
definir dois modos diferentes de se pensar a
comunidade: em oposio sociedade moderna (e
aos seus sistemas ideolgicos) e integrada a ela,
como componente elementar da chamada
sociedade civil (a communitas communitatum
imaginada por Hegel).
Em linhas gerais, podemos divisar esses dois
modos acompanhando o prprio desenvolvimento

das cincias sociais brasileiras, desde a importao


de teorias pelos primeiros pensadores sociais, aos
problemas aqui insurgentes que obrigaram uma
reformulao (e at o abandono) dessas teorias
tais como a questo racial, a condio terceiromundista (consumidor, reprodutor), a exigncia de
um pensamento autctone (reivindicada pelas
chamadas escolas latino-americanas) etc. (LIEDKE
FILHO, 2005) A primeira perspectiva, de matriz
marxista e inspirada na luta de classes, toma a
comunidade a partir de uma posio irredutvel a
tudo o que diz respeito conciliao com o projeto
societal burgus (integratrio), encontrando
materialidade e alento em grupos de trabalhadores
explorados ou marginalizados pelo capitalismo
urbano-industrial.
A segunda perspectiva, que possui razes nos
movimentos populares dos anos de 1970, mas
ganha visibilidade nos anos seguintes a partir de
uma srie de acontecimentos importantes (crise do
mundo comunista, reorientao das alianas
poltico-econmicas em vista do processo
irreversvel
da
globalizao,
movimentos
transclassistas ou multiculturalistas, advento da
comunicao distribuda etc.), ir definir uma
concepo de comunidade com base em um

pluralismo integrador.
Nessa primeira perspectiva, o significado de
comunidade abarcar um conjunto de objetos, de
suposta
mesma
natureza
(internamente
unificados), colocados em oposio frontal forma
social dominante, qual seja, o modo de produo
capitalista
consubstanciado
nos
anseios
massificadores da classe burguesa e do Estado
(enquanto escritrio da burguesia) que, para tal,
lanar mo de seus aparelhos repressores e
ideolgicos. Esse significado evidencia a exigncia
de um forte engajamento poltico e o desejo
inadivel de um projeto de sociedade a longo
prazo, isto , que no se esgota em conquistas
polticas pontuais ou imediatistas. o que podemos
identificar em, pelo menos, trs vertentes
investigativas dos anos de 1970 e 1980, todas de
carter combativo: cultura popular x cultura
dominante (ideologia), campesinato x burguesia e
favela x cidade.
Os trabalhos de Marilena Chau (1986) sobre os
modos de conformismo e resistncia no interior da
cultura brasileira, e de Paulo Freire (1989) sobre a
urgncia de bibliotecas populares (ou centros de
memria popular) enquanto posio crticodemocrtica para consolidao das classes menos

favorecidas, constituem referncias importantes


que traduzem o apelo das mobilizaes
comunitrias contra o repertrio massificado da
mdia hegemnica.
Na frente de combate entre o campo e cidade,
destacamos novamente Freire (1983) e sua
paradigmtica obra Extenso ou comunicao?, que
pe as diferenas entre as duas formaes
societais (urbana e rural) em correlao aos modos
distintos de comunicao (tcnica ou extensionista
vs. dialgica). O processo de libertao
(conscientizao) humana, objetivo pedaggico de
Freire, faz da comunicao uma ferramenta
indispensvel; mas essa, por sua vez, no se
restringe ao dilogo, estendendo-se para o
reavivamento de um tipo de relao intimista
prxima Gemeinschaft (relao orgnica, respeito
tradio, amor fraternal). Nessa vertente, os
conflitos de interesse entre a classe camponesa e a
burocracia ou burguesia agropecuria[8] compem
um pano de fundo comum, tendendo, na maioria
das vezes, para o terreno da resistncia ou do
entesouramento cultural.
Sobre a dicotomia favela x cidade, apresentamse aqui, mais notoriamente, as incidncias de uma
filosofia da prxis[9] e a ideia de sujeito como

agente de seu prprio desenvolvimento


autoctonia que endossar a valorizao do saber
local e da participao popular na construo de
bens comuns (comunitrios), de uso coletivo. Tal
perspectiva, que Valladares (2011, p. 133) definiu
como uma mudana de viso da favela como
soluo e no como problema, advm como
resposta
s
teorias
desenvolvimentistas
protagonizadas pelo Estado e pelo mercado
imobilirio. No obstante, o fundamento que hoje
confere legitimidade ao funcionamento de veculos
comunitrios (os tradicionais jornais, rdios e TVs
comunitrias), mas que, em contrapartida, dado
esse mesmo carter endgeno, o que tem
induzido a algumas limitaes (alcance tcnico,
produo de contedos, audincia, captao de
recursos ou publicidade).
Observa-se que essas dicotomias, caras s
investigaes
e
intervenes
voltadas
ao
desenvolvimento
local,
encontraram
na
Comunicao um terreno frtil que potencializou o
significado romntico da comunidade (em oposio
Gesellschaft) e, desse modo, o sentido
construtivista e instrumental enfatizado por Farr
(2010). Em parte, isso pode ser atribudo prpria
constituio desse campo que, de maneira

pragmtica e principiante, operou com a


simplicidade das polarizaes (comunicao de
massa x comunicao alternativa, cultura de massa
x cultura popular, direita x esquerda) e modelos
frgeis, unidirecionais (emissor receptor;
dominador [forte, poderoso] dominado [fraco,
indefeso]) que reforavam o pensamento
salvacionista da comunidade.
Exemplo disso a prpria dicotomia bsica da
Comunicao, predominante nos anos de 1970 e
1980, entre apocalpticos e integrados, que
contribuiu ainda mais para prolongar aquela
estrutura polarizada (Gemeinschaft x Gesellschaft),
na medida em que sublinhava o papel dos
apocalpticos enquanto guardies da crtica, um
nus que demandava uma posio inflexvel (no
conciliatria com a integrao massificadora da
sociedade), logo, implicitamente, a salvaguarda
das comunidades, j que dessas emanavam as
manifestaes autnticas da cultura.
A recuperao desse contexto terico-conceitual
pode ser observada em Vera Veiga Frana (2013,
p. 2), conforme segue:
[...] no contexto daquela poca [1970], a distino
apocalpticos e integrados e a diviso entre estudos
(e grupos) crticos x descritivos faziam pleno sentido.

A Teoria Crtica da Escola de Frankfurt estava na


moda, assim como a rejeio aos estudos norteamericanos e escola funcionalista, numa diviso que,
grosso modo, reproduzia no campo acadmico a
oposio esquerda-direita no cenrio poltico. Os
conceitos de classe e ideologia, no mbito da
perspectiva crtica, eram centrais.

O carter marcadamente polar e assimtrico das


estruturas cognitivas comunicacionais, bem como a
forte influncia marxista implcita em axiomas
como a reproduo ideolgica, a luta de classes, a
reapropriao dos meios de produo da
mensagem, o papel do sujeito na histria, a
emancipao humana pela conscincia, portanto,
consolidaram-se como importante matriz semntica
da comunidade.
Esses elementos podem ser percebidos nos
prprios temas de Comunicao da poca, muitos
dos quais em plena sintonia com os problemas que
afligiam o pas e as pautas sociolgicas (a
redemocratizao,
os
movimentos
sociais
populares, a resistncia s imposies burguesas e
governamentais). Temas que indicavam objetos e
corpus variados (jornal de bairro, jornal operrio,
imprensa alternativa, jornal popular, rdio pirata,
rdio livre etc.), agregados em reas de
concentrao
pouco
precisas
(comunicao
alternativa, participativa, horizontal, popular,

emergente, contrainformao...), mas que, no


geral, ressaltava um ou outro aspecto do modelo
dicotmico, alm dos referidos axiomas.
Em meio a essas vrias dicotomias, cabe
destacar os levantamentos bibliogrficos e
sistematizaes
empreendidas
por
Beatriz
Dornelles (2007) e Ciclia Peruzzo (2009a, 2009b)
nas reas citadas acima. Essas autoras, ao
constatar o emaranhado de fios dicotmicos que
prendiam termos como o popular, o alternativo
e o comunitrio, causando certa confuso
conceitual nas atuais pesquisas, propuseram uma
melhor categorizao desses termos a partir dos
principais problemas que tais reas gestavam.
A pesquisa de Dornelles, por exemplo, tem o
mrito de precisar duas importantes dicotomias
(comunicao alternativa x comunicao de massa
e popular x burguesia) que muitas vezes se
misturam ou se intercambiam produzindo
combinaes que levam, com frequncia, a
compreenses ambguas, tal como o conceito de
jornal popular.
No fcil definir o que Comunicao Popular,
usada praticamente como sinnimo de Comunicao
Comunitria, Comunicao Participativa, Comunicao
Alternativa, Comunicao Dialgica (horizontal) etc.
Regina Festa identificou 33 tentativas de definir

comunicao popular e/ou alternativa na Amrica


Latina. [Pedro Gilberto] Gomes observou que o
conceito alternativo parece apontar para uma
contraposio comunicao massiva, enquanto que
o conceito popular diz respeito insero num
contexto alternativo de luta que visa estabelecer uma
nova sociedade a partir da tica das classes
populares. [Christa] Berger observa que o ponto
comum entre os autores est no objetivo: a outra
comunicao busca transformar a Comunicao de
Massa, para que as classes e os grupos dominados
tomem a palavra e alcancem uma sociedade mais
justa. (DORNELLES, 2007, p. 5)

Embora a pesquisa de Dornelles no se volte


precisamente para o conceito de comunidade
mas para a expresso comunicao popular,
utilizada por autores latino-americanos e brasileiros
(em especial Gomes, Festa e Berger) , possvel
localizar o lugar semntico onde a comunidade
alojada nessa compilao de termos entre os anos
de 1960 a 1980, isto , enquanto conjunto parte
da sociedade capitalista, e marcada pelo seu forte
apelo poltico e aglutinador.
Isso se verifica no prprio entendimento de
jornal comunitrio (jornalismo ou imprensa
comunitria), expresso designativa de uma
economia de subsistncia da informao ou de uma
produo comunicativa intimista (destinada
ritualizao de elementos fundantes do grupo),

uma ideia compartilhada entre estudiosos da


poca, como Jos Marques de Melo (1979, p. 112)
[...] uma imprensa s pode ser considerada
comunitria quando se estrutura e funciona como
meio de comunicao autntico de uma
comunidade. Isto significa dizer: produzida pela e
para a comunidade , ou ainda Ciro Marcondes
Filho (1992, p. 160-161, grifo nosso):
O jornalismo comunitrio o meio de comunicao
que interliga, atualiza e organiza a comunidade e
realiza os fins a que ela se prope. Falar-se, ento,
de jornalismo de bairro, de judeus, de negros como
jornais comunitrios falso. Pode ser, porm, jornais
feitos por certas comunidades de negros, judeus ou
de bairros. Como exps Agnes Heller, desses grupos
pode-se formar uma comunidade na medida em que
haja uma estruturao (no caso, j dada), uma
dinmica interna que a separe da sociedade global e
uma preocupao com a realizao da individualidade
e dos objetivos do grupo.

Outro subsdio importante genealogia da


comunidade na Comunicao fornecido por Ciclia
Peruzzo (2009a, p. 48) com a organizao das
referidas reas de concentrao, objetos e corpus
de pesquisa em um nico setor (a comunicao
alternativa). A autora prope, a partir da, a
segmentao das pesquisas em duas grandes
correntes que tambm tm seus desdobramentos:
[1] comunicao popular, alternativa e comunitria,

e [2] imprensa alternativa. (PERUZZO, 2009b, p.


133)
Mas a grande contribuio de Peruzzo (2009a, p.
47, grifo do autor) provm da anlise diacrnica do
setor onde ela observa o surgimento de um centro
agregador de estudos (a comunicao comunitria)
em conformidade com a mudana de seu conceito
principal (a comunidade).
A comunicao popular foi tambm denominada de
alternativa, participativa, participatria, horizontal,
comunitria, dialgica e radical, dependendo do lugar
social, do tipo de prtica em questo e da percepo
dos estudiosos. Porm, o sentido poltico o mesmo,
ou seja, o fato de tratar-se de uma forma de
expresso de segmentos
empobrecidos
da
populao, mas em processo de mobilizao visando
suprir suas necessidades de sobrevivncia e de
participao poltica com vistas a estabelecer a justia
social. No entanto, desde o final do sculo passado
passou-se a empregar mais sistematicamente, no
Brasil, a expresso comunicao comunitria para
designar este mesmo tipo de comunicao, ou seja,
seu sentido menos politizado. Na prtica, a
comunicao comunitria por vezes incorpora
conceitos e reproduz prticas tipicamente da
comunicao popular em sua fase original e,
portanto, confunde-se com ela, mas ao mesmo
tempo constri outros matizes. Por exemplo, s
vezes se desconecta de movimentos sociais e
assume feies diversificadas quanto s bandeiras
defendidas e mensagens transmitidas. A grande
mdia tambm incorporou a palavra comunitrio para
designar algumas de suas produes.

O diagnstico apresentado pela autora sobre


outros matizes assumidos pela noo de
comunidade no campo, alguns at apropriados pelo
mercado, o que tem motivado o recente
movimento de redescrio do conceito, como
aquele verificado em Raquel Paiva no claro intuito
de dar uma nova gnese expresso comunicao
comunitria.[10] Paiva, que desde a ltima
dcada do sculo XX vem insistindo no valor
poltico (crtico, reivindicativo e contestatrio) dos
veculos comunitrios de comunicao (jornal, rdio
e TV), acrescentou ortodoxia terica marxista o
olhar gramsciano da cultura, redefinindo a
comunicao comunitria logo, o prprio conceito
de comunidade como fora contra-hegemnica
no campo comunicacional. (PAIVA, 2007, p. 137)
O olhar de Paiva, sensvel s mudanas
sobrevindas no campo histrico e s contingncias
que costuram as alianas polticas no bloco social,
se junta ao de outros (como Peruzzo) que
compartilham, a partir de um compromisso com a
democracia, uma viso mais flexvel do
desenvolvimento, portanto, mais prxima da
realidade dos grupos, de suas demandas e
possibilidades de conquistas polticas e sociais.
Com o passar do tempo, o carter mais combativo

das comunicaes populares no sentido polticoideolgico, de contestao e projeto de sociedade


foi cedendo espao a discursos e experincias mais
realistas e plurais (no nvel do tratamento da
informao, abertura negociao) e incorporando o
ldico,
a cultura e o divertimento com mais
desenvoltura, o que no significa dizer que a
combatividade tenha desaparecido. Houve tambm a
apropriao de novas tecnologias da comunicao e
incorporao com mais clareza da noo do acesso
comunicao como direito humano. (PERUZZO,
2009a, p. 52, grifo nosso)

Tudo isso, na verdade, aponta para o


abrandamento de uma viso poltica radical (dura,
ortodoxa ou apocalptica) e a emergncia de um
vis mais integrado (FRANA, 2013) ou menos
politizado, sem deixar de ser combativo.
(PERUZZO, 2009a) Uma transformao que
acompanhava um movimento ainda mais amplo do
pensamento social brasileiro, conforme apontou
Liedke Filho.[11]
Essa mudana pode por ser verificada na prpria
noo de comunidade que passa a integrar amplos
setores da sociedade ao invs de se referir
somente a uma classe social. Marcondes Filho v a
uma modificao muito importante, pois indica o
enfraquecimento de um significado retrgrado,
uma viso romntica e idealista de recuperao
de um mundo no to dominado por contradies

capitalistas, um mundo como na utopia da


comunidade comunista, que tem existncia
exclusiva no imaginrio das esquerdas. Segundo
ele,
Comunidade no pode ser vista como uma
alternativa sociedade (capitalista, no caso). parte
dela, e sua lgica funciona junto com a da sociedade
maior, despersonalizada, annima etc. somente
dentro dessa perspectiva que cabe colocar o
problema da comunidade e da comunicao (do
jornalismo) dentro dela. (MARCONDES FILHO, 1992,
p. 156)

O rompimento semntico entre comunidade e


classe social faz-se necessrio, segundo o autor, a
fim de conferir maior concretude poltica s
inmeras comunidades (ou grupos de presso
popular), uma vez que essas possuem leis prprias
e talvez mais condies de entrosamento e de
auto-realizao do que a classe. (MARCONDES
FILHO, 1992, p. 157)
Em um perodo que se via s voltas com o
imperativo da redemocratizao, o cuidado com a
autonomia de grupos polticos e organizaes
populares constitua uma preocupao frequente
para
muitos
pensadores
brasileiros
da
Comunicao, entre eles, Marcos Palcios. No
toa que em seu texto intitulado Sete teses

equivocadas sobre a comunidade e a comunicao


comunitria ele reivindica no s a disjuno
conceitual apontada por Marcondes Filho, mas uma
necessria reviso crtica da dicotomia fundadora, a
Gemeinschaft
x Gesellschaft, que, naquele
momento, havia nos levado a alguns equvocos.
As comunidades exprimem diferenas dentro do
sistema capitalista. Categorias profissionais diversas,
conquanto certamente formadoras do conjunto de
trabalhadores de um pas, possuem caractersticas e
especificidades que as diferenciam entre si. Ainda que
elas possam se aproximar atravs de motivaes de
ordem geral (como uma luta contra uma poltica
salarial governamental servindo como catalisador
para vrias comunidades de trabalhadores, por
exemplo), as suas especificidades no devem ser
perdidas de vista. As comunidades de interesses,
ainda quando constitudas por representantes de
uma mesma classe social, no se diluem ou se
confundem com a classe. Tal preservao de
especificidades e traos distintivos de grupamentos
sociais diferenciados , em nosso entender, sadia. e
desejvel. (PALCIOS, 1990, p. 106, grifo nosso)

H, de fato, sempre algum risco nas


apropriaes
dedutivistas
ou
dogmticas
(doutrinrias). No caso da aproximao da
estrutura dicotmica de Tnnies com as classes
antagnicas, o risco pode variar desde a distoro
da realidade vivida dos grupos (segundo imagens
idealizadas) ao obscurecimento de fenmenos

polticos no categorizveis em termos de classe


social.
Liedke Filho, citando Guerreiro Ramos, faz um
alerta nesse sentido: certas aproximaes, se por
um lado mostram-se aprovveis do ponto de vista
lgico, por outro, confirmam a fragilidade de um
pensamento incapaz de pensar fora dos conceitos
tradicionais, ou mesmo de critic-los ou abandonlos em funo de outros mais ajustados a seu
contexto social.
Houve tempo em que se tentou explicar a evoluo
do Brasil luz das leis gerais da evoluo sob a tica
positivista, sendo que atualmente este dedutivismo
perceptvel em trabalhos de socilogos brasileiros
aficionados do marxismo [...] Principalmente, quando
tentam explicar os nossos problemas polticos e
jurdico-sociais, muitos o fazem segundo estudos
marxistas aplicados a pases estrangeiros, ou
segundo aplicao mecnica de categorias marxistas.
Procedimento este, diga-se logo, que contraria a
essncia do marxismo, mas que assinala a fora do
impacto da situao colonial na psicologia do
colonizado. (RAMOS, 1957 apud LIEDKE FILHO,
2005, p. 393)

De outro modo, a ampliao da ideia de


comunidade para um conceito mais afinado com
suas leis prprias (MARCONDES FILHO, 1992) ou
com as especificidades dos grupos (PALCIOS,
1990)
nos conduz a
uma
compreenso

hegeliana[12] na medida em que desloca o


protagonismo da classe social para o conjunto das
instituies modernas (famlias, associaes,
partidos polticos e demais organizaes civis),
segundo a movimentao livre do esprito
(subjetividade).
Ora, em torno desse conceito que hoje tem
gravitado a maioria das pesquisas comunicacionais
dedicadas ao tema das comunidades. Desde
aquelas de tendncia militante, participativa
(pesquisa-ao; anlise, gesto e aperfeioamento
de veculos comunitrios), at aquelas de cunho
comunitarista ou mobilizatria (uma resposta civildemocrtica onda neoliberal dos anos de 1980:
jornais de bairro, ONGs ou grupos sociais,
independentemente de sua condio econmica).
Enquadram-se tambm dentro desse princpio as
comunidades virtuais que, nos ltimos anos, tem
chamado muita ateno dos pesquisadores do
campo.
A expresso, trazida por Howard Rheingold em
livro homnimo, relaciona-se a novas formas de
associao e sociabilidade (em alguns casos, de
politizao)
nesse
territrio
infotecnolgico
conhecido como rede (web).

As comunidades virtuais so agregados sociais que


surgem da Rede, quando uma quantidade suficiente
de pessoas leva adiante essas discusses pblicas
durante um tempo suficiente, com suficientes
sentimentos humanos para formar redes de relaes
pessoais no espao ciberntico. (RHEINGOLD, 1996,
p. 20)

Embora
essas
comunidades
fossem
j
conhecidas desde o final do sculo passado pelos
investigadores da Comunicao, a sua popularidade
no sculo XXI viria com o uso massificado de
microcomputadores pessoais e internet, de
aparelhos mveis de telefonia, games e jogos online, alm, claro, dos sites de relacionamento
(Orkut, Twitter, Facebook etc.).
As indagaes sobre a natureza efetivamente
sociotcnica dessas comunidades, alm das
numerosas expresses que se associaram a elas
em geral rtulos propagandeados pela mdia
(ciberjornalismo, ativismo de sof, protestos
digitais,
movimento hacker etc.) , talvez
justifiquem o interesse crescente de pesquisadores.
Mas no se pode duvidar do grande impacto que
essa expresso (comunidade virtual) produziu na
disciplina ao embaralhar velhos conceitos (como
o caso da Gemeinschaft), exigindo de seus
epistemlogos a reviso de seus fundamentos, ou
ainda, ao ampliar seus objetos, conforme o novo

contexto comunicacional nele implicado agora


no mais restrito s dicotomias e polarizaes
clssicas (emissor x receptor, dominador x
dominado, comunicao de massa x comunicao
alternativa, entre outras).
Mesmo que seja ainda difcil a aceitao da
sociabilidade e da participao poltica em suas
formas virtualizadas, a expresso d notoriedade a
essas questes, alm das prticas da comunicao
distribuda modalidade comunicativa no mais
monopolizada por um nico agente (o emissor) e
livre da unidirecionalidade processual que a
caracteriza desde os seus primrdios.[13]
Em termos de pesquisa, os questionamentos
sobre as comunidades virtuais trouxeram para a
Comunicao outras importantes reas do
conhecimento (Estudos da Linguagem, Ciberntica,
Cincias da Computao, Informtica, Filosofia),
ampliando a sua base sociolgica. Essas
aproximaes foram tributrias de uma crescente
percepo sistmico-estrutural que vinculava
comunidade
e
comunicao
mediante
as
problemticas do comum: compartilhamento de
subjetividades e arquivos digitais; colonizao da
linguagem/cultura
pelas
grandes
empresas
multimiditicas; privatizao e vigilncia de bens

coletivos; interdio, ruptura ou subverso de


cdigos e sistemas simblicos e culturais.
A produtividade desse dilogo interdisciplinar
permitiu
resgatar
conceitos
comunitrios
tardiamente utilizados (por exemplo, a contrahegemonia e o capital social[14]), alm de ampliar
outros j consagrados em seus campos de origem,
mas que tm um desenvolvimento original na
Comunicao (a interatividade e a minerao de
dados, a Lebenswelt, a semiosfera, entre outros).
ESTADO DE ARTE DA COMUNIDADE
Paralelamente a essas interseces tericas,
comparecem tambm na Comunicao importantes
reflexes sobre o estatuto ontolgico do referido
conceito de comunidade.[15] Inspiradas na filosofia
desconstrutivista
(ou
ps-estruturalista)
de
pensadores como Georges Bataille, Maurice
Blanchot, Jean-Luc Nancy, Jacques Derrida, Giorgio
Agamben e Roberto Espsito, tais reflexes tm
colocado sob suspeita o fundamento da
comunidade e suas variadas manifestaes
conceituais (Gemeinschaft, comunitarismo, tica da
comunio etc.), qual seja, o substancialismo
comunitrio.

Por
substancialismo
comunitrio
pode-se
compreender a lgica fundadora de toda
comunidade: 1) definio de uma substncia
prpria, essencial, supostamente expropriada
(identidade, territrio, tradio etc.), que totaliza
todo o grupo e que, portanto, deve ser recuperada;
2) excluso das singularidades ou daqueles
(sujeitos) que ora recusam tal ressarcimento (e
ritualizao), ora a criticam, ora propem uma
ciso interna do grupo.
Embora sejam variadas as expresses propostas
por cada autor para fazer frente ao substancialismo
das comunidades,[16] essas se aproximam na
percepo (e crtica) de um germe totalitrio
presente em toda manifestao comunitria.
Segundo esses pensadores, nas tentativas de
acoplamento conceitual visando adequ-la s
demandas sociais e polticas do momento, o
substancialismo
comunitrio
permaneceu
praticamente inalterado. Mesmo quando se parte
de reformulaes pontuais, como em Rheingold, o
princpio que o orienta ainda um essencialismo
inquisidor, voltado tanto satisfao pessoal na
procura do outro (no caso da sociabilidade), quanto
no uso da comunidade para fins polticos
particulares de grupos e organizaes sociais.

Essas crticas, entretanto, so de grande valor,


pois alertam para uma necessria reviso
epistemolgica da comunidade no s no campo
comunicacional, mas nas cincias humanas e
sociais como um todo.
De fato, desde a importao sociolgica da
comunidade (do contexto europeu ao Brasil, e da
Sociologia Comunicao), observa-se que tal
conceito nunca passou por uma provao
ontolgica, sendo incorporado pragmaticamente
pelas preocupaes (ou temas) consoantes aos
fatos histricos brasileiros, sob a tica de
determinados agentes: crtica aos modelos
econmico-excludente
e
poltico-autoritrio;
exaltao dos movimentos sociais urbanos e rurais
(alm do novo sindicalismo); participao e
comportamento poltico sob a dominncia da
Teoria da Dependncia. (LIEDKE FILHO, 2005, p.
399-400)
De maneira dispersa, porm incisiva, autores
como Palcios, Farr e Sodr, j h algum tempo,
vem apresentando o lado limitador e contraditrio
das apropriaes substancialistas da comunidade
(a exemplo da Gemeinschaft), acautelando-nos
sobre o seu uso irrefletido e inconsequente, bem
como exigindo o revisionismo crtico-ontolgico

para seus campos de aplicao.


No citado texto de Palcios (1990), por exemplo,
o autor examina pontos nevrlgicos da
comunicao alternativa que se tornaram verdades
inquestionadas, tais como o dogma dos
movimentos
comunitrios
enquanto
ideal
progressista (e no como algo potencialmente
conservador) ou aquilo que o autor chama de
sndrome do partipacionismo, a exigncia de
certas condies para que algo seja da
comunidade.
Pode-se ver nessa sndrome uma espcie de
transcendentalizao do comum da comunidade, ou
seja, o estabelecimento de uma relao especfica
(universal particular) para a totalidade dos entes
comunitrios. Nessa relao, determina-se um
modelo ideal e abstrato de comunidade (a
participao), a partir do qual todos os entes j
entram como degradaes. Inexiste aqui qualquer
imanncia (emergncia singular), considerandose apenas uma nica eminncia (erudio
valorativa deliberada de cima para baixo) e
manifestaes menores (degradadas), segundo a
estruturao hierrquica subjacente.
Outra crtica ao substancialismo da comunidade
provm de Farr e se dirige s disciplinas que,

assim como a Comunicao, dedicam-se ao


desenvolvimento local ou comunitrio. Segundo
ele, essas disciplinas partem de pr-concepes da
Gemeinschaft (ou de construes idealizadas) e,
em geral, obrigam os pesquisadores a formatarem
seus trabalhos segundo essas imagens ou a
participarem
dos
projetos
sociais
j
implementados.
Mesmo quando a interveno comunitria visa o
aprimoramento ou o fortalecimento das formas de
ao e participao da comunidade ( margem dos
interesses do Governo e outras agncias pblicas ou
privadas), opera-se, com frequncia, a partir da
viso idealizada do profissional da atividade
comunitria. Semelhante pr-concepo costuma
superestimar a orientao ao consenso e a paixo
participativa dos atores sociais, de modo que, ao
topar com os conflitos internos e com os modos de
reao excludente que se apresentam realmente em
suas comunidades de interveno, o trabalhador
comunitrio se v forado a operar como um
conselheiro e mediador tutelar. Em suma, a
instrumentalizao da interveno comunitria, por
agncias cada vez mais profissionais de investigao
e desenvolvimento comunitrio, no s faz com que
a busca de resultados se enquadre em diretrizes
prvias, forando a comunidade a enquadrar-se em
uma estrutura ou marco organizativo teoricamente
pr-fixados. Ademais, a interveno comunitria
inspirada na concepo expressiva da comunidade
[Gemeinschaft] introduz demasiadas presunes
idealizadas sobre a harmonia e o pertencimento
comunitrio. (FARR, 2010, p. 78, grifo nosso)

s comunidades virtuais pesam tambm crticas


como aquelas que recaem sobre o pressuposto
democrtico da informao (seu acesso pblico e
ilimitado) ou sobre o pensamento liberal e/ou
tecnicista utopias cibernticas, nas palavras de
Sodr que nos ltimos anos tem ocupado o vazio
deixado pelas antigas vanguardas polticas; uma
nova mitologia (sustentada pela ideologia moral
da boa conscincia tecnolgica), na qual
comunidade e tica universalista se constroem por
mero efeito de uma interatividade ciberntica,
democrtica e mercadologicamente administrada.
(SODR, 2002, p. 203)
Essa mitologia, segundo o autor, d a impresso
de um reavivamento poltico da comunidade numa
nova esfera tecnocultural. Porm, exatamente o
contrrio o que decorre, pois a formao de redes
de relaes pessoais no espao ciberntico, como
atesta Rheingold (leia-se: uma rede intimista,
personalista
ou
familiar),
aniquila
a
simbolizao,[17] a ambivalncia ou o conflito
decorrente da presena (ou acolhimento) do outro
(diferente).
A cultura ciberntica apresenta-se at agora como
dessimbolizante, na medida em que se constri em
torno de relaes imaginrias sem sadas externas
para o desejo dos sujeitos e em que politicamente

pretende neutralizar conflitos e tenses (o nico a ser


considerado a pane ou o rearranjo tcnico do
sistema), seja na troca estritamente comunicacional,
onde vige a retroao museificante e arqueolgica
dos contedos culturais; seja na relao genrica de
um eu com um outro. Pretende, na verdade,
controlar ou virtualizar a prpria dimenso simblica.
(SODR, 2002, p. 164-165)

Segundo tais autores, tomar a comunidade como


classe social, manifestao da cultura ou de um
eu agigantado nas redes cibernticas, constituem
prticas que, de sada, suprimem a singularidade
das associaes humanas presentes nos espaos
sociais. O uso de um quadro pr-definido, embora
possa nos ajudar na orientao sobre os vetores
associativos predominantes em uma determinada
formao histrico-social, de algum modo,
corrobora para sua inrcia ou monotonia, na
medida em que ignora manifestaes no
subjetivas que passam fora ou atravessam
obliquamente as categorias transcendentais.
No atual estado de arte das pesquisas sobre
comunidade,
sobretudo
na
Comunicao,
etnografias e estudos de casos em torno dessas
singularidades (experincias micropolticas, prticas
artsticas, fenmenos no subjetivos) so
sintomticos de uma mudana radical na forma de
se pensar a comunidade.

A transio de um modelo dual simplificador


para as diversidades humanas (multiculturalismo),
e dessas recentes e heterogneas manifestaes
sociais amparadas por dispositivos mveis de
comunicao, traam aqui no uma linha histricoevolutiva da semntica comunitria, mas um
campo de tenses interpretativas de um conceito
imprescindvel ao pensamento social e
Comunicao.
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NOTAS
[1] Gemeinschaft definida por Tnnies (1995, p. 231) como relao
ou associao humana proveniente da atividade projetiva de
indivduos que expressam uma vontade de unio especfica
(Wesenwille): [...] tudo aquilo que partilhado, ntimo, vivido
exclusivamente em conjunto [...] ser entendido como a vida em
comunidade [...] Na comunidade, h uma ligao desde o
nascimento, uma ligao entre os membros tanto no bem-estar
quanto no infortnio. Diversamente, a Gesellschaft define-se por
outro tipo de vontade (Krwille) que estabelece uma forma social
mecnica, atomizada e impessoal, portanto, oposta
Gemeinschaft.
[2] Para uma anlise mais aprofundada do tema comunidade como
inveno do sculo XIX ver Benedict Anderson (2008) e Jean-Luc
Nancy (2000).
[3] A comunidade no constituiu apenas o principal domnio de

interesse emprico dos socilogos manifesto em estudos de


parentesco, localidade e associao , mas uma perspectiva, uma
metodologia, que iluminava os estudos de religio, autoridade, lei,
linguagem, personalidade, e dava um novo escopo ao problema da
organizao e da desorganizao. A sociologia deu primazia ao
conceito de social. O ponto a ser enfatizado aqui que o social
tinha como referncia o comunal. a communitas e no a
societas com suas conotaes impessoais a verdadeira etimologia
da palavra social, utilizada pelos socilogos em seus estudos sobre
personalidade, parentesco, economia e poltica. (NISBET, 1966, p.
56)
[4] Sobre isso conhecida a lei dos 3 estados (teolgico, metafsico
e positivo), uma suposta evoluo no do ser humano europeu,
mas do homem em geral (esprito humano) em que se distingue
um centro ou uma instncia ideal do desenvolvimento (que, no por
acaso, a imagem inequvoca das cidades industriais europeias).
Segundo essa lei, todas as outras civilizaes do mundo deveriam
ser cotejadas e auxiliadas pelo centro para atingirem este
momento de plenitude da humanidade: o positivismo.
[5] No h dvida de que em todos os pases latino-americanos h
grandes diferenas sociais e econmicas entre as reas rurais e
urbanas, entre indgenas e no-indgenas, entre a massa de
camponeses e as pequenas elites urbanas e rurais, e entre regies
muito atrasadas e outras bem desenvolvidas [...] Estas diferenas,
contudo, no justifica o uso do conceito sociedade dual: em
primeiro lugar, porque os dois plos so o resultado de um nico
processo histrico, e em segundo lugar, porque as relaes mtuas
que conservam entre si as regies e os grupos arcaicos ou feudais
e modernos ou capitalistas representam o funcionamento de uma
s sociedade global de que ambos os plos so partes integrantes.
(STAVENHAGEN, 1981, p. 16, grifos do autor)
[6] A referncia aqui de Vera R. Veiga Frana (2013), que
estabelece como marco o ano de 1969, quando o Conselho Federal
de Educao (CFE-MEC), atravs da Resoluo n 11/69,

transforma os cursos de Jornalismo em cursos de Comunicao


Social. Jos Marques de Melo (2008), por sua vez, aponta o ano de
1963 como marco dos estudos cientficos da comunicao, quando
o ento jornalista Luiz Beltro funda, na Universidade Catlica de
Pernambuco (Unicap), o Instituto de Cincia da Informao
(Inciform).
[7] Na obra Temas bsicos em Comunicao , organizado por Roberto
Peres de Queiroz e Silva, no ano de 1983, tpicos como
comunicao popular, contrainformao, imprensa alternativa e
imprensa operria so arrolados ao setor da comunicao
alternativa. Expresses como comunicao horizontal ou
participativa, comunicao emergente, entre outras, esto
subsumidos nesses tpicos ou diludos em outros temas.
[8] Cf. Wilson Corra Fonseca Jr. (2003), O autor resgata o vis
marxista da sociologia rural, a reboque da qual a Comunicao foi
conduzida. Esse resgate se faz na forma de uma crtica viso
predominante (difusionista), na qual ele enfatiza o carter
excessivamente institucionalizado do difusionismo, em que tcnicos
agrcolas e burocratas definiam os objetos de pesquisa e a prioridade
dos assuntos a serem investigados, levando ao srio risco do
desvirtuamento da sociologia.
[9] Segundo Doimo (apud VALLADARES, 2011, p. 134) a partir do
incio dos anos 1970 a ideia do povo como sujeito estava muito
presente no discurso de muitos atores sociais importantes, entre os
quais ela cita: a Igreja Catlica, especialmente os seus setores
progressistas; o ecumenismo, particularmente aqueles de perfil
secular, ligado tica do compromisso social; segmentos da
intelectualidade acadmica, principalmente os que fundaram centros
independentes de pesquisa em resposta ao expurgo das
universidades impetrado pelo regime militar; e agrupamentos de
esquerda, ento dilacerados pela ditadura e to logo desencantados
com as frmulas violentas de ao transformadoras. A inspirao
assistencialista dos programas de desenvolvimento comunitrio,
como aqueles financiados pela Aliana para o Progresso, voltou

cena com o aumento do anti-imperialismo, assim como com a


influncia de novas correntes europeias como a filosofia da prxis e
a interpretao marxista da sociedade e da cidade.
[10] [...] cada vez mais e de forma muito mais agressiva, impe-se
a necessidade de se reinterpretar o conceito de comunicao
comunitria. E esta uma perspectiva animadora, porque se
percebe que h em curso formas diferenciadas de compreenso e
de conceituao. Cada vez mais se sente a premncia daqueles que
atuam nos veculos de comunicao comunitria, em especial o
grupo da radiodifuso, de sistematizar formas para o
aprimoramento da linguagem e da produo de novas formas
discursivas. (PAIVA 2007, p. 137)
[11] Segundo o autor, uma Nova Sociologia emerge nas ltimas
dcadas do sculo XX (ancorado em autores como Bourdieu,
Foucault, Giddens, Elias, Habermas e Weber), deslocando os
estudos sobre os movimentos democrtico-populares para as
questes (microssociais) de identidade e representao: A
Sociologia no Brasil, no perodo dos anos 60 e 70 para os anos 90,
vivenciou uma passagem de anlises macros-sociolgicas de crtica
ao modelo econmico-social excludente do milagre e de crtica ao
modelo autoritrio para uma microssociologizao dos estudos. Em
grandes linhas, verificou-se uma evoluo temtica da Sociologia
brasileira nos seguintes termos: de grandes interpretaes
macroestruturais do modelo econmico-poltico-cultural do regime
anterior, passou-se para a anlise dos agentes e caractersticas da
transio democrtica, seguida dos temas da democratizao
necessria, dos movimentos sociais e da estratgia de reativao da
sociedade civil. Rapidamente, ocorreu uma dissociao da questo
dos movimentos sociais em relao a condies macroestruturais,
passando a Sociologia a dedicar-se massivamente a enfocar as
identidades e representaes sociais dos movimentos urbanos e
rurais, do movimento sindical, dos movimentos feministas e gay, do
movimento negro e dos movimentos ecolgicos. (LIEDKE FILHO,
2005, p. 425-426)

[12] A referncia filosfica pode ser encontrada no 447 da


Fenomenologia do esprito: O esprito a comunidade que para
ns, ao entrarmos na figurao prtica da razo em geral, era a
essncia absoluta, e que aqui emergiu em sua verdade para si
mesmo, como essncia tica consciente, e como essncia para a
conscincia, que ns temos por objeto. o esprito que para si
enquanto se mantm no reflexo dos indivduos, e que em si, - ou
substncia, - enquanto os contm em si mesmo. Como substncia
efetiva, o esprito um povo; como conscincia efetiva, cidado
do povo. (HEGEL, 1992, p. 11, grifo nosso)
[13] Sobre a comunicao distribuda, ver Henrique Antoun (2008, p.
16): Nos anos 90, o poder integrador das pginas web e do
universo que formavam trouxe para a comunicao distribuda a
reunio dos diferentes movimentos em aes coletivas, seja para
empreender uma luta comum, seja para construir uma atividade
comum. A dinmica da distribuio das informaes e dos debates
desenvolvidos pelos grupos de discusso se alia gesto do
conhecimento como um bem comum de todos das pginas web e
stios virtuais. A paixo dispersiva das opinies e ideologias e a
paixo concentradora do consumo e dos gostos encontram sua
remediao na mdia interativa de comunicao distribuda.
[14] Ambos os conceitos tm sido empregados s estruturas
discursivas multimiditicas.
[15] Cf. Paiva (2007).
[16] Comunidade dos sem comunidades (Bataille), comunidade
inconfessvel (Blanchot), comunidade inoperante (Nancy),
comunidade anacoreta (Derrida), comunidade que vem (Agamben),
communitas (Espsito).
[17] Simbolizao, para Sodr (2005, p. 37), designa uma situao
conflitiva, a troca de um smbolo (sistema de regras) por outro. O
que se troca? No a natureza pela conveno, [...] mas uma
conveno por outra, um termo grupal por outro, sob a gide de
um princpio estruturante que pode ser o pai, o ancestral, Deus, o
Estado etc. o smbolo que permite ao sentido engendrar limites,

diferenas, tornando possvel a mediao social. E s pode faz-lo


enquanto uma ordem irredutvel a qualquer outra.

CARLOS A. CARVALHO E LEANDRO R. LAGE

Sobre contribuies
epistemolgicas de Paul Ricoeur
para estudos em Comunicao:
ao, narrativa e acontecimento
INTRODUO: PAUL RICOEUR E A COMUNICAO
As comemoraes do centenrio de nascimento de
Paul Ricoeur, em 2013, so um momento oportuno
para destacar algumas das contribuies da obra
do filsofo para o campo de estudos em
Comunicao. No Brasil, diversos pesquisadores
vm se apropriando das obras de Ricoeur para
tratar de questes concernentes esfera dos
problemas comunicacionais, entre as quais
discusses sobre temporalidades (BARBOSA, 2008),
narrativas (MOTTA, 2004; RESENDE, 2009) e
epistemologia. (BARROS, 2012; CARVALHO, LAGE,
2012; FRANA, 2013) Em outros pases, a filosofia

ricoeuriana tambm tem sido inspiradora para uma


srie de pesquisas do campo da Comunicao,
especialmente aquelas que tm as narrativas como
lugar de desafios tericos e metodolgicos
(ARQUEMBOURG, 2003; LITS, 1997; TTU, 2000)
So escassas, porm, as referncias diretas a
Ricoeur como um autor cuja vasta obra tem
oferecido aportes tericos significativos para o
entendimento de processos comunicacionais.
(BARBOSA, 2006; CARVALHO, 2012)
Embora raramente tenha tratado de problemas
especficos e circunscritos ao horizonte de estudos
em Comunicao, a filosofia ricoeuriana vem
fornecendo insights de grande relevncia para
conceitos e questes caros ao nosso campo, como
os de texto e interpretao (RICOEUR, 1989), de
narrativa (RICOEUR, 2010a; 2010b; 2010c), de
identidade (RICOEUR, 1991a), de memria e
esquecimento (RICOEUR, 2007), alm de noes
importantes para estudos recentes da rea, como
as
de
acontecimento
(RICOEUR,
1991b),
reconhecimento (RICOEUR, 2006), entre outras.
Um raro exemplo de referncia desse autor
comunicao como interesse central a
conferncia Discours et communication, proferida
em 1971, em que o filsofo a define como um

acontecimento enigmtico, um paradoxo que a


experincia cotidiana e a linguagem ordinria
dissimulam. (RICOEUR, 2004, p. 52) Esteado na
fenomenologia, Ricoeur preocupava-se, ento, com
os desafios da comunicabilidade ainda em termos
lingusticos, mas j relativos prxis e
reflexividade.
Foi com a mudana de percurso em direo
hermenutica, na virada da dcada de 1970 para a
de 1980, que vieram as principais obras de Ricoeur
apropriadas por estudiosos da Comunicao: A
metfora viva, Do texto ao e Tempo e
narrativa. importante demarcar, de sada, a
hermenutica ricoeuriana como perspectiva cuja
tarefa ultrapassa significativamente as abordagens
anteriores de F. Schleiermacher ou de W. Dilthey,
subordinadas exegese, semiologia e filologia
dos textos clssicos de um ponto de vista restritivo.
Para Ricoeur, na esteira de Gadamer e Heidegger,
a hermenutica no deve se submeter busca por
sentidos imanentes, por intenes ocultas ou pelo
simples equilbrio entre o primado da objetividade
e da subjetividade interpretativas. Em linhas
gerais, a hermenutica seria a teoria das
operaes da compreenso em sua relao com a
interpretao dos textos (RICOEUR, 1990, p. 17),

proposta qual devemos acrescentar premissas


como a complementaridade entre os gestos
compreensivo e explicativo, a orientao por uma
noo no estruturalista de texto, o postulado da
fuso de horizontes como modelo de compreenso
da experincia da linguagem e, principalmente, a
recusa de qualquer pretenso epistemolgica de
dominar o sentido.
Mais tarde, em obras como Tempo e narrativa, O
si-mesmo como um outro e A memria, a histria,
o esquecimento, Ricoeur avana em sua prpria
perspectiva em direo a uma hermenutica
narrativa, a uma hermenutica do si e a uma
hermenutica da condio histrica. Como afirma
Gagnebin (1997, p. 266), o filsofo opera uma
virada em relao ao sentido clssico da
hermenutica, o que compele essa abordagem a
uma tarefa mais ambiciosa: a da interpretao e
da compreenso no apenas do(s) sentido(s) j
dado(s), mas igualmente dos processos de criao
de sentido(s). E tais processos j no se
restringem mais aos escritos e s escrituras.
Contemplam, principalmente, as constituies de
narrativas, de identidades e de memrias a partir
de processos diversos, segundo esquemas prticos
de
compreenso
da
experincia
dos

acontecimentos, da experincia de si e das


experincias da memria e do esquecimento.
No escopo deste captulo no poderamos
pretender sumarizar aquilo que, dentre a vasta
produo de Ricoeur, vem sendo apropriado por
autores da Comunicao. Nossa inteno
demarcar
algumas
contribuies
mais
representativas e j incorporadas por nosso campo
de estudos, seja como pano de fundo tericometodolgico, seja como abordagens tericoconceituais especficas. Nosso ponto de partida
ser o conjunto de pressupostos que fundamentam
a hermenutica narrativa de Ricoeur, relativos
principalmente atividade mimtica e tessitura
de intrigas como par constituinte do crculo
hermenutico. Em seguida, exploramos a dimenso
pragmtica dessa abordagem hermenutica, o
alcance e os limites das ideias ricoeurianas de
narrativa e intriga, para, ao final, situarmos as
contribuies do filsofo para a Comunicao luz
da compreenso do acontecimento a partir da
visada narrativa.
A NOO DE NARRATIVA E SUAS POSSIBILIDADES
Em relao ao perodo de lanamento de Tempo e
narrativa, obra das mais decisivas no projeto

filosfico de Ricoeur, as apropriaes do autor


comearam tardiamente no Brasil. Naturalmente, a
Filosofia se antecipou aos demais campos,
promovendo as primeiras leituras (NUNES, 1988),
sendo sucedida pela Histria e pela Literatura.
(COSTA LIMA, 1989; REIS, 2007) A demora se
explica, em parte, pelo atraso das tradues da
obra do filsofo, feitas somente uma dcada aps o
lanamento em lngua francesa. na virada dos
anos 1990 para os anos 2000 que encontramos as
primeiras referncias ao trabalho de Ricoeur feitas
por pesquisadores da Comunicao, relativas,
ento, s noes de narrativa e de tempo, tais
como desenvolvidas nos trs volumes de Tempo e
narrativa. Desde ento, a abordagem narrativa
ricoeuriana
ganhou
inmeras
apropriaes,
especialmente dos estudos em jornalismo.
As contribuies de Ricoeur reveladas e
exploradas pelo conjunto de leituras empreendidas
na Comunicao so de ordens diversas: do ponto
de vista terico, ofereceram uma alternativa ou
complementaridade s visadas essencialmente
discursivas dos fenmenos jornalsticos (RESENDE,
2009); do ponto de vista metodolgico, forneceram
novas formas de apropriao dos produtos e
processos jornalsticos, observando aspectos ticos,

poticos e estticos relativos aos lugares de


problema das investigaes. (MOTTA, 2004) H, no
entanto, uma carncia relativa s contribuies de
ordem epistemolgica, ainda que mantenham o
problema da narrativa como eixo balizador
deixando temporariamente de lado, por exemplo,
discusses sobre texto e referencialidade,
identidade, memria e esquecimento, entre outras.
Nossa retomada, portanto, ser menos no sentido
de recensear as proposies do filsofo do que no
de tirar consequncias de cunho epistmico,
apontando para o que acreditamos ser importantes
repercusses de sua abordagem para a
Comunicao.
A perspectiva narrativa de Ricoeur possui ao
menos dois pontos de partida, revelados na
conhecida e muitas vezes pouco problematizada
frmula: o tempo torna-se tempo humano na
medida em que est articulado de modo narrativo,
e a narrativa alcana sua significao plenria
quando se torna uma condio da existncia
temporal. (RICOEUR, 2010a, p. 93) Repitamos a
frmula, dessa vez em outra sntese e com outra
traduo, talvez mais precisa: o tempo devm
tempo humano na medida em que articulado de
modo narrativo, e os relatos adquirem sentido ao

tornarem-se as condies da existncia temporal.


(RICOEUR, 2012, p. 300, grifos nossos) A diferena
entre o se tornar e o devir suave, mas decisiva.
Ricoeur de maneira alguma confina a experincia
do tempo ao mesmo tempo prtica, cotidiana,
pessoal e coletiva narrativa. Pelo contrrio, se o
filsofo
convoca
a
discusso
sobre
a
inescrutabilidade do tempo para sua empreitada
sobre a narrativa porque o tempo, por sua
natureza enigmtica, prtica e fenomenolgica,
exatamente aquilo que nos permite narrar e dar
sentido e inteligibilidade s experincias. Em
corolrio, transposto pela narrativa, o tempo vem a
ser humano, porque, revelia desse gesto
compreensivo, permaneceria sempre enigmtico e
inescrutvel.
Os fundamentos da hermenutica narrativa
ricoeuriana so constitudos principalmente pelos
conceitos de mise en intrigue e de mimese, ambos
interpretados a partir da Potica aristotlica. A
tessitura da intriga se refere organizao dos
fatos, ao pela qual se promove uma sntese do
heterogneo,
integrando
fatos
e
aes
temporalmente dispersos na totalidade de uma
histria. Por mise en intrigue, ento, entende-se
uma atividade, e no uma estrutura, correlativa

dimenso de ato da mimese (mimese II), por sua


vez definida como representao da experincia
prtica. Mas necessrio precisar essa
compreenso da mimese como representao.
Uma concepo platnica nos levaria ideia de
mimese como representao no sentido da
imitao, da duplicao das coisas, ou mesmo da
falsificao, enquanto que a perspectiva aristotlica
toma a atividade mimtica como imitao
necessariamente criativa e criadora, como
recriao. Para Ricoeur, narrar significa empreender
uma atividade mimtica, operar uma transfuso
potica da realidade via tessitura da intriga.
(NUNES, 1988, p. 14) Essa tessitura, enquanto
atividade configuradora e organizadora dos fatos
em uma histria, remete-nos a um esquema
narrativo de compreenso da experincia, o
verstehen narrativo. A compreenso narrativa seria
o nexo elementar que se estabelece entre aes,
acontecimentos e personagens conjugados pela
tessitura da intriga.
Uma caracterstica da mmesis seria visar o mythos,
no seu carter de fbula, mas seu carter de
coerncia. Seu fazer seria logo de partida um fazer
universalizante. Todo o problema do Verstehen
[compreenso] narrativo est contido aqui em
germe. Compor a intriga j fazer surgir o inteligvel

do acidental, o universal do singular, o necessrio ou


o verossmil do episdico. (RICOEUR, 2010a, p. 74,
grifos do autor)

O processo mimtico, contudo, no poderia se


esgotar apenas na relao entre a intriga e a
experincia
prtica
que
aquela
transpe
narrativamente, pois h todo um universo de
sentidos ticos e culturais que, em certo aspecto,
antecede o fazer narrativo porque diz respeito
nossa pr-compreenso do mundo prtico (mimese
I); por outro lado, no estaramos discutindo
hermenutica se negligencissemos o papel
decisivo dos espectadores e leitores em relao s
narrativas (mimese III). Nesse sentido, a tessitura
da intriga (mimese II) assume uma funo de
mediao, conduzindo-nos do antes do texto ao
depois do texto, em uma espiral de sentidos. E
precisamente essa funo exercida pela mise en
intrigue que nos leva inscrio da narratividade
num processo eminentemente comunicativo, em
que so consideradas instncias narrativas a
experincia prtica, a composio potica e a
interao.
Quando divide o processo mimtico, isto , a
atividade de transposio potica de nossa
experincia no mundo, Ricoeur no estabelece uma

linearidade temporal, tampouco um esquema fixo e


procedimental da ao de narrar, como se fossem
etapas meramente sucessivas. Trata-se de uma
diviso analtica na qual a tessitura da intriga
assume funo mediadora entre a experincia
prtica e a compreenso narrativa: mmesis II
extrai sua inteligibilidade de sua faculdade de
mediao, que a de conduzir do antes ao depois
do texto, de transfigurar o antes em depois por seu
poder de configurao. (RICOEUR, 2010a, p. 94) A
faculdade de mediao diz respeito quele
conjunto de operaes segundo as quais uma
narrativa se destaca do viver, do agir e do sofrer
para ser ativada, por assim dizer, por um leitor que
projeta o mundo do texto pelo ato de leitura, e o
funde a seu prprio mundo.
construindo a relao entre os trs modos
mimticos que constituo a mediao entre tempo e
narrativa. essa prpria mediao que passa pelas
trs fases da mmesis. Ou, para diz-lo com outras
palavras, para resolver o problema da relao entre
tempo e narrativa, tenho de estabelecer o papel
mediador da composio da intriga entre um estgio
da experincia prtica que a precede e um estgio
que a sucede. (RICOEUR, 2010a, p. 95, grifo do
autor)

Devemos ressaltar, portanto, o carter de ao


intrnseco atividade narrativa, montante,

jusante, e em seu cerne. Narrativas, segundo


Ricoeur, dizem respeito experincia prtica
(mmesis
praxeos)
porque
se
enrazam
necessariamente na compreenso prvia que
temos do mundo das aes; mas tambm porque a
prpria tessitura da intriga uma ao, um gesto
de composio e organizao de elementos da
experincia
prtica
sendo
poeticamente
transpostos; e principalmente porque o crculo
mimtico no poderia nem mesmo se iniciar se no
fosse o carter produtivo da interao, sem a qual
as narrativas se resumiriam a materialidades sem
sentido, ou, nos termos do autor, apenas um
esboo para leitura. A narrativa, diz Ricoeur
(2010a, p. 122-123), alcana seu sentido pleno
quando restituda ao tempo do agir e do padecer
d a mmesis III. Cabe ao leitor, assim, conduzir a
refigurao da narrativa, atualiz-la em leitura.
Demarcando seu afastamento em relao ao
estruturalismo e semitica, Ricoeur abandona o
texto no sentido estrito, formal e material como
conceito operatrio em favor da reconstituio do
crculo hermenutico, isto , das operaes
mediante as quais a experincia prtica d a si
mesma obras, autores e leitores. (RICOEUR,
2010a, p. 95) A nosso ver, o reconhecimento da

dimenso
prtica
intrnseca
ao
crculo
hermenutico
de
Ricoeur
associado
ao
entendimento da narrativa como esquema
compreensivo da experincia temporal e prtica
constituem um modelo bastante produtivo do ponto
de vista comunicacional, uma vez que conjuga as
dimenses culturais, pragmticas e estticas da
atividade mimtica da pr-figurao refigurao
das narrativas, passando pela configurao. E,
embora preponderem os exemplos literrios nos
escritos de Ricoeur, veremos adiante que a
renncia perspectiva estruturalista acaba por
abrir o horizonte de possibilidades dessa
abordagem.
Um exemplo que vem norteando a adoo dessa
perspectiva hermenutica a percepo do
jornalismo luz da narratividade ricoeuriana.
Assim, para alm de uma preocupao restrita s
discursividades, tanto o enraizamento cultural e
tico do jornalismo e suas narrativas quanto os
processos de interao que acionam a produo e
as disputas de sentidos passam a fazer problema,
cuja resoluo no poderia se restringir nem
explicao afeita aos aspectos estruturais e
imanentes dos textos nem sua compreenso
irrestrita. Segundo Motta (2004, p. 11), com a

perspectiva ricoeuriana, estaria aberto


[...] um caminho mais frtil e de muito maior poder
explicativo e analtico para o exame dos enunciados
jornalsticos como narrativas. A fora narrativa dos
enunciados jornalsticos estaria menos nas qualidades
narrativas intrnsecas do texto das notcias e
reportagens ou no confronto entre o estilo descritivo
e o narrativo, mas principalmente no entendimento
da comunicao jornalstica como uma forma
contempornea de domar o tempo, de mediar a
relao entre um mundo temporal e tico (ou
intratemporal) pr-figurado e um mundo refigurado
pelo ato de leitura. Uma trilha que pe a narrativa no
campo dos atos de fala e das relaes pragmticas.

Assim, embora se possa argumentar que as


abordagens do jornalismo pelo vis das narrativas
no so recentes, os termos dessa apropriao se
modificam de forma radical. A narratividade
jornalstica deixa de ser uma qualidade textual ou
uma questo de gnero para se tornar uma forma
de abordagem mais atenta, por exemplo,
comunicao jornalstica em uma tripla dimenso:
relativa ao universo axiolgico e cultural que
antecede as narrativas e tambm as atravessa em
todos os nveis do processo mimtico; relativa aos
jogos de sedimentao e inovao que regulam a
configurao de narrativas; e, por fim, s mltiplas
possibilidades de interao, interpretao e
apropriao das narrativas jornalsticas. Mas, para

avanarmos em direo aos argumentos de cunho


epistemolgico mais amplo, ainda necessrio
nuanarmos
os
termos
pragmticos
da
hermenutica de Ricoeur.
AO E HERMENUTICA EM PAUL RICOEUR
Um pano de fundo epistemolgico permeia todo o
escopo das reflexes de Paul Ricoeur e chave
preciosa para que no sejam enviesadas as
apropriaes das suas contribuies para o campo
comunicacional. Trata-se das noes de ao e
hermenutica, que se encontram intimamente
ligadas, de tal modo que possvel se afirmar
sobre a filosofia ricoeuriana um constante cuidado
com a ao hermenutica, que deixa de ser uma
mera questo de interpretao de sentidos
precedentes, fixos e imanentes.
o caso, por exemplo, quando, nos marcos das
reflexes sobre as narrativas, o problema da ao
hermenutica se inscreve no crculo da trplice
mimese. (RICOEUR, 2010a) Isso implica pensarmos
o ato de configurao narrativa segundo uma
articulao entre temporalidades e intriga que
parte de um mundo cultural, moral e eticamente
anterior o que seria o primeiro momento do
processo mimtico: mimese I. Se a esse processo

corresponde um mundo prefigurado, a ao


hermenutica est na configurao narrativa, o
estgio de mimese II, que supe agenciar e
organizar
fatos,
personagens,
aes
e
acontecimentos dispersos ou discordantes rumo
concordncia a favor da inteligibilidade do que
narrado. Ou melhor, para usarmos os termos do
autor, trata-se de inseri-los na dinmica da
concordncia discordante ou da discordncia
concordante.
No est em jogo, como se percebe, a mera
interpretao dos sentidos ticos, morais e
culturais que precedem a nossa prpria entrada em
cena no mundo e, mais particularmente, no mundo
das articulaes narrativas, mas a necessria
sagacidade de, tambm em funo da capacidade
de interpretao, propor novos sentidos ao mundo
narrado, o que parte constitutiva dos modos
pelos quais nos situamos nesse mundo que nos
precede,
tornando-o
tambm
(coletiva
a
intersubjetivamente) nosso.
O processo do crculo hermenutico virtuoso,
contudo, no encontra termo final em mimese II,
mas abre-se a mltiplas interpretaes em mimese
III, posto que no trabalho de leitura que as
narrativas se abrem constituio de sentidos. Ou

seja, ao mundo prefigurado de mimese I, mediado


pela configurao de mimese II, a leitura das
narrativas em circulao situa a mimese III como o
lugar certamente mais rico e complexo da
perspectiva
de
uma
permanente
ao
hermenutica. aqui que, como afirma Ricoeur,
entram em jogo o que se assemelha a uma espiral,
que, embora possa golpear a vista com a sensao
de retorno ao ponto de origem, est longe da
repetio estril ou da tautologia morta, mas
aberta a outra condio cara ao pensamento
ricoeuriano, a da inovao semntica.
Se entendemos a inovao semntica tanto no
sentido da abertura a infinitas possibilidades do
como se no que diz respeito s ficcionalidades e a
possibilidade tambm infinita de compreenso dos
sentidos do passado, presente e futuro com a qual
lidam historiadores e jornalistas quanto na
perspectiva das virtualidades de sempre atribuir
novos sentidos aos acontecimentos e aos modos
como os narramos, -nos possvel compreender
que a ao e a hermenutica, de fato, fazem
sentido em conjunto na obra de Paul Ricoeur. O
gesto narrativo se constitui, assim, como uma ao
sobre o agir. Transpem-se poeticamente as aes
e acontecimentos do mundo, por meio da ao de

compor intrigas, condio de narrativas sempre


disponveis inovao semntica, isto , no sentido
hermenutico, s interpretaes e reinterpretaes.
So os marcos dessa ao hermenutica, ou de
uma hermenutica da ao termos que no
significam a mesma coisa, mas apontam, de novo
sob a forma de um crculo virtuoso, para a dialtica
agir no mundo/interpretar o mundo a partir da ao
sobre ele que nos permitem entender como Paul
Ricoeur nos oferece um cipoal de conceitos e pistas
metodolgicas para a superao do que o carter
aportico da nossa compreenso e ao sobre o
tempo poderia trazer de paralisia. Se no nos
paralisamos ante a impossibilidade de uma soluo
definitiva para as aporias do tempo as
dificuldades de defini-lo e apreend-lo porque
as narrativas so o que Ricoeur define, em parte,
como guardis do tempo, sentido mais profundo
do que eventuais sugestes de locais estticos de
arquivos memorialsticos podem fazer crer.
Novamente a ao hermenutica que nos
impele frente, que nos coloca o desafio
permanente da busca de sentidos, fazendo-nos agir
sobre o mundo e nossos modos de nele e com ele
interagir. Narrar , desse modo, espernear contra a
perda da memria, forjar esquecimentos, lutar pela

manuteno de sentidos ou pela construo de


novos, mas tambm reconhecer que nossas
experincias, se no podem jamais ser substitudas
ou mesmo apreendidas em sua totalidade pelas
narrativas que delas fazemos, tambm jamais
podem ser mantidas em estado vivo ou de latncia
se delas no tecemos narrativas. Trata-se de
assegurar a diferena e no a independncia
entre inteligncia narrativa e de inteligncia
prtica, mas tambm de tomar a ordem narrativa
dos pontos de vista prtico e hermenutico em sua
relao pulsante com a ordem das aes e
acontecimentos no mundo:
Podemos resumir da seguinte maneira a dupla
relao entre inteligncia narrativa e inteligncia
prtica. Ao passar da ordem paradigmtica da ao
para a ordem sintagmtica da narrativa, os termos
da semntica da ao adquirem integrao e
atualidade. Atualidade: termos que s tinham uma
significao virtual na ordem paradigmtica, isto ,
uma pura capacidade de uso, recebem uma
significao efetiva graas ao encadeamento
sequencial que a intriga confere aos agentes, ao seu
fazer e ao seu sofrer. Integrao: termos to
heterogneos
como
agentes,
motivos
e
circunstncias tornam-se compatveis e operam
conjuntamente em totalidades temporais efetivas.
nesse sentido que a dupla relao entre regras de
composio da intriga e termos de ao constitui ao
mesmo tempo uma relao de pressuposio e uma
relao de transformao. (RICOEUR, 2010a, p.

100)

Um aspecto em particular nos interessa nesse


campo de investigaes: o das articulaes entre
narrativa
e
acontecimento,
pois
nelas
vislumbramos um vasto campo a ser explorado em
estudos sobre jornalismo, televiso, cinema e
outros produtos e processos comunicacionais.
Defendemos, nessa direo, que h uma dialtica a
ser
explorada
nas
interconexes
entre
acontecimentos e narrativa, em que os primeiros
constituem aquilo de que se ocupam as mais
diversas formas do narrar ficcionais, histricas,
comunicacionais e outras enquanto essas se
situam no campo das disputas de sentido a que
todo acontecimento que merea este estatuto est
sujeito. Em outros termos, dialeticamente todo
acontecimento ganha vida significante medida
que narrativamente colocado em jogos e disputas
de sentido, revelando interesses individuais e
coletivos, relaes de poder e outros modos de
interpretao e ao sobre o que atravessa nossa
experincia. Pensar a dialtica que permeia as
relaes entre acontecimento e narrativa pensar
ainda na dialtica agir-sofrer implicada nos
acontecimentos, pois, como nos lembra Ricoeur
(1991b), todo acontecimento, ao acontecer a

algum (individual ou coletivo), no apenas age


sobre
ns,
mas
nos
convoca
a
agir
retrospectivamente sobre ele.
Dessa dinmica resultam possveis contribuies
para uma epistemologia da comunicao de
inspirao ricoeuriana, na qual o carter relacional
est presente em todas as etapas do processo de
estar no mundo frente ao outro. Eis a o que, no
sentido proposto em O si-mesmo como um outro,
constitui o pensamento tico que deve considerar
que nossa alteridade no se constri somente na
relao com um outro diferente de ns, mas com
um eu diferente de mim mesmo que se
consubstancia na dialtica mesmidade-ipseidade.
Somos, pela lgica da mesmidade, uma unidade
tica e moral que tende estagnao, que, no
entanto, negada pelo sentido da ipseidade, pois
nosso confronto dialgico se d com nossa histria
de vida, com nossas transformaes fsicas, ticas
e morais. Metaforicamente, um caminho profcuo a
se explorar na compreenso da historicidade dos
modos como pensamos, fazemos e estudamos a
Comunicao, seus processos e produtos.
Uma maneira de entender os problemas e
desafios metodolgicos da noo de hermenutica
em Ricoeur e que nos permite uma sntese dos

problemas que a explorao do conceito traz s


reflexes aqui propostas est na condio de no
entendermos compreenso e explicao, elementos
do processo interpretativo, como dois mtodos que
se opem:
Nesse sentido, a compreenso envolve a explicao.
Em
contrapartida,
a
explicao
desenvolve
analiticamente a compreenso. Esta a projeo, no
plano epistemolgico, entre o pertencimento de
nosso ser aos seres e ao ser e o distanciamento que
torna possvel toda objetivao, toda explicao e
toda crtica. (RICOEUR, 2011, p. 131)

Uma ao hermenutica, assim como uma


hermenutica da ao, colocam em jogo,
consequentemente, nossos modos de narrar
segundo condies que no so historicamente
estveis. A instabilidade se inscreve ao menos
duplamente em nossas experincias e no modo
como as narramos: pelas mudanas que ocorrem
no mundo nossa volta, da qual somos parte
implicada e interessada, e pelas mudanas fsicas,
ticas e morais que experimentamos em nosso
prprio percurso existencial, o que faz com que nos
narremos distintamente em fases diferentes da
nossa vida.
Do
ponto
de
vista
das
experincias
comunicacionais mediadas ou no por

dispositivos sociotcnicos temos como corolrio


que as narrativas constituem aes que sustentam
e do forma material, significante e sensvel a
produtos e processos jornalsticos (em suas
mltiplas manifestaes), a filmes, a telenovelas,
entre outros. Mas tambm elas so materialidades
presentes em nossas interaes face a face que, a
despeito dos arsenais nossa disposio, ainda
resistem como formas de narrar acontecimentos e
experincias, compondo o rico repertrio de
narrativas
que
desafiam
terica
e
metodologicamente
nossas
empreitadas
investigativas. Alm de
materialidades,
necessrio acrescentar, as narrativas constituem
metaforicamente um conjunto de saberes sobre
ns mesmos e nossos mundos, abrindo outros
desafios tericos e metodolgicos em sua
explorao.
AS NARRATIVAS PARA ALM DAS APORIAS DO
TEMPO E DA COMPOSIO DA INTRIGA
As apropriaes dos conceitos de Paul Ricoeur
sobre as narrativas realizadas pelos estudos em
Comunicao tm cado facilmente na tentao de
classificao ou filiao do autor a alguma
corrente de pensamento. Ps-estruturalismo e

narratologia so normalmente as mais comuns, o


que traz como consequncia o enviesamento da
interpretao do pensamento ricoeuriano, cujas
sutilezas convidam a no situar suas preocupaes
com as narrativas em funo da busca de gneros
narrativos
ou
estruturas
textuais.
Nessa
perspectiva, so frgeis mesmo aquelas crticas
que cobram do autor uma expanso do escopo de
anlise das narrativas que de fato, em sua vasta
obra, deu mais ateno s particularidades dos
desafios tericos e metodolgicos implicados em
narrativas histricas e ficcionais.
Em resposta a essas perspectivas crticas,
devemos lembrar que o prprio Ricoeur aplica o
conceito de trplice mimese arquitetura, ao
compreend-la a partir de um esquema narrativo
de inteligibilidade do mundo prtico. Sobre esse
paralelismo, o filsofo afirma que a arquitetura
seria para o espao aquilo que a narrativa para o
tempo, ou seja, uma operao configurante.
(RICOEUR, 1998, p. 2, traduo nossa) Se narrar
inscrever o tempo na dialtica da concordncia e
da discordncia pela via da operao mimtica, isto
, transpor o tempo da experincia ao todo
temporal da intriga, a arquitetura seria tambm
uma modalidade de transposio do espao: toma-

se o ato arquitetural em analogia prefigurao, a


construo como o gesto configurante e o habitar
como momento de refigurao do espao.
Sobre os desenvolvimentos da noo da trplice
mimese como possibilidade de anlise da
arquitetura como narrativa, Umbelino (2011, p.
147) lembra que ela se d a partir da perspectiva
de que ocupamos espaos urbanos coletivos ou do
nosso lar em ntima conexo com nossos corpos.
Desse modo,
A oposio entre uma concepo de espao
geomtrico e uma concepo de espao vivido nasce
da constatao de que a concepo moderna de um
espao matemtico, projectado como homogneo,
uniforme, isotrpico e infinito, est longe de exaurir a
experincia que, enquanto corpo, fazemos do
espao, longe de poder anular o saber do espao
que ressoa atravs da nossa corporeidade. Do
mesmo modo que em relao ao tempo se distinguiu
entre tempo do mundo, mensurvel, sequencial,
indiferente e homogneo, e um tempo vivido onde
as
tradicionais
dimenses
do
tempo
se
experimentam
em
infindveis
variaes
de
intensidade e reciprocidade, assim tambm haver
lugar a distinguir entre a concepo de um espao
exterior ou espao do mundo e um espao vivido ou
fenomenolgico.

Da perspectiva epistemolgica, portanto, no se


trata simplesmente da transposio conceitual das
proposies ricoeurianas de um campo a outro,

mas da verificao, primeiro, da pertinncia da


aplicao dos conceitos desenvolvidos pelo autor,
e, segundo, do estabelecimento de dilogos no
interior dos prprios desenvolvimentos tericos e
metodolgicos de Ricoeur. Nesse particular,
especialmente os ltimos trabalhos do filsofo
apresentam traos simultneos de crtica e
acrscimo quilo que ele j vinha desenvolvendo
ao longo dos anos. Matizes conceituais
apresentados nesses ltimos estudos so s vezes
determinantes para evitar crticas apressadas ou
mal localizadas, tornando a tarefa hermenutica
relativa ao pensamento ricoeuriano exigente.
Veja-se, por exemplo, no campo questes
implicadas nas noes de narrativa, o que ocorre
com outra corrente de crticas segundo as quais os
limites impostos pelas noes de tessitura da
intriga e articulaes temporais no abririam
possibilidades de outros enfoques para as
narrativas e, nesse particular, estariam os
problemas relativos no identificao ou ao no
desenvolvimento, em Ricoeur, de componentes
estruturais das narrativas. Cremos ser essa a
modalidade de crtica mais equivocada, no
somente pelo fato anteriormente aludido de que
no so as estruturas que movem terica e

epistemologicamente a empresa ricoeuriana ao


tratar das narrativas, como, especialmente, pelo
cuidado que o autor tem em situar, dos pontos de
vista da materialidade textual das narrativas e das
suas potencialidades heursticas, as relaes entre
tessitura da intriga e tempo no escopo das
possibilidades de compreenso dos modos como
nos situamos espao-temporalmente, tal como
indica Umbelino (2011) relativamente a uma
proposta de entendimento da arquitetura e do
urbanismo pelo vis narrativo e que nos parecem
preocupaes tambm pertinentes para as
apropriaes analticas no campo comunicacional.
a partir das nossas apropriaes que questes
outras sero incorporadas, mas o cuidado
necessrio no propor que Ricoeur dialogue com
empreitadas analticas sobre as narrativas
incompatveis com as premissas por ele postuladas.
Uma pergunta em especial desafiadora e, no
por acaso, est na proposio que d nome ao
artigo de Baroni (2013), Aquilo que a intriga
acresce ao tempo: uma releitura crtica de Tempo e
Narrativa, de Paul Ricoeur. Valendo-se de crticas
de
outros
autores,
inclusive
aquelas
contemporneas ao lanamento da trilogia Tempo
e narrativa, Baroni no demonstra muita convico

de que estaria no caminho certo, fato perceptvel


no constante retorno a afirmaes do prprio
Ricoeur, titubeando o texto, consequentemente,
entre suposies de lacunas particularmente
sobre se a trplice mimese seria um crculo virtuoso
ou vicioso e a reafirmao de acertos na
empreitada ricoeuriana. O autor, ademais, cai na
tentao de buscar estruturas e gneros
exatamente na contramo do que j destacamos:
em Ricoeur, trata-se de agenciamentos, de
entendimento a partir de esquemas de articulao,
mesmo quando nos marcos das especificidades
narrativas histricas e ficcionais, que em outros
autores efetivamente ganham desenvolvimentos a
partir de preocupaes estruturais e/ou de
classificaes quanto a tipos textuais.
A crtica de Baroni nos parece nascer equvoca j
na pressuposio exposta no ttulo, pois o
problema das relaes entre tempo e tessitura da
intriga no se colocam, ao contrrio do sugerido,
por uma relao de hierarquia ou de precedncia.
Mais do que isso, Ricoeur deixa claro, j no ousado
dilogo entre Santo Agostinho e Aristteles
presente em Tempo e narrativa , que far valer um
dos princpios metodolgicos de sua anlise das
narrativas, qual seja, o de que ela implica uma

sntese do heterogneo, fazendo assim da sua


prpria teoria sobre as narrativas uma narrativa
sobre os limites e potencialidades das noes de
tessitura da intriga e de tempo rumo s demais
nuances que, por derivao dos princpios
fundadores de sua reflexo, sero desenhadas ao
longo de sua gigantesca empreitada intelectual
anterior e posterior aos trs tomos de Tempo e
narrativa. A relao entre tempo e tessitura da
intriga, assim sendo, somente pode ser entendida
como dialetizada, uma a favor da outra, e no uma
contra a outra ou em relao de assimetria, mas
ambas a servio da narrativa, da produo de
sentidos e da compreenso de nosso mundo
prtico.
O mrito de Baroni deve ser destacado no
reconhecimento
das
potencialidades
que
inspiraes ricoeurianas trazem para o campo das
problemticas comunicacionais. Mas preciso ler
com cuidado sua proposio.
Alm disso, pode-se observar uma tendncia, em
minha opinio bastante legtima, ao desejo de
integrar segunda mimese uma narratividade
transgenrica e transmiditica, o que conduz a
generalizar a proposio de Ricoeur sobre as
narrativas no somente miditicas, mas tambm
orais
e conversacionais
(Bres,
1994).
Se
continussemos este movimento de generalizao

at integrar ao processo de mise en intrigue, os


trabalhos atuais que tratam da apreenso cognitiva
das aes e dos acontecimentos, no haveria mais,
portanto, razo para refletir sobre o que est na
mimese II, uma vez que a mimese I, se
considerada como uma modalidade prnarrativa [sic]
da experincia, seria completamente esvaziada de
seu contedo. (BARONI, 2013, p. 22, grifos do
autor)

Voltemos ao cuidado na leitura da proposio de


Baroni. O problema da mediao de mimese II em
relao mimese I e mimese III (ignorada pelo
autor, como se tais modalidades narrativas no
fossem ativadas pelo estgio da leitura
reconfiguradora) continua em qualquer narrativa,
pois, efetivamente, para ficarmos no campo das
narrativas transgenricas, transmiditicas, orais e
conversacionais, o que est em jogo no a
ameaa de esvaziamento de contedo de mimese
I, mas precisamente o oposto disso. O primeiro
problema terico e metodolgico que da pode
derivar para os estudos comunicacionais estaria no
equvoco de imaginar os esquemas narrativos
citados pelo autor como autnomos, no ligados a
quaisquer
modalidades
pr-narrativas
da
experincia, o que nos levaria suposio de que
eles instaurariam algo absolutamente novo no
mundo. O segundo problema, tambm terico e

metodolgico, seria o desprezo das prprias


especificidades
implicadas
nas
construes
narrativas, e nesse particular, as anlises, ainda
que eventualmente se voltem mais diretamente ao
escrutnio de um dos componentes do crculo
mimtico virtuoso, no podem negligenciar os
demais, sob pena de fracasso na compreenso do
fragmento estudado.
s preocupaes tericas e metodolgicas sobre
as narrativas brevemente indicadas, que esto
longe de recensear todas as potencialidades
heursticas da derivadas para os estudos
comunicacionais, somam-se questes relativas
noo de acontecimento trabalhadas por Ricoeur. O
encontro desses dois campos de investigao,
narrativa e acontecimento, nos parece o mais
promissor para a compreenso de uma srie de
questes implicadas nos modos como produzimos,
fazemos circular e interpretamos produtos e
processos comunicacionais na atualidade.
ACONTECIMENTO E CONSTITUIO DE SENTIDOS
O desenvolvimento que Ricoeur d problemtica
do acontecimento nos parece produtivo no apenas
do ponto de vista da possvel aplicabilidade dessa
perspectiva ao repertrio de narrativas que

atravessam nosso cotidiano buscando dar conta de


uma profuso de acontecimentos, mas tambm do
ponto de vista epistemolgico, explorando o
funcionamento do crculo hermenutico. Trata-se
de enfrentar sem a pretenso de resolver o
desafio posto pela hermenutica narrativa
dialtica
da
compreenso
prtica
e
da
compreenso
narrativa,
lidando
com
o
acontecimento sob o duplo prisma de sua force
dinterruption, em termos fenomenolgicos, e de
s u a force diniciative, em termos prticos e
relativos constituio de sentidos pela via da
narratividade. Nossa abordagem encontra esteio na
conferncia vnement et sens (1991b), proferida
em 1987, no por acaso logo aps a publicao de
Tempo e narrativa.
Antes de prosseguir, necessria a ressalva
quanto natureza dos acontecimentos abordados
por Ricoeur. Mesmo porque seria um equvoco
pretender que tal conceito tenha permanecido o
mesmo ao longo de um extenso percurso filosfico.
Por outro lado, seja em Tempo e narrativa (2010a),
seja
em
produes
especficas
sobre
o
acontecimento (1991b, 1992), ou mesmo em obras
de espectro mais amplo, como A memria, a
histria, o esquecimento (2007), prevalece certo

sentido histrico dos acontecimentos a que Ricoeur


faz referncia. Nessas obras, o termo aparece, por
via de regra, relativo a acontecimentos
marcadamente histricos, como o assassinato do
arquiduque austraco Francisco Fernando como
causa da ecloso da Primeira Guerra Mundial
(RICOEUR, 2010a), a utilizao dos fornos
crematrios em Auschwitz (RICOEUR, 2007), ou a
traio de Hitler ao tratado germano-sovitico em
1941. (RICOEUR, 1992)
Nossa ressalva, contudo, perder sentido ante o
exame dos postulados de Ricoeur sobre o
acontecimento e a narratividade. Sem negar o
carter fenomenolgico do acontecimento como
quelque chose qui arrive, isto , como alguma coisa
que irrompe e instaura uma novidade em relao
a uma ordem j instituda (RICOEUR, 1991b, p. 43,
traduo nossa), o filsofo correlaciona fora de
irrupo
do
acontecimento
o
recurso

compreenso narrativa. Ricoeur reivindica um lugar


de centralidade para o esquema narrativo de
inteligibilidade da experincia dos acontecimentos
no processo de constituio de sentidos sobre os
mesmos. Como argumentamos anteriormente, se,
por um lado, tais experincias so irredutveis
ordem narrativa, por outro preciso reconhecer o

lugar da narratividade como fora de iniciativa


fundamental para fazer dos acontecimentos
fenmenos com sentidos. Nas palavras de Ricoeur:
Tomo, aqui, a narratividade como forma matricial de
inteligibilidade, tal como a fazem funcionar tanto a
narrativa na ao quanto a narrativa sobre a ao.
diferena
da
racionalidade
instrumental
ou
estratgica, ou mesmo da racionalidade tica (ao
menos reduzida ao silogismo prtico), a inteligncia
narrativa que salva o acontecimento no movimento
mesmo onde ela o pensa. O acontecimento , por
sua vez, includo, isto , englobado, e reconhecido
como irredutvel ao sentido. (RICOEUR, 1991b, p.
50, traduo nossa, grifo do autor)

O argumento de Ricoeur segue rumo defesa da


dimenso narrativa dos acontecimentos que
atravessam nossa aventura e passam a integr-la,
sem, no entanto, incorrer no equvoco de sustentar
que os acontecimentos possuem uma natureza
narrativa, como algo estritamente linguageiro.
Afinal, a linguagem no constitui um mundo em si
mesma. Nem mesmo um mundo. (RICOEUR,
2010a, p. 133) Desse modo, o acontecimento
passa a ser compreendido como ocorrncia fsica,
do ponto de vista perceptivo, mas principalmente
enquanto fenmeno humano, que, portanto, no
resiste aos processos de constituio de sentido.
Em torno do acontecimento, retoma-se a

conhecida problemtica da comunicabilidade da


experincia, cujos contornos so delineados nos
termos da compreenso narrativa como gesto
responsivo fora de irrupo e ao poder de
afetao desses fenmenos. Como afirma
Arquembourg (2003, p. 32, traduo nossa), em
sua leitura da proposta ricoeuriana: Face
irrupo dessa desordem, surge uma demanda de
sentido qual responder a produo de narrativas
configurando o acontecimento. Ou seja, tanto
maior a fora de ruptura do acontecimento,
surpreendendo nossas expectativas e desafiando a
compreenso, mais somos compelidos a fazer
desses eventos fenmenos inteligveis pela via da
narratividade:
Nessa
acontecimentalidade
selvagem, a fora de resistncia se junta ao
sentido. (RICOEUR, 1991b, p. 52, traduo nossa)
A ressalva perde validade, ento, porque os
acontecimentos de que trata Ricoeur no seriam
intrnseca e ontologicamente histricos. sua
inscrio no crculo hermenutico que os
transforma e qualifica como tal. preciso ir ainda
mais longe: a narrativa no se limita a integrar
acontecimentos, mas qualifica como acontecimento
aquilo que inicialmente era apenas ocorrncia, ou,
como dissemos, simples peripcia. A narrativa

reveladora de acontecimentos. (RICOEUR, 1991b,


p. 50, traduo nossa) Em analogia relao
dialtica entre tempo e tessitura da intriga tal
como comentamos acima, o que agora est em
questo a reciprocidade que se instaura entre o
acontecimento como ocorrncia e a compreenso
narrativa: j no se trata de uma adio de
sentidos, revelando uma hierarquia entre ordem
prtica e ordem linguageira, mas da narratividade
como aquela forma matricial de inteligibilidade,
de produo de sentidos e de compreenso de
nosso mundo prtico. E, em corolrio, o
acontecimento assume papel crucial do ponto de
vista narrativo como aquilo de que tratam as
narrativas e que as possibilita avanar.
Portanto, segundo essa perspectiva, a tessitura
da intriga e, acrescente-se, todo o crculo
hermenutico, introduz uma primeira distino
epistmica entre o acontecimento tal qual ocorrido
e o acontecimento tal qual narrado, registrado,
comunicado. (RICOEUR, 1992, p. 29, traduo
nossa) O lugar dessa distino justamente o
carter inacessvel desse acontecimento em estado
bruto, embora no se possa negar que o
acontecimento seja aquilo que desafia a
constituio de sentidos, aquilo que possui

necessariamente um carter de abertura.


compreensvel que, em sua abordagem do
acontecimento, Ricoeur acentue o papel da
mediao
narrativa.
Especialmente
quando
consideramos que os exemplos de que o filsofo
lana mo so acontecimentos que vm sendo
continuamente construdos e reconstrudos pela
historiografia. Mais compreensvel ainda se torna
essa perspectiva quando lembramos que uma das
premissas dessa hermenutica exatamente
pensar a dinmica da narrativa para alm da
pretenso de domnio dos sentidos, isto , rumo
constituio ininterrupta de sentidos sobre a
experincia prtica e tudo aquilo que nela
intervm.
O esquema ricoeuriano da compreenso
narrativa estabelece parmetros importantes para
o exame da comunicabilidade dos acontecimentos,
resguardando seu carter fenomenolgico, mas
inscrevendo-os
na
dinmica
do
crculo
hermenutico a partir do qual adquirem sentido e
contribuem para o desenrolar das intrigas. Os
lugares que os acontecimentos ocupam nessas
narrativas carregam necessariamente as marcas do
mundo pr-figurado, isto , daquele conjunto
axiolgico, tico e cultural que fornece as condies

para a tessitura de intrigas. Ao mesmo tempo,


pela mediao dessa tessitura acionada nos
processos de interao com as narrativas que os
acontecimentos vm tona de modo significante,
inscrevendo-se em processos de discusso e
instaurando disputas de sentido em torno de si e
das intrigas de que participam.
CONSIDERAES FINAIS
As consequncias desse modelo epistemolgico
para pensarmos os processos comunicativos so
pelo menos de trs ordens. Em primeiro lugar,
como observou Gagnebin (1997), o esquema
ricoeuriano voltado compreenso de nossa
experincia prtica atravs das mediaes da
linguagem (e mais especificamente da narrativa)
nos remete problemtica relativa s dinmicas de
constituio de sentidos. Abandona-se, assim,
qualquer busca por sentidos imanentes s
narrativas em favor do reconhecimento da
complexidade desses fenmenos no que tange suas
dimenses culturais, poticas e estticas. Subjaz
proposta ricoeuriana uma abordagem fortemente
relacional e processual tanto da atividade narrativa
quanto das relaes que ela instaura com a
experincia prtica.

Em segundo lugar, deve-se reiterar o pano de


fundo tico do modelo ricoeuriano, no qual a
hermenutica uma questo de interpretao,
mas, sobretudo, de ao: narrar, compreender,
refigurar, mediar. No por acaso Ricoeur define a
tarefa da hermenutica como a reconstituio das
operaes pelas quais as narrativas se destacam
do fundo opaco do viver, do agir e do sofrer, para
ser dada por um autor a um leitor que a recebe e
assim muda seu agir. (RICOEUR, 2010a, p. 95) Tal
perspectiva demarca o carter de ao e de
mediao das narrativas, mas aponta para uma
dimenso epistemolgica e metodolgica de
grande relevncia: o prprio gesto investigativo de
nossas pesquisas pressupe uma dimenso
hermenutica que opera tanto no sentido da
interpretao dos fenmenos quanto no de sua
transposio potica em esquemas compreensivos
e explicativos.
Em terceiro lugar, contra expectativas de
modelos narrativos estruturais, preciso ressaltar o
carter dinmico da narratividade tal como
trabalhada por Ricoeur. Ao invs de sugerir a
construo de formas narrativas, a atividade
mimtica consoante tessitura de intriga
pressupe o exerccio da compreenso narrativa

como competncia para transpor a experincia


prtica

ordem
narrativa.
Tal
postura
epistemolgica
recoloca
o
problema
da
representao
e
da
comunicabilidade
da
experincia nos termos do crculo hermenutico,
isto , em seu papel mediador entre um mundo
pr-figurado e outro refigurado: as narrativas tanto
produzem compreenses sobre nossa experincia
quanto dela participam constituindo nossas
identidades e as de outrem, reunindo nossas
memrias e ajudando a conformar o mundo no qual
nos situamos.
Fazendo um balano das contribuies de
Ricoeur, talvez o principal insight seja o de pensar
os processos humanos de atribuio de sentidos s
experincias nos termos de uma abertura de
possibilidades interpretativas, compreensivas e
explicativas. Dada a transversalidade e diversidade
das Teorias da Comunicao, em vez de reivindicar
nelas um lugar cativo a tais proposies
epistemolgicas, mais produtivo tirarmos proveito
dessas contribuies num gesto constante de
ressignificao dos processos comunicativos
especialmente no que tange o enraizamento tico
e cultural das atividades mimticas, o lugar
mediador da linguagem e da composio potica e

os limites e possibilidades das leituras que


empreendemos. Certamente, e seguindo com rigor
os postulados ricoeurianos, as possibilidades de
apreenso da obra desse autor continuam em
aberto, afigurando outras propostas investigativas.
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PAULA GUIMARES SIMES

O acontecimento e o campo da
Comunicao[1]
INTRODUO
O conceito de acontecimento no ocupa um lugar
de destaque entre as teorias clssicas da
Comunicao. Muito trabalhada nos campos da
filosofia e da histria, por exemplo, essa noo s
mais recentemente vem sendo acionada em
diferentes estudos filiados ao campo da
Comunicao. Entretanto, podemos encontrar em
uma tradio sociolgica importante desse campo
os
alicerces
para
uma
compreenso
contempornea daquele conceito: a Escola de
Chicago (e sua base terica central, o
pragmatismo).
O objetivo deste captulo refletir sobre a noo
de acontecimento, evidenciando algumas de suas
contribuies para as anlises no campo da

Comunicao. Para tanto, o captulo est dividido


em trs partes. A primeira apresenta como os
pragmatistas George Herbert Mead e John Dewey
discutem tal conceito, bem como a articulao
deste com a experincia. A segunda mostra como
tais contribuies so articuladas na construo da
reflexo de Louis Qur, acionando outros autores
que trabalham em sintonia com a perspectiva
desse socilogo contemporneo. A terceira seo
procura demonstrar o potencial heurstico desse
conceito (FRANA, 2012a; SIMES, 2012),
apresentando algumas pesquisas realizadas luz
do mesmo e evidenciando a dupla dimenso de
poder do acontecimento seu poder de afetao e
seu poder hermenutico. Com isso, nossa proposta
mostrar como esses dois eixos de compreenso
do acontecimento permitem apreender a dimenso
comunicacional dos fenmenos, fazendo com que
esse conceito se converta em importante
instrumental de nosso campo para a compreenso
da comunicao e da vida social.
ALGUMAS CONTRIBUIES DO PRAGMATISMO
O pragmatismo uma perspectiva filosfica que
busca compreender as condies em que se cria o
pensamento, sendo que as ideias so vistas como

surgindo da ao. Essa filosofia da ao iniciada


nos EUA por Charles Peirce, William James e outros
filsofos, no fim do sculo XIX, e seguida por outros
pensadores, como John Dewey e George Herbert
Mead. Esses dois ltimos so responsveis por
incorporar as reflexes do pragmatismo no campo
da
Sociologia
e
das
cincias
humanas,
sedimentando o terreno para o desenvolvimento da
Escola de Chicago. (JOAS, 1999) , portanto,
atravs desses dois autores que resgatamos a
perspectiva de Chicago na compreenso da
articulao entre acontecimento e experincia.[2]
Em The philosophy of the act, Mead se refere
experincia como uma parte do processo vital dos
seres vivos, que inclui as aes destes em relao
ao meio ambiente. Como explica Igncio Snchez
de la Yncera (1994, p. 62-63), a concepo de
experincia proposta por Mead enfatiza a dimenso
interativa que constri a relao entre organismo e
ambiente.
Essa perspectiva interacional da experincia
compartilhada por John Dewey (1980, p. 95-96).
Segundo o pragmatista,
[...] toda experincia o resultado de interao
entre uma criatura viva e algum aspecto do mundo
no qual ela vive. Um homem faz algo; levanta uma

pedra, por exemplo. Em conseqncia padece, sofre


alguma coisa: o peso, a resistncia, a textura da
superfcie da coisa levantada. As propriedades assim
sofridas determinam o agir subseqente. A pedra
excessivamente pesada ou muito angulosa, ou no
suficientemente slida; ou, ainda, as propriedades
sofridas mostram que ela adequada para o uso
para o qual foi pretendida. O processo continua at
que emerja uma adaptao mtua do eu e do
objeto, e ento tal experincia especfica alcana um
trmino.

Dewey enfatiza, assim, a experincia como uma


travessia, marcada por uma dupla dimenso: a
experincia se constitui a partir da ao de um
indivduo, que inicia o percurso e, ao mesmo
tempo, sofre algo em consequncia daquela
primeira ao. Na perspectiva dele, a experincia
behavioral: ela uma questo de ao,
comportando elementos motores, nas interaes
de um organismo com o ambiente que o circunda.
(QUR, 2010, p. 31) Ela se constitui na transao
entre o agir e o reagir, entre o produzir e o sofrer,
os quais, por sua vez, orientam as aes futuras.
Nesse processo, tanto a criatura viva como o
aspecto do mundo com o qual ela interage se
adaptam situao vivida e se transformam
mutuamente. Evidencia-se, assim, o papel
transformador do sujeito e do mundo atravs da
vivncia de uma experincia.

Para
Dewey,
a
experincia
acontece
continuamente, pois a interao entre o ser vivo e
as condies que o cercam est implicada no
prprio processo da vida. (DEWEY, 1980, p. 89) A
experincia deve, assim, ser pensada a partir do
contexto concreto dos indivduos e envolve as
aes racionais e emocionais que eles realizam no
mundo. Ela se desenvolve como um processo de
percepo e interpretao das coisas, que se
efetiva a partir de um repertrio existente, o qual
atualizado, configurando um processo interativo
entre os indivduos, as coisas do mundo e as
temporalidades que marcam um contexto.
justamente a partir dessa ideia de experincia
que
podemos
apreender
o
sentido
de
acontecimento para Dewey. Como explicam
Sarmento e Mendona (2013, p. 6-7), por meio do
conceito de experincia, Dewey defende a natureza
relacional das emergncias do mundo, explicando
que a compreenso destas requer ateno
interao entre seres e coisas. Ou seja, os
acontecimentos so entendidos a partir de sua
dimenso interacional, na medida em que so
produtos de interao da natureza humana com as
condies culturais. (DEWEY, 1970, p. 256) Mas,
para alm dessa dimenso, como definir um

acontecimento na abordagem deweyana?


Um acontecimento estritamente o que sobressai, o
que saliente, a consequncia mais notvel, o ponto
culminante. Ele implica um conceito teleolgico;
descrev-lo e narr-lo s possvel mediante sua
delimitao por um comeo e por um ponto final,
com um intervalo entre esses dois pontos [ou seja,
no fundo, mediante sua formulao como intriga]
(DEWEY, 1993 apud QUR, 2012, p. 23, traduo
nossa)

Aqui, o acontecimento visto como um existente


que se destaca de um contexto; esse existente
saliente descrito e narrado, assumindo uma nova
existncia a partir desse processo de simbolizao.
nesse sentido que, para Dewey, o
acontecimento deve ser apreendido sob a categoria
d o becoming, ou seja, da mudana existencial.
(QUR, 2012, p. 23)
Ainda que passe por transformaes ao longo do
tempo, o acontecimento ocorre no presente. isso
que Mead (1932, p. 1) defende em The philosophy
of present: ele uma emergncia. Segundo o
autor, o mundo um mundo de acontecimentos.
Estes insurgem como algo novo na realidade,
inscrevem-se em um processo temporal em curso
na experincia e sob determinadas condies, as
quais influenciam sua emergncia, ainda que no a
condicionem completamente. a situao em que

o acontecimento emerge que cria com sua


unicidade um passado e um futuro, tornando-se
uma histria e uma profecia. (MEAD, 1932, p. 23)
Assim, o acontecimento tanto aponta para o
passado como para o futuro que ele mesmo
inaugura.
Em outra obra, The philosophy of act, Mead
(1938) tambm aciona a noo de acontecimento
[...] para salientar a centralidade do acaso nas
experincias humanas e a dimenso temporal
dessas experincias. (SARMENTO; MENDONA,
2013, p. 6) O autor atenta para as emergncias
que conformam o mundo, bem como para as
relaes entre seres e coisas. Nessa abordagem, o
evento no visto como mera passagem em um
fluxo sem fim. Ele a origem da estruturao do
tempo (JOAS, 1997, p. 176), atuando como
interrupo que leva reconstruo, a posteriori,
de uma ordem causal e tambm dos futuros
vislumbrveis. (SARMENTO; MENDONA, 2013, p.
6)
Assim, podemos dizer que, para esses
pragmatistas, o acontecimento uma emergncia
na experincia, um existente saliente que irrompe
em um contexto e neste sofre mudanas e
contingncias. Ele emerge no presente e, com isso,

constri tanto um passado como um futuro


revelando a dimenso temporal que lhe
constitutiva. Essas ideias de Dewey e Mead
(associadas a outros autores) ajudam a construir a
perspectiva de Louis Qur sobre acontecimento
o que ser discutido a seguir.
LOUIS QUR E A NOO DE ACONTECIMENTO
O acontecimento entendido por Louis Qur
(1995, 1997, 2000, 2005, 2010, 2011, 2012) como
uma emergncia que instaura sentidos e rompe
com a continuidade da experincia. Ele se inscreve
em um contexto e ganha uma nova dimenso na
medida em que narrado e descrito atravs da
comunicao (incluindo aqui os processos
comunicativos realizados atravs da mdia). Para
compreender melhor a perspectiva do autor,
preciso lembrar o modo como ele se afasta de
outras abordagens acerca do conceito de
acontecimento. A primeira delas se refere ao
construtivismo, que, segundo o autor,
[...] est fundada sobre a ideia de que os
acontecimentos que a mdia nos apresenta no so
as imagens puras e simples do que ocorre no
mundo, mas os resultados de um processo
socialmente organizado, e socialmente regulado, de
dar forma a, de encenar e de dar sentidos s

informaes, isto , de descries de ocorrncias ou


de situaes. (QUR 1997, p. 416)

Conforme Qur (1997, p. 417), o construtivismo


pode assumir duas formas: uma radical e uma
moderada. A abordagem mais radical entende o
acontecimento como [...] um puro artefato
meditico; ele visto menos como uma ocorrncia
no mundo e mais como um esquema de percepo
e de representao da realidade construdo pela
mdia. A perspectiva moderada, por sua vez, situa a
constituio dos acontecimentos nos processos de
construo das notcias, levando em conta o papel
das empresas e da prpria linguagem jornalstica
nesse processo. Nessa abordagem, podemos situar
alguns trabalhos realizados acerca do jornalismo,
como o da sociloga norte-americana Gaye
Tuchman (1978). Como explica Eduardo Meditsch
(2010), o livro Making news: a study in the
construction of reality reflete o esforo da
pesquisadora por apreender [...] as notcias como
a construo social da realidade. (MEDITSCH
2010, p. 21) Nesse sentido, o acontecimento
visto como aquilo que se configura como notcia, ou
seja, acontecimento o que narrado pelo
jornalismo.
Seguindo essa mesma perspectiva, liso Vron

desenvolve um trabalho (publicado em 1981) sobre


a cobertura jornalstica do acidente na central
nuclear de Three Mile Island, ocorrido nos Estados
Unidos, em 1979. Segundo o autor,
Os acontecimentos sociais no so objetos que se
encontram j feitos em alguma parte da realidade e
cujas propriedades e transformaes nos so dados
a conhecer de imediato pelos meios de comunicao
com maior ou menor fidelidade. Eles s existem na
medida em que esses meios os elaboram. [...] Os
meios informativos so o lugar onde as sociedades
industriais produzem nossa realidade. (VERN, 1995,
p. 2 apud MEDITSCH, 2010, p. 21-22, grifos nossos)

Nessa abordagem, os acontecimentos so


elaboraes feitas pelos meios de comunicao. Em
outro trabalho, Vron (1997) se volta justamente
para as operaes discursivas que permitem ao
dispositivo de enunciao do telejornal construir e
elaborar os acontecimentos. Assim, h quase uma
coincidncia entre acontecimento e notcia, como
sugere tambm a perspectiva de Alsina: Os
acontecimentos chegam a ns atravs da mdia e
so construdos atravs de sua realidade
discursiva. (ALSINA, 2009, p. 46 apud MEDITSCH,
2010, p. 22) O foco desses pesquisadores na
notcia como construtora da realidade social, a
partir de determinadas lgicas de produo e
organizao que regem o jornalismo.

A reflexo de Maurice Mouillaud (2002) tambm


se insere nessa perspectiva que procura desvendar
o acontecimento no campo do jornalismo. Para o
autor,
no
momento
da
ocorrncia
do
acontecimento, existe [...] uma exploso do
sentido pulverizado em um p de detalhes
(MOUILLAUD, 2002, p. 49), cabendo ao campo da
informao construir a moldura que enquadra o
sentido na construo da notcia. Segundo
Mouillaud (2002, p. 56), assim, acontecimento
[...] a modalidade transparente da informao;
aquilo que, ento, aparece como figura seu
objeto: os acontecimentos aos quais se refere a
informao formam o mundo que se supe real.
De acordo com Qur, a abordagem
construtivista tem o mrito de evidenciar que os
acontecimentos so sempre construes, no
existem como dados a priori. Entretanto, ela toma
o acontecimento como sendo apenas o relato
disponibilizado atravs das notcias, negligenciando
uma dimenso central que a ocorrncia dele na
experincia dos sujeitos.[3]
A segunda abordagem discutida por Qur
(1997, p. 421) diz respeito hiptese do agenda
setting. Nessa perspectiva, [...] o acontecimento
uma ocorrncia saliente que retm a ateno

pblica: a da mdia, a do pblico ou a dos atores


pblicos.
Essa abordagem privilegia, assim, uma das
dimenses da construo dos acontecimentos: a de
configurao da visibilidade das ocorrncias na
mdia, bem como de sua hierarquizao. Na viso
de Qur, o conceito de acontecimento no pode
se limitar dimenso de constituio de sua
relevncia no cenrio miditico.
Podemos incluir nesse tipo de abordagem a
reflexo de Bregman (1997), que procura perceber
a dinmica de construo de um acontecimento
poltico no interior da agenda miditica. O
pesquisador atenta para os temas que disputam tal
agenda em determinado contexto, bem como o
modo como interpretaes divergentes acerca de
um mesmo assunto ocupam a cena de visibilidade
pblica. Leal e colaboradores (2010) tambm
recorrem noo de agendamento para refletir
sobre o acontecimento jornalstico. De acordo com
os autores, [...] a mdia promove uma
hierarquizao de temas e o estabelecimento de
graus de relevncia para os diferentes assuntos.
(LEAL et al., 2010, p. 195)
Na perspectiva do agendamento, preciso ter
cuidado, como destacado anteriormente, para no

reduzir o acontecimento dimenso de


constituio de sua relevncia e salincia no
cenrio miditico. (QUR, 1997) Essa abordagem
privilegia a dimenso de configurao da
visibilidade das ocorrncias na mdia, bem como de
sua hierarquizao. Mais uma vez, existe o risco de
encerrar o acontecimento nos limites da esfera
miditica, negligenciando sua emergncia na
experincia dos sujeitos.
A terceira perspectiva discutida por Louis Qur
entende o acontecimento em termos de um ritual.
Daniel Dayan e Elihu Katz (1994, p. 9) se voltam
para o modo como determinadas cerimnias e
rituais (como uma coroao ou um casamento real)
so tratados pela mdia, particularmente, pela
televiso, configurando-se como acontecimentos
miditicos. Na viso dos pesquisadores, tais
acontecimentos constroem uma viso idealizada de
sociedade, enfatizando certos valores e aspectos
importantes da memria coletiva. O foco de Dayan
e Katz nesses espetculos e manifestaes
extraordinrias, que marcam uma interrupo da
rotina, so planejados e programados com
antecedncia para serem exibidos ao vivo pela TV.
Os autores se preocupam em distinguir esse tipo de
acontecimento (que se configura como um gnero

televisivo) dos acontecimentos noticiosos que


povoam a cena miditica cotidianamente, como um
acidente nuclear ou uma tentativa de assassinato
de um presidente.
De acordo com Qur (1997), o risco nesse tipo
de abordagem desconsiderar a dimenso
temporal dos acontecimentos. Isso porque o ritual
entendido, nesse vis, como uma entidade
atemporal, como um dispositivo repetitivo e
cerimonial que pode orientar a apreenso dos
acontecimentos pela mdia. Qur destaca que no
se pode buscar apreender tais ocorrncias apenas
em uma dimenso ritualstica e atemporal,
negligenciando
o
aspecto
temporal
dos
acontecimentos, que irrompem no cotidiano e se
inscrevem em um espao-tempo.
Afastando-se dessas trs perspectivas, Louis
Qur constri uma abordagem em que o
acontecimento
no
se
restringe

sua
representao ou relato pela mdia e no pode ser
compreendido a partir de um vis atemporal. Essa
questo da temporalidade uma das contribuies
do pragmatismo na reflexo de Qur. Para o
autor, o acontecimento desencadeia sentidos ao
emergir na experincia dos sujeitos e, com essa
emergncia, ele inaugura tanto um passado como

um futuro como destacado anteriormente na


perspectiva meadiana. O acontecimento esclarece
seu passado e o seu futuro, [...] o passado e o
futuro so relativos a um presente evenemencial.
(QUR, 2005, p. 62)
Ao enfatizar essa dimenso temporal do
acontecimento, alm dos pragmatistas, Qur
aciona tambm contribuies de Hannah Arendt,
para quem o acontecimento deve ser entendido
como um comeo capaz de revelar uma paisagem
inusitada de feitos, sofrimentos e novas
possibilidades. Ao mesmo tempo, o acontecimento
marca o fim de um processo, o resultado de um
encadeamento
que
ilumina
o
passado
(reconstruindo-o) e projeta novos futuros. nesse
sentido que o acontecimento abre um novo campo
de possveis. (ARENDT, 1993, p. 50)
Ao se inscrever em num contexto temporal, o
acontecimento afeta a vida dos sujeitos, o que
revela a sua passibilidade. Conforme Qur (2005,
p. 61)
O verdadeiro acontecimento no unicamente da
ordem do que ocorre, do que se passa ou se
produz, mas tambm do que acontece a algum. Se
ele acontece a algum, isso quer dizer que
suportado por algum. Feliz ou infelizmente. Quer
dizer que ele afecta algum, de uma maneira ou de

outra, e que suscita reaces e respostas mais ou


menos apropriadas.

Assim, os sentidos desencadeados pelo


acontecimento afetam os sujeitos e, ao mesmo
tempo, so afetados por estes.[4] A durao
temporal dessa afetao proporcional durao
do prprio acontecimento. Esta pode ultrapassar os
limites estritos da ocorrncia espao-temporal, no
coincidindo com a sua ocorrncia emprica.
Conforme Qur (2000, p. 11), o acontecimento
[...] dura o tempo que dura a atualizao de seu
potencial de criao de intrigas, de revelao de
possveis ou de modificao de situaes, assim
como de afetao [...] daqueles a quem ele
acontece. Essa uma dimenso central na
compreenso do acontecimento: seu poder de
afetao.
O acontecimento, portanto, no deve ser tomado
como algo isolado do curso social da ao, mas
deve ser apreendido a partir de seu aspecto
processual, ou seja, acontecimental. Como
apontam Barthlmy e Qur (1991, p. 24),
[...] um acontecimento no nem um instantneo,
nem uma ocorrncia isolada submetida
observao; como elemento de uma intriga, ele est
ligado a uma histria em curso; suscita juzos e
desencadeia aes. por isso que se pode falar de

um percurso acontecimental.

Nesse percurso acontecimental, que articula


passado, presente e futuro, um universo de
sentidos desencadeado e a partir dele que se
apreende o poder hermenutico do acontecimento.
De acordo com Qur (2005, p. 62), todo
acontecimento traz em si os elementos para sua
prpria compreenso: [...] o acontecimento que
torna compreensvel o seu passado e o seu
contexto, em funo do sentido novo cujo
surgimento ele provocou. Assim se explica o seu
poder de revelao ou de descoberta. Isso
significa que um acontecimento pode revelar uma
situao imprevista ou desvelar o carter
problemtico de um determinado tema ou questo
em jogo:
[...] os acontecimentos se tornam, eles prprios,
fonte de sentido, fonte de compreenso e fonte de
redefinio da identidade daqueles que afetam.
Nessa perspectiva, em que o acontecimento vem
antes dos sujeitos e das situaes, o que ele se
torna atravs de seu percurso, e os efeitos de
sentido que produz, que contribuem para
individualiz-lo. nesse sentido que se pode falar de
um poder hermenutico do acontecimento. (QUR,
2010, p. 35)

Dessa forma, o acontecimento no pode ser


simplesmente
explicado
por
causas
e

consequncias no mundo ou por fatores externos a


ele. Ao discutir a perspectiva de Qur, Mendona
(2007, p. 119-120) aponta que, dotado de certa
autonomia, o acontecimento cria as condies para
sua compreenso e contm um carter revelador
ao alterar tanto as possibilidades de leitura do
passado (daquilo que o causou) como do futuro (
medida que ele inaugura campos de possveis
concebveis). por isso que o acontecimento pode
ser visto como uma chave para tudo o que veio
antes e depois. (BENJAMIN, 1994, p. 37) Ao ser
lembrado e tematizado, o acontecimento revela,
uma vez mais, sua dimenso temporal.
Essa insero do acontecimento em um quadro
temporal, que ele mesmo constri e ilumina, ocorre
a partir dos sentidos que so instaurados nesse
processo. Isso destacado por Frana e Almeida
(2006, p. 4) ao retomar a discusso realizada por
Qur sobre a relao entre acontecimento e fato:
Sem deixar de ser fato, isto , sem abandonar sua
factualidade, sua existncia sensvel no mundo, o
acontecimento tambm da ordem dos sentidos. No
entanto e a que Qur promove uma inverso
no so os sentidos que advm para iluminar o fato
e convert-lo em acontecimento: o acontecimento o
porque capaz de desencadear sentidos.

O acontecimento no se reduz, assim, ideia de

fato, j que no pode ser datado, reduzido sua


efetuao espao-temporal e submetido lgica da
causalidade.
(QUR,
2005)
Os
sentidos
transbordam da ocorrncia emprica pontual,
revelando novos elementos do passado, do
presente e do futuro.
importante
destacar, ainda, que
o
acontecimento
no

dotado
de
uma
individualidade intrnseca, mas se constitui a partir
de um processo de individuao. (QUR, 2000)
Segundo Qur (1995), esta diz respeito a
diferentes tipos de entidades: a coisas, pessoas,
aes, relaes e acontecimentos. Conforme o
autor, um acontecimento individuado a partir de
um processo de determinao, em que se
especifica o que o configura como um
acontecimento particular, diferenciando-o de
outros. Esse processo se realiza a partir de um
percurso interpretativo, em que se podem
identificar vrios eixos em articulao.
Em primeiro lugar, o acontecimento passa por
um processo de descrio. Esta se refere
identificao da ocorrncia, distinguindo um
acontecimento de outros. Nesse primeiro eixo,
importante atentar para o conceito de quadro: na
perspectiva de Erving Goffman (1974), este deve

ser visto como um conjunto de princpios de


organizao que governam acontecimentos sociais
e
nosso
envolvimento
subjetivo
neles.[5]
(GOFFMAN, 1974, p. 10-11) So esses princpios
conformadores dos quadros que permitem a
definio da situao[6] pelos sujeitos, assim como
o posicionamento deles nas diferentes interaes.
Ou seja, os quadros permitem responder
pergunta O que est acontecendo aqui?. Assim,
na descrio do acontecimento, o que se busca
justamente responder a essa questo, ou seja,
identificar os quadros que organizam o
acontecimento, bem como os posicionamentos
adotados pelos atores sociais.[7]
Em segundo lugar, o acontecimento passa por
um processo de narrao. Este diz respeito
organizao narrativa da ocorrncia, o que implica:
1) a inscrio do acontecimento em uma linha
temporal, articulando-o com o passado e o futuro
na construo da intriga; e 2) a identificao e a
compreenso das aes e dos agentes que
configuram o acontecimento. Esse eixo resgata o
acontecimento como uma entidade temporal, que
promove aberturas em relao ao passado e ao
futuro, e a sua passibilidade, na medida em que
aponta para os sujeitos que movem a intriga e, ao

mesmo tempo, so afetados pelo acontecimento.


O terceiro eixo do processo de individuao do
acontecimento a configurao de um pano de
fundo pragmtico. Este atenta para o fato de que o
acontecimento no uma entidade abstrata, mas
articula e move prticas institudas e hbitos de
ao. Esse contexto de fundo animado por
crenas e desejos presentes nas estruturas
normativas da cultura e ele que orienta e articula
as aes dos indivduos em relao ao
acontecimento. Nesse sentido, a identificao
desse pano de fundo pragmtico sugere a
percepo dos pblicos[8] que se constroem em
relao ao acontecimento, j que revela o modo
como os sujeitos so acionados para agir e se
posicionar em relao ao acontecimento.
Compreender esses eixos no processo de
individuao dos acontecimentos fundamental
para apreender a reflexo de Qur acerca da
dupla vida do acontecimento. Partindo da base
pragmatista discutida anteriormente, Qur (2011,
2012)
prope
pensar
duas
formas
de
acontecimento: o acontecimento-existencial e o
acontecimento-objeto. O primeiro se refere ao
acontecimento tal como ele emerge e ganha
concretude na nossa experincia do mundo. Esse

tipo de acontecimento desencadeia reaes


espontneas, fundadas sobre a percepo imediata
e a emoo. A segunda forma de acontecimento
passa por um processo de simbolizao, que
introduz na experincia uma dimenso diferente
daquela da simples existncia. (QUR, 2011, p.
4) Essa simbolizao (marcada pela descrio e
pela narrao discutidas anteriormente) realizada
atravs da comunicao, que confere uma
qualidade nova e prpria ao acontecimento-objeto,
que, no entanto, traz ecos do acontecimentoexistencial.
Passando
pelo
processo
de
simbolizao, essa forma de acontecimento ganha
uma dimenso discursiva e passa a fazer parte da
organizao de nossa conduta. importante
destacar, contudo, que essas duas formas de
acontecimento no so dicotmicas, ainda que
apresentem dimenses distintas.
Partindo dessa reflexo de Qur, podemos
pensar que a mdia (como uma das instituies
realizadoras da comunicao) atua nesse processo
de simbolizao dos acontecimentos-existenciais.
Nesse processo, os dispositivos miditicos conferem
uma nova dimenso s ocorrncias, que adquirem
uma qualidade prpria em sua constituio como
acontecimentos-objeto. Apesar dessa distino,

entendemos que o acontecimento-objeto traz


marcas do acontecimento-existencial, que s pode
ser apreendido a partir de sua simbolizao. Dessa
forma, a anlise dos acontecimentos tal como
construdos e individuados pela mdia nos permite
apreender (ao menos em parte) os significados que
ecoam a partir da emergncia concreta das
ocorrncias
e
como
esse
acontecimento
simbolizado participa da organizao de nossa
experincia no mundo e de novas experincias
nele. Esse tipo de anlise nos permite, ainda,
apreender a imbricada relao entre mdia e
sociedade, no como esferas separadas: os
acontecimentos
na
mdia
so
tambm
acontecimentos na sociedade, e a leitura daqueles
nos permite perceber como as ocorrncias
emergem na vida social e ordenam nossa
experincia.
ALGUMAS PESQUISAS SOB O VIS DO
ACONTECIMENTO
Essa compreenso do acontecimento proposta por
Louis Qur vem sendo acionada em diferentes
estudos filiados ao campo da Comunicao no
Brasil. Vale destacar aqui a coleo de trs
volumes acerca da relao entre jornalismo e

acontecimento, nos quais a reflexo do socilogo


francs se faz muito presente.[9] Outra obra
recente importante nesse cenrio o livro
organizado por Frana e Oliveira (2012)
Acontecimento: reverberaes, que apresenta
algumas das pesquisas realizadas no mbito da
Universidade
Federal
de
Minas
Gerais
(particularmente no Grupo de Pesquisa em Imagem
e Sociabilidade GRIS) e de outras instituies do
Brasil, da Frana e de Portugal.[10]
No nosso objetivo aqui percorrer essas e
outras obras e artigos que tratam do conceito, mas
evidenciar como ele tem sido profcuo para analisar
diferentes
tipos
de
objeto
no
campo
comunicacional. Se nos estudos de jornalismo, a
noo j era muito utilizada (mesmo que luz de
outros autores), s mais recentemente ela vem
sendo acionada para refletir sobre objetos to
diversos como um movimento social, um caso de
violncia de gnero ou a constituio de uma
celebridade. para alguns desses estudos que nos
voltamos aqui, a fim de evidenciar o potencial
heurstico do conceito para o campo da
Comunicao.
Mendona (2007, p. 138) parte da reflexo de
Qur (e outros autores) para olhar para os

movimentos sociais como acontecimentos. Nesse


sentido, os movimentos so vistos como [...] essa
potncia de ao, que profetizam sobre o passado
e o futuro, permitindo a permanente construo
social da realidade. Alm dessa importante
dimenso temporal, o autor discute o poder
hermenutico do acontecimento, ou seja, seu
poder de revelao: o acontecimento possibilita
uma alterao nos quadros de compreenso do self
e do mundo. (MENDONA, 2007, p. 122, grifo do
autor) No h aqui um estudo emprico, mas a
defesa da potencialidade do conceito na anlise do
surgimento e da atuao dos movimentos sociais.
Em outro trabalho, Sarmento e Mendona (2013,
p. 22) se voltam para um estudo emprico luz da
mesma noo. O objetivo dos autores analisar,
no contexto da implementao da Lei Maria da
Penha, alguns casos de violncia domstica
protagonizados por celebridades e que receberam
ampla cobertura miditica: (1) a agresso
envolvendo o ator Dado Dolabella e a atriz Luana
Piovani; e (2) o desaparecimento/assassinato de
Eliza Samdio, de que o goleiro Bruno Fernandes
foi
acusado. A anlise
revela
que
os
acontecimentos so uma situao privilegiada
para a manifestao de controvrsias pblicas.

Cada um a sua maneira, os dois acontecimentos


revelaram aspectos centrais do quadro de valores
de nossa sociedade como a questo da justia,
do bem-viver, dos laos afetivos que merecem ser
protegidos.
Ancorada na perspectiva de Qur e em sua
base pragmatista, Vera Frana tem desenvolvido e
orientado
inmeros
trabalhos
acerca
de
acontecimentos de diferentes tipos. Em 2009, a
pesquisadora investigou o sequestro da jovem Elo
pelo ex-namorado Lindenberg, que teve grande
destaque e repercusso na mdia brasileira em
outubro de 2008. Frana discutiu o processo de
individuao desse acontecimento e evidenciou
que o sequestro foi, a princpio, inscrito em um
quadro mais amplo de violncia urbana no Brasil,
ao lado de outros casos de crueldade que envolvem
dramas individuais, e no como um caso de
violncia de gnero. De acordo com Frana (2009,
p. 16), a escolha de um enquadramento no campo
das relaes e papis de gnero viria problematizar
este caso para alm da esfera pessoal dos
envolvidos, e particulariz-lo dentro do quadro
geral da violncia urbana no Brasil. Essa escolha
realizada pelos dispositivos miditicos acaba por
manter o acontecimento no limite entre problema

pblico e domnios particulares.


O mesmo acontecimento analisado de modo
comparativo a um outro assassinato (de ngela
Diniz, ocorrido em 1977) por Ceclia Lana (2010). A
pesquisadora procura investigar esses dois
acontecimentos a partir de seu processo de
individuao pela mdia, tendo em vista as relaes
de gnero que configuram a sociedade brasileira
contempornea, ainda muito marcada por
machismo e padres patriarcais. Lana (2010)
observa os sentidos desencadeados pelos dois
acontecimentos, bem como o carter problemtico
que revelam, no intuito de perceber valores e
normas relativos questo de gnero.
Marco Antnio de Almeida (2006) parte da noo
de acontecimento para investigar a crise poltica
desencadeada pelo mensalo.[11] O foco da
pesquisa foi em uma personagem especfica
daquela cena poltica: Fernanda Karina, exsecretria de Marcos Valrio, um dos protagonistas
da crise. O objetivo foi perceber a atuao dessa
personagem, bem como o acontecimento que se
desenha em torno dela.
Em dilogo com esse trabalho, a pesquisa de
Roberto Almeida (2006, p. 3) se volta para o
terceiro eixo da individuao do acontecimento

aqui evidenciado: a configurao de pblicos em


relao ao acontecimento Fernanda Karina. O
pesquisador procura perceber como a experincia
desse acontecimento [...] toca os sujeitos e afeta
suas perspectivas e vises de mundo, seus modos
de perceber a si mesmo e a realidade circundante.
Lana e Simes (2012) retomam o conceito de
acontecimento para apreender a constituio das
figuras pblicas, a partir de dois estatutos de
personalidades: aquelas que podem ser vistas
como acontecimento e aquelas que se constituem a
partir do acontecimento. O objetivo das
pesquisadoras mostrar os movimentos distintos
percorridos por tais personagens na cena pblica e
sua articulao com os sujeitos que so afetados
por elas.
Desenvolvendo o argumento de que uma
celebridade por ser entendida como um
acontecimento, Simes (2012) analisa a construo
da imagem pblica do jogador de futebol Ronaldo
Luiz Nazrio de Lima a partir da individuao de
algumas ocorrncias marcantes em sua trajetria.
Da Copa de 1998 aposentadoria em 2011
passando pela Copa de 2002, pelo casamento com
Daniella Cicarelli e pelo caso das travestis , a
pesquisa aponta valores e traos que conformam a

imagem de Ronaldo como uma celebridade


carismtica.
No possvel esgotar aqui todos os trabalhos
que vem sendo desenvolvidos no Brasil que se
ancoram na perspectiva pragmatista de Louis
Qur. O que procuramos demonstrar com esse
breve relato de algumas pesquisas foi a riqueza do
conceito de acontecimento para anlise de
diferentes objetos como uma crise poltica ou
uma celebridade. Acreditamos que esses estudos
exibem, cada um sua maneira, a importncia de
dois eixos centrais na compreenso do prprio
conceito e, sobretudo, de sua contribuio ao
campo da Comunicao: o poder de afetao e o
poder hermenutico do acontecimento.

O acontecimento e sua dupla dimenso de


poder
O poder de afetao de um acontecimento,
conforme destacado anteriormente, diz respeito
sua passibilidade, ou seja, ao modo como ele
afeta, toca, sensibiliza a experincia dos sujeitos. A
partir de sua emergncia (MEAD, 1932), o
acontecimento configura seus pblicos (DEWEY
1954;
QUR,
2003),
que
no
existem
previamente, mas se constituem justamente a

partir desse processo de afetao.


O poder hermenutico do acontecimento, por
sua vez, exibe o seu potencial de revelao. Isso
significa que o acontecimento fonte de sentido
(QUR, 2010) e pode iluminar problemas pblicos,
desvendar questes e evidenciar aspectos
importantes do contexto social em que ele se
inscreve.
Acreditamos que essa dupla dimenso de poder
de um acontecimento permite apreender a
natureza comunicacional de inmeros fenmenos.
Para compreender isso, preciso resgatar a prpria
noo de comunicao, a partir da mesma base
pragmatista recuperada anteriormente. Para
Dewey (2010), a comunicao pode ser entendida
como um compartilhar vvido e profundo de
significados e que constitui a experincia. Essa
ideia de compartilhamento de sentidos a partir,
portanto, das interaes entre os sujeitos em um
determinado contexto tambm emerge na
perspectiva de Mead (1934). Como explica Frana
(2008, p. 89-90), na abordagem meadiana, a
comunicao vista como
[...] um todo composto de partes articuladas;
constitui-se de uma ao situada; compe-se de
gestos significantes, ou seja, da presena da

linguagem. A comunicao , sobretudo, uma


interao, marcada pela reflexividade em que cada
parte atua sobre a outra, e onde passado e futuro
so acionados pela ao no presente.

Nesse sentido, a anlise de um acontecimento a


partir dos dois eixos apontados acima permite
apreender justamente a comunicao, essa
interao simblica entre os sujeitos: aqueles que
movem e realizam o prprio acontecimento e os
pblicos que por este so construdos (em um
processo de mtua afetao). Alm disso, permite
apreender, a partir dos sentidos desencadeados
pela emergncia a inscrio temporal do prprio
acontecimento, bem como o contexto mais amplo
em que ele se insere e que ajuda a construir.
Afinal, como destaca Frana (2012b, p. 20), os
acontecimentos acontecem na nossa experincia
e falam dessa experincia. Retratam quem somos,
como vivemos. A anlise deles pode, portanto,
revelar um pouco do que somos, de como vivemos.
PARA CONCLUIR
O objetivo deste captulo foi discutir a noo de
acontecimento, reivindicando sua proficuidade para
as anlises no campo da Comunicao. Assim,
revisitamos
algumas
contribuies
dos
pragmatistas George H. Mead e John Dewey, que

aliceram a compreenso do acontecimento


desenvolvida por Louis Qur. Procuramos
evidenciar a centralidade da experincia na
constituio do acontecimento na perspectiva
desses autores, que enfatizam a dimenso
interacional configuradora dessas emergncias.
Alm disso, destacamos a dimenso temporal que
constitutiva dos acontecimentos, que irrompem
no presente e, ao mesmo tempo, instauram um
passado e um futuro.
Buscamos atentar para essa base pragmatista
que sustenta a reflexo de Louis Qur em torno
do conceito de acontecimento. Encontramos nesse
autor a mesma centralidade da experincia, alm
da mesma dimenso temporal e interacional das
emergncias que apreendemos da discusso de
Mead e Dewey. Encontramos, ainda, a centralidade
da
comunicao
como
constituidora
dos
acontecimentos nessas abordagens. Afinal,
resgatando contribuies desses pragmatistas que
o socilogo francs prope pensar sobre a dupla
vida do acontecimento: segundo Qur, o
acontecimento-existencial
ganha
uma
nova
dimenso ao ser simbolizado, atravs da
linguagem, o que o constitui como acontecimentoobjeto. Este se constri, portanto, atravs da

comunicao.
Depois de demonstrar esse alicerce pragmatista
da perspectiva de Qur, retomamos algumas
pesquisas que foram desenvolvidas sobre
diferentes objetos (como uma crise poltica ou uma
celebridade) luz da mesma. Dessa forma,
procuramos enfatizar o potencial heurstico do
conceito (FRANA, 2012a; SIMES, 2012) para o
campo da Comunicao, tendo em vista, sobretudo,
dois eixos: o poder de afetao e o poder
hermenutico dos acontecimentos. O primeiro diz
respeito ao modo como essas ocorrncias tocam a
experincia dos sujeitos, e o segundo, forma
como essas emergncias elucidam diferentes
aspectos do contexto social em que se inscrevem.
Ao retomar algumas das pesquisas realizadas luz
dessa perspectiva, o objetivo foi demonstrar como
acontecimentos que afetam uma sociedade em
determinado momento podem revelar traos e
valores dessa mesma sociedade. nesse sentido
que acreditamos que o duplo poder do
acontecimento possibilita a apreenso da dimenso
comunicacional de inmeros objetos: esses dois
eixos permitem compreender as interaes
simblicas entre os sujeitos que movimentam os
acontecimentos e a prpria vida social em que eles

emergem. Alm disso, atravs deles, possvel


identificar, nos sentidos desencadeados pela
emergncia, traos configuradores de uma
sociedade em determinado momento. Dessa forma,
ainda que no tenha um lugar de destaque no
quadro das teorias e escolas clssicas da
Comunicao, a noo de acontecimento trouxe
inmeras contribuies para os estudos na rea no
Brasil nos ltimos anos. E deve continuar
iluminando diferentes problemas de pesquisa que
se voltam para a apreenso da dimenso
comunicacional dos fenmenos.
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NOTAS
[1] Agradeo ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e
Tecnolgico (CNPq), Fundao de Amparo Pesquisa do estado
de Minas Gerais (Fapemig) e Pr-reitoria de Pesquisa da

Universidade Federal de Minas Gerais (PRPQ/UFMG) pelo auxlio


concedido ao desenvolvimento desta pesquisa.
[2] Para uma retomada do histrico e das caractersticas do
pragmatismo, ver Joas (1999); Pogrebinschi (2005); Muphy (1993)
e Snchez de la Yncera (1994).
[3] Em sintonia com a perspectiva de Qur, Leal, Vaz e Antunes
(2010, p. 38) tambm criticam a perspectiva que restringe o
acontecimento notcia. Ao discutir a homofobia como um campo
problemtico capaz de gerar acontecimentos, os pesquisadores
ressaltam que estes nunca se esgotam na sua converso em
notcia, pois se vinculam a um amplo conjunto de relaes sociais e
exigem operaes interpretativas diferentes.
[4] Essa dinmica de afetao dos sujeitos como marca do
acontecimento tambm sugerida pelo filsofo Jacques Rancire,
ao afirmar que no h acontecimento sem sentido de
acontecimento, sem subjetivao de acontecimento. [...] no h
acontecimento [...] sem um algum por quem e para quem ele tem
sentido de acontecimento. (RANCIRE, 1995, p. 239)
[5] O conceito de quadro foi introduzido por Gregory Bateson (2000,
2002), na dcada de 1950, nos EUA, para indicar os elementos que
possibilitam identificar o que se passa em determinada situao
interativa. Partindo da observao de animais como lontras e
macacos, o pesquisador define o quadro como o conjunto de
indcios que permitem perceber uma interao como uma briga ou
uma brincadeira. O prprio Goffman reconhece essa paternidade
do conceito na introduo de Frame Analysis.
[6] Esse conceito discutido por Goffman a partir do trabalho de
William Thomas (1966), para quem a interao e seu
desenvolvimento dependem [...] de um compartilhamento e/ou
cumplicidade (VELHO, 2008, p. 146), ou seja, de uma boa
definio da situao pelos atores sociais engajados nela.
[7] O posicionamento dos sujeitos discutido por Goffman (2008) a
partir do conceito de footing. Este diz respeito ao alinhamento, ao

porte, ao posicionamento, postura ou projeo pessoal do


participante de uma interao. Est vinculado linguagem, na
medida em que construdo e transformado a partir dos discursos
dos participantes de uma interao, e est diretamente ligado aos
enquadramentos dos acontecimentos.
[8] De acordo com Dewey (1954), pblicos emergem
contextualmente na medida em que vrias pessoas so afetadas
indiretamente por certas transaes sociais e respondem,
coletivamente, a essa afetao. nesse misto entre o sofrer e o
agir, entre a passibilidade e a agncia, que pblicos se configuram. A
perspectiva do pragmatista apropriada por Louis Qur (2003) em
sua reflexo sobre os pblicos.
[9] Cf. (BENETTI; FONSECA, 2010; LEAL; ANTUNES; VAZ, 2011;
MAROCCO; BERGER; HENN; 2012). Essa coleo foi lanada como
resultado das atividades de um convnio de cooperao acadmica
(Procad), financiado pela Coordenao de Aperfeioamento de
Pessoal de Nvel Superior (Capes), que promoveu o dilogo e o
intercmbio de pesquisadores de quatro programas de psgraduao em Comunicao no Brasil (UFMG, Unisinos, UFRGS e
UFSC).
[10] O livro resultado de um colquio de mesmo nome realizado pelo
GRIS/UFMG, em Belo Horizonte, em maio de 2011. Vale destacar
que, em 2013, o mesmo grupo de pesquisa criou o Laboratrio de
Anlise de Acontecimentos (Grislab), uma atividade de pesquisa e
extenso que visa discusso e anlise de diversos acontecimentos
que marcam a contemporaneidade. Cf. grislab.com.br
[11] Nome como ficou conhecido o esquema de corrupo
envolvendo o Partido dos Trabalhadores (PT) e alguns
parlamentares, que receberiam uma mesada para votar
favorveis s pautas defendidas pelo governo em 2005.

ROUSILEY MAIA, REGIANE LUCAS GARCZ, VANESSA VEIGA,


EDNA MIOLA, BRULIO NEVES, ALICIANNE GONALVES,
PATRCIA ROSSINI, DIGENES LYCARIO E DANILA CAL

A teoria crtica nos estudos da


Comunicao: uma agenda
emprica para o programa de
Jrgen Habermas e de Axel
Honneth[1]
INTRODUO
difcil sublinhar com suficiente veemncia a
contribuio da pesquisa poltico-filosfica da
Escola de Frankfurt para os estudos em
Comunicao Social. Seus postulados vm sendo
transpostos para o desenvolvimento das teorias da
Comunicao, desde o incio do sculo XX. Neste
captulo, discutimos as influncias da segunda e da
terceira gerao da Teoria Crtica sobre os estudos
em Comunicao. Embora reconheamos a
importncia dos pensadores da primeira gerao

dessa escola e a vitalidade de seus escritos em


renovadas releituras para a abordagem de
inmeros fenmenos contemporneos , dedicamonos aos avanos nas geraes subsequentes da
escola.
Na primeira seo, cotejamos as obras de Jrgen
Habermas e Axel Honneth, com o intuito de
localizar as preocupaes tericas centrais desses
filsofos como guias de agendas de pesquisa no
campo da Comunicao. Apresentamos, na terceira
seo,
alguns
estudos
que
vm
sendo
desenvolvidos
sob
inspirao
da
obra
habermasiana, sobretudo na rea de comunicao
poltica, esfera pblica e democracia deliberativa.
Na quarta seo, discutimos algumas pesquisas
fundamentadas na obra de Honneth e orientadas,
particularmente, pela noo de reconhecimento no
campo da Comunicao. So objeto de nossa
anlise pesquisas de natureza emprica que
dialogaram com essas duas vertentes da Teoria
Crtica.
A TEORIA CRTICA E A PESQUISA EM
COMUNICAO SOCIAL: UMA BREVE TRAJETRIA
O Instituto para a Pesquisa Social da Universidade
de Frankfurt surgiu na Alemanha, em 1923, e

reuniu pesquisadores que, inspirados na obra


marxista, buscavam compreender questes sobre a
emancipao e a mudana social. Tambm
conhecida como Escola Crtica, ou Escola de
Frankfurt, essa corrente de pensamento vem
contribuindo com os estudos de Comunicao
desde a sua primeira gerao. Destaca-se uma
notvel diversidade de perspectivas que vo desde
o repertrio crtico da Economia Poltica (Theodor
W. Adorno, Max Horkheimer) at as tendncias
filosficas, em fenmenos estticos da cultura
contempornea
(Herbert
Marcuse,
Walter
Benjamin, Erich Fromm). A primeira gerao
frankfurtiana foi decisiva para desafiar os
chamados modelos administrativos da pesquisa
em Comunicao, sejam eles entendidos como
funcionalistas, informacionais ou behavioristas, de
natureza estatstica e empirista. Ela trouxe para as
pesquisas da rea problemas como a massificao
da cultura, a fetichizao dos bens e o declnio do
pensamento crtico individual.
A segunda gerao da Teoria Crtica marcada
por uma reorientao crtico-reconstrutiva que
ganha mpeto, sobretudo, com a virada
pragmtico-intersubjetiva na obra de Jrgen
Habermas (1984). No incio da carreira, Habermas

permaneceu adepto aos paradigmas originais, que


se centravam em diagnsticos negativos da razo
instrumental, da massificao dos sistemas e das
prticas da Comunicao Social que, geralmente,
indicavam a irreversibilidade da dominao
racionalizada. Sem que houvesse um abandono do
interesse emancipatrio e do materialismo dialtico
marxista, ocorreu uma radical reinterpretao da
comunicao e da intersubjetividade como
dimenso
normativo-emancipatrios
da
contemporaneidade. A Comunicao, sob esse
ponto de vista, passa a ser considerada instncia
da transcendncia na imanncia, isto , recurso
potencial de crtica das formas existentes de
dominao, para a ruptura da ordem social e a
transformao da realidade.
A
compreenso
da
relevncia
da
intersubjetividade e da linguagem, baseada na
tradio pragmatista, tornou-se referencial para a
Teoria do Agir Comunicativo. (HABERMAS, 1984;
ANDERSON, 2011) Essa reorientao estendeu o
escopo da abordagem dialtica a fenmenos alm
das relaes de produo e reproduo social.
Divergindo de muitos diagnsticos da primeira
gerao, mas, em continuidade com os princpios
do materialismo dialtico, Habermas reinterpretou

suas prprias hipteses quanto s tendncias de


desenvolvimento da esfera pblica e superou as
sombrias expectativas da obra de 1962. Para a
pesquisa em Comunicao, isso implicou uma
intensificao dos esforos de investigao das
prticas
comunicativas
das
organizaes
autnomas da sociedade civil e das prticas
comunicativas cotidianas, que passaram a ser
percebidas enquanto possibilidade de revitalizao
do potencial crtico da esfera pblica. (HABERMAS,
1992, 1994)
O quadro terico habermasiano favorece a
investigao da complementariedade (e das
contradies) entre os sistemas institucionais e o
mundo da vida em termos da coordenao das
tecnocracias estatais e empresariais e das
resistncias submisso da vida cotidiana aos
ditames desses sistemas. (HABERMAS, 1984)
Especialmente em Direito e Democracia, Habermas
(1992) procura estender a anlise da tica do
discurso s prticas democrticas da esfera pblica
e s instituies polticas, como o sistema legal. A
ampliao dos estudos sobre a esfera pblica e
sobre os processos de deliberao (no s no
mbito da poltica institucional formal, mas
tambm na vida cotidiana) resultado desse

desenvolvimento poltico-filosfico. A pesquisa


emprica em Comunicao, nesse caso,
crescentemente convidada a se debruar sobre
uma variedade de fenmenos, como discutiremos
na seo seguinte.
A terceira gerao da Escola de Frankfurt, que
tem como expoente Axel Honneth, concede
centralidade intersubjetividade como fonte da
emancipao poltica. Atribui-se a Honneth a
elaborao de uma agenda de pesquisa capaz de
trazer novo mpeto Teoria Crtica, ao promover a
identificao
e
promoo
dos
impulsos
emancipatrios
presentes
explcita
ou
implicitamente na realidade social (i.e. o princpio
da transcendncia na imanncia) e buscar reunir
conflito e luta social em uma teoria normativa do
social. Honneth se distancia de Habermas ao calcar
sua teoria da intersubjetividade em teorias da
filosofia antropolgica, elaborando uma noo
terica-intersubjetiva de poder nas interaes
dirias do mundo da vida. O autor busca ampliar a
abrangncia da crtica social ao evidenciar as
condies que so necessrias ao florescimento
humano, atravs da aquisio de reconhecimento
intersubjetivo em trs mbitos: relaes pessoais
com vnculo afetivo, na esfera do amor; relaes de

direito na esfera jurdica; relaes de solidariedade


e estima, na esfera social. Honneth fundamenta
sua crtica nas experincias de dano relacionadas
a essas diferentes esferas (violao da integridade
fsica e da dignidade dos sujeitos; desrespeito e
denegao de direitos e, ainda, marginalizao ou
excluso social) como potencial para emancipao;
como fora motriz normativa e motivacional
subjacente s lutas contra a injustia.
Ao desenvolver sua Teoria do Reconhecimento,
Honneth percorre um caminho que, em alguns
pontos, aproxima-se e, em outros, afasta-se do
programa delineado pelas primeira e segunda
geraes da Escola de Frankfurt. Acolhendo as
principais contribuies habermasianas, a inflexo
lingustico-intersubjetiva, a teoria comunicativa da
sociedade e a perspectiva intersubjetiva de
integrao social, Honneth busca, igualmente,
estabelecer o plano das interaes cotidianas como
um mbito de crtica moral. Seu pensamento
retoma, embora em uma chave filosficoantropolgica, a
crtica
dialtica
marxista
desenvolvida pela primeira gerao da Escola de
Frankfurt, a fim de compreender que a sociedade
se transforma atravs de lutas permanentes
entre grupos sociais culturalmente integrados.

Esses grupos se engajam em uma ampla gama de


conflitos sociais, alm do conflito de classes.
Honneth (1991) desenvolve uma anlise
reflexiva do poder e da dominao, adicionando
uma dimenso moral perspectiva foucaultiana,
contribuies estas extradas da noo de lutas
moralmente motivadas, presente nos escritos
iniciais de Hegel. Ao rejeitar a concepo das
instituies como meramente disciplinadoras,
bem como a viso reducionista da razo
interpretada em termos meramente instrumentais,
Honneth defende a ideia de que so as instituies
da democracia constitucional que salvaguardam a
autonomia individual e que permitem a afirmao
das diferenas concernentes autorrealizao dos
indivduos e s formas de vida culturalmente
variadas. A liberdade e a autonomia, sob essa
perspectiva, no devem ser vistas como noes
abstratas; e os diretos que protegem sujeitos
singulares e grupos minoritrios no devem ser
vistos como resultado de um contrato social
hipottico e nem como uma racionalidade abstrata,
mas, sim, como o resultado de lutas histricas.
A publicao de Luta por reconhecimento, por
Honneth (em 1992 em alemo, em 1995 em lngua
inglesa), desencadeou indagaes e investigaes,

em vrios campos da filosofia social e poltica,[2] e


em estudos sobre multiculturalismo, polticas de
identidade e lutas de grupos sujeitos a m
distribuio de renda e desvalorizao cultural. Ao
abordar o reconhecimento, ampliam-se as
perspectivas de investigao de fenmenos
comunicativos que contribuem para a constituio
intersubjetiva dos sujeitos. Podemos citar uma
gama de questes, a exemplo de lutas em torno de
representaes e discursos miditicos que
humilham, marginalizam ou diminuem indivduos
ou grupos sociais; da construo de uma semntica
coletiva no mbito de movimentos sociais e de
grupos sociais engajados em processos de
transformao nas esferas ntima, jurdica e social;
e do papel da emoo para a autoexpresso dos
sujeitos, para as discusses ou para o ativismo.
Nas sees seguintes, apontaremos o modo pelo
qual as obras de Habermas e de Honneth tm
possibilitado um intenso dilogo da perspectiva
crtico-reconstrutiva com pesquisas acerca de
diversas questes no campo da Comunicao.
HABERMAS E OS ESTUDOS SOBRE ESFERA PBLICA
E DELIBERAO DEMOCRTICA
As crticas de Habermas comunicao de massa,

desenvolvidas sob a perspectiva da primeira


gerao da Escola de Frankfurt, so bem
conhecidas. Ainda que a noo de esfera pblica
desenvolvida pelo autor em Mudana estrutural da
esfera pblica (1991 [1962]) seja muito influente,
ela foi profundamente modificada ao longo de sua
trajetria. Em Direito e democracia, Habermas
(1996) revisa o conceito reconstruindo o processo
de
deliberao
pblica
em
sociedades
contemporneas e refinando teoricamente a tica
do discurso e a concepo da sociedade
descentralizada, complexa e eticamente pluralista.
A teoria habermasiana prov, assim, conceitos
bsicos que abrangem os princpios centrais do
modelo de democracia deliberativa[3]. Numerosas
pesquisas investigam seus sentidos e controvrsias
normativas. No obstante receba crticas diversas,
esse paradigma referncia importante para
pesquisas empricas e para muitos estudos que
procuram incrementar as formulaes tericas de
Habermas. Nesse contexto, temos nos alinhado a
autores que defendem uma abordagem ampliada
dos tipos de comunicao que podem levar
deliberao e que sustentam uma viso expandida
de razo, bem-comum, legitimidade e da prpria
deliberao. (BOHMAN, 1996, 2007; DRYZEK, 2000,

2010; MANSBRIDGE, 1999; STEINER, 2012; MAIA,


2008, 2012) Entendemos, dessa forma, que a
deliberao deve ser analisada, levando em
considerao seus constrangimentos internos e
externos e a sua realizao em situaes
concretas. Nesse sentido, ao atribuir lugar de
destaque que a democracia deliberativa ocupa na
teoria contempornea, nosso propsito o de
apontar a relevncia desta abordagem para os
estudos sobre comunicao e poltica.
No campo dos estudos sobre internet, por
exemplo, a maioria dos pesquisadores concorda
que o crescimento da comunicao em rede
oferece novas oportunidades para que vrios
grupos tenham suas vozes ouvidas na esfera
pblica. Numerosas pesquisas investigam o
potencial de deliberao oferecido pela internet, e
se detm nas especificidades conceituais de
variados ambientes conversacionais; os fatores que
favorecem ou dificultam as discusses on-line
(DAHLBERG, 2001; STROMER-GALLEY; WEBB;
MUHLBERGER, 2012); a estrutura e a interao em
grupos de discusso, fruns, sites de instituies
polticas, iniciativas de e-democracia e e-gov,
dentre outros (DAHLGREN, 2005; DAVIES;
CHANDLER, 2012); e, ainda, o papel que a

deliberao on-line desempenha em diferentes


processos polticos. (MIN, 2007; STROMER-GALLEY;
WEBB; MUHLBERGER, 2012)
A matriz habermasiana contribui na construo
de abordagens metodolgicas. Autores como
Steiner e colaboradores, (2004), Dahlberg (2001) e
Stromer-Galley
(2007)
identificaram
e
operacionalizaram conceitos centrais da tica do
discurso de Habermas, a fim de aferir a qualidade
da deliberao em diferentes contextos. Apesar de
enfatizarem diferentes variveis, os pesquisadores
parecem compartilhar o interesse nos seguintes
indicadores: oportunidade de discutir e expressar
argumentos; nveis de justificao e contestao;
formas de reciprocidade, civilidade e respeito;
reviso de opinio e mudana de preferncia. So
pesquisas e achados que trazem, alm de novas
evidncias ao debate terico, novos critrios
operacionais, mtodos de avaliao e diretrizes
para construir projetos on-line que busquem tornar
as prticas e os sistemas polticos mais
deliberativos. (KIES, 2010; STEINER, 2012;
STROMER-GALLEY et al., 2012)
Enquanto estudos sobre conversao e debate
face a face ou na internet tendem a assumir uma
perspectiva micro enfatizando um determinado

frum ou uma instituio , alguns autores alegam


que a deliberao pode tambm ser observada nos
media de massa. (FERREE et al., 2002; MAIA, 2008,
2012; PAGE, 1996; WESSLER et al., 2008) Um dos
desafios para definir a deliberao mediada
compreender a dinmica entre opinies publicadas
e os discursos representados na arena miditica.
Para pensar esse aspecto, importante destacar
que tericos de distintas filiaes[4] defendem que
a deliberao pode e deve ser concebida como
um processo coletivo de trocas racionais,
envolvendo uma pluralidade de atores, estendido
por toda a sociedade. Dessa forma, quando se tem
em mente a deliberao como um processo
ampliado, e no restrito s interaes face a face,
assume-se que: (a) a deliberao requer formas de
publicidade e de troca argumentativa atravs do
tempo e do espao; (b) os pontos de vista,
argumentos ou discursos se desvinculam dos
indivduos e transcendem contextos restritos de
interao; e (c) a competio entre argumentos ou
a contestao dos discursos possibilita influncias
recprocas e resultados imprevisveis. A partir disso,
cabe ento indagar sobre o papel que os media de
massa desempenham em tal dinmica.
Uma vertente de estudos de vis deliberacionista

investiga o modo pelo qual os media como


instituies sociais concretas, perpassados por
relaes de poder operam como plataformas de
debate ou arenas discursivas. Os estudos
precursores se preocupavam, basicamente, com a
questo do acesso a composio da coletividade
de atores e discursos na arena miditica. (FERREE
et al., 2002; PAGE, 1996) J as pesquisas mais
recentes pem em foco no apenas os atos de fala
dos participantes, mas, tambm, suas perspectivas
e as funes desempenhadas nos media. O
objetivo explcito capturar a dinmica de
interao entre as opinies publicadas ou
verbalizadas nos media. (MAIA, 2008, 2012; RINKE;
WESSLER, 2013; WESSLER et al., 2008) Foram
desenvolvidos
parmetros
para
mensurar
indicadores, adaptando e desenvolvendo os
critrios aplicados na discusso interpessoal para
aferir a deliberao mediada. Desse modo, as
pesquisas identificam a posio dos atores grupos
ou indivduos ; comparam a representao de
atores oriundos de diversos subsistemas e analisam
as influncias e as oportunidades de participao
disponveis para diferentes categorias de atores na
arena miditica.
Estudos sobre esfera pblica e deliberao vm

guiando os esforos do Grupo de Pesquisa em Mdia


e Esfera Pblica (EME/UFMG) h mais de 15 anos.
Os problemas de pesquisa e os modelos de anlise
da deliberao e dos processos miditicos,
apontados acima, esto presentes em diversas
pesquisas desenvolvidas no mbito desse grupo.
Encontramos na teoria habermasiana e na
interlocuo
com
pesquisadores
nessa
especialidade respaldo para tratar de diversos tipos
de debates pblicos tais como: implantao de
polticas pblicas (MARQUES, 2007; MARQUES;
MAIA 2010; MIOLA, 2012; OLIVEIRA, 2013;
SAMPAIO et al., 2011; SANTIAGO; MAIA, 2005);
conflitos ambientais (LYCARIO, 2011); demandas
d e accountability em situaes em que os
processos formais apresentam dficits de
desempenho (MAIA, 2005; NEVES; MAIA, 2009);
problemas
identitrios
e
conflitos
sociais
envolvendo
demandas
por
reconhecimento.
(MARQUES, 2003; REIS; MAIA, 2006) As pesquisas
citadas
examinam
no
apenas
opinies,
argumentos e a eventual deliberatividade dos
media, mas a interpenetrao entre a conduta
estratgica de jogos polticos e a argumentao; o
apelo emocional para provocar a reflexo; e a
utilizao de artifcios retricos e estratgicos para

mobilizar diferentes pblicos.


No contexto da vida cotidiana, investigamos o
modo atravs do qual as pessoas produzem e
reproduzem argumentos em esferas informais de
conversao, situadas na periferia do sistema
poltico. Em linhas gerais, constatamos que a
comunicao dos media apresenta um carter
seletivo, com atores de diferentes esferas
desempenhando
papis
institucionalmente
definidos representantes polticos, agentes do
mercado, especialistas, ativistas e lderes de
movimentos sociais.
Em uma dinmica circular, o material produzido
e veiculado pelos media de massa serve como
pano de fundo para outros contextos discursivos,
na medida em que prov informaes sobre
eventos, diagnsticos sobre acontecimentos e,
ainda, torna disponveis opinies e discursos que
podem ser tomados como referncia em conversas
informais e no debate poltico. Nosso interesse
examinar o modo como as pessoas produzem
sentido acerca das opinies e dos discursos que
circulam na arena miditica, a fim de: definir
problemas; especificar como e porque se sentem
afetadas por determinadas questes; refinar suas
opinies e negociar diferenas tendo em vista o

que elas querem para si e para os outros; endossar


ou contestar as demandas de representantes
formais e informais etc. (CAL, 2007; GUICHENEY,
2008; MARQUES, 2007) As pesquisas produzidas no
EME nesse eixo temtico contribuem para
investigar as interconexes, as convergncias, as
tenses e os dissensos entre as definies dos
problemas por elites no mbito pblico e os atos de
interpretao que ocorrem de baixo para cima.
Compartilhamos, igualmente, a perspectiva
colocada em destaque no atual estgio dos estudos
em democracia deliberativa. Diversos autores tm
advogado por uma agenda capaz de aprofundar o
entendimento da deliberao como um processo
que abrange a sociedade em sua totalidade. (MAIA,
2012; MANSBRIDGE et al., 2012; THOMPSON,
2008) Recentemente, Mansbridge e outros (2012,
p. 26) anunciaram a abordagem sistmica como
uma terceira fase da pesquisa em deliberao. Esta
sucederia a fase inicial do debate sobre
controvrsias normativas e a fase da virada para
estudos empricos.
Na Comunicao, h, de fato, um volumoso
corpo de estudos que investigam a deliberao (ou
aspectos deliberativos) em espaos conversacionais
da internet (fruns, sites de redes sociais etc.) e

nos media tradicionais. (DAHLBERG 2001; GASTIL


2008; KIES 2010; MAIA, 2012; PAGE 1996;
PARKINSON 2005; STEINER 2012; WESSLER et al.,
2008) Contudo, a maioria desses estudos se
concentra em um nico episdio (ou esfera) de
deliberao.
Embora a formulao explcita sobre o chamado
sistema deliberativo seja recente, possvel notar
que, desde a formulao do modelo de circulao
de poder em duas vias (two-track model) por
Habermas (1996, p. 307-308) cuja ideia central
postula que a democracia fomentada pelas interrelaes entre instituies da poltica e as esferas
informais de conversao e associaes dispersas
da sociedade , h diversas teorizaes
preocupadas em integrar as opinies formadas
publicamente e transmitidas em fluxo s esferas de
produo da deciso no aparato estatal. Alguns
autores destacaram que h diversas arenas
discursivas, alm daquelas formais, tais como as
conversaes cotidianas em ambientes privados, as
instituies da sociedade civil e os media
(MANSBRIDGE, 1999), alm de arenas mistas que
contam com a participao de agentes da esfera
civil e do Estado. (HENDRIKS, 2006) Outros
pesquisadores enfatizaram que o processo

deliberativo ocorre em diferentes estgios e que


instituies e agentes desempenham papis
distintos nessa sequncia, que tem como objetivo
produzir decises coletivas. (GOODIN, 2008;
NEBLO, 2005; PARKINSON, 2006) Sendo a
abordagem sistmica da deliberao genuinamente
inovadora,
ela
suscita
uma
srie
de
questionamentos tericos e impe desafios para
sua
operacionalizao
emprica.
(ELSTUB;
MCLAVERTY, 2013; MAIA, 2013; OWEN; GRAHAM,
2013)
Apesar de, neste momento, no podermos nos
alongar no debate epistemolgico, observamos que
a abordagem sistmica chama ateno para (a)
processos de discusso e argumentao em fruns
singulares a serem tomados como parte de um
processo mais abrangente; (b) inter-relaes entre
fruns em domnios formais e informais do sistema
poltico; e (c) interfaces que experincias
deliberativas estabelecem com outras prticas no
deliberativas, dentro do sistema poltico como um
todo. Sob esse ngulo, podemos atentar para a
diversidade de agentes e formas de comunicao
nas arenas (HENDRIKS, 2006; MANSBRIDGE, 1999)
e observar as prticas para resoluo de conflitos
em momentos diferentes, os quais podem ter

finalidades e virtudes variadas. (GOODIN, 2008;


PARKINSON, 2006) Nesse debate, h vrios
exemplos de tenses, contradies e oportunidades
que podem habitar as arenas discursivas
(THOMPSON, 2008), assim como de compensaes
entre
propsitos
deliberativos
diversos,
mecanismos autocorretivos e processos de
aprendizado
coletivo.
(GOODIN,
2008;
MANSBRIDGE et al., 2012)
Sustentamos que tal abordagem propicia a
investigao, de modo inovador, de vrias questes
empricas e normativas. (MAIA, 2013) Partimos da
premissa que o sistema dos media mltiplo e
hbrido, sendo que cada ambiente miditico
altamente
diferenciado.
(CHADWICK,
2013;
WALTHER et al., 2011; PAPACHARISSI, 2010)
Argumentamos que os media e as plataformas
com lgicas prprias de funcionamento, normas,
pblicos e oportunidades para ao influenciam a
ao das pessoas nesses ambientes. Essa
perspectiva benfica para aprofundarmos a
compreenso das relaes entre a deliberao, os
processos de governana e as prticas dos
cidados, como processo social amplo. Assim
sendo, uma promissora rea de pesquisa
investigar as relaes entre poltica e comunicao

tendo em conta aspectos de interao e mediao


tecnolgica dos media e outras arenas discursivas.
Por essa razo, a perspectiva sistmica tem
perpassado os estudos do EME/UFMG desde as
primeiras formulaes sobre a noo de sistema
deliberativo.
Algumas
pesquisas
buscaram
investigar como o processo da deliberao pode
acontecer em arenas discursivas distintas e como
essas arenas interagem e se afetam. (MARQUES,
2007, 2010; MENDONA, 2009) Recentemente,
nosso esforo tem sido o de evidenciar interrelaes entre arenas discursivas de modo
sistemtico, atravs de estudos quantitativos.
Desenvolvemos diferentes desenhos de pesquisa
com o objetivo de apreender: (a) a troca de razes
sobre um determinado tema controverso na arena
d o s media e de que modo isso se articula com
debates em outras arenas da sociedade; (b) o
comportamento discursivo de um determinado ator
em arenas distintas: (c) a complexa ecologia
miditica e os modos que os cidados encontram
para refletir sobre temas polmicos.
Destacamos, no primeiro caso, a pesquisa de
Miola (2012), que investiga o debate acerca da
medida provisria que propunha a criao de um
sistema pblico de radiodifuso a Empresa Brasil

de Comunicao (EBC). A autora examinou duas


arenas: (a) o Parlamento, ou seja, os debates no
plenrio da Cmara dos Deputados, e (b) a
imprensa. J o estudo de Dantas lanou mo da
metodologia denominada Discourse Quality Index
DQI (STEINER et al., 2004) para examinar como os
especialistas expem seus pareceres e contribuem
na produo da deciso, analisando o debate sobre
um projeto de lei da Cmara Municipal de Belo
Horizonte que previa a transferncia da estao de
nibus da cidade. O estudo tambm considerou
diferentes arenas: (a) minipblicos e audincias
pblicas, envolvendo comisses parlamentares da
Assembleia Legislativa de Minas Gerais, nas quais
houve o dilogo entre especialistas, legisladores,
associaes civis e cidados comuns; e (b) a
imprensa local, representada por trs importantes
jornais.
Como exemplo do terceiro objetivo, Maia e
Rezende (2013) examinaram a deliberao em
arenas informais desencadeadas por um evento
polmico o caso de uma expresso de racismo
proferida pelo deputado federal Jair Bolsonaro em
um programa de TV (CQC, Band TV). Foram
investigados os debates em diferentes plataformas
digitais de redes sociais: (a) um domnio on-line

genrico que cobre qualquer assunto ou tema


YouTube; (b) um domnio para discusso
personalizada relacionada a temas especficos
blogs; e (c) uma plataforma para conversao
pessoal em um determinado crculo social
Facebook.
Nosso percurso tem mostrado que refletir sobre
a deliberao em termos de sistema til para a
investigao de diferentes problemas, variveis e
coordenadas metodolgicas, alm de enfatizar o
valor de instncias informais de conversao
cotidiana.
Os
casos
empricos
analisados
demonstram a complexidade das relaes que os
media
estabelecem com distintas esferas
discursivas, instituies, agentes e momentos de
deliberao. Tal abordagem contribui para que
observemos como o debate em diferentes
instncias opera em seu prprio contexto, ligado a
determinadas normas jurdicas e administrativas,
economia poltica, cultura e s relaes de
interesse e poder. O vis sistmico das pesquisas
tambm permite esclarecer como decises em
instncias formais estabelecem conexes com a
arena miditica dentro de processos de governana
mais amplos e, ainda, como prticas deliberativas e
no deliberativas se articulam. Embora ainda haja

espao para aprofundamentos tericos e empricos,


a abordagem sistmica parece ter movido a
pesquisa para uma nova fase. O esforo conjunto
de pesquisadores, no cenrio nacional e
internacional, nessa agenda de pesquisa, sugere
que a influncia habermasina sobre estudos de
comunicao e poltica, certamente, ter vida
longa.
HONNETH E OS ESTUDOS SOBRE
RECONHECIMENTO
A Teoria Crtica ganhou novos contornos com a
obra de Axel Honneth (1995). Nos ltimos anos, a
noo de reconhecimento conceito chave nos
e st udos desenvolvidos na terceira gerao da
Escola de Frankfurt, por este filsofo alcanou
uma posio central no debate sobre o
multiculturalismo, as polticas de identidade e as
lutas de grupos vtimas da m distribuio de renda
e da desvalorizao cultural. O quadro terico de
Honneth permanece convergente com o legado
habermasiano em vrios aspectos, especialmente
pela centralidade atribuda intersubjetividade.
Contudo, na
reconstruo honnethiana, a
intersubjetividade conectada noo de
autorrealizao, tida como referncia para se

compreender e se aferir as dimenses normativas


de conflitos tico-polticos.
Cabe destacar que a teoria do reconhecimento
de Honneth no se confunde com polticas
identitrias e tampouco com polticas de
reconhecimento, conforme discutido por Charles
Taylor. Para Honneth, a autorrealizao tem menos
a ver com a concepo tradicional de identidade,
entendida como um conjunto de afiliaes e
identificaes recprocas, e mais com a ideia de
plena autonomia do indivduo; e isso se vincula
tanto noo de liberdade individual ou autonomia
quanto de agncia e florescimento individual.
(DERANTY, 2011) A combinao nica que Honneth
faz entre a Antropologia, a Filosofia social e poltica
e o diagnstico das patologias sociais credencia o
pesquisador a cotejar experincias de injustia
vivenciadas cotidianamente, com amplos processos
de discusso na esfera pblica. Essa abordagem
ilumina tambm o entendimento de certas aes
coletivas de movimentos sociais ou protestos, e da
configurao de normas e polticas pblicas em
instncias formais do sistema poltico e jurdico nas
sociedades democrticas. (ANDERSON, 2011;
DERANTY, 2011; PETHERBRIDGE, 2011)
Sob esta tica, a obra de Honneth pode ser vista

pelo menos parcialmente como complementar


s preocupaes dos tericos da democracia
deliberativa. Uma significativa parcela dos estudos
sobre esfera pblica e deliberao preocupa-se em
capturar as perspectivas dos participantes, suas
experincias de vida e suas formas de interao;
mostrando como as pessoas articulam suas
preferncias, aumentam o conhecimento poltico e
refinam opinies, e, ainda, avaliando a maneira
como o poder restringe ou potencializa a
deliberao. Diferentemente de Habermas, o
projeto honnethiano no est voltado para as
conversas e debates, nem para a srie de
condies que devem ser cumpridas caso os
participantes pretendam resolver conflitos por meio
de debates na esfera pblica, com o objetivo de
produzir decises no sistema democrtico
representativo. Ao desenvolver uma crtica
sociologicamente orientada sobre a dominao
social, a fim de trazer os conflitos sociais para o
centro do seu pensamento, Honneth proporciona
anlise das relaes de poder um quadro terico
com mais nuances. Sob essa perspectiva, pode-se
detectar e construir diagnsticos sobre formas
sociais que inibiriam o pleno desenvolvimento dos
indivduos.

Ao reconstruir a teoria da intersubjetividade e da


socializao, Honneth se preocupa com uma teoria
da ao fundamentada em interaes conflituosas
e em lutas entre grupos, que ocorrem na inteno
de conquistar (ou expandir) relaes de
reconhecimento. O reconhecimento baseado na
noo de autorrealizao interpretada tanto nos
termos da autonomia e da liberdade individual,
quanto nos termos de uma incluso social deve
ser visto como um processo intersubjetivo,
construdo na e atravs da relao com os outros,
e, portanto, dependente da interao. Honneth,
assim, oferece instrumentos para o exame da interrelao estrutural entre a individualizao, a
socializao e a incluso social, bem como para a
investigao das experincias negativas dos
sujeitos experincias motivadoras da ao
coletiva e a transformao social.
Interessa-nos indicar como Honneth desenha
uma agenda de pesquisa para a Comunicao.
Apontamos trs perspectivas sob as quais as lutas
por reconhecimento podem ser investigadas: (a) a
representao mediada, que direciona nossa
ateno para os insumos dos mass media; (b) as
interaes sociais e culturais, centradas no modo
pelo qual as pessoas interagem com as produes

massivas imagens miditicas, ideias e discursos.


Essa dimenso engloba a conversao e os
processos
identitrios
que
emergem
das
interaes. Inclumos tambm (c) as prticas nas
plataformas digitais de comunicao nas quais as
pessoas se tornam produtoras, coprodutoras e
codistribuidoras de contedo para diversos
pblicos. H oportunidade, assim, para mltiplas
formas de expresso; participao nas arenas
discursivas, incluindo as instituies polticas
formais; promoo de aes coletivas, mobilizao
e protestos, a fim de exercer coordenao e
cooperao entre os cidados ou influenciar os
processos de deciso.
Partimos de uma perspectiva geral que
compreende o ambiente dos media como hbrido e
interconectado. Entendemos, contudo, que os
media permanecem como espaos importantes
para a compreenso das dinmicas das lutas por
reconhecimento. Os discursos e o imaginrio
construdo via comunicao de massa constituem
interpretaes culturais um pano de fundo contra
o qual os membros dos grupos definem o
significado de seu status e o valor de suas
identidades. Em termos gerais, os pesquisadores
do campo dos media manifestam um duplo

interesse
em
relao
s
questes
de
autoidentificao
e
reconhecimento
social.
(LARSON, 2005 ; MITTELL, 2010) De um lado,
mostram-se interessados em compreender o
impacto que os produtos miditicos podem ter na
constituio dos sujeitos, na medida em que os
indivduos utilizam esses materiais para se verem e
avaliarem a si mesmos, em relao s atitudes e os
pontos de vista dos outros. De outro lado,
preocupam-se em entender as contribuies dos
mass media na representao do outro, uma vez
que
proporcionam
modelos
mentais
ou
conformam perspectivas culturais. Ainda que,
comumente, no se mobilize o reconhecimento
como uma ferramenta analtica, com frequncia
identificamos
questes
que
podem
ser
interpretadas
nos
termos
de
lutas
por
reconhecimento.
Nesse sentido, outra das frentes de trabalho do
grupo EME/UFMG tm investigado os media como
provedores de textos, imagens e conhecimentos
relevantes que a circularem na sociedade. Em
particular, alguns estudos examinam como os
sujeitos apreendem esses discursos e formulam
suas prprias reflexes e engajamentos em lutas
por reconhecimento, onde quer que elas ocorram.

Nesses estudos, analisamos o modo pelo qual


membros de grupos em desvantagem por
exemplo, moradores de favela (MAIA; ROCHA,
[2014]; ROCHA, 2007), pessoas com hansenase
(MENDONA, 2009, 2011) e mulheres que
trabalharam na infncia como empregadas
domsticas (CAL, 2007; MAIA; CAL, 2013, MAIA;
CAL, no prelo) produzem sentido acerca das
representaes miditicas e se engajam em
discusses sobre questes afetam suas vidas. Ao
enfatizar
experincias
de
marginalizao,
desrespeito e dominao, bem como sentimentos
de injustia das prprias pessoas afetadas,
investigamos se h (e como se configuram) as
motivaes morais por trs de reaes afetivas e
cognitivas
de
pessoas
envolvidas
nessas
experincias negativas. Tal abordagem convida os
pesquisadores a considerarem o autointeresse ou a
capacidade de autoafirmao dos indivduos em
meio a uma gramtica moral mais ampla, isto ,
uma
dinmica
conflituosa
entre
grupos
culturalmente integrados. Acreditamos que a teoria
do reconhecimento de Honneth oferece diferentes
nveis de entendimento da luta por reconhecimento
na vida cotidiana, em termos essencialmente
polticos.

O programa de pesquisa do reconhecimento


prov importante instrumental terico para a
anlise das interaes que ocorrem na internet as
quais transformaram dramaticamente o cotidiano.
A sociabilidade nas plataformas digitais envolve
prticas em diferentes esferas de relacionamento
ntima, social e poltica. Afirmamos, assim, que as
tecnologias digitais de comunicao, a exemplo das
redes
sociais on-line, tambm podem ser
abordadas do ponto de vista da teoria do
reconhecimento.
No mbito das pesquisas do EME/UFMG, algumas
pesquisas tm demonstrado como a teoria de
Honneth apresenta caminhos promissores para
compreender o papel da emoo na poltica,
particularmente quando questes de injustias
esto em jogo. Um desses estudos utilizou as
histrias de vida de pessoas surdas partilhadas em
dois ambientes digitais: (a) o site da principal
organizao de pessoas surdas no Brasil
(Federao Nacional de Educao e Integrao dos
Surdos Feneis) e (b) Orkut, uma rede social online. O estudo explorou a construo de uma
semntica compartilhada de identidade tanto
individual quanto coletiva , que est relacionada a
emoes e a interpretaes conflituosas acerca de

necessidades, direitos e conquistas sociais.


(GARCZ; MAIA, 2009; MAIA; GARCZ, 2013) Em
outra ocasio, analisamos como os sujeitos
interpretam ataques s suas identidades, aos seus
valores e s suas demandas, provocados por outros
sujeitos em uma rede complexa de interaes,
ilustrando o caso em trs plataformas on-line
distintas. (MAIA; REZENDE, 2013) Aqui ilustramos
como as pessoas que demandam reconhecimento
precisam se engajar em conversaes cotidianas
para testar suas prprias convices, e para decidir
se os obstculos localizados nas prticas culturais,
em instituies e nas leis vigentes so ou no
legtimos. Nossas preocupaes convergem para a
teoria deliberacionista, na medida em que buscam
evidenciar que as pessoas, na luta por
reconhecimento, frequentemente se engajam em
desacordos morais e conflitos de interesse. Tais
disputas ocorrem, usualmente, sob condies nas
quais as pessoas no so livres (ou autnomas)
quais justificativas devem ser acionadas na
tentativa de resolver um determinado problema ou
para contestar um julgamento particular.
Por endossar o programa poltico da Teoria
Crtica, Honneth almeja oferecer um quadro
normativo fundamentado em experincias de

injustia e em tentativas prticas de ultrapass-las.


Nesse sentido, a ligao explcita que Honneth faz
entre os sentimentos de desrespeito e os princpios
normativos de reconhecimento oferece articulaes
transfronteirias para pesquisadores dos media
associarem os conflitos na vida cotidiana com
prticas democrticas e questes mais amplas de
justia. Nesse mbito, citamos o estudo dos
projetos
de
emancipao
em
polticas
contemporneas fundamentadas em ideias de
individualidade e de incluso social. Tendo em vista
o caso das pessoas atingidas pela hansenase, foi
objeto de anlise o modo pelo qual questes de
injustia e reconhecimento so expressas e
configuradas: (a) no mbito das conversaes
cotidianas das prprias pessoas com hansenase,
(b) no mbito do jornal do Movimento pela
Reintegrao
das
Pessoas
Atingidas
pela
Hansenase (Morhan); e (c) no mbito das matrias
da imprensa de referncia nacional (Mendona,
2009).
Abordando
a
construo
de
enquadramentos, outro estudo examinou a
evoluo da tematizao de pessoas com
deficincia, bem como dos discursos pblicos sobre
a questo da deficincia nos jornais de maior
circulao no Brasil entre 1960 a 2008. (MAIA;

VIMIEIRO, 2013; VIMIEIRO; MAIA, 2012)


A
proposta
do
programa
terico
do
reconhecimento de investigar a dinmica social
do desrespeito, por meio da articulao das
condies sociais para a autorrealizao dos
indivduos e do desenvolvimento de relaes
sociais e de arranjos institucionais parece
oferecer possibilidades relevantes e inovadoras, a
fim de explicar interesses emancipatrios que
surgem em relaes intersubjetivas negativas na
vida cotidiana. Assim como Habermas, o ponto de
partida de uma intersubjetividade radical de
Honneth permite a investigao, no campo da
Comunicao, dos processos de construo de
identidade sob uma perspectiva relacional, tanto na
construo da subjetividade, quanto nas interaes
cotidianas. A articulao entre os processos de
socializao e individualizao permite aos
pesquisadores
interpretar
as
lutas
por
reconhecimento
e
as
prticas
miditicas
relacionadas, como um processo diferenciado,
multifacetado e dinmico. Por meio dessa
abordagem, a pesquisa em Comunicao pode
explorar no apenas os aspectos coercivos da
integrao social, mas, tambm, a conscincia
individual da injustia e a fonte de motivao para

a emancipao em um quadro de experincias


negativas.
CONCLUSO
Considerando o percurso da Escola Crtica, notamos
o quanto essa tradio tem sido profcua na
orientao de pesquisas no campo das cincias
sociais e da Comunicao. Estudos na rea da
Comunicao, fundados na obra de Habermas,
mostram diversas interfaces da esfera pblica e da
deliberao
democrtica
com
as
prticas
comunicativas dos sujeitos e das instituies
miditicas. Os estudos fundados na obra de
Honneth, por sua vez, voltam-se para o exame das
condies que promovem ou impedem a
autorrealizao dos sujeitos. Tambm aqui
identificamos diversas interfaces entre as prticas
individuais cotidianas e os media de massa
citamos a utilizao destes para a autoexpresso, a
discusso e a ao coletiva, em suma, nas lutas por
reconhecimento. Ambas as abordagens permitem,
cada uma a seu modo, identificar o referencial
normativo na instncia empiricamente mais
prxima de ns: a das prticas comunicativas
cotidianas. Do mesmo modo, os dois pensadores
oferecem um quadro terico sofisticado para que se

conectem as prticas dialgicas ordinrias com os


sentidos culturais, as prticas sociais, as
instituies e as estruturas da sociedade. Foi com o
propsito de ilustrar esses pontos de vista que
apresentamos um conjunto de estudos empricos
situados, em particular, na rea da Comunicao e
da poltica democrtica.
Diferentemente de outras abordagens, a Teoria
Crtica busca construir um quadro normativo, a fim
de avanar o horizonte a partir do qual as
instituies e prticas correntes podem ser
avaliadas. Muito da pesquisa emprica na rea da
Comunicao poltica reivindica a importncia de
seus achados para a poltica democrtica, sem que
se evidencie o julgamento valorativo que sustenta
tal assero. Nesse sentido, muitos investigadores
lanam
proposies
normativas,
mantendo
submersas suas premissas de fundo.
O paradigma crtico fornece expectativas ou
padres
normativos
contra
os
quais
as
divergncias, em maior ou menor grau, so
previsveis. Embora essa escola de pensamento
seja vista, frequentemente, como excessivamente
abstrata, no tarefa de filsofos polticos, nem
mesmo daqueles antropolgica ou linguisticamente
informados, oferecer contedo sociolgico e

comunicacional a hipteses a serem investigadas.


nossa tarefa, de pesquisadores das cincias
sociais aplicadas, examinar as proposies crticoreconstrutivas, atravs de testes e investigaes
empricas. Ainda que os dados e as evidncias
empricas no resolvam os problemas conceituais,
eles podem esclarecer a aplicabilidade dos
conceitos em contextos especficos, lanar luz sobre
controvrsias
normativas
e
colocar novas
indagaes na agenda. A pesquisa emprica pode,
sobretudo, fornecer diagnsticos sistemticos sobre
a realidade, com o intuito de, em dilogo com
construtos terico-normativos, aperfeioar as
instituies e prticas existentes. com esse
esforo que a pesquisa emprica assume seu
importante papel e interesse na emancipao,
buscado por toda a tradio da Escola Crtica.
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NOTAS
[1] Agradecemos a Anne Jlia, Ana Frana, Camila Marques e Rodrigo
Miranda, bolsistas de Inicio Cientfica do Grupo de Pesquisa em
Mdia e Esfera Pblica (EME).
[2] Ver, por exemplo: van den Brink e Owen (2007); Deranty (2009);
Fraser e Honneth (2003); Thompson (2006, 2011) e Mendona
(2009, 2011).
[3] Segundo Habermas (2006, p. 413, traduo nossa), A
deliberao uma forma exigente de comunicao, embora emerja
de rotinas dirias imperceptveis de demanda e fornecimento de
argumentos. Como um ideal, a deliberao deve contemplar alguns
critrios: (a) a demanda de que os interlocutores apresentem
argumentos que considerem compreensveis e aceitveis aos
outros, especialmente considerando a expectativa de que
participantes iro questionar e transcender racionalmente suas
predilees iniciais (sobretudo em virtude do impacto dos
argumentos); (b) a incluso de todos aqueles que podem ser
afetados pela deciso; (c) a igualdade entre participantes; (d) a
liberdade do poder poltico e econmico; (e) a interao livre e no
coerciva, no sentido de que participantes sejam sinceros e tratem
seus interlocutores com respeito durante o processo de justificao
mtua; (f) a ausncia de restrio de tpicos; e (g) a possibilidade
de reverter resultados. (HABERMAS, 1992, 1996, 2006), (MAIA,
2012, p. 16)
[4] Desde aqueles ligados a perspectivas do liberalismo Rawlsiano

(GUTMANN; THOMPSON, 1996) at os associados ao


neokantianismo e a Habermas (BENHABIB, 1996; CHAMBERS,
2009) e, ainda, aqueles que buscam ampliar as condies
normativas da deliberao. (BOHMAN, 1996; DRYZEK, 2000, 2010;
MANSBRIDGE, 1999)

DULCILIA SCHROEDER BUITONI

Comunicao e fluxos
contemporneos: a
indispensvel imagem
COMUNICAO, TRNSITO DE IMAGENS
As telas nos perseguem, as telas nos acompanham.
As telas se multiplicam: grandes, mdias,
pequenas, mnimas. As telas pertencem a ciclos e
fluxos de produo, transmisso e resposta.
Excesso de objetos, excesso de plataformas, cipoal
de significados. Fuso, fisso, fico, soluo,
dissoluo: como recortar, como observar, como
compreender?
As tecnologias favorecem a expanso das
possibilidades comunicativas. Mais autorias, mais
coautorias, mais criadores annimos interferindo
em quase todas as fases da produo. Migrao de
meios: antes, a passagem de um meio a outro
demandava tempo e engenho. Hoje, h

multiplicidade de plataformas, hibridismo dos


meios, transmedialidade. Conceitos cambiantes,
conceitos intercambiantes transitam nos labirintos
da internet. Os dispositivos tecnolgicos correm
muito frente da capacidade de assimil-los e uslos em todas suas potencialidades.
Os inumerveis fios transmissores, conectores,
retransmissores,
produtores
e
reprodutores
dependem do fluxo de visualidades. As redes
dependem de visualidades. Nesse sentido,
queremos trabalhar com a imagem como o grande
operador
dos
trnsitos
comunicativos
contemporneos. A circulao se d via imagem.
Alis, o uso do termo imagem no singular uma
convenincia
discursiva,
para
facilitar
o
encaminhamento da discusso. No entanto, s
podemos consider-las no plural porque no existe
a imagem; existem imagens.
No mbito deste trabalho, a imagem encarada
enquanto visualidade figurativa produzida pela mo
humana ou por dispositivos tcnicos. So
representaes visuais destinadas a um suporte.
Externas, diferem das imagens mentais, que so
interiores.
Pensar os estudos visuais como dimenso
epistemolgica fundamental da comunicao

contempornea parece ser um caminho profcuo. As


visualidades em curso ampliaram a capacidade de
gestionar significados. Novos tipos de cognio
esto sendo criados pela multiplicidade de formas
de produo, edio e circulao; trabalhar com
visualidades implica em investigar modos de
exposio e modos de funcionamento. Assim,
pretende-se discutir a imagem como elemento
fundamental de reconfigurao de teorias e
aplicaes.
A comunicao opera com distintos sistemas de
significao verbal, visual, audiovisual que se
organizam em diferentes formatos. Comunicao
pressupe formas e contedos. Cada vez mais
forma e contedo interagem, fundem-se. Mais que
a escrita o verbal no oral , a imagem rene
forma e contedo. Obviamente, a palavra escrita
tem uma modalidade visual que pode ser
identificada e que, inclusive, pode alterar
significados. No entanto, as imagens tm mais
potencialidade para funcionar como modelo.
Trabalhamos dentro da perspectiva de um
pensamento que se configura principalmente como
visual.
Ao atentarmos para a centralidade da
comunicao
nos
processos
sociais

contemporneos,
precisamos
considerar
a
centralidade do visual. Os processos de
digitalizao,
a
difuso
da
web
e
o
desenvolvimento dos sistemas de busca nos
direcionam para trabalhar com a imagem como
elemento fundamental para a compreenso da
sociedade miditica. Telas so espaciais e
essencialmente visuais.
Papel e paredes conviveram durante muito
tempo: a construo e a circulao do
conhecimento e da cultura transitavam por livros,
jornais e ambientes escolares. No mundo
contemporneo, a espacialidade da imagem se
contamina de temporalidades. O movimento
acrescentado imagem fixa impregnou-a de
tempo. Ora, o trnsito e as passagens na era
digital se do via imagem.
No sculo XX, as telas se impuseram. Estamos
na quarta tela. A primeira tela foi o cinema, grande
formador do imaginrio ocidental, atuando em
espaos coletivos. A segunda tela, a televiso,
continuou a modelar o imaginrio, mas invadindo
espaos domsticos. Essas duas telas dificultaram
as relaes de vizinhana e comunidade. A terceira
tela, do computador, aglutinou competncias
lingusticas de livros e jornais e a cultura visual que

j havia sido apresentada pelas artes e assumida


pelo cinema e pela televiso. O computador foi
adotado em ambientes de trabalho e tambm para
o uso pessoal. Finalmente, a quarta tela, a
pequena tela dos celulares, passou a trabalhar com
todas as outras tecnologias anteriores. O nmero
quatro est se tornando presente no pensamento
de
vrios
pesquisadores
como
Alejandro
Artopoulos, organizador de um livro que se chama
justamente La sociedad de las cuatro pantallas.
um crescendo tecnolgico: as duas primeiras telas,
o cinema e a TV, dirigiam-se a pblicos passivos,
que no podiam interferir nas produes
visualizadas. As telas mais recentes, do
computador e do celular que so decorrncia
direta da tecnologia informacional , permitem a
ao do usurio e a construo de identidades.
Com a mobilidade do celular, cada pessoa pode
estar conectada ao mundo em todos os segundos
do seu dia, se assim o quiser. Apesar das conexes
em nvel planetrio, computadores e celulares
configuram uma atividade muito individualizada,
enquanto iniciativa de comunicao.
Cada tecnologia nova tende a aglutinar a
anterior e, nesse movimento, as mdias vo
organizando agendas, incentivando principalmente

entretenimento e relaes sociais (ambos muito


lucrativos) e, circunstancialmente, a busca da
informao e da conscientizao. Em recente obra,
Carlos A. Scolari (2013, p. 24) trabalha a narrativa
como cerne de produes que transitam entre si.
Para ele, a narrativa transmdia uma forma que
se expande atravs de diferentes sistemas de
significao (verbal, icnico, audiovisual, interativo
etc.) e meios como cinema, quadrinhos, televiso,
games. No se trata de adaptao de uma
linguagem a outra: h construes com
caractersticas e funcionamentos especficos.
Porm, quase todas utilizam imagens.
Todos tratamos de meios, palavra um tanto
flutuante, que pode ser associada a tecnologias,
mdia impressa, eletrnica, digital, ao rdio,
televiso, a instituies produtoras de contedo,
segmentao
publicitria,
a
suportes,
a
plataformas... Dieter Mersch prope a teoria
negativa dos meios, fundada na impreciso do
t e rmo medium, que aparentemente no possui
nenhum referente preciso. (MERSCH, 2013, p.
208) Um instrumento, uma tcnica, um dispositivo,
um meio de comunicao, uma instituio: eles s
podem se tornar um medium sob condies e
prticas especficas. Por esse motivo, a teoria dos

media no pode partir de objetos ou propriedades


classificveis.
Mersch busca a reconstruo daquilo que possa
ser designado como medial, pois os media, no
instante em que fazem algo aparecer, sofrem a
perda de sua prpria apario. Sua presena tem o
formato de uma ausncia. A argumentao de
Mersch prope que, ao invs de usar media no
sentido de objetos,
[...] seria mais adequado falar de medialidade, no
sentido da estrutura genrica do medial aquela
estrutura que se mostra naquilo que os media
produzem,
transportam,
representam
ou
comunicam, de tal forma que o mdium em si no
seria um objeto adequado de pesquisa, mas apenas
as
materialidades,
os
dispositivos
e
as
performatividades que lhe so subjacentes.
(MERSCH, 2013, p. 208)

O autor pede uma mudana de foco: ao invs de


concentrar-se no medium, as pesquisas deveriam
se voltar para materialidades, dispositivos e
maneiras performativas. possvel fazer uma
distino entre mdias de produo e mdias de
fluxo, que seriam processos de funcionamento da
medialidade. A fenomenologia da imagem se insere
nesse espao de reflexo. Assim, ressaltamos que
a comunicao contempornea precisa ser pensada
a partir de sua fenomenologia onipresente a

visualidade. Por isso, temos que considerar a


indispensvel imagem construtora e operadora
universal.
A IMAGEM NO CAMINHO DA EPISTEMOLOGIA:
COMPLEXIDADES
As imagens esto se configurando cada vez mais
como tecnologia intelectual, como porta para o
conhecimento e para o pensamento. Se a imagem
a operadora universal na contemporaneidade, a
epistemologia da comunicao precisa traz-la
centralidade da discusso. Apresentaremos aqui os
conceitos de um autor Josep M. Catal que vem
se destacando como um dos mais importantes
pesquisadores no campo dos estudos visuais. Com
formao em Histria, Cinema e Comunicao, traz
em suas obras novas e instigantes perspectivas
tericas. Seus conceitos de imagem complexa e de
interface foram se incorporando s pesquisas do
grupo de pesquisa Comunicao e Cultura Visual,
vinculado ao Programa de Ps-graduao em
Comunicao (PPGCOM) da Faculdade Csper
Lbero. Nos anos de 2011 e 2012, Josep M. Catal
participou, em So Paulo, de seminrios
promovidos por esse grupo de pesquisa. Mas, j
antes de Catal, alguns antigos autores, como

Dziga Vertov, fornecem pistas para a reflexo sobre


a comunicao contempornea.
A mobilidade e o incessante fluxo de imagens
nos
levam
a
incluir
necessariamente
a
complexidade como condio epistemolgica,
relacionada de maneira indissolvel conjuntura
tecnolgica.
O pensamento complexo vem contribuindo para
a reflexo sobre comunicao desde o sculo
passado. Arlindo Machado (1997, p. 252) lembra
que
O pensamento complexo trabalha com um nmero
extremamente elevado de interaes e interferncias
que se do entre as unidades do sistema
considerado e tambm com as incertezas, as
ambiguidades, as indeterminaes, as interferncias
de fatores aleatrios e o papel modelador do acaso.

Nesse sentido, o autor (MACHADO, 1997, p. 25253) considera que a hipermdia permite exprimir
situaes complexas, polissmicas e paradoxais,
que uma escritura sequencial e linear, plena de
mdulos de ordem, teria muito mais dificuldades de
representar. Portanto, as indagaes sobre a
complexidade abrem caminhos consistentes para
analisar as imagens atuais, to dotadas de
mobilidade e portabilidade. Na mesma linha de
raciocnio, chega-se genealogia da viso

complexa, proposta por Josep M. Catal, que


expandiu a reflexo de Edgar Morin sobre o
pensamento complexo.
No seu tratado sobre a imagem complexa, Josep
Catal, pesquisador e professor da Universidad
Autnoma
de
Barcelona,
apresenta
a
fenomenologia das imagens na era da cultura
visual. Para ele (2005, p. 43), a imagem j no
existe, existem as imagens, sempre no plural:
podemos afirmar que existe o visual como um
conglomerado, praticamente sem limites, de
percepes, de lembranas, de ideias, englobadas
em uma ecologia do visvel ou em distintas
manifestaes desta ecologia. Nossa percepo
estava acostumada a considerar uma imagem de
cada vez, dentro de um paradigma de imagem
fechada, circunscrita, emoldurada. Nesse contexto,
[...] ver constitua sempre um ato de obliterao
visual, porque era muito mais extenso o territrio que
se deixava de ver, do que aquele que se via; da
mesma forma que no apartado cognitivo, era muito
mais ampla a desconceptualizao do observado do
que sua conceptualizao: o conceito nascia de
renunciar a um conglomerado muito amplo de
conceitos. Para ver, havia que excluir, da mesma
maneira que para pensar havia que concretar,
delimitar, atomizar. (CATAL, 2005, p. 44, traduo
nossa)[1]

Agora, ao invs de delimitar, as imagens


extravasam e partem para outras imagens, outras
configuraes, outros caminhos. No so apenas
retangulares, quadradas, circulares ou recortadas;
seus limites fluem e transitam por uma
multiplicidade de suportes.
A apario da imagem-movimento no final do
sculo XIX comeou a questionar o paradigma da
imagem fechada e isolada. As imagens ganharam
durao e uma nova dimenso temporal com o
cinema. Entram em cena concepes de imagem
aberta, imagem dialtica, polifonia.
Para Eco, a obra aberta pretendia manter-se aberta,
isto , indeterminada e, portanto, sem possibilidade
de alcanar nunca um significado preciso que a
preenchesse, enquanto que a imagem aberta est
constantemente propondo significados atravs de
novas conexes: significados todos eles vlidos,
estveis em seu particular momento. Nos
encontramos, portanto, diante de uma ecloso do
movimento: movimento das imagens, tanto interna
como externamente, movimento do olhar dentro da
imagem e entre as imagens, movimento da cognio
atravs de cadeias de significados.[2] (CATAL,
2005, p. 47, traduo nossa)

No entanto, Catal (2005, p. 47, traduo nossa)


vai mais alm ao indicar novas relaes entre o
visvel o tempo. Para ele, pode-se considerar que o
movimento liberou-se do tempo, do mesmo modo

que o tempo, em consequncia, no precisa estar


ligado ao movimento para ser compreensvel:
O movimento sem tempo, ainda que no
necessariamente sem durao, supe a possibilidade
de revitalizar a condio fixa da imagem, de
revitalizar a atuao de suas potencialidades
sincrnicas que haviam sido obliteradas pela potncia
temporal das imagens cinticas. Por sua vez, as
imagens cinticas, que contm durao, perdem sua
capacidade hipntica, relacionada com seu pretendido
mimetismo e voltam a se apresentar como imagens
puras.[3]

Exemplos de movimento sem tempo podem ser


encontrados h mais de 80 anos, como as
configuraes visuais articuladas por Dziga Vertov
e m Um Homem com uma Cmera (1929). Hoje,
continua Catal, j no existe contraposio entre
ambos os mundos: as imagens cinticas atuam
como fixas e as imagens fixas como cinticas;
possvel perceber essas transformaes em
qualquer pgina da web de mediana complexidade.
Assim, todas as imagens so temporais, seja
porque incorporem a durao atravs do
movimento ou porque expressem distintas
camadas de memria. Ou, mais ainda, porque
propiciem derivaes em outras plataformas ou
porque abram possibilidades de relao com outras
imagens em rotas de hipermdia. Paul Virilio,

lembrado por Catal, considera que vivemos


imersos em uma ecologia de imagens que
compreende
figuraes
de
todo
tipo
e
funcionamento; todas essas imagens tendem
relao, rede. O pesquisador espanhol (CATAL,
2005, p. 50) resume, ento, a imagem
contempornea como a que se move entre o
tempo-movimento-durao e o tempo-estticomemria. Mas no s a imagem contempornea,
mas tambm a percepo contempornea e com
ela a epistemologia contempornea.
Considerar a complexidade , portanto,
inevitvel nas sociedades contemporneas. A
realidade atual no pode ser outra coisa seno
complexa. Porm, complexidade no significa
complicao. No dizer de Catal (2005, p. 57), a
representao complexa pode chegar a ser muito
simples, apesar de nela no caber o reducionismo
ou a simplificao. Isso porque o cenrio miditico
apresenta distintos nveis que devem ser
conectados entre si. Cada fenmeno para ser
compreensvel em sua magnitude deve ser
examinado de diferentes ngulos; temos sempre
que imaginar redes e ramificaes. Catal (2005)
vai relacionando conceitos que auxiliam a
compreenso de estruturas mveis e instveis:

multiplicidade, entrecaptura (relao entre o todo e


as partes e das partes entre si, em constante
redefinio e transformao) e estrutura dissipativa
(energia que converte um grupo mltiplo em
incessante processo de equilbrio entre mudana e
estabilidade).
Em primeiro lugar, haver que descrever o caminho
da imagem em direo complexidade, para logo
observar que, ao final, a complexidade se refere a
uma forma de interrogar a imagem, o que faz com
que ela seja complexa (sem que por isso a mirada
especfica deva entender-se como um acrscimo
provisrio). Portanto, no devemos nos referir
somente a imagens complexas em si, mas tambm
h uma mirada complexa para as imagens, da
mesma forma que na atualidade nossa mirada para
a realidade complexa (enquanto que a que
executamos sobre as imagens costuma ser, todavia,
bastante simples).[4] (CATAL, 2005, p. 66,
traduo nossa)

Catal (2005, p. 66, traduo nossa) mostra que


desse tipo de mirada que surge a complexidade
do real; mas ao mesmo tempo essa complexidade
do real revelada pelo novo olhar produz a
possibilidade da mirada complexa que a
contempla.
O fenmeno da imagem complexa, sua possibilidade,
se move, portanto, entre uma mirada complexa e
uma plasmao complexa. A primeira resultado de
uma hermenutica aplicada sobre a imagem e sobre

o real, enquanto que a segunda uma resposta


sintomtica do social e da imagem. Realidade, mirada
e representao formam, assim, uma determinada
ecologia
que
produz
fenmenos
incontrovertivelmente complexos.[5]

A cincia estendeu a viso humana ao mximo,


mas em um sentido estritamente tico. Catal
(2005, p. 87) afirma que preciso se opor a essa
reduo; prope o conceito de mirada, muito
mais produtivo, que permite descolar a viso da
tica para incorporar elementos culturais e
cognitivos. Para entender as novas visualidades, o
autor pensa em uma fenomenologia estticocientfica na qual teoria e prtica se enriqueceriam
mutuamente e intercambiariam seus papis
quando
fosse
necessrio.
Buscando
um
pensamento visual, expe como o conceito
tradicional de imagem transparente, mimtica e
ilustrativa d lugar imagem complexa: opaca,
expositiva, reflexiva e interativa. Um diagrama
(CATAL 2005, p. 68) mostra como a visualidade
cientfica, deixando-se contaminar pela arte, pela
subjetividade e pelas emoes, transforma-se em
visualidade ps-cientfica, em imagem complexa.
As
caractersticas
de
reflexividade
e
interatividade nos levaram a conceber a imagem
complexa como imagem transitiva. A aplicao da

imagem complexa a diferentes objetos de pesquisa


em comunicao tem permitido o desenvolvimento
da conceituao da imagem transitiva. A imagem
que provoca reflexo, que convida interao, tem
caractersticas transitivas. Consideramos, ento,
que a imagem complexa dispe de potencialidades
transitivas, principalmente quando flui pela
internet. Ao aportar significado, ao construir
conhecimento, ao transfigurar-se em arte, a
imagem reveste-se de qualidades transitivas. A
imagem transitiva pede mais espao, pede objetos,
pede sentidos. possvel ainda apontar relaes
transitivas embora pouco complexas na
circulao de imagens nas redes sociais, dinmica
em que interagem sistemas de identificao e de
afetos. O poder da imagem transitiva ir se
manifestar com mais fora quando da atuao da
interface como modelo mental.
H alguns anos, o conceito de imagem complexa
vem sendo incorporado s pesquisas do PPGCOM
da Faculdade Csper Lbero, em dissertaes e
projetos sobre fotografia, fotojornalismo na web,
games,
grafites,
mdia
impressa,
webdocumentrios, documentrios televisivos,
mdia digital out of home (monitores em
elevadores,
lugares
pblicos
etc.),
filmes

cinematogrficos.
Das
imensas
telas
cinematogrficas s minsculas telas dos celulares,
da fotografia jornalstica do site Big Picture,[6] (da
compresso mxima temporal de imagem e texto
da mdia digital out of home, a imagem complexa
se revela um poderoso instrumento de pesquisa.
ESTTICAS DOCUMENTAIS, EXEMPLO DE IMAGENS
TRANSITIVAS
A longa explanao sobre imagem complexa
justifica-se pela importncia e pela aplicabilidade
do conceito. Como exemplificao de suas
possibilidades, traremos discusses sobre estticas
documentais, via documentrios que alteram
procedimentos convencionais.
Imagens documentais em filmes ou vdeos,
narrativas transmdia, reportagens fotogrficas, em
meio impresso ou tablets, imagens de flagrantes
feitos por celulares esse mar imenso, cada vez
mais ondas, no pode ser pensado apenas via
anlise de contedo ou de estruturas narrativas.
Contextualizao histrica e anlise da narrativa
so importantes, mas essa no a nossa
perspectiva principal. Para analisar a imagem,
preciso partir de estudos sobre a imagem. Para
entender o visvel, preciso partir do visvel, e no

do verbo.
O visvel tambm tem a ver com o desejo de
conhecer, como aponta Michael Renov (2005, p.
254):
Por isso, os filmes documentrios, enquanto realidade
registrada, aparecem tanto no discurso da cincia
como um meio de se obter o reconhecvel no
mundo, quanto no discurso do desejo, ou seja, o
desejo de conhecer a verdade do mundo
representada
pela
pergunta
invariavelmente
formulada ao reality film. Isto realmente assim, isto
verdade?

Alguns documentrios na web apresentam uma


arquitetura mltipla e combinatria, com varias
possibilidades de sequncias: talvez essas
produes comecem a concretizar as possibilidades
cognitivas e estticas da gerao de imagens
propiciada pelas interfaces tecnolgicas e culturais.
Estamos diante de processos em que a imagem
funciona como interface: um caminho que decorre
reflexes sobre a complexidade.
Por seu inevitvel chamamento ao real, o
documentrio
cinematogrfico
constitui
um
excelente recurso para pensar as imagens nesse
tempo de repetio, reverberao e saturao. A
visualizao do real ponto fundamental e matriz
para a maior parte das produes imagticas.

Consideramos inclusive que documentrios antigos


podem
fornecer
pistas
a
respeito
das
transformaes nas visualidades que nos rodeiam e
com as quais interagimos a cada instante. Os
documentrios tambm so um pretexto para
chamar a ateno para o pensar a partir de
imagens. H ainda um intuito prtico: oferecer
possibilidades de aplicao a produtos de
comunicao.
No pretendemos discutir uma ontologia do
cinema, do documentrio, da imagem impressa,
televisiva ou na web, embora utilizemos um ou
outro elemento que explicite a natureza desses
modos de exposio. Os percursos devem
considerar primeiramente o campo visual. Se os
primeiros estudos sobre cinema trabalhavam com
uma dramaturgia literria, era preciso buscar uma
dramaturgia plstica, como dizia Eisenstein.
Assim, trabalhar com as estruturas visuais
representa um caminho vivel para apreender a
diversidade das visualidades contemporneas. Para
pensar as formas contemporneas de expressar o
real que se multiplicam a cada dia, a cada novo
lanamento da informtica preciso buscar
instrumentos alm das literalidades. Nesse sentido,
buscamos os conceitos de imagem complexa e de

interface, ambos formulados por Josep M. Catal.


Muitos dos usos ainda seguem padres
cristalizados no sculo XX e no aproveitam as
potencialidades que as novas plataformas e os
novos sistemas oferecem. A simples transposio, o
consumo natural das imagens no contribuem
para a circulao do conhecimento. Com as
imagens documentais, preciso sair da funo
identificatria e ilustrativa. (CATAL, 2011)
A tendncia que conduzia imagem
transparente como forma ideal est sendo
desconstruda pela ao das tecnologias digitais.
Percebemos que h indcios de que a imagem
comea a se tornar opaca, impondo, portanto, sua
presena como um espao cheio de sintomas e
tenses. Mesmo assim, a imagem ilustrativa ainda
impera nas produes documentais e jornalsticas.
O cineasta, fotgrafo e artista multimdia Arthur
Omar vem elaborando um discurso em que
desconstri
o
formato
hegemnico
do
documentrio desde os anos 1970, inclusive com
produes
audiovisuais.
Seu
artigo O
antidocumentrio, provisoriamente deixou marcas
profundas na teoria do cinema. Para ele, no existe
o filme documentrio como linguagem autnoma:
o documentrio tal como existe hoje um

subproduto da funo narrativa, sem conter em si


qualquer aparato formal e esttico que lhe permita
cumprir com a independncia seu hipottico
programa mnimo: documentar. (OMAR, 1978, p.
405) A forma que se imps a do filme narrativo
de fico. Fico e real se igualam:
Resumindo: na medida em que o cinema narrativo
de fico determina o cinema documentrio,
poderamos dizer que o que o cinema de fico
trabalhava como sendo o real (mesmo que fosse um
real fictcio) o mesmo que o documentrio
reapresenta como sendo fico (mesmo que seja
uma fico real). A mstica a mesma: h um
continuum fotografvel que pode ser dado viso,
uma verdade que se apreende imediatamente.
(OMAR, 1978, p. 406)

O raciocnio de Arthur Omar quase um


manifesto pede que o documentrio seja
repensado, [...] ou seja, ele no a priori o modo
mais imediato de traduzir o real no cinema, mas o
tipo de real que aparece no documentrio depende
do tipo de funo que o documentrio como gnero
vem desempenhando at hoje. (OMAR, 1978, p.
418)
Omar havia produzido um experimento, o filme
Congo (1972), por ele comentado nesse artigo.
Depois da apresentao dos crditos, h o letreiro
um filme em branco:

[...] frase de carter programtico, encerra toda a


plataforma estrutural do filme, rege-lhe a
composio, explica a surpresa, e nos conduz
anlise diferencial do documentrio acadmico [...].
um filme em branco porque, no lugar onde o filme
tradicional mostra, ele censura, o vazio surge na tela
e as palavras conceptualizam uma imagem possvel
ou pretensa. Ele censura, compondo com palavras.
H poucas imagens cinematogrficas no filme. A
maioria de seus planos composta de letreiros. Uma
torrente de letreiros. (OMAR, 1978, p. 410)

O espectador, que esperava ver uma congada,


c o m flashes de algo que foi documentado, se
frustra. Arthur Omar diz que seria a mstica por
uma fatia de vida. Para ele, Congo no deveria
ser analisado como um modelo contraposto a outro
modelo, mas como um ponto fora do permetro.
(OMAR, 1978, p. 411) Acrescentamos: as imagens
d e Congo no so ilustrativas, so reflexivas. Os
trabalhos de Arthur Omar sempre se encaminham
na direo de evidenciar a complexidade da
imagem.
Dziga Vertov defendia a busca de uma
linguagem documental que se configurasse como a
essncia do cinema, afastando-se da literatura e do
teatro. Formou o grupo dos Kinoks, com grande
atividade na ps-revoluo russa. A proposta do
cine-olho envolve as possibilidades tcnicas da
cmera em captar o movimento de seres e objetos.

o principal, o essencial
a cine-sensao do mundo.
Assim, como ponto de partida, defendemos a
utilizao da cmera como cine-olho, muito mais
aperfeioada do que o olho humano, para explorar o
caos dos fenmenos visuais que preenchem o
espao, o cine-olho vive e se move no tempo e no
espao, ao mesmo tempo em que colhe e fixa
impresses de modo totalmente diverso daquele do
olho humano. (VERTOV, 1983, p. 253)

Para Vertov (1983, p. 261), o cine-olho se


expande como cine-anlise, como teoria dos
intervalos, como teoria da relatividade na tela.
Havia o projeto poltico de fundir a cincia com as
atualidades cinematogrficas para alcanar a
verdade; ele chega mesmo a propor a frmula
Cine-Verdade. A montagem um processo
fundamental em sua teoria e prtica.
O cinema direto abraou a retrica da no
interveno. Vertov (1983, p. 265), advogava a no
interveno enquanto narrativa; mas, por outro
lado, defendia a montagem: a correlao de
planos, de enquadramentos, de movimentos ia
fazendo a progresso entre as imagens, como bem
demonstra Um homem com uma cmera, de 1929.
Vertov desmontou a relao tempo-narrativa. A
cmera na mo j prenunciada nessas primeiras
realizaes vai ganhar um perfil definidor de

verdade cinematogrfica, no s na Europa e


Estados Unidos como um pouco mais tarde no
Brasil.
H, na linha do tempo, muitas marcas que
poderiam ser utilizadas no documentrio realizado
primeiramente para o cinema e nas produes
jornalsticas e parajornalsticas. s vezes, eram
pequenos desvios em relao esttica
dominante: ainda hoje trariam respiros e
estimulariam outras vidncias, mesmo tendo o real
como uma inteno sempre presente. Na tese de
livre -doc ncia Texto-documentrio: espao e
sentidos (BUITONI, 1986), apontamos elementos
de reflexo e criao para documentrios e textos
jornalsticos, com indicao de obras que
praticavam experimentaes de linguagem, vlidas
at hoje. Todos os exemplos a seguir inserem-se
na categoria de imagem complexa e despertam
miradas complexas.
E m Chapeleiros (1983), Adrian Cooper retrata
uma fbrica de chapus estacionada no tempo,
sem utilizar apoios verbais, seja em dilogos,
entrevistas ou narrao em off. A voz que denuncia
o poder de enunciao no aparece nos quase 30
minutos do documentrio. O som direto rudo
das mquinas e apenas num momento h um

trecho de msica clssica. Por vezes, os longos


planos-sequncia se demoram em um ou outro
personagem, com um enquadramento quase de
retrato fotogrfico. Chapeleiros um filme que fez
parte de pesquisa sobre industrializao no Brasil,
na rea de Histria da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp).
Outro trabalho que aponta caminhos Xente,
pois no (1976), de Joaquim Assis, realizado para a
Fase, uma espcie de precursora das atuais ONGs.
Ao contrrio de Chapeleiros, Xente, pois no
apresenta muita palavra falada. As cenas de campo
de uma pequena comunidade nordestina vo
mostrando o dia a dia dos lavradores. As vozes
ouvidas no esto relacionadas a este ou aquele
personagem;
tambm
no
h
legendas
identificadoras. Nenhum reprter costura a
narrativa; presume-se que a enunciao pertena
aos sujeitos focalizados. Em documentrios
convencionais e em matrias jornalsticas,
necessria a presena de uma voz narradora e a
sincronia da imagem com a voz do entrevistado,
devidamente identificado. Esse filme mostra como
a sincronia voz/personagem no diminui a fora
documental. A no identificao do falante no
torna as cenas e os personagens menos

verdadeiros. Nas duas obras, o estranhamento em


relao ausncia de palavras ou palavras no
sincronizadas com quem est na tela provoca uma
opacidade nas imagens, convida ao pensamento.
As imagens no so exibidas visando um
espectador passivo, no so um espetculo. A
imagem, por esses trabalhos de edio com
desvios verbais, adquire o carter de imagem
complexa tal como conceituada por Josep Catal
(2005).
Fotos animadas tambm podem construir um
documentrio e trazer indagaes sobre a relao
movimento/real. Marcelo Tassara realizou em 1969
A Joo Guimares Rosa, com animao de fotos de
temas sertanejos de Maureen Bisilliat. Coordenado
por Roberto Santos, o filme foi produzido em 35
mm pela Escola de Comunicaes e Artes da USP,
com textos de Grande Serto: veredas lidos por
Humberto Maral. As fotos filmadas com animao
chegavam a causar impresso de movimento em
muitas sequncias, principalmente quando havia
bois e cavalos: so imagens fixas que alteram a
concepo do tempo. Incluir o movimento onde no
havia provoca reflexes sobre o real trazido pelo
documentrio, mostrando que a filmagem de cenas
de ao no imprescindvel para o efeito do real.

Trechos de filmes preexistentes, mesmo que


sejam de fico, podem se constituir em
documentrio, tal como So Paulo, sinfonia e
cacofonia (1995), em que Jean-Claude Bernadet
reuniu cenas de pelculas que tinham como locao
a cidade de So Paulo. Alis, construir filmes a
partir de trechos de arquivos pblicos ou pessoais
uma tendncia bastante forte nas ltimas dcadas:
relaes temporais entram em jogo, produzindo
novas narrativas.
A memria um grande motor do documentrio.
Duas obras recentes elaboram e articulam distintos
tempos
lembrados. Santiago (2007), de Joo
Moreira Salles, envolve o olhar subjetivo do
cineasta, ele mesmo narrador e comentarista em
off. O embate com a personagem do mordomo,
com fortes ligaes pessoais com o autor do filme,
permeia a montagem, que permite dvidas
metafsicas e metalingusticas ao reproduzir a
duplicao das cenas. O diretor pede que o
entrevistado repita a fala a edio mostra o
vaivm de um documentrio, que quase sempre
eliminado em benefcio de uma linearidade na
edio. A edio inclui a subjetividade e uma
espcie de metanarrativa: temos uma constelao
de miradas complexas.

Valsa com Bashir (2008), do israelense Ari


Folman, um documentrio feito com animao.
Os desenhos, que lembram traos de graphic novel,
contam aos poucos a reconstruo da memria de
participao do diretor em conflitos militares.
Personagens reais com nome e profisso vo se
sucedendo no longa-metragem animado. Apesar de
a esttica em desenhos remeter a uma narrativa
de fico, Valsa com Bashir se configura como um
documentrio mais real do que muitos filmes de
matriz fotogrfica. A esttica inusitada causa rudos
na classificao: em alguns sites, o filme tratado
como documentrio, noutros como semidocumental
ou ainda como animao dramtica. A composio
hbrida, que provoca a indeterminao de uma obra
que, apesar de tudo, aponta par o real, demonstra
o carter transitivo dessas imagens.
Arthur Omar tem um olhar crtico sobre essas
brechas praticadas por cineastas: seriam
deslizes laterais que no modificariam o curso da
produo documental. Mas Omar (1978, p. 407)
tambm prope o antidocumentrio, que se
relacionaria com seu tema de um modo mais
fludo e constituiria objetos em aberto para o
espectador manipular e refletir.
Em seus textos, o documentarista John Grierson

considerava o documentrio como o tratamento


criativo da realidade, distinguindo-o dos cinejornais
e filmes cientficos. Boa parte desses textos de
Grierson foram traduzidos pelo Projeto Teoria e
Esttica do Documentrio, e publicados pelo
Laboratrio de Comunicao On-line (Labcom).[7]
Para Grierson, o documentarista seria um artista.
Nesse trabalho, no nos interessa fazer essa
distino de nveis. Embora os documentrios aqui
citados estejam em patamares sofisticados de
concepo e produo, interessa-nos mais pensar
em que tais produes podem contribuir para a
compreenso das visualidades miditicas. Alm do
mais, trazem contribuies efetivas para o
desenvolvimento do jornalismo audiovisual e dos
webdocumentrios. Mais que a classificao de
hierarquia, valem os trnsitos e intercmbios:
muitos webdocumentrios trazem fortes indcios
dessa
mescla
documentrio
cinematogrfico/documentrio jornalstico.
A discusso sobre o real no documentrio, em
relao ao real do filme de fico, pertinente;
mas aqui queremos pensar que a utilizao da
fico num documentrio jornalstico no o afasta
do real que quer representar.
No cinema, o fluxo da linearidade importante,

mas na web, h uma maneira arquitetnica de


organizar os significados. Janelas, incrustaes,
sobreposies j apareciam na tela da televiso,
mas ainda sem grandes alteraes cognitivas. A
tecnologia digital potencializou e permitiu
variaes, links, interaes. Mas na televiso,
mesmo no sistema a cabo, quase sempre o
documentrio segue as convenes realistas; na
web o realismo bastante frequente. O jornal
Clarn.com, da Argentina, vem se destacando como
um produtor de documentrios que experimentam
diferentes linguagens e plataformas cognitivas,
num evidente exerccio de utilizao da imagem
interface. Sua seo Multimedia traz um arquivo
que rene documentrios de grande valor esttico,
produzidos em diferentes anos e com acesso livre,
inclusive a no assinantes. Quadros, incrustaes,
inseres de textos ou legendas exploram as
possibilidades das interfaces imagticas.
Mesmo no jornalismo, as imagens no
precisariam ser transparentes. Arlindo Machado
(1997, p. 249) aponta as caractersticas das
imagens atuais:
Fluidas, ruidosas, escorregadias e infinitamente
manipulveis, a imagem eletrnica e a fotografia
processada digitalmente j no autorizam um
tratamento no plano da mera referencialidade, no

plano do registro documental puro e simples. [...]


Pelas suas prprias caractersticas, os meios
eletrnicos se prestam muito pouco a uma utilizao
naturalista,
a
uma
utilizao
meramente
homologatria do real. Pelo contrrio, se a realidade
comparece em alguma instncia nessas atividades,
ela se d como decorrncia de um trabalho de
escritura.

O trabalho de escritura nos leva ao conceito de


interface como modelo mental. Se o cinema se
encaminhou para a linearizao da imagem, para a
continuidade narrativa, o vdeo um sistema
hbrido que trabalha com cdigos significantes
distintos. As possibilidades da computao grfica
acrescentaram mais recursos expressivos, mais
arquitetura imagtica.
A IMAGEM INTERFACE COMO MODELO MENTAL:
TRANSITIVIDADES
Dispositivos de interface esto presentes a todo
momento em nossa vida. Os aperfeioamentos
tecnolgicos do computador incidiram sobre o
verbal e principalmente sobre o visual. Os
especialistas
costumam
destacar
trs
procedimentos intrnsecos da interface, que vem
acelerando as trocas comunicativas: a estrutura
hipertextual, a conexo com a internet e a
digitalizao das imagens. A forma interface

merece ser explorada em reflexes sobre o


conhecimento.
Voltemos ao pensamento de Catal. No seu livro
(2005) sobre a imagem complexa, apresentava o
processo de elaborao do conceito de interface,
introduzindo-o como uma chave epistemolgica
para a comunicao contempornea. Alguns anos
depois, em 2010, publica uma obra dedicada
inteiramente imagem interface.
O sentido comum da palavra interface se refere
interao computador/usurio. Para Catal
(2005, p. 82), a interface deve ser considerada de
maneira preliminar como um tipo de imagem
metafrica capaz de relacionar usurio com um
conglomerado multimiditico de ndole informativa
e didtica. Trata-se de uma uma imagem
complexa capaz de, a cada momento, produzir ou
reproduzir determinadas aes, ao mesmo tempo
em que visualiza os processos implicados nesse
funcionamento. Ele explica que as novas
tecnologias, que so ferramentas que configuram e
gestionam os limites da realidade, no utilizam
imagens como adorno ou como resultado de
estratgias de design: recorrem a elas porque se
mostram muito mais capazes que o texto para
funcionar como interfaces:

Se considerarmos que o fenmeno da interface ,


ademais de um instrumento tecnolgico, um modelo
mental
da
realidade
contempornea,
nos
enfrentaremos com o fato incontrovertvel de que a
imagem absolutamente necessria para gestionar
essa realidade.[8] (CATAL, 2005, p. 84, traduo
nossa)

A interface no somente um recurso tcnico,


surgido no paradigma da informtica e da
digitalizao; mas constitui antes de tudo um
conceito, um modelo mental que contempla
problemas que so novos e uma nova forma de
resolv-los. E a imagem est indissoluvelmente
ligada interface, a tal ponto que Catal utiliza o
termo imagem interface.
Lev Manovich tambm trabalha com um conceito
de interface e utiliza referenciais cinematogrficos,
mas seu pensamento se dirige principalmente a
interfaces culturais. Ele (2006, p. 64 a 71) assinala
que os chamados novos meios resultam da
convergncia de dois percursos historicamente
separados as tecnologias de informtica e as
tecnologias de comunicao. A metade do sculo
XX viu aparecer um computador digital que
efetuava clculos mais eficazes com dados
numricos, substituindo os diversos tipos de
calculadoras mecnicas, utilizadas por empresas e
governos desde a virada do sculo. Desde ento,

assistimos ao crescimento das tecnologias


miditicas que permitem guardar e veicular
imagens, sequncias de imagens, som e texto, por
meio de diferentes suportes materiais. Da pelcula
passamos s imagens digitais. O computador
operou a traduo de todos os meios atuais em
dados numricos; tambm temos acesso a essa
produo que se multiplica exponencialmente via
computador. Todas as formas de expresso
humana: desenhos, grficos, imagens figurativas
fixas e em movimento, textos verbais, sons se
transformaram em computveis. E a, o conceito de
interface se impe como interrogao e como
proposta epistemolgica. At que ponto as
tecnologias informticas esto alterando a
construo do conhecimento e das imagens
representadas?
Catal aponta trs modelos de espao mental
que foram fundantes: a estrutura do teatro grego
(que separou espao de cena e pblico), a cmara
escura (artefato que reproduzia imagens externas e
inspirou o processo fotogrfico) e por ltimo o
modelo mental da informtica. A interface um
espao virtual em que conjugam as operaes do
computador e do usurio:
Na interface se conjugam, pois, dois mundos

antagnicos e duas dramaturgias igualmente


opostas, que agora podem trabalhar conjuntamente.
[...] Concluindo: a interface um dispositivo capaz
de reunir em sua atuao dois pares de paradigmas
de crucial importncia: por um lado, o da arte e o da
cincia, em cuja exciso se baseou grande parte da
cultura contempornea, e, por outro, o da tecnologia
e do humanismo, de cuja dialtica se alimentou,
tanto positiva como negativamente, o imaginrio do
sculo recm-finalizado. Nesse sentido, a interface se
constitui em uma ferramenta de futuro, capaz de
articular no s um funcionamento prtico, mas sim
de fundamentar tambm todo um imaginrio de
indubitvel complexidade.[9] (CATAL, 2005, p. 540,
traduo nossa)

A juno de arte e cincia e de tecnologia e


humanismo
aparece
como
um
processo
possibilitado
pela
imagem,
com
grandes
possibilidades cognitivas e de aplicao nas
produes da cultura. A interface um instrumento
especulativo e uma ferramenta ativa:
A interface se apresenta, assim, como um espao
epistemolgico que funciona atravs de um
procedimento hermenutico (interativo) de carter
temporal, dialtico e representacional, ou, dito de
outra maneira, atravs do movimento, a fluidez e as
transformaes que alcano inclusive a prpria
plataforma de atuao e que, portanto, se
fundamenta na bsica desestabilidade de todo o
conjunto cujos elementos se modificam entre si.[10]
(CATAL, 2005, p. 574, traduo nossa)

Adotamos ento o entendimento da forma

interface como um modelo mental contemporneo


que articula as concepes atravs das quais se
expe, se representa, se gestiona e se recebe o
conhecimento na cultura atual. (CATAL, 2011)
Assim, possvel consider-lo como modelo mental
antropolgico.
Esse modelo mental que tem por eixo a forma
interface se diferencia dos modelos anteriores pela
maior capacidade de atuao que possuem as
metforas que o compem. A imagem interface
gera transformaes em todos os espaos onde
atua; ela nos traz um plus epistemolgico que
abarca e explica funcionamentos comunicacionais.
Se o conceito de imagem complexa pode ser
aplicado a inmeras produes comunicativas, a
interface como modelo permite a reflexo em
instncias de alta voltagem terica.
As cincias da comunicao da era da interface
pedem que se desenvolva o que poderamos
denominar um pensamento interface, que lhes
permita elaborar os problemas complexos que
enfrenta, dentro ou fora do mbito acadmico. A
interface precisamente o espao de relao que
surge do encontro entre distintas partes, como
lugar de comunicao que no pertence a nenhuma
delas em particular e sim a todas em geral.

Compreende-se, ento, que o pensamento


interface o espao genuno de um campo de
conhecimento que no se limita s cincias da
comunicao, mas alcana todas as reas do saber.
Espao, imagem e interface se imbricam
mutuamente e se expandem pela paisagem
miditica. As visualidades documentais e ficcionais
ganharam mais possibilidades de expanso e
criao. O filme ensaio e os webdocumentrios tm
aproveitado as caractersticas fenomenolgicas da
interface; a multimdia produto e processo:
O prprio conceito de multimdia, com seu jogo de
janelas contguas superpostas deslizantes etc., que
constitui uma passagem para a converso do lugar
de representao em um sistema articulado de
espaos particulares, ligados a um uso, a um meio
ou a um conceito. [...] A caracterstica principal da
interface tem a ver com esse jogo de espaos de
qualquer tipo que se inter-relacionam seguindo a
vontade do usurio, no caso de interfaces interativas
ou atravs de uma rotina passiva. O espao unitrio
da tela, e tambm o espao virtual que dissolve os
limites da tela ao empregar indefinidamente os
parmetros de seu contedo, mudam de signo para
dar passo a um espao folheado, despregvel: um
conjunto de superfcies ou de objetos que formam
constelaes e esto reunidos por uma srie de
pregas.[11] (CATAL, 2011, p. 241, traduo
nossa)

A interface um sistema de representao no

qual estamos todos envolvidos. medida que a


informatizao veio se impondo a todas as
atividades humanas e a todos os campos de saber,
precisamos desenvolver mais e mais o modo visual
de compreenso e representao do conhecimento.
Para entender as mutaes da comunicao
contempornea e para continuar criando, a imagem
complexa e a interface, operando como imagens
transitivas e trans-ativas, apontam percursos e
articulaes. Imagem complexa e interface so
caminhos transitivos. Imagens que chamam
imagens.
Enciclopdia, narrativa, jogo, eis as maneiras de
organizar a experincia humana. Na internet temos
enciclopdia, narrativa e jogo. A imagem interface
um jogo de espaos; seu funcionamento inclui o
jogo: h um componente aleatrio, de acaso.
Tempo e acaso, metforas visuais, conhecimento,
subjetividade: a imagem interface facilita os
trnsitos da vida e da pesquisa.
REFERNCIAS
ARTOPOULOS, Alejandro (Org.). La sociedad de las cuatro pantallas:
una mirada latinoamericana. Buenos Aires: Ariel, 2012.
BUITONI, Dulcilia H. S. Texto-documentrio: espao e sentidos. 1986.
Tese (Doutorado) Escola de Comunicao e Artes, Universidade de
So Paulo, 1986.

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NOTAS

[1] [...] ver constitua siempre un acto de obliteracin visual, por el


que era mucho ms extenso el territorio de lo que dejaba de verse
que el de lo que se vea, de la misma forma que, en el apartado
cognitivo, era mucho ms amplia la desconceptualizacin de lo
observado que su conceptualizacin: el concepto naca de renunciar
a un conglomerado muy amplio de conceptos. Para ver, haba que
excluir, de la misma manera que para pensar haba que concretar,
delimitar, atomizar.
[2] Para Eco, la obra abierta pretenda mantenerse abierta, es decir,
indeterminada y por lo tanto sin posibilidad de alcanzar nunca un
significado preciso que la colmase, mientras que la imagen abierta
est constantemente proponiendo significados a travs de nuevas
conexiones: significados todo ellos vlidos, estables en su particular
momento. Nos encontramos, por lo tanto, ante una eclosin del
movimiento: movimiento de las imgenes, tanto interna como
externamente, movimiento de la mirada dentro de la imagen y entre
las imgenes, movimiento de la cognicin a travs de cadenas de
significados.
[3] El movimiento sin tiempo, aunque no necesariamente sin duracin,
supone la posibilidad de revitalizar la condicin fija de la imagen, de
revitalizar la actuacin de sus potencialidades sincrnicas que haban
sido obliteradas por la potencia temporal de las imgenes cinticas. A
la vez, las imgenes cinticas, que contienen duracin, pierden su
capacidad hipntica, relacionada con su pretendido mimetismo, y
vuelven a presentarse como imgenes puras.
[4] En primer lugar, habr que describir el camino de la imagen hacia la
complejidad, para luego observar que, a la postre, la complejidad se
refiere a una forma de interrogar la imagen que es la que hace que
est sea compleja (sin que por ello la mirada especfica deba
entenderse como un aadido provisional). Por lo tanto, no
deberemos referirnos slo a imgenes complejas en s, sino tambin
a una mirada compleja hacia las imgenes, de la misma forma que
en la actualidad nuestra mirada hacia la realidad es compleja
(mientras que la que ejecutamos sobre las imgenes acostumbra a

ser todava bastante simple).


[5] El fenmeno de la imagen compleja, su posibilidad, se mueve por
tanto entre una mirada compleja y una plasmacin compleja. La
primera es el resultado de una hermenutica aplicada sobre la
imagen y sobre lo real, en tanto que la segunda es una resposta
sintomtica de lo social y de la imagen. Realidad, mirada y
representacin forman as una determinada ecologa que produce
fenmenos incontrovertiblemente complejos.
[6] Ver <http://www.boston.com/bigpicture/>.
[7] Ver <www.labcom.ubi.pt>.
[8] Si considerarmos que el fenmeno del interfaz es adems de un
instrumento tecnolgico un modelo mental de realidad
contempornea, nos enfrentaremos al hecho incontrovertible de que
la imagen es absolutamente necesaria para gestionar esta realidad.
[9] En la interfaz se conjugan, pues, dos mundos antagnicos y dos
dramaturgias igualmente opuestas, que ahora pueden trabajar
conjuntamente. [] Concluyendo: la interfaz es un dispositivo capaz
de reunir en su actuacin dos pares de paradigmas de crucial
importancia: por un lado, el del arte y el de la ciencia, en cuya
escisin se ha basado gran parte de la cultura contempornea, y
por el otro, el de la tecnologa y el humanismo, de cuya dialctica se
ha alimentado, tanto positiva como negativamente, el imaginario del
siglo recin finalizado. Es en este sentido que la interfaz se
constituye en una herramienta de futuro, capaz de articular, no tan
slo un funcionamiento prctico, sino de fundamentar tambin todo
un imaginario de indudable complejidad.
[10] La interfaz se presenta, as, como un espacio epistemolgico que
funciona a travs de un procedimiento hermenutico (interactivo) de
carcter temporal, dialctico y representacional, o, dicho, de otra
manera, a travs del movimiento, la fluidez y las transformaciones
que alcanzan incluso a la propia plataforma de actuacin y que por lo
tanto se fundamenta en la bsica inestabilidad de todo el conjunto,
cuyos elementos se modifican entre s.

[11] El propio concepto de multimedia, con su juego de ventanas


contiguas, superpuestas, deslizantes, etc. que, constituye una paso
hacia la conversin del lugar de la representacin en un sistema
articulado de espacios particulares, ligados a un uso, a un medio o a
un concepto. [...] La caracterstica principal de la interfaz tiene que
ver con este juego de espacios de cualquier tipo que se
interrelacionan siguiendo la voluntad del usuario, en el caso de las
interfaces interactivas o a travs de una rutina particular en los
pasivos. El espacio unitario de la pantalla, y tambin el espacio virtual
que disuelve los lmites de la pantalla al emplear indefinidamente los
parmetros de su contenido, cambian de signo para dar paso a un
espacio foliado, desplegable: un conjunto de superficies o de objetos
que forman constelaciones y estn reunidos por una serie de
pliegues.

WILSON GOMES E SAMUEL BARROS[1]

Influncia da mdia, distncia


moral e desacordos sociais: um
teste do efeito de terceira
pessoa
A histria das teorias da Comunicao tem sido,
por sua maior parte, uma histria de teorias e
hipteses sobre os efeitos sociais e pessoais das
mensagens produzidas e/ou distribudas pelos
meios de comunicao. Das discusses presentes
e m Opinio pblica e em The phantom public de
Lippmann, nos anos 1920, aos estudos sobre o
efeito de enquadramento nos anos 1990, temos
mais de 70 anos de estudos sobre a Comunicao
apoiados no pressuposto de que mensagens
presentes nos meios de massa exercem os seus
efeitos, para o bem ou para o mal, fracos ou fortes,
diretos
ou
indiretos,
persuasivos
ou
comportamentais sobre os pblicos e os indivduos.

O pressuposto adotado nessa longa tradio,


evidente e convalidado pelo bom senso, diz que
uma mensagem contida num texto processada
cognitivamente e, em funo daquilo que dela se
decifra e aceita, o sujeito pode ser levado a mudar
ou a reforar convices e comportamentos.
Hipteses sobre o contedo da mensagem,
portanto sobre o modo como ele processado, os
efeitos que podem provocar sobre nossas atitudes,
valores e comportamentos, conscientes ou
inconscientes, mediante cdigos e linguagens,
atravs de diferentes instrumentos etc., so a
matria prpria de que nos ocupamos longamente
na pesquisa sobre modelos terico-metodolgicos
da pesquisa em Comunicao. Mas h mais do que
o contedo prprio da mensagem a exercer efeitos
sobre nossas convices e sobre nossas atitudes.
De fato, nas mensagens no h apenas o que
decodificamos explicitamente, mas tambm deixas
para as inferncias que podemos produzir sobre
mundos envolvidos na produo da mensagem
autores-modelos, leitores pretendidos, contexto,
cotexto etc. como nos ensinou a pesquisa sobre a
natureza das linguagens, cdigos e signos
envolvidos nos textos que usamos.

A HIPTESE DO THIRD-PERSON EFFECT


Mas entender o efeito direto de mensagens
mediticas persuasivas no tudo. Imaginemos a
seguinte situao: eu entendo o que uma
determinada mensagem quis dizer e acho que o
que ela diz srio e grave, mas estou igualmente
convencido, por outro lado, que, no que me diz
respeito, o contedo da mensagem no vai
produzir nenhuma modificao nas minhas
convices nem no meu comportamento. A
convico sobre a impossibilidade de eu ser
influenciado pela mensagem decorre, neste caso,
do fato de eu divergir, emocional e cognitivamente,
dos valores, das posies ou dos fatos presentes na
mensagem. Porque considero errado, cognitiva ou
moralmente, o que uma mensagem diz, recuso
inteiramente a hiptese de ser persuadido ou
convencido por ela. Mas persuaso e preocupao
so dois efeitos muito diferentes que uma mesma
mensagem pode produzir em mim. Temos, ento,
uma situao curiosa: o efeito persuasivo direto
sobre mim nulo, ou quase, mas eu no fiquei
indiferente mensagem; ao contrrio, ela produziu
o enorme efeito de me preocupar. Ademais, no se
trata de uma preocupao sem razo ou escopo, ao
contrrio, est relacionada persuaso que eu

presumo que ser exercida sobre os outros: a


mensagem no deixa de ser convincente por no
me convencer, uma vez que nem todos so como
eu. Isso importante: o potencial que uma
mensagem tem de me preocupar est diretamente
relacionado ao meu julgamento sobre o poder, que
lhe atribuo, de convencimento e de induo de
atitudes e comportamentos nos outros. Mas
tambm se d o seguinte caso: a razo que torna
impossvel que eu seja convencido pela mensagem
a mesma pela qual ela me causa preocupao
para mim, ela ou est errada.
preciso, ento, distinguir duas dimenses
envolvidas na preocupao com a mensagem.
Primeiro, eu temo que esta mensagem v
influenciar os outros tanto no que tange s ideias e
convices deles quanto no diz respeito ao seu
comportamento. Em segundo lugar, este meu
temor est diretamente relacionado ao choque, ao
contraste divergente entre o contedo da
mensagem e os fatos que considero verdadeiros e
as ideias e/ou valores que considero corretos. A
raiz do meu temor acerca do efeito da mensagem
sobre os outros a percepo da distncia e
divergncia intelectuais e morais entre o que eu
acho certo e o que eu acho que a mensagem diz,

estimula ou incita.
Subjaz a todo esse argumento a adoo de um
sistema de referncia subjetivo: algum o sujeito
(a) da certeza de que uma mensagem no ter
sobre ele influncia alguma e, ao mesmo tempo,
(b) do desacordo com o contedo da mensagem,
bem como (c) da estimativa sobre o mal que o
contedo dessa mensagem pode causar aos outros.
Todo o processo de convices, estimativas, juzos
sobre influncias e efeitos de uma mensagem
sustentado num sistema de referncia subjetivo,
enunciado linguisticamente na 1a pessoa do
singular: eu (declinado como eu, me, mim). J o
objeto sobre o qual se estima que a influncia da
mensagem ser exercida duplo: a 1a pessoa (o
efeito sobre mim) e a 3a pessoa do plural
(influncia sobre terceiros, eles, os outros).
Ao examinarmos cuidadosamente, veremos que
h um processo envolvendo etapas de aes e
tomadas de deciso, no necessariamente
conscientes, que sustentam o juzo sobre o efeito
das mensagens. Primeiro, h a fase da
decodificao ou interpretao da mensagem.
Nota-se ou se reconhece algum nvel de influncia
do contedo da mensagem sobre minhas
convices ou meu comportamento? Se a resposta

for no, no h possibilidade dessa mensagem


produzir efeito sobre minhas ideias ou aes, ento
a influncia cognitiva e comportamental sobre mim
est descartada. Mas essas duas dimenses no
so tudo no que tange ao impacto de uma
mensagem, de modo que uma segunda etapa
cuidar de verificar se algum tipo de preocupao
ou inquietao resultou da minha exposio
mensagem. Caso a resposta seja negativa, estar
descartado qualquer efeito da mensagem. Mas se a
resposta for afirmativa, temos ento um marcador
de efeito indireto da mensagem e convm
investigar ulteriormente, verificando-se se so
satisfeitas duas outras condies. Se ambas as
condies se realizam, pode-se diagnosticar com
certeza a existncia de uma influncia indireta da
mensagem. O primeiro aspecto a ser verificado a
distncia moral e/ou intelectual entre mim e o
contedo da mensagem. Trata-se de uma
mensagem que, segundo o meu conhecimento dos
fatos, minhas convices pessoais ou meus valores,
deve ser considerada falsa, incorreta ou
moralmente errada? Se a resposta for negativa, o
efeito est descartado, mas caso seja positiva,
deve-se esperar o resultado da prxima pergunta,
que : a mensagem pode influenciar outras

pessoas? Se as duas respostas forem positivas,


ento, definitivamente eu estimo um efeito da
mensagem sobre os outros, embora parta de uma
certeza igualmente definitiva de que ela no pode
exercer influncia sobre mim. Temos aqui uma
discrepncia entre a percepo do efeito na
primeira e na terceira pessoa.
O efeito comportamental, contudo, verificado
por uma ltima pergunta: devemos adotar medidas
para evitar a influncia sobre terceiros? Em caso
negativo, no ocorre efeito comportamental,
apesar da diferena entre o efeito imaginado em si
mesmo e em outros. Contudo, se a resposta for
positiva,
podemos
verificar
o
efeito
comportamental indireto (essa heurstica descrita
na Figura 1; o efeito que estamos descrevendo aqui
corresponde ao processo da segunda coluna).
O grau zero de efeito comportamental direto, de
que
partimos,
resultou,
a
este
ponto,
paradoxalmente, num alto grau de efeito
comportamental: no final das contas, a mensagem
sem efeito direto sobre mim produziu um grande
efeito (sobre sentimento, comportamentos e
atitudes) em mim. No porque se tenha dado
algum alinhamento entre o meu comportamento e
a minha convico, de um lado, e o contedo da

mensagem, do outro, o que seria impossvel dada a


distncia moral e/ou intelectual constatada, mas
porque o juzo sobre o potencial efeito cognitivo e
comportamental sobre os outros provocou em mim
uma atitude e um comportamento de defesa dos
outros contra a mensagem.
PARA ALM DA DISCREPNCIA
Desde os anos 1980, o fenmeno que acabamos de
descrever chamado de third-person effect
(DAVISON, 1983, 1996; GUNTHER, 1991) que
poderia ser traduzido como efeito de terceira
pessoa, efeito sobre a terceira pessoa, efeito sobre
terceiros. A escolha terminolgica um bom
indicativo do que mais chamou ateno no
fenmeno: o juzo subjetivo segundo o qual uma
mensagem sem efeito sobre mim exerceria, por
outro lado, grande efeito sobre terceiros. De fato,
grande parte da copiosa literatura sobre o efeito de
terceira pessoa (ETP) se concentra na discrepncia
que se d na avaliao sobre a influncia de uma
mensagem em mim e nos outros. (GOLAN, 2008;
DELORME; HUH; REID, 2007) Para muitos, o ETP se
define justamente nestes termos: h ETP quando o
entrevistado sustenta que uma mensagem ter
mais efeitos nos outros do que em si.

Figura 1: Diagrama do processo cognitivo no estabelecimento do efeito


de terceira pessoa.

Elaborao dos autores

Isso seria simples demais. Desde a histria de


guerra,[2] contada por W. Phillips Davison no
artigo seminal do ETP (DAVISON, 1983), que a
questo no pode se esgotar na discrepncia entre

o efeito percebido em ns e em terceiros. Na


formulao inicial de Davison, ainda mais
importante o impacto que a presuno de
influncia sobre outros exerce sobre um grupo
social
A,
levando-o
a
adotar
certos
comportamentos e atitudes diante de mensagens
que no exercem efeito direto sobre esse grupo,
mas que ele considera que tenha potencial para
exercer efeitos diretos e nocivos sobre o grupo
social B. O efeito de terceira pessoa , afinal, um
efeito sobre a primeira pessoa, mas que s se
estabelece por causa de um efeito presumido,
temido ou imaginado sobre terceiros. Eis porque
uma alternativa denominao third-person effect
seja tambm efeito do efeito presumido. Na
verdade, o juzo que sustenta a discrepncia de
efeitos no , ele mesmo, um efeito, mas o
contraste paradoxal entre dois dos termos de um
raciocnio que envolve outras etapas e decises
(como a distncia moral, por exemplo). Trata-se
simplesmente da certeza do no efeito sobre mim
contrastando com a convico sobre o risco de
efeito sobre os outros. O efeito outra coisa: a
influncia da influncia presumida e temida sobre
os outros.
Outra forma de insistir que o centro de tudo

consiste na discrepncia mim-outros na estimativa


dos efeitos formulada do seguinte modo: a
hiptese do efeito sobre terceiros aquela que
prescreve que as pessoas tendero a superestimar
a influncia da comunicao nas atitudes e
comportamentos dos outros ao mesmo tempo em
que tendero a subestim-la em si mesmas. Nesse
caso, a questo no apenas de discrepncia, mas
o que o paradoxo da discrepncia revela da
inadequao de ambos os termos da nossa dupla
estimativa de efeitos: como exageramos um lado e
subestimamos outro, podemos estar errados ou no
que exageramos ou no que subestimamos ou em
ambos, mas duplamente certos nunca estamos. A
rigor, contudo, no se est descrevendo nessa
definio o efeito de uma mensagem, mas um vis
psicolgico que tendemos a adotar quando h
distncia moral entre ns e o contedo de uma
mensagem; o que nos impediria de fazer uma justa
estimativa dos efeitos reais da comunicao. O ETP
nesse caso seria um vis, uma distoro, uma
cegueira de matriz psicolgica que nos impede de
fazer justas estimativas sobre efeitos de
mensagens. (GUNTHER, 1991, 1998; PERLOFF,
1999; RUCINSKI; SALMON, 1990)
Embora todos esses aspectos toquem em

questes presentes no processo heurstico que


acompanha os fenmenos que descrevemos, o
efeito que buscamos identificar o impacto real
causado pelo efeito presumido. Isto , a influncia
que um presumido efeito de terceira pessoa exerce
sobre ns, nossas atitudes, nossas disposies de
nimo, nossas interpretaes dos fatos, nossos
comportamentos: trata-se do efeito produzido por
uma opinio sobre o efeito. diferena da maioria
das teorias sobre os efeitos da comunicao, a
hiptese sobre o ETP no procura determinar os
efeitos da comunicao sobre o que as pessoas
pensam, mas o que as pessoas pensam sobre os
efeitos da comunicao (PERLOFF, 2002) e como o
que elas pensam sobre isso acaba influenciando a
sua atitude a respeito de determinados contedos.
Em termos de volume e atualidade, o ETP virou
uma das abordagens mais importantes daquilo que
a literatura de Comunicao em lngua inglesa
chama de media effect o estudo da influncia da
mdia , rivalizando apenas com os modelos
terico-metodolgicos
do agenda-setting e do
media framing. E mesmo no Brasil, j h algum
volume de bibliografia sobre o tema. (AGGIO,
2010; ANDRADE, 2008; DALMONTE, 2006; FREIRE,
2009; ROSSETTO, 2011, 2014; PORTO JUNIOR,

2009)
Bem cedo, a bibliografia sobre o tema tratou de
demarcar claramente dois componentes da
hiptese: a dimenso que tem a ver com a
estimativa sobre efeitos (o juzo que sustenta que
os contedos da comunicao influenciam mais os
outros do que a mim) e a dimenso
comportamental que dela se pode derivar (uma
estimativa sobre o risco de que os outros sejam
influenciados por contedos nocivos pode me levar
a agir para evitar isso). (DAVISON, 1983;
GUNTHER, 1991; PERLOFF, 1993) No h erro
nessa
contraposio
entre
o
componente
perceptual e o componente comportamental da
hiptese, mas o fato que a nossa estimativa dos
efeitos em terceiros depende de nossa opinio ou
sentimento sobre o quanto a mensagem pode ser
nociva. Esta, por sua vez, inclui tanto a nossa
deciso subjetiva sobre o nosso desacordo moral
ou intelectual com o contedo quanto a igualmente
subjetiva convico acerca do potencial que esse
contedo tem de afetar outras pessoas.
Muitos
autores
acrescentam
um
desenvolvimento importante na hiptese quando
comeam a falar da aprovao ou desejabilidade
social (social desirability (EVELAND, MCLEOD,

1999; JENSEN, HURLEY, 2005) do contedo da


mensagem como varivel importante para explicar
a discrepncia eu-eles e, no limite, a influncia da
influncia presumida. Mostram que quando um
contedo socialmente desaprovado letras
misginas de rap, por exemplo (MCLEOD et al.,
1997) tendemos a exibir uma grande
discrepncia convencional eu-eles na nossa
compreenso dos efeitos das mensagens (mais
efeito neles que em mim), enquanto a discrepncia
se inverte (mais efeito em mim do que neles
(DAVID et al., 2004) quando o contedo
socialmente aprovado (GUNTHER; THORSON,
1992; PERLOFF, 1993; RUCINSKI, SALMON, 1990)
numa campanha contra o fumo, por exemplo.
(HENRIKSEN; FLORA, 1999)
No estamos realmente convencidos, contudo,
de que a desejabilidade social do contedo tenha
realmente um papel no processo cognitivo que
redunda no ETP. [3] Primeiro, porque todo o
processo marcadamente subjetivo; como se pode
dar um salto para a sociedade e introduzir um
sistema de referncia to alargado? Trata-se
sempre do que eu acho e do que eu sinto em
contraste com os outros, a sociedade, eles; como
possvel que, apenas nesse aspecto, a sociedade

seja incorporada como referncia? Em segundo


lugar, se a aprovao for social e no pessoal,
como explicar aqueles casos em que os indivduos
contrastam com o juzo predominante sobre as
coisas? Mensagens de proselitismo religioso, por
exemplo, do amplas margens a polarizaes e,
fatalmente, ao menos em sociedades multiculturais
e laicas, haver pessoas visceralmente a favor e
outras, radicalmente contra. Como fica a aprovao
social em contextos extremamente polmicos?
Por outro lado, h algo interessante na ideia de
que uma etapa do processo cognitivo envolva um
juzo de valor sobre o contedo, uma posio
axiolgica. Acreditamos, entretanto, que ela seja
dependente da posio subjetiva de quem faz o
juzo. Isto , eu fao um juzo de valor,
estabelecendo a minha posio subjetiva acerca do
contedo da mensagem e ao mesmo tempo
identificando a posio dessa mensagem em face
de mim. Assim, acreditamos, parte do raciocnio
que estabelece numa discrepncia eu-eles outra
discrepncia, moral ou intelectual, entre o que acho
certo e o que a mensagem diz. Em vez de
desejabilidade
social,
achamos
conveniente
denominar isso de distncia moral e/ou intelectual
entre mim, o sistema de referncia e o contedo

das mensagens. A nossa avaliao subjetiva


sempre estabelece, em mensagens pertinentes, se
h distncia ou proximidade intelectual e/ou se h
desacordo ou acordo moral (o que a mensagem diz
est certo ou errado conforme os meus
parmetros?).
O
que
se
notou,
nos
experimentos
documentados na bibliografia do campo, foi que
quando h alinhamento intelectual e/ou moral
entre mim e o que est expresso na mensagem,
no cessa a discrepncia eu-eles no que tange ao
efeito presumido da mensagem; no apenas a
discrepncia mantida, mas curiosamente se
inverte o vetor, de forma que agora eu no s
admito que sou influenciado pela mensagem, mas
que em mim que ela exerce mais efeito do que
nos outros. (CHAPIN, 2005; DAVID et al., 2004;
JENSEN; HURLEY, 2005) Apressadamente, se
denominou esse fenmeno de efeito reverso de
terceira pessoa, em coerncia com a crena de
que o centro da hiptese a discrepncia e de que,
nesses casos, trata-se simplesmente da inverso
dos polos da dupla estimativa de efeitos.
Na verdade, acreditamos que quando a distncia
moral e intelectual aponta para cima (o contedo
ensina coisas intelectualmente ou moralmente

superiores ao que eu j sabia ou aos


comportamentos que eu j adotava) a influncia da
influncia presumida no se realiza. O que se d
efeito direto (1a coluna da Figura) e no se poderia
sequer falar de um vis de terceira pessoa. Mesmo
que eu previsivelmente admita o segundo
componente dessa fase (a presuno de que os
outros sero influenciados pelo contedo da
mensagem), o processo interrompido nesse
ponto. Por que adotarei atitudes e comportamentos
protetores se acho que a influncia presumida seria
tima para os outros? O que nos parece o mais
fundamental hiptese (o efeito do efeito previsto)
no se apresenta mais, embora esteja presente o
componente mais vistoso dela (a discrepncia
entre os efeitos sentidos e previstos). As pesquisas
empricas indicam sempre maior discrepncia
quando h distncia moral para baixo do que
quando no h distncia ou ela aponta para cima.
Em suma, pode at ser que ocorra efeito de
terceira pessoa reversa, se por ETP entendermos
simplesmente a discrepncia de estimativas, mas
no haver tal efeito se por ETP entendermos,
como defendemos neste captulo, a influncia da
influncia presumida.
No importa qual perspectiva admitamos, o ETP

envolve esta dimenso da opinio pblica que so


as impresses, estimativas ou juzos que so feitos
sobre outros e sobre a sua susceptibilidade a
determinados contedos. O fenmeno implica
algumas premissas, cada uma merecedora, per se,
de um estudo a parte: (a) a premissa de que os
outros so suscetveis a contedos que no me
afetam; (b) a premissa de que contedos nocivos
so os que mais tendem a influenciar os outros; e
(c) a premissa de que h que se tomar alguma
providncia para proteger os outros de contedos
que os podem inclinar para o mal.
A este ponto, parece-nos claro na literatura que
h algumas hipteses solidrias e misturadas por
trs da expresso ETP, que podem muito bem
serem desvencilhadas. A primeira a hiptese da
discrepncia de influncias, que se ocupa da
persistncia do fenmeno de psicologia social que
consiste em compor um juzo duplo e em razo
contrria sobre o efeito persuasivo e
comportamental de mensagens: nada em mim,
muito nos outros. Para alguns, isso tudo o que
third-person effect significa. (GUNTHER, 1991;
RUCINSKI; SALMON, 1990) A segunda a hiptese
da influncia da influncia presumida, que se ocupa
do fato de que uma previso de efeitos de

determinados contedos sobre os outros nos levem


a adotar atitudes e comportamentos voltados para
evitar que tais efeitos se realizem. (MUTZ, 1989;
GOLAN, 2008; COHEN; TSFATI, 2009) A terceira a
hiptese de que a percepo da distncia moral e
intelectual
negativa

o
gatilho
para
comportamentos protetores: a distncia moral e
intelectual entre mim e os contedos de uma
mensagem a varivel que explica tanto a minha
crena na discrepncia de influncias quanto a
minha disposio a tomar providncias para que a
influncia presumida sobre os outros no se efetue.
(MEIRICK, 2005; ELDER; DOUGLAS; SUTTON, 2006)
Pesquisas sobre o fenmeno da discrepncia na
expectativa
de
influncias
apoiam-se
em
experimentos
voltados
para
examinar
as
estimativas de efeito, sobre si mesmo e sobre os
outros, de contedos da Comunicao. A pesquisa
sobre o fenmeno da discrepncia, ademais,
assimila a varivel da aprovao social do contedo
da mensagem (ou da distncia moral positiva),
desde que ela seja indicativa da discrepncia, e
est interessada em explicaes sobre a razo da
persistncia desse fenmeno (como a hiptese do
ego enhancement). Por fim, a hiptese da
discrepncia vai ser empregada para explicar

tendncias psicolgicas gerais adoo de uma


perspectiva da mdia permanentemente distorcida
contra a minha prpria posio poltica e moral a
hiptese metodolgica do media bias. Pesquisas
sobre a influncia da influncia presumida, por sua
vez, tentam descobrir a influncia esperada da
exposio a determinados contedos sobre os
outros e a consequncia disso em termos de
atitudes e comportamento, como, por exemplo, a
disposio a apoiar censura e controle de acesso a
contedos. Nesse sentido, elas conseguem
estabelecer um vnculo entre uma disposio
psicolgica proteo dos vulnerveis em face de
contedos nocivos e comportamentos e atitudes
polticas bastante disseminadas na sociedade que
afetam desde os climas de opinio pblica at a
produo legislativa, das manifestaes populares
formulao e implementao de polticas
pblicas, da censura manifestao de rua para
impedir acesso a filmes e exposies de arte, por
exemplo.
UM ESTUDO EMPRICO
Para testar a robustez da hiptese de que o
desacordo moral um moderador confivel do juzo
subjetivo acerca da discrepncia eu-eles, os

autores projetaram e realizaram um estudo


emprico. Geralmente, os estudos que se atm ao
exame da varivel da aprovao/desaprovao
social das mensagens examinam casos bem
marcados tanto no que respeita aprovao
coletiva quanto no que tange sua reprovao.
Isso porque o que lhes interessa no o
processamento cognitivo que redunda na influncia
da influncia presumida, mas apenas avaliar a
dimenso do hiato que caracteriza a discrepncia
eu-eles na estimativa de efeitos e o curioso
fenmeno da sua inverso, que acompanha
automaticamente, embora no na mesma
intensidade, a troca da reprovao pela aprovao
social dos contedos da mensagem.
No h testes referentes a situaes que
contenham desacordos morais permanentes na
sociedade,[4] ou seja, aquelas situaes em que
por mais que haja uma troca pblica de
argumentos, a deliberao pblica no consegue
evitar que os grupos continuem polarizados.
Aborto, homossexualidade, legalizao do consumo
recreativo de maconha, por exemplo, so desses
desacordos morais permanentes neste momento
nas sociedades ocidentais, que teimam em resistir
como um impasse e um impedimento constante

formao de consensos. Pois bem, resolvemos


testar a etapa heurstica da distncia moral em um
tema tpico do contexto de impasse moral o
consumo de maconha , na expectativa de que
uma vez que os sujeitos tm sua disposio uma
gama mais ampla de alternativas para o seu
prprio posicionamento moral se pode mais
facilmente ver variaes tanto na posio subjetiva
dos entrevistados quanto na forma como estes
posicionam moralmente as mensagens em
questo. Como a fora dos partidos no que tange a
esses temas varivel em funo dos grupos
sociais (em ambientes religiosos, o partido pro-life
certamente dominante, mas o pro-choice
equilibra as contas quando se trata de um
ambiente jornalstico, por exemplo), buscamos um
contexto social que permite um maior embate nas
posies. Resolvemos, ento, examinar a distncia
moral no contexto universitrio, uma vez que esse
um ambiente mais tolerante ao consumo
recreativo de drogas e, ao mesmo tempo, tolerante
a posies contrrias.
O DESENHO METODOLGICO DA VERIFICAO
EMPRICA
O estudo emprico consistiu em: 1) exposio

individual dos entrevistados a mensagens


predeterminadas;
2)
verificao
do
posicionamento[5] moral do contedo das
mensagens por parte dos entrevistados; 3)
identificao da posio moral do prprio
entrevistado; 4) identificao da estimativa do
entrevistado acerca da influncia da mensagem em
si e nos outros. Esses dados foram coletados
atravs de questionrio com respostas fechadas
aplicado a 207 estudantes no campus de uma
universidade pblica do Nordeste do Brasil, entre
18 e 22 de julho de 2011. Os entrevistados foram
abordados por um dos pesquisadores e solicitados
a responder um questionrio sobre a influncia da
mdia. Antes, os entrevistados leram uma entre
duas matrias jornalsticas: 105 (50,7%) pessoas
leram uma matria que apresentava malefcios do
uso prolongado da maconha, publicada pelo portal
on-line G1, em 10 de maro de 2010; e 102
(49,3%) pessoas leram uma matria que
apresentava benefcios teraputicos de uma das
substncias presentes na maconha, publicada pelo
jornal on-line Folha.com, em 7 de julho de 2010.
Para evitar possvel vis de credibilidade das
fontes,
foram
selecionadas
matrias
que
igualmente apresentavam resultados de pesquisas

cientficas sobre a maconha.


As questes do questionrio podem ser
separadas em trs grupos. O primeiro grupo se
destinou caracterizao da amostra. O segundo
composto pelas perguntas que procuram medir a
discrepncia eu-eles na influncia suposta. Para
tanto, foi-lhes solicitado que estimassem o efeito
das matrias apresentadas em si mesmos, nos
seus colegas e amigos, em sua famlia e na maior
parte dos brasileiros. As respostas possveis foram
dispostas numa escala de 5 pontos: muito (4),
relativamente
muito
(3),
pouco
(2),
extremamente pouco (1) e em nada (0). O
terceiro grupo de questes formado por
perguntas que operacionalizam as hipteses.
HIPTESES
Com o propsito de examinar o impacto da varivel
distncia moral entre a opinio pessoal e o vis
atribudo matria como moderador da estimativa
de influncia da mensagem, orientamos nosso
trabalho por trs hipteses. Assim, na primeira
hiptese enfrentamos especificamente o fator
distncia moral.
H1: Quando o posicionamento atribudo

mensagem moralmente distante da opinio


pessoal, os entrevistados acharo que os
contedos influenciam mais os outros do que eles
prprios.
As duas hipteses seguintes estudam a relao
entre o posicionamento estimado da mensagem e
a posio subjetiva do entrevistado sobre um tema
polmico, para o qual se admite a possibilidade de
posicionamentos antagnicos. Demonstram que o
que importa para o estabelecimento da
discrepncia na estimativa dos efeitos no a
desejabilidade social do contedo, mas a
distncia intelectual e moral entre a posio
subjetiva do entrevistado e a posio atribuda
matria: havendo distncia (portanto, percepo
de que o contedo est errado), haver
discrepncia. De forma que no importa o
posicionamento em termos de aprovao social do
ponto de referncia subjetivo ou da matria, mas
que exista uma distncia entre o posicionamento
subjetivo e o percebido como de determinado
contedo.
H2A: Aqueles com uma posio subjetiva
contrria ao consumo de maconha que
considerarem que a posio assumida pela matria
favorvel tendero a ver mais discrepncia na

estimativa dos efeitos, porque tendero a presumir


um maior efeito sobre terceiros.
H2B: Aqueles com uma posio subjetiva
favorvel ao consumo de maconha que
considerarem que a posio assumida pela matria
contrria tendero a ver mais discrepncia na
estimativa dos efeitos, porque tendero a presumir
um maior efeito sobre terceiros.
Naturalmente, nas duas sub-hipteses h
sempre distncia moral entre a posio subjetiva
do entrevistado e a matria em questo, mas os
vetores so antpodas: quando a posio subjetiva
favorvel, o posicionamento desfavorvel e
vice-versa. Para garantir a ampla compreenso dos
resultados, as hipteses foram investigadas com o
emprego de estatstica descritiva.
RESULTADOS E DISCUSSO
Caractersticas demogrficas da amostra. Os
entrevistados foram abordados sem critrio
amostral definido e sem distines de qualquer
tipo, sendo necessria apenas a anuncia em
responder o questionrio. No obstante, a
variabilidade demogrfica da amostra evidencia
heterogeneidade, o que aumenta a confiabilidade.

Entre os entrevistados com dados vlidos, 49,5%


so do sexo feminino, enquanto 50,5% so do sexo
masculino; a idade variou entre 15 e 48 anos, com
mdia de 24,6 anos.[6]
No que diz respeito renda familiar, 52% dos
entrevistados declararam ganhar menos de 3
salrios mnimos, isto , menos de R$ 1.635,00,
uma vez que se tem como referncia o salrio
mnimo poca de R$ 545,00; 21,8% entre 3 e 6
salrios mnimos; 14,6% entre 6 e 9 salrios
mnimos; e 11,7% mais de 9 salrios mnimos.
Outro dado que implica diretamente na renda
familiar o nmero de pessoas no ncleo familiar,
que teve mdia 4,0 e desvio padro de 1,5. Quanto
escolaridade, como era esperado, 73,9%
informou ter ensino superior incompleto, 23,2%
ensino superior completo e outros 2,9%
informaram ter ensino mdio completo ou grau
menor. Quanto autodeclarao de cor de
pele/raa, 42,8% se declararam pardos, 28,9%
pretos, 22,4% brancos, 3,5% indgenas, 2%
amarelos e 2,9% no responderam.
Estudo das hipteses. A hiptese 1 investiga a
distncia moral entre a posio pessoal e a
tendncia identificada na matria. Para testar essa
hiptese foi apresentada a seguinte afirmao no

questionrio: Os argumentos apresentados na


matria..., para a qual foram dadas as opes
contribui para a minha posio, indiferente,
contribui para uma posio contrria minha.
Presume-se que a primeira opo indique
concordncia moral e a terceira caracterize o
desacordo. Assim, para proceder investigao de
H1, foi comparada a diferena entre o efeito
presumido em si mesmo e na sociedade, para cada
uma das respostas possveis.
Tabela 1 - Mdia (M) e desvio padro (DP) da influncia percebida em
si mesmo e nos outros, distribudos pelos que avaliaram os
argumentos das matrias como neutro, concordante ou discordante
da sua posio subjetiva
Em mim
DP

A migos

Categoria

Argumento
indiferente

1,03 1,043 69

DP

1,43

35,75

Proximidade
1,87 1,270 101 2,15 0,989 102 2,08 1,447 102 2,46 1,059 102 0,59
moral

14,75

Distncia
moral

47

2,36 1,125 36

DP

1,86 1,498 69

1.67 1,621 36

DP

(Sociedade)
- (Mim)
%

1,99 11,69 69

Sociedade

1,06 11,20 36

Famlia

2,46 0,964 69

2,94 0,893 36

1,88

Conforme previsto por H1, a discrepncia na


estimativa da influncia da matria sobre si e sobre
os outros foi expressivamente maior entre aqueles
que indicaram um sentimento da distncia moral

entre a opinio pessoal e a opinio atribuda


matria. Na ltima coluna da Tabela 1
apresentada a diferena entre a mdia da
influncia percebida em si mesmo e a mdia da
influncia percebida na sociedade em geral. Na
situao em que se identificou alinhamento moral,
a discrepncia foi de apenas 14,75% (considerando
que a escala varia entre 0 a 4), enquanto na
situao em que o questionrio registrou haver
distncia moral, a discrepncia de 47%.
Em tempo, chamou nossa ateno o expressivo
ndice de discrepncia na estimativa de influncia
entre aqueles que consideram o argumento
apresentado pela matria como indiferente
(35,75%). Ento, verificamos que esta variao
pode ser explicada pela crena de que consumir
maconha no bom. Neste grupo (N = 69), 60,9%
acredita que o consumo de maconha malfico ou
parcialmente malfico; 20,3% que neutro; 18,8%
que parcialmente benfico ou benfico. Enfim, a
posio contrria ao consumo de maconha poderia
levar ao aumento da discrepncia na percepo da
influncia em si e em outros, mesmo que se
considere a matria como indiferente para a
prpria posio subjetiva. Contudo, essas variveis
so melhor estudadas nos testes das hipteses

H2A e H2B.
As hipteses seguintes (2A e 2B) testam o
impacto do (1) posicionamento que o entrevistado
julga que a matria adota sobre o consumo de
maconha e da (2) posio subjetiva do
entrevistado quanto s consequncias do consumo
de maconha sobre a (3) discrepncia da estimativa
dos efeitos das matrias em si e nos outros. Em
ambos os casos, simplesmente se pediu que o
entrevistado localizasse, numa escala de cinco
pontos, a posio que ele atribua matria, em
primeiro lugar, e o seu juzo sobre malefcios e
benefcios da maconha, em segundo lugar. A
primeira questo foi, ento: Em sua opinio, qual
a posio da matria em relao ao uso de
maconha? Para esta pergunta os entrevistados
puderam
escolher
entre
a
favor
(2),
parcialmente a favor (1), neutra (0),
parcialmente contra (-1) e contra (-2).
Enquanto a segunda questo se formulou do
seguinte modo: Voc acredita que o uso de
maconha ..., para a qual foram oferecidas as
alternativas: benfico (2), parcialmente
benfico (1), neutro (0), parcialmente
malfico (-1) e malfico (-2). Os valores esto
apresentados na Tabela 2. Na ltima coluna, em

nmeros absolutos e percentuais, esto os dados


empregados para o teste das hipteses, a diferena
entre a mdia da influncia percebida na sociedade
e a mdia da influncia em si mesmo.
Tabela 2 - Mdia (M) e desvio padro (DP) da influncia percebida em
si, nos amigos e colegas, na famlia e na sociedade para o cruzamento
entre a percepo da tendncia da matria (favorvel, neutra ou
desfavorvel) e da avaliao das consequncias decorrentes do uso
de maconha (benfica, neutra ou malfica)
Mim
N

DP

Famlia
N

DP

Sociedade
N

DP

(Sociedade)
- (Mim)

Categoria

Matria
fav orv el &
macaconha
neutra

1,57 1,089 14 1,79 0,975 14 1,43 1,342 14 2,43 0,938 14 0,86

21,5

Matria
fav orv el &
maconha
malfica

1,00 1,155 25 2,16 1,068 25 ,80

31

Matria
fav orv el &
maconha
benfica

2,39 1,407 31 2,61 1,054 31 1,42 1,119 31 2,16 1,036 31 -0,23

-5,75

Matria neutra
& maconha
neutra

1,30 1,059 10 2,00 1,414 10 1,70 1,767 10 2,50 1,269 10 1,20

30

Matria neutra
& maconha
malfica

1,07 1,238 27 2,15 0,989 27 1,67 1,468 27 2,15 0,989 27 1,08

27

Matria neutra
& maconha
benfica

1,70 1,160 10 2,50 0,527 10 2,20 1,476 10 2,60 0,699 10 0,90

22,5

1,09 1,136 11 1,82 1,250 11 2,82 1,328 11 3,27 0,786 11 2,18

54,5

Matria
desfav orv el &
maconha

DP

A migos

1,190 25 2,24 1,012 25 1,24

neutra
Matria
desfav orv el &
maconha
malfica

1,36 1,160 64 1,95 1,096 65 2,51 1,427 65 2,74 0,957 65 1,38

34,5

Matria
desfav orv el &
maconha
benfica

1,36 0,842 14 2,21 1,051 14 2,71 1,490 14 3,36 0,633 14 2,00

50

Conforme pode-se verificar nas trs primeiras


linhas do Tabela 2, H2A foi confirmada, uma vez
que os que acreditam que a maconha malfica,
mas acham que a matria adotou uma posio prconsumo (posio subjetiva contrria ao consumo
de maconha e relao de distncia moral antipodal
com relao matria), apresentaram maior
discrepncia em relao sociedade (31%) do que
aqueles que consideram a maconha benfica
(5,75%) e acham que esse tambm o
posicionamento da matria (posio subjetiva
favorvel e relao de alinhamento moral com
relao matria). Dito de outro modo: quando o
sujeito acha que a matria adota um vis prconsumo e ele contrrio a isso, verifica-se grande
discrepncia, mas quando ele mesmo prconsumo a discrepncia inverte e diminui
sensivelmente. Isso quer dizer que a distncia
moral uma varivel decisiva para a discrepncia
na estimativa de influncia e que o efeito chamado

efeito de terceira pessoa reverso no , de fato,


fator relevante para o fenmeno que estudamos.
Por outro lado, para aqueles com posio
subjetiva favorvel e, consequentemente, relao
moral de proximidade com o posicionamento do
contedo, a discrepncia mdia maior entre o
entrevistado e a sua famlia (24,25%). Nesse caso,
ao mesmo tempo, os entrevistados consideram que
os amigos (65,25%) so mais influenciados do que
eles mesmos (59,75%). Esses resultados indicam
que a proximidade moral entre o ponto de
referncia (posio subjetiva do entrevistado) e as
diferentes esferas de alteridades (o que a literatura
chama de distncia social) uma varivel
importante em temas dotados de considervel
desacordo social.
Para o teste de H2B, foi tomada a parte da
amostra que percebeu a matria como
desfavorvel ao uso de maconha. Portanto, os
dados apresentados nas trs ltimas linhas da
Tabela 2. Conforme a diferena entre as mdias da
percepo do impacto em si mesmo e na sociedade
brasileira, dispostas na ltima coluna, a maior
discrepncia ocorreu entre as pessoas que
consideram as consequncias do uso de maconha
como neutra (54,5%). Tal resultado diferente do

previsto pela hiptese 2B. No entanto, ainda assim


coerente com os demais resultados deste estudo:
o efeito tende a ser mais forte quando o
entrevistado identifica distanciamento moral. No
caso, os entrevistados no eram contrrios ao
consumo de maconha, mas assumiam uma posio
de neutralidade, de modo que quando expostas a
um contedo miditico que adotava um vis
anticonsumo, assumiu-o como adversrio e,
coerentemente, passou a ver grande risco de efeito
sobre os outros e, portanto, muita discrepncia na
influncia estimada. Ademais, entre aqueles que
consideram o consumo de maconha como benfico
(posio subjetiva favorvel) e avaliaram a matria
como desfavorvel (distanciamento moral) a
discrepncia da percepo da influncia alcanou o
expressivo nmero 2 numa escala de 4, o que
igual a uma diferena de 50%.
Na comparao com os efeitos estimados entre
aqueles que perceberam a influncia da matria de
modos distintos, interessante notar que as
mdias so mais altas quando a matria
posicionada pelo entrevistado com desfavorvel ao
consumo de maconha. Entre os que consideram a
matria pr-consumo, a discrepncia de 21,5%
entre aqueles que consideram os efeitos do uso

neutros, 31% quando a posio subjetiva


negativa e de -5,75% para os que assumem uma
posio subjetiva positiva. Entre aqueles que
posicionaram a matria como neutra, a
discrepncia de 30%, 27% e 22,5%,
respectivamente. J entre aqueles que posicionam
a matria como desfavorvel, a diferena de
54,5%, 34,5% e 50%, respectivamente. Em
resumo, as pessoas estimaram um efeito maior em
terceiros quando avaliam que a matria
apresentada adota uma posio anticonsumo de
maconha.
Resultado semelhante ao que foi encontrado por
Huh e colaboradores (2004) para propagandas de
remdio nos Estados Unidos. Esses autores
sugerem que a tendncia positiva ou negativa dos
contedos miditicos influencia na probabilidade e
na magnitude do ETP, o que confirma o princpio,
documentado anteriormente por Rucinski e Salmon
(1990), de que o efeito tende a ser mais intenso
quando o contedo de mdia percebido como
negativo, bem como d susteno para o modelo
explicativo esboado neste captulo.
O QUE FOI FEITO E O QUE FALTA
Investigamos

aqui

modelo

conceitual

metodolgico do efeito de terceira pessoa como


resultante de processo heurstico que conduz um
sujeito curiosa condio de sofrer influncia da
influncia que ele presume que ser exercida sobre
os outros e no sobre ele mesmo. Tentamos
sustentar uma relao entre a adoo da paradoxal
premissa de que mensagens tm mais efeitos nos
outros que em ns mesmos e a distncia que
estabelecemos entre a nossa posio moral
subjetiva e o posicionamento moral que atribuimos
a determinadas mensagens.
Testadas
empiricamente
as
hipteses,
constatou-se que a distncia moral entre a opinio
pessoal e a posio da matria tem uma relao
positiva com a discrepncia eu-eles na estimativa
dos efeitos. A principal justificativa para este
esforo de pesquisa o indicativo de que a
estimativa sobre a influncia dos contedos
miditicos na posio do outro pode influenciar nos
argumentos a serem sustentados pelos indivduos
numa situao de debate. Em um momento que a
descriminalizao da maconha uma discusso
com crescente importncia e visibilidade na
sociedade brasileira, a percepo dessa dimenso
no desprovida de importncia.
Estudos futuros podem desenvolver modelos

mais complexos e aumentar a amostra, a fim de


melhorar a confiabilidade dos presentes resultados,
bem como testar um nmero maior de elementos
com provvel influncia no efeito. Outra demanda
a ampliao dos temas testados, nomeadamente
dos temas de interesse pblico e em situao de
desacordo moral resiliente que so regulados a
partir da discusso pblica e que so conhecidos
majoritariamente
atravs
dos
meios
de
comunicao.
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<http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/763183-capsula-demaconha-trata-pacientes-com-fobia-social.shtml>. Acesso em: 30 jul.
2012.

Uso prolongado da maconha pode dobrar risco de psicose, diz estudo:


chances de desenvolver so maiores em quem fuma h seis anos ou
mais. Cerca de 190 milhes de pessoas no mundo so usurias de
drogas. 1 mar. 2010. Disponvel em:
<http://g1.globo.com/noticias/ciencia/o,,mul1510303-5603,00uso+prolongado+de+maconha+pode+dobrar+risco+psicose+diz+estud
Acesso em: 30 jul. 2012.

NOTAS
[1] Os autores agradecem aos pesquisadores do Grupo de Pesquisa
em Comunicao, Internet e Democracia da Universidade Federal
da Bahia, especialmente a Graa Rossetto e Maria Paula Almada,
pela generosa leitura deste trabalho.
[2] A narrativa, contada pelo prprio Davison, a seguinte: durante a
Segunda Guerra Mundial, existia um destacamento que consistia de
tropas formadas por negros e comandadas por oficiais brancos na

ilha de Iwo Jima, no oceano Pacfico. Os japoneses descobriram a


localizao desse destacamento e enviaram para l avies com
panfletos de propaganda. Esses panfletos enfatizavam que aquela
era uma guerra de brancos e que os japoneses no tinham rixa
com pessoas de cor. Eles diziam, mais ou menos, No arrisque
sua vida pelos homens brancos. Se renda na primeira oportunidade
ou simplesmente deserte. No corra riscos. No dia seguinte, o
destacamento havia se retirado. Contudo, nas palavras do autor:
[...] no encontro evidncia alguma de que a propaganda surtiu
efeito sobre as tropas. Mas com certeza teve efeito sobre os oficiais
brancos. Os panfletos parecem ter causado um reordenamento de
pessoal. (DAVISON, 1983 p. 2)
[3] A maior parte da bibliografia aceita que desejabilidade e
indesejabilidade sejam moderadores do ETP, mas no somos os
nicos a apresentar algum ceticismo a esse respeito. Alguns autores
tm formulado algum ceticismo conceitual ou no encontraram
evidncias empricas suficientemente fortes para sustentar a varivel
da desejabilidade social. (LAMBE; MCLEOD, 2005)
[4] Nos inspira neste conceito a ideia de desacordos morais
persistentes sustentada por Gutmann e Thompson (1996).
[5] Neste captulo, procuramos usar posicionamento para o ato
realizado pelo entrevistado de localizao moral ou intelectual do
contedo de uma mensagem, enquanto reservamos posio para
a localizao do prprio entrevistado.
[6] Desvio padro (DP) de 6,311

WALDOMIRO VERGUEIRO E ROBERTO ELSIO DOS SANTOS

As histrias em quadrinhos como


objeto de estudo das teorias da
Comunicao
INTRODUO
Consideradas por seus detratores menos nobres do
que outros produtos culturais miditicos como as
produes cinematogrficas, reconhecidas como
uma forma de arte desde o incio do sculo XX ,
as
histrias
em
quadrinhos
despertavam
desconfiana, desdm ou ojeriza nos tericos da
comunicao. H menos de meio sculo, os
estudos paulatinamente passaram a analisar e a
valorizar as narrativas grficas sequenciais por seus
aspectos estticos e temticos.
Realizada no Observatrio de Histrias em
Quadrinhos da Escola de Comunicaes e Artes da
Universidade de So Paulo (ECA/USP), a pesquisa
exposta neste captulo, qualitativa e de nvel

exploratrio, objetiva detalhar a trajetria do


pensamento comunicacional em relao aos
quadrinhos. Para tanto, foi feito um levantamento
bibliogrfico com o intuito de identificar como os
prceres das teorias da Comunicao trataram esse
objeto de estudo. Na segunda parte do captulo
sero apresentadas as vises tericas dos autores
brasileiros mais expressivos nessa rea.
A pesquisa se justifica a partir da constatao de
que as histrias em quadrinhos, que j acumulam
quase dois sculos de existncia, ainda atraem a
ateno do pblico, chegando a alimentar com suas
narrativas
e
personagens
a
indstria
cinematogrfica e televisiva. Apesar de utilizar
frmulas consagradas, especialmente no que
concerne produo mais comercial (mainstream),
os quadrinhos propiciam aos artistas espao para
criao e experimentao esttica e narrativa.
Dessa forma, ao nos determos na elaborao
terica no mbito da Comunicao, podemos
entender como esse produto cultural deixou de ser
visto
como
prejudicial
(ao
ensino,
ao
comportamento, conscincia poltica etc.) e
passou a ser considerado como a nona arte. Das
posturas funcionalistas e crticas aos estudos
culturais, passando pela semiologia estruturalista,

as teorias da comunicao revelam vises


diferentes sobre esse fenmeno comunicacional.
DA REJEIO AO DESVELAMENTO
Os primeiros estudos dedicados s histrias em
quadrinhos datam dos anos 1940, quando as
publicaes
de
quadrinhos
(comic
books)
conquistavam
os
leitores
estadunidenses,
principalmente crianas, e atingiam alto e
crescente nmero de vendas, sobressaindo-se no
mercado editorial. As revistas coloridas e repletas
de aventuras de personagens advindos dos
desenhos animados (Mickey, Pernalonga, Tom e
Jerry) e principalmente de heris (Batman, Superhomem, Capito Amrica, entre outros), eram
bastante acessveis, sendo adquiridas por centavos
de dlar. Essas tiras publicadas em jornais e
suplementos dominicais eram apreciadas por
milhes de leitores. As distribuidoras (syndicates)
abasteciam as publicaes dos Estados Unidos e de
outros pases, inclusive do Brasil, com material
indito em grande quantidade.
Neste
contexto,
tericos
funcionalistas,
interessados em estudar os efeitos das mdias
massivas, da arte popular, sobre o pblico,
realizaram pesquisas e elaboraram teorias sobre os

quadrinhos. Um exemplo o trabalho de Bogart


(1973, p. 224), realizado no incio da dcada de
1950, que colheu opinies de mais de uma centena
de leitores do jornal tabloide News, de Nova
Iorque, e analisou as tiras nele publicadas. Ele
chegou concluso de que
[...] a leitura de histrias em quadrinhos constitui
uma experincia superficial. No descobrimos indcio
algum de que aqueles cujo interesse por elas
acentuado tenham mais razo ou desejo de se
entregarem a fantasias escapistas do que aquelas
cujo interesse reduzido. Alm disso, encontramos
elevada imbricao de leitura entre as histrias em
quadrinhos que so totalmente fantasiosas e as que
tratam de temas inteiramente realsticos.
Tanto podemos considerar a histria em quadrinhos
pelo aspecto recreativo, de jogo, quanto pelo
aspecto ideacional, de arte. Se utilizarmos o conceito
da reduo da tenso, a principal satisfao
proporcionada pelas histrias parece ser a que enseja
uma suspenso da monotonia do dia. A variedade
das suas imagens parece mais significativa do que o
verdadeiro contedo das mesmas imagens. Apenas
em extenso limitada e, s para certos leitores, as
histrias em quadrinhos parecem desempenhar uma
genuna funo catrtica atravs das fantasias que
despertam ou expressam.
As histrias em quadrinhos apresentam realmente
aos leitores fantasias de agresso, sexo e realizao,
e o seu interesse para determinados grupos de
leitores, pode ser compreendido parcialmente nesses
termos. Mas no h provas de que o leitor seja
levado s histrias em quadrinhos por um desejo

violento consciente ou inconsciente de sensaes


vicrias; parece antes que ele leva a elas os seus
impulsos normais, como faz em relao a outras
experincias da vida, e que as fantasias que elas
provocam, embora baseadas nesses impulsos, so
breves e tm uma baixa carga emocional. (BOGART,
1973, p. 233-234)

Se os tericos funcionalistas consideram que as


histrias em quadrinhos no exercem influncias
perniciosas sobre seus leitores, autores que
seguem a postura marxista denunciam seu
contedo carregado da viso ideolgica da classe
dominante do sistema e condenam nelas o que
julgam ser um pauperismo esttico. Adorno (1978,
p. 348, grifo nosso), pensador da Escola de
Frankfurt, ao comparar a televiso aos quadrinhos,
evidencia que
[...] h uma ligao entre a televiso e as histrias
em quadrinhos (funnies), aquelas sries de
imagenzinhas de aventura semicaricaturais, que
frequentemente apresentam as mesmas figuras de
episdio a episdio durante anos a fio. Tambm no
que diz respeito ao contedo h um parentesco
entre muitas novelas de televiso e os funnies. Em
contraposio, porm, a estes, que no aspiram ao
realismo, na TV a relao equvoca entre as vozes
reproduzidas de modo at certo ponto natural e as
figuras reduzidas permanece inconfundvel. Mas tais
relaes equvocas so prprias a todos os produtos
da indstria cultural, e recordam a iluso da vida
duplicada.

Seguindo essa perspectiva crtica, o psiquiatra


alemo
Fredric
Wertham
encabeou
uma
campanha contrria leitura de quadrinhos pelos
jovens, que quase levou censura dessa forma de
expresso e abalou o mercado editorial
estadunidense. Em 1954, Wertham publicou o livro
Seduction of the innocent, no qual estabelecia uma
relao direta entre leitura de quadrinhos e
delinquncia juvenil. Tendo trabalhado em
instituies que acolhiam jovens infratores, usou
essa experincia para fundamentar seu estudo. No
entanto, mais do que uma cruzada contra as
narrativas grficas sequenciais, esse autor inseriase no grupo de intelectuais que levantava
questionamentos quanto ao contedo da cultura de
massa e exposio do pblico a esses produtos.
Segundo Beaty (2005, p. 77), a concepo de
Wertham, a favor de uma poltica socialmente
engajada dedicada mudana progressista,
contrastava com o consenso poltico conservador
do ps-guerra. A postura do psiquiatra, que
estudava a cultura de massa pela Psiquiatria e a
partir de questes polticas, contrariava as
metodologias empiristas que dominariam o estudo
dos efeitos miditicos. Sua campanha contra os
quadrinhos, contudo, acentuou a condenao de

grupos mais reacionrios, ligados a religies ou a


associaes de pais e mestres, leitura das
revistas e tiras.
O pensamento dialtico continuou a repudiar a
histria em quadrinhos, considerada um produto
miditico veiculado viso de mundo da classe
dominante capitalista, contribuindo para a absoro
e reproduo alienada e passiva dessas ideias.
Nessa linha, na dcada de 1970, estudos sobre as
histrias em quadrinhos foram empreendidos no
Chile, durante o curto governo socialista de
Salvador Allende. Em um momento marcado pelo
acirramento da Guerra Fria, os tericos acusavam
as historietas, assim como outros produtos
massivos, de sustentculos ideolgicos do
imperialismo cultural. Exemplo dessa formulao
terica, o livro de Dorfman e Mattelart sobre os
quadrinhos protagonizados pelos personagens da
Disney pretendia ser uma denncia do uso de
personagens e narrativas voltadas para o pblico
infantil para incutir nos leitores o ponto de vista
dos Estados Unidos, a principal potncia poltica e
militar do Ocidente. Ao tratar dos personagens
terceiro-mundistas que aparecem nos quadrinhos
Disney, Dorfman e Mattelart (1980, p. 53-54, grifo
do autor) enfatizam que:

Enquanto os marines passam os revolucionrios pelas


armas, Disney os passa por suas revistas. So duas
formas de assassinato: pelo sangue e pela violncia.
Disney tampouco inventou os habitantes dessas
terras; s lhes imps um modelo prprio do que
deveriam
ser,
atores
em
seu hit-parade,
decalcomanias e tteres em seus palcios de fantasia,
bons e inofensivos selvagens at a eternidade.
[...] Quando se diz algo a respeito do meninoselvagem-bonzinho nestas revistas, o objeto em que
na realidade se est pensando o povo marginal.

Dorfman e Mattelart (1980, p. 127) no criticam


os quadrinhos Disney por serem porta-vozes do
American way of life, mas por representarem o
American dream of life, o modo por que os EUA se
sonham a si mesmo, se redimem, o modo por que
a metrpole nos exige que representemos nossa
prpria realidade, para a sua prpria salvao.
Da mesma forma, Dorfman e Jofr (1978, p.
163-164), ao estudarem os quadrinhos de heris,
como Zorro o Cavaleiro Solitrio (Lone Ranger),
que percorre o Oeste dos Estados Unidos fazendo
justia e combatendo o crime , atribuem ao
personagem o papel de defensor da ideologia
burguesa, que imitado pelo pblico, identificando
dois tipos de leitura, uma ingnua e outra feita por
uma elite intelectual. Na primeira, o leitor assume
os valores do super-heri e vive a historieta desde

esta perspectiva, em um caminho j traado pela


ideologia. E ressaltam que esse o procedimento
ideolgico habitual que encontramos na histria em
quadrinhos tradicional burguesa.
Distante das discusses polticas, o canadense
Marshall McLuhan formulou uma teoria da
Comunicao baseada no relacionamento entre os
seres humanos e as mdias. Para ele, os meios so
extenses do corpo humano e atuam sobre um ou
mais sentidos (viso, audio, tato, paladar e
olfato). pelo uso dos sentidos que as pessoas
percebem e entendem o ambiente que as cercam.
O autor relaciona a imprensa, os quadrinhos e a
televiso com o que considera imagens de baixa
definio e baixa informao visual. No seu
entender (1979, p. 189), as histrias em
quadrinhos possuem uma forma de expresso
altamente participante, perfeitamente adaptada
forma em mosaico do jornal. Sobre as acusaes
dirigidas aos quadrinhos, afirmou que:
[...] os ancios da tribo, que jamais haviam
percebido que o jornal dirio era to estranho quanto
uma exposio de arte surrealista, dificilmente
poderiam perceber que os livros de estrias em
quadrinhos eram to exticos quanto iluminuras do
sculo VIII. No tendo percebido nada sobre a
forma, nada podiam perceber do contedo. Violncia
e agresso era tudo o que percebiam. Em

consequncia, com uma lgica literria ingnua,


prepararam-se para ver a violncia inundar o mundo.
Como alternativa, atribuam os crimes s estrias em
quadrinhos. (McLUHAN, 1979, p. 193, grifo do autor)

Nos anos 1960, com os estudos da linguagem


dos produtos miditicos empreendidos por tericos
estruturalistas europeus, houve o reconhecimento
das histrias em quadrinhos como forma de
expresso com organizao diferenciada de outras
narrativas e com elementos caractersticos que
possibilitam ao leitor criar os nexos entre as
imagens e textos dispostos nas pginas, no
percurso de gerao de sentidos. No bojo da
discusso sobre a validade e o papel da cultura de
massa no mbito social, Umberto Eco dedicou
vrios estudos sobre quadrinhos, com destaque
para Leitura de Steve Canyon, no qual o terico
italiano, utilizando a metodologia da anlise
estrutural da mensagem, identifica uma semntica
da estria em quadrinhos, um repertrio
simblico constitudo por elementos iconogrficos
que compem uma trama de convenes mais
amplas (1979, p. 144-145), como as metforas
visuais e bales de fala ou pensamento. Ao
desnudar os mecanismos da linguagem dos
quadrinhos, Eco possibilitou a compreenso mais
ampla de seu potencial narrativo e esttico,

abrindo caminho para outros pesquisadores,


inclusive brasileiros.
Partindo dos mesmos paradigmas tericos,
estruturalista e semiolgico, o francs Pierre
Fresnault-Deruelle tambm analisou os elementos
simblicos das histrias em quadrinhos. Ao estudar
o espao nos quadrinhos como uma projeo
verossmil, por exemplo, ele identificou trs
subconjuntos que formam o microespao em que
os personagens se relacionam: o espao sonoro
(marcado pela presena de bales e de palavras
trocadas pelos locutores), o espao visual
(subdividido em duas partes, a forma da expresso
e a forma do contedo) e o espao ttil no qual os
personagens entram em contato uns com os
outros. Sobre o ltimo, afirmou que quando dois
personagens colidem ou se atacam violentamente,
a expresso grfica dos choques e a variao do
quadro da imagem constituiro matria para o
cdigo icnico; as onomatopeias [...] remetero ao
cdigo lingustico. (FRESNAULT-DERUELLE, 1980,
p. 127-145)
Os estudos culturais se constituram como um
campo acadmico interdisciplinar na dcada de
1960, com os trabalhos dos tericos ingleses do
Birmigham Centre for Contemporary Cultural

Studies,
constitudo
na
Universidade
de
Birmingham. Beberam de muitas fontes, com
enfoques e perspectivas tericas diversas, tendo
como foco atividades do cotidiano como elementochave para estudo da dinmica poltica e razes
histricas
dos
fenmenos
culturais
contemporneos. Os estudos culturais combinaram
diversas teorias para estudo desses fenmenos,
desenvolvendo
conceitos
bsicos
para
entendimento do processo de produo cultural.
Especialmente importantes para o movimento dos
estudos culturais foram os conceitos de identidade
(GILROY, 2006; HALL, 2003) e hegemonia, este
ltimo proposto originalmente por Antonio Gramsci.
Para essa disciplina, jamais foi problema trabalhar
com diferentes teorias, especialmente os estudos
de gnero, de mdia, a teoria marxista, a literria e
o criticismo histrico.
A aproximao entre as histrias em quadrinhos
e os estudos culturais ocorreu quase naturalmente,
na medida em que um dos preceitos dessa escola
terica a busca de utilizao dos mtodos e
instrumentos da crtica textual e literria nos
produtos da cultura de massa. (MATTELART;
NEVEU, 2004, p. 56) Segundo Mark C. Rogers
(2001, p. 93-94), foram trs os principais temas

nos estudos culturais que envolveram as histrias


em quadrinhos:
Primeiramente, existe uma preocupao com o meio
como um local para a produo de ideologia e a
manuteno de hegemonia. Os quadrinhos so
considerados em termos dos valores que eles
promovem. Em segundo lugar, existe um impulso
para recuperar a cultura de massa. Este se
manifesta em tentativas para defend-los de crticas
generalizadas ao meios de massa como destrutivos
da cultura e tambm, em tentativas para entender
os significados que eles tm na vida dos leitores. Por
ltimo, os quadrinhos tm sido envolvidos, como
parte de uma cultura maior, em argumentos que no
focam especificamente os quadrinhos.[1]

Tais categorias no so estticas, com a maioria


dos estudos sobre quadrinhos abordando mais do
que um desses temas. Nesse sentido, o autor
destaca a pesquisa de Martin Barker relacionando
quadrinhos e ideologia, sobre os quadrinhos de
terror e sobre a produo quadrinstica inglesa
direcionada a leitores adultos, alm do trabalho de
Robert Reynolds sobre os super-heris dos
quadrinhos, como basilares para entender como os
estudos culturais podem se debruar sobre as
histrias em quadrinhos.
O PENSAMENTO COMUNICACIONAL BRASILEIRO E
AS HISTRIAS EM QUADRINHOS

No Brasil, os estudos e as pesquisas sobre


quadrinhos contabilizam quase meio sculo, mas
essa trajetria terica pouco conhecida, inclusive
por muitos que aprofundam as investigaes sobre
esse produto narrativo e artstico. Por esse motivo,
sero abordadas a seguir as concepes tericas
formuladas por autores brasileiros em relao s
histrias em quadrinhos.
A aproximao terica aos quadrinhos em
territrio brasileiro ocorreu, inicialmente, a partir
do esforo de entusiastas e de produtores
engajados na valorizao de seu trabalho artstico
e na defesa do quadrinho nacional. Nesse sentido,
deve-se salientar a realizao, em 1951, na cidade
de So Paulo, da I Exposio Internacional de
Histrias em Quadrinhos, organizada por um grupo
de admiradores dos quadrinhos. Composto por
lvaro de Moya, Reynaldo de Oliveira, Syllas
Roberg, Jayme Cortez e Miguel Penteado, esse
grupo buscou tornar a exposio a primeira grande
abordagem favorvel aos quadrinhos aberta ao
grande pblico, destacando originais de autores
norte-americanos consagrados e anlises crticas
realizadas pelos organizadores. Alm de ter sido
um evento de forte impacto miditico, tambm
representou a primeira tentativa de dedicar aos

quadrinhos um olhar mais cientfico, buscando o


aporte de teorias de anlise da imagem utilizadas
no cinema e identificando caractersticas da
produo brasileira. Partiu desses desbravadores a
identificao de que Chiquinho, um dos mais
populares personagens da revista O Tico-Tico , era
a verso brasileira de Buster Brown, criao do
norte-americano Richard Felton Outcault, no incio
do sculo XX. (MOYA, 2012, p. 52)
Todos os envolvidos na organizao da
exposio de 1951 continuaram ligados s histrias
em quadrinhos nas dcadas seguintes. Deles, no
entanto, lvaro de Moya foi o nico a ingressar na
docncia universitria, atuando como professor
colaborador na Escola de Comunicaes e Artes da
Universidade de So Paulo (ECA/USP) de 1970 a
1991, quando se aposentou. Apesar de no seguir
a carreira docente formal, no deixou de realizar,
durante esse perodo, intenso trabalho de
investigao
independente
sobre
o
meio,
dedicando-se aos aspectos histricos e de
desenvolvimento da indstria dos quadrinhos, com
especial ateno aos quadrinhos brasileiros. Moya
publicou o resultado de suas reflexes em diversos
livros de autoria prpria (1970, 1996, 2003) ou em
parceria com outros autores (CIRNE et al., 2002),

bem como em dezenas de artigos em jornais e


revistas nacionais e estrangeiras.
Ainda que carente, sob certos aspectos, de
aprofundamento e rigor cientficos, a produo de
lvaro de Moya foi importante por incentivar e
praticamente estabelecer o modelo para toda a
produo diletante sobre histrias em quadrinhos
no Brasil, como as obras de Diamantino da Silva
(1976, 2003), Ionaldo Cavalcanti (1977) e Roberto
Guedes (2005). Por outro lado, tambm
influenciado pelo trabalho de Moya, mas se
localizando em nvel superior ao dos autores
recm-mencionados mais prximo de um
trabalho independente de pesquisa sobre
quadrinhos
do
que
de
um
diletantismo
desinteressado , esto os livros do jornalista
Gonalo Silva Jnior, que assina somente Gonalo
Jnior, relacionados ao desenvolvimento da
indstria de quadrinhos no Brasil (2004, 2010).
Enveredando pelas trilhas do jornalismo literrio,
esse autor produz uma narrativa consistente, que
historia, de forma at romntica, os percalos e
dificuldades para criao no Brasil de uma indstria
autctone de histrias em quadrinhos.
Um enfoque histrico relacionado produo
brasileira, embora com vis mais comedido quando

comparado ao tom utilizado pelos organizadores da


I Exposio Internacional de Histrias em
Quadrinhos, teve o escritor cearense Herman Lima
em sua obra magistral, Histria da Caricatura no
Brasil, na qual, em quatro volumes, realiza um
longo e profundo levantamento da produo de
humor grfico e caricatura do sculo XIX e da
primeira metade do sculo XX no pas.
Deve-se reconhecer que o livro de Herman Lima
estava mais interessado em historiar a evoluo do
humor grfico nos jornais brasileiros, abordando as
histrias em quadrinhos de forma marginal. Mas
elas esto l, nas obras de autores que transitaram
pelos dois gneros, muitas vezes revezando sua
produo artstica em charges, cartuns, quadrinhos
e ilustraes diversas. Entre esses autores esto
nomes consagrados no pas, como Angelo Agostini,
Luis S, Carlos Estevo, J. Carlos, entre outros. O
trabalho de Herman Lima, devido a sua
exaustividade, permaneceu durante muitos anos
praticamente como uma estrela isolada no
firmamento da produo cientfica brasileira sobre
histrias em quadrinhos. Pode-se dizer que apenas
na ltima dcada possvel identifica obras que
rivalizam com a dele, produzidas por Lailson de
Holanda Cavalcanti (2005), publicado em espanhol,

e o de Luciano Magno (2012), esta ltima o


primeiro volume de uma obra ambiciosa em vrios
volumes, contemplada no Programa Petrobrs
Cultural com prmio por incentivo preservao e
memria da cultura brasileira.
A primeira pesquisa formal sobre histrias em
quadrinhos em ambiente universitrio no Brasil foi
coordenada por Jos Marques de Melo, no Centro
de Pesquisas da Comunicao Social da Faculdade
de Jornalismo Csper Lbero, na cidade de So
Paulo. Foi realizada em 1967 e pode-se dizer que
se encontra inserida na linha funcionalista dos
estudos de Comunicao. Nela, o grupo de
estudantes coordenado por aquele que veio a ser
nas dcadas seguintes um dos mais importantes
nomes dos estudos de Comunicao no pas fez um
diagnstico circunstanciado da produo de revistas
em quadrinhos disponibilizadas pela indstria
brasileira no final da dcada de 1960:
Operacionalmente, o projeto compreendeu dois tipos
de anlises. A primeira, junto aos editores, consistiu
no levantamento de uma srie de informaes sobre
revistas editadas, tiragem, distribuio, pessoal
tcnico, processo produtivo, normas e cdigos de
tica, dados sobre o pblico leitor. A segunda etapa,
adotando um tratamento metodolgico de natureza
qualitativa, envolveu a anlise de contedo de 25
revistas, selecionadas aleatoriamente entre as

editadas pelas empresas brasileiras do ramo. Nessa


anlise, procurou-se caracterizar a mensagem
enviada ao pblico, tipificando-a sociolgica,
psicolgica, antropolgica e linguisticamente. (MELO,
1970, p. 195, grifo do autor)

Os resultados do estudo foram surpreendentes,


deixando evidente o impacto que os produtos da
nona arte tinham no mercado editorial brasileiro da
poca. Os dados mostravam, por exemplo, que
muitos ttulos atingiam tiragens expressivas, com
os ttulos de Walt Disney Mickey, Tio Patinhas,
Pato Donald e Z Carioca , publicados pela Editora
Abril, de So Paulo, alcanando, juntos, quase
1,114 milho de exemplares. (MELO, 1970, p. 205)
Pode-se afirmar que, no Brasil, a dcada de 1970
marcou a incluso efetiva das histrias em
quadrinhos no campo das cincias da Comunicao.
Como apoio a essa afirmao pode-se apontar a
criao de duas disciplinas de graduao
especialmente dedicadas a esse tema em
programas de ensino de duas universidades
conceituadas, a Federal de Braslia (UnB) e a de
So Paulo (USP). A primeira disciplina iniciou-se em
1970, ministrada pelo professor Francisco Arajo, e
durou poucos anos. A segunda, ministrada na
Escola de Comunicaes e Artes (ECA/USP),
comeou em 1972 pelas mos da professora Sonia

Maria Bibe Luyten, sob influncia direta de Jos


Marques de Melo, ento chefe do Departamento de
Jornalismo e Editorao. Denominada Editorao
de Histrias em Quadrinhos, continua a ser
ministrada at os dias de hoje. (VERGUEIRO;
SANTOS, 2006; VERGUEIRO, 2013)
A dcada de 1970 foi marcada pela grande
influncia da postura marxista no estudo das
histrias em quadrinhos no Brasil, com a
predominncia, na grande maioria de programas de
graduao e ps-graduao em Comunicao, de
professores
defensores
dos
conceitos
e
caractersticas da indstria cultural, desenvolvidos
pelos tericos da Escola de Frankfurt. No tocante
aos quadrinhos, o mais influente terico dessa linha
de pensamento cientfico no Brasil foi sem dvida
Moacy Cirne, professor do Departamento de
Comunicao Social da Universidade Federal
Fluminense, que nos anos 1970 participou
ativamente da Revista de Cultura Vozes, uma das
mais prestigiadas revistas de contedo cultural na
poca. Como menciona Cirne (2013, p. 42-43) em
seu depoimento no livro Os pioneiros no estudo de
quadrinhos no Brasil:
Nela, dez vezes por ano, como secretrio de
redao, editei vrios nmeros monotemticos:

nmeros
sobre indstria cultural,
semitica,
semntica e estruturalismo, poema/processo,
vanguardas experimentais, fico cientfica, psmodernismo. De igual modo, nmeros sobre a
ideologia dos quadrinhos, o mundo dos super-heris,
e assim por diante.

Foram muitas e variadas as contribuies de


Cirne publicao da Editora Vozes. Nelas, buscou
muitas vezes contrapor-se a posturas crticas em
relao
aos
quadrinhos
que
considerava
reacionrias, pautando suas observaes por um
engajamento terico s proposies esquerdistas.
Em anlise crtica da produo do jornalista Srgio
Augusto, classificou o trabalho do primeiro
colunista de quadrinhos do Brasil como obedecendo
[...] a todo um contexto ideolgico, contexto que
produz filosofias burguesas que s sabem gerar
respostas reacionrias s produes epistemolgicas,
no sabendo distinguir (e no apenas por ignorncia
ou m-f; tambm por uma ideologia de classe) o
radicalmente
novo
dos
possveis
equvocos
tecnicistas. (CIRNE, 1968, p. 315)

Em outro texto, ao analisar os aspectos


ideolgicos dos quadrinhos de fico cientfica,
deteve-se nas relaes sociais subjacentes ao
Planeta Mongo, palco das aventuras do heri
interplanetrio Flash Gordon, denunciando a
inconsistncia de seu projeto histrico e afirmando
que

A estrutura poltica e social do planeta Mongo, onde


desponta o ditador Ming cujos traos orientais j
so uma marca ideolgica , reveste-se de uma
contradio engendrada pela alta tecnologia da capital
Mingo, sem que haja um relacionamento conflitante
entre as diversas camadas sociais que a habitam, a
no ser em nvel de realeza. Os demais reinos de
Mongo (Corlia, Arboria, Frigia, Tropica) implicam as
mesmas lacunas de complexo social. (CIRNE, 1972,
p. 374)

Sua crtica mais contundente, no entanto, recai


sobre o exemplo mais caracterstico do quadrinho
norte-americano, o super-heri, para quem tem
palavras bastante acerbas, afirmando que
Engendrado pelas profundas contradies da
sociedade americana, o super-heri, em sua forma
ideolgica mais radical (Super-Homem, Capito
Amrica, Homem de Ferro, Capito Marvel), um
produto nazistificante que, ao surgir, se volta contra
o nazismo por um imperativo poltico, assim como
mais tarde se voltar contra o socialismo por um
imperativo ideolgico.
Criado em funo da engrenagem que movimenta as
coordenadas ideolgicas da sociedade de consumo, o
super-heri constri no lanamento de cada novo gibi
as suas prprias estruturas mitolgicas. O mito do
super-heri, e mais particularmente o do SuperHomem, o mito da classe mdia americana em
busca da auto-afirmao, identificando-se com a
possibilidade de usufruir de uma dupla identidade.
(CIRNE, 1971, p. 300)

Essa mesma postura crtica Cirne colocou em

praticamente todos os seus livros. Escritor prolfico,


debruou-se sobre vrios aspectos dos quadrinhos,
atingindo seu pice, em termos de pensamento
dialtico, na obra Uma introduo poltica aos
quadrinhos, publicada em 1982, na qual rene
alguns textos antigamente disponibilizados na
Revista de Cultura Vozes, juntamente com outros
especialmente preparados para o volume. A
simples enunciao dos ttulos dos seis primeiros
captulos evidencia a tnica do livro: Ideologia e
crtica dos quadrinhos, O quadrinheiro e a
responsabilidade social do artista, Os quadrinhos
e a luta dos trabalhadores, Por um quadrinho
politicamente combativo, A ideologia dos superheris e Mickey, Tio Patinhas e o imperialismo
cultural. Logo nas primeiras linhas do livro, deixa
bem clara sua posio:
No existem quadrinhos inocentes, assim como no
existem leitura inocente (cf. Althusser) e livros
inocentes (cf. Macherey). As estrias [sic] em
quadrinhos procuram ocultar sua verdadeira
ideologia atravs de frmulas temticas muitas vezes
simples ou simplistas, fazendo da redundncia (a
repetio em srie imposta pela engrenagem
operacional da cultura de massa) o lugar de sua
representao: Tio Patinhas, Mickey, Zorro,
Fantasma, Tarzan, Super-Homem, Batman, Capito
Amrica, Capito Marvel, Homem de Ferro, Homem
de Borracha, Brotoeja, Riquinho para citar apenas
alguns exemplos conhecidos expressam uma

ideologia conservadora e/ou reacionria. (CIRNE,


1982, p. 11)

Cirne refletiu, melhor do que ningum, a


influncia no pas da produo crtica de Ariel
Dorfman e Armand Mattelart, cuja obra, Para ler o
Pato Donald tornou-se leitura de cabeceira, na
dcada de 1960, de todo intelectual que buscasse
se firmar como de esquerda. Da mesma forma
responderam a essa influncia autores como
Dagomir Marquezi (1980) e Jos de Souza Martins
(1982).
Pode-se afirmar que Sonia Maria Bibe Luyten
tambm uma pesquisadora que, no Brasil, iniciou a
sua abordagem das histrias em quadrinhos a
partir da perspectiva crtica, ainda que em nvel
bem mais moderado que aquele adotado por Cirne.
Seu trabalho se desenvolveu inicialmente a partir
de sua atuao frente da j mencionada
disciplina de graduao Editorao de Histrias em
Quadrinhos, na Escola de Comunicaes e Artes
(1985, 1989), e, posteriormente, com a pesquisa
que desenvolveu em seu doutorado na mesma
escola, que versou sobre mangs, as histrias em
quadrinhos japonesas. Nessa obra, Luyten (2000)
deu especial ateno forma como esse estilo de
quadrinhos foi desenvolvido no Brasil por

descendentes dos primeiros imigrantes japoneses


no Brasil.
Com intensa atuao acadmica, Sonia Luyten
teve importante papel no desenvolvimento daquilo
que
poderamos
denominar
como
uma
mentalidade de pesquisa em torno dos
quadrinhos, viabilizando a constituio do primeiro
acervo de histrias em quadrinhos em ambiente
universitrio no Brasil, o Ncleo de Documentao
de Histrias em Quadrinhos da Escola de
Comunicaes e Artes da Universidade de So
Paulo, obtido a partir da aquisio da coleo de
um particular e depois incorporado biblioteca da
escola. Sonia Luyten tambm criou o primeiro
ncleo de pesquisa sobre mang no Brasil. Sobre
isso, ela relembra:
Do curso de Histrias em Quadrinhos saiu tambm o
primeiro ncleo de pesquisas sobre mang, a partir
da edio histrica da Quadreca na dcada de 1970.
Deste grupo saiu a Abrademi Associao Brasileira
de amigos de Mang e Ilustrao. E a Abrademi
promoveu vrios encontros como o Mangacom que
foi a semente inicial de todos os outros que hoje
abrigam mais de 100 mil participantes disseminando a
Cultura Pop Japonesa. (LUYTEN, 2013, p. 51-52)

No entanto, em paralelo influncia da anlise


marxista das histrias em quadrinhos, tambm se
pode notar, no Brasil, a da anlise estruturalista

dos quadrinhos, originalmente desenvolvida por


tericos europeus, especialmente por autores como
Umberto Eco (1979) e Vladimir Propp (1984). O
pesquisador brasileiro que estabeleceu as bases
dessa abordagem em relao s histrias em
quadrinhos foi, sem dvida, Antonio Luiz Cagnin,
com sua obra Os quadrinhos, publicada em 1975 e
includa, com justia, na prestigiada Coleo
Ensaios, da Editora tica. Produzido originalmente
como dissertao de mestrado na Faculdade de
Filosofia, Letras e Cincias Humanas da USP, sob a
orientao do professor Antonio Cndido, o livro de
Cagnin tornou-se referncia para todos aqueles
que, no pas, buscaram analisar as histrias em
quadrinhos sob o ponto de vista de sua estrutura
narrativa ou se debruaram sobre os elementos
constitutivos de sua linguagem, como, por
exemplo, Orlando Miranda (1978), Roberto Elsio
dos Santos (2002) e Paulo Ramos (2009).
Posteriormente publicao de sua obra, Cagnin,
aps ingressar como professor de Semiologia da
Imagem na Escola de Comunicaes e Artes da
USP, dedicou-se pesquisa sobre o incio das
histrias em quadrinhos no Brasil, buscando
identificar, na obra dos primeiros autores do gnero
no pas especialmente naquela produzida pelo

talo-brasileiro Angelo Agostini, durante a segunda


metade do sculo XIX e incio do XX , elementos
que comprovassem o pioneirismo dos brasileiros na
construo da nona arte (2005). Infelizmente, o
autor faleceu em outubro de 2013, antes de
conseguir organizar os dados coletados em mais de
30 anos de pesquisa, que permanecem inditos at
o momento. Em depoimento ao livro Os pioneiros
no estudo de quadrinhos no Brasil, Cagnin (2013)
ilustra essa fascinao por Angelo Agostini,
salientando que
O encontro com a obra publicada de Agostini me
marcou. Ele estava ali, em letra e arte e muito
antes, a contradizer e negar, em nosso lugar, que as
histrias em quadrinhos tenham sido inventadas
pelos americanos. Os fs dos gibis podem mesmo se
vangloriar e dizer, de boca cheia, que a primeira
histria em quadrinhos do Brasil, e uma das primeiras
do mundo, foi feita por Angelo Agostini.

Com a criao da Sociedade Brasileira de


Estudos
Interdisciplinares
de
Comunicao
(Intercom), em 1977, liderada por Jos Marques de
Melo, as histrias em quadrinhos passaram a ter
mais um espao privilegiado para discusso
acadmica no pas. Esse espao foi formalmente
ocupado a partir de 1995, quando, no XVIII
Congresso Anual da entidade, em Aracaju, foi
criado o grupo de trabalho (GT) Humor e

Quadrinhos, destacando-se, desde o incio, pela


grande disputa de textos e impressionante
afluncia de pblico. (LOPES, 1997) Nota-se, a, o
predomnio da Escola Midiolgica do canadense
Marshall McLuhan, com a especial caracterstica de
que grande parte dos membros do GT era
composta por acadmicos com um p na produo
de histrias em quadrinhos. Foram esses os casos
de Flvio Mrio de Alcntara Calazans, Edgar
Franco, Gazy Andraus e Ivan Carlo Andrade de
Oliveira. Com o correr dos anos e diferentes
coordenaes, at sua juno ao grupo de pesquisa
de produo editorial, no incio dos anos 2000, a
influncia dos estudos midiolgicos foi se
dispersando, podendo-se notar o aparecimento
cada
vez
mais
frequente
de
pesquisas
desenvolvidas sob a gide dos estudos culturais,
especialmente da Escola Latino-americana.
A influncia mais acentuada dos estudos
culturais nas pesquisas brasileiras sobre histrias
em quadrinhos foi um reflexo do avano dessa
abordagem nos programas de ps-graduao do
pas, principalmente a partir dos trabalhos de
tericos como Nestor Garca Canclini. Nesse
sentido, pode-se dizer que um dos expoentes dessa
abordagem foi o Programa de Ps-graduao em

Cincias
da
Comunicao
da
Escola
de
Comunicaes e Artes da Universidade de So
Paulo, especialmente as pesquisas desenvolvidas
no Ncleo de Pesquisas de Histrias em
Quadrinhos, atual Observatrio de Histrias em
Quadrinhos, criado em 1990. Exemplos disso so as
vrias dissertaes e teses oriundas de
pesquisadores do Observatrio nos ltimos anos,
como as de Gazy Andraus (2006), sobre a
integrao das histrias em quadrinhos ao ensino
universitrio (2006); a de Nobuyoshi Chinen
(2013), sobre a representao de negros e
afrodescendentes nos quadrinhos brasileiros; a de
Eloar Guazzelli Filho (2009), sobre a construo do
anti-heri brasileiro na obra quadrinstica de
Renato Canini; e a de Gisa Fernandes DOliveira
(2009), versando sobre as construes e
reconstrues identitrias nas histrias em
quadrinhos.
CONCLUSO
Pode-se perceber que as principais linhas tericas
usadas
nos
estudos
da
Comunicao
(funcionalismo,
marxismo,
midiologia,
estruturalismo e estudos culturais) influenciaram as
pesquisas e anlises realizadas por tericos

brasileiros. Em determinados momentos, algum


desses modelos destacou-se, a exemplo do
pensamento crtico marxista, que, na dcada de
1970, marcada pelo autoritarismo e pela censura,
tornou-se o paradigma que abalizou as apreciaes
sobre as narrativas grficas sequenciais, com
destaque para seu contedo ideolgico.
No entanto, faz-se necessrio destacar que,
embora o referencial terico fosse tomado de
escolas ou de autores estrangeiros, os tericos
brasileiros tm dado grande contribuio para o
estudo do quadrinho nacional, seja pela anlise da
linguagem, pela pesquisa documental e histrica ou
pela pesquisa que evidencia a trajetria de artistas
e pela compreenso dos contedos e contextos da
produo das narrativas grficas sequenciais do
pas.
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<http://www.unirevista.unisinos.br/_pdf/UNIrev_VergueiroSantos.PDF>.
Acesso em: 9 out. 2013.
[1] First, there is a concern with the media as a site for the production
of ideology and the maintenance of hegemony. Comics here are
considered in terms of the values they promote. Second, there is an
impulse to recuperate mass culture. This manifests itself in attempts
to defend from generalized critiques of the mass media as
destructive of culture and also, in attempts to understand the
meanings they have had in the lives of readers. Lastly comics have
been involved as part of the larger culture, in arguments that do not
focus specifically on comics.

Autores
ALICIANNE GONALVES DE OLIVEIRA
Graduada em Comunicao Social/Jornalismo e
mestre em Comunicao pela Universidade Federal
do Cear. jornalista licenciada da mesma
instituio e doutoranda em Comunicao Social na
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Integrante do Grupo de Pesquisa em Mdia e Esfera
Pblica (EME/UFMG) e do Grupo de Pesquisa em
Poltica e Novas Tecnologias (Ponte/UFC). Pesquisa
temas
da
interface
movimentos
sociais,
representao poltica e relaes tnico-raciais.
NGELA MARQUES
Doutora em Comunicao Social pela Universidade
Federal de Minas Gerais, com estgio ps-doutoral
junto ao Groupe de Recherche sur les Enejeux de la
Communication (Gresec), da Universit Stendhal.
Professora do Programa de Ps-graduao em
Comunicao Social da Universidade Federal de
Minas Gerais. Organizou e traduziu os textos que

integram a obra A deliberao pblica e suas


dimenses sociais, polticas e comunicativas
(Autntica, 2009). co-organizadora, junto com a
professora Heloiza Matos (ECA-USP), do livro
Comunicao
e
Poltica:
capital
social,
reconhecimento e deliberao pblica (Summus,
2011). Estuda questes ligadas deliberao
pblica, participao cvica de atores subalternos,
formao de esferas pblicas polticas, com
destaque para polticas pblicas e cidadania;
reconhecimento social e processos deliberativos online.
BENJAMIM PICADO
Doutor em Comunicao e Semitica pela Pontifcia
Universidade Catlica de So Paulo, com tese sobre
o horizonte lgico das teorias da significao na
tradio filosfica do Pragmatismo. Por 20 anos, foi
professor da Faculdade de Comunicao da
Universidade Federal da Bahia, na qual atuou como
docente/pesquisador no Programa de Psgraduao
em
Comunicao
e
Cultura
Contemporneas da mesma instituio. Atualmente
membro do Departamento de Estudos Culturais e
Mdia da Universidade Federal Fluminense e
docente permanente do Programa de Ps-

graduao em Comunicao da mesma instituio,


trabalhando com nfase no estudo sobre as
matrizes discursivas do universo visual na cultura
contempornea, nas perspectivas terico-analticas
da narratologia, da semitica e da esttica.
bolsista de Produtividade em Pesquisa 2 do CNPq,
com projetos na rea de estudos do humor grfico.
BRULIO DE BRITTO NEVES
Radialista, pesquisador em residncia ps-doutoral,
atravs do Programa Nacional de Ps-doutorado da
Capes. Doutor em Multimeios pela Universidade
Estadual de Campinas, Mestre em Comunicao
Social na Universidade Federal de Minas Gerais.
Desenvolve pesquisas e projetos sobre prticas
documentrias e poticas poltico-prefigurativas,
colaborando com os Grupos de Pesquisa em Mdia e
Esfera Pblica (DCS/UFMG), Democracia Digital
(DCP/UFMG)
e
Poticas
Audiovisuais
Contemporneas (DCS/PUC-Minas). participante
da
Associao
Elstica,
uma
organizao
autogestionria experimental de pesquisa e
produo tecnocultural e vem desenvolvendo
mtodos de anlise dos potenciais deliberativos de
prticas, ferramentas e ambientes audiovisuais e
on-line. Seus trabalhos tm sido publicados nas

revistas Semeiosis, Galxia e Doc on-line.


CIRO MARCONDES FILHO
Professor titular da Escola de Comunicaes de
Artes da Universidade de So Paulo (ECA-USP),
doutor pela Universidade de Frankfurt, ps-doutor
pela Universidade Stendhal, de Grenoble. Criador
da Nova Teoria da Comunicao, publicou, entre
2010 e 2011, cinco tomos da obra O princpio da
razo durante. Neste ano, est lanando Da arte de
envenenar dinossauros (Casa das Musas), e Das
coisas que nos fazem pensar (Ideias e Letras);
Dicionrio da Comunicao (Paulus). Titular da
Ctedra Unesco Jos Reis de Divulgao Cientfica;
coordena o Ncleo FiloCom, na ECA-USP; criador da
Rede Nacional de Grupos de Pesquisa em
Comunicao. Articulista da revista Caros amigos.
DANILA CAL
Danila Cal professora do Curso de Comunicao
da Universidade da Amaznia (Unama) e
pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Mdia e
Esfera Pblica (EME/UFMG). Possui mestrado e
doutorado em Comunicao e Sociabilidade
Contempornea pela Universidade Federal de

Minas Gerais (UFMG). vencedora na categoria


dissertao do Concurso Nacional de Teses,
Dissertaes e Monografias (defendidas entre 1990
e 2007) sobre direitos da criana promovido pela
Andi Comunicao e Direitos (Agncia de Notcias
dos Direitos da Infncia). Tem artigos cientficos
publicados em revistas como Journal of Political
Power (Taylor & Francis) e E-Comps.
DIGENES LYCARIO
Bacharel em Comunicao Social, com habilitao
em jornalismo pela Universidade Federal do Cear,
mestre e doutorando pelo Programa de Psgraduao
em
Comunicao
Social
pela
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Foi
bolsista de doutorado Capes de 2010 a 2014.
Desde 2008 membro do Grupo de Pesquisa em
Mdia e Esfera Pblica (UFMG), tendo tambm
realizado estgio-sanduche no Programa de Psgraduao da Universidade Federal da Bahia
(2008) e na Universidade de Mannheim (20122013). Tem artigos publicados em revistas como
Contempornea e Comunicao & Poltica.
DULCILIA HELENA SCHROEDER BUITONI

Graduada em Jornalismo pela Escola de


Comunicaes de Artes da Universidade de So
Paulo (ECA-USP); mestrado, doutorado e livredocncia pela mesma universidade. Professora
titular de Jornalismo (ECA-USP, 1991). Trabalhou
principalmente em revistas (Editora Abril). Docente
da ECA-USP de 1972 a 2005, atuando na psgraduao desde 1981. Professora permanente do
Programa de Ps-graduao em Comunicao da
Faculdade Csper Lbero desde 2006. Livros:
Mulher de papel (Loyola, 1981); Imprensa feminina
(tica, 1988); O quintal mgico (Brasiliense, 1988)
e De volta ao quintal mgico (gora, 2006), ambos
sobre educao infantil; Mulher de papel: a
representao da mulher na imprensa feminina
brasileira (2 edio ampliada, Summus, 2009);
Fotografia e jornalismo: a informao pela imagem
(Saraiva, 2011). Criadora e coordenadora do Grupo
de Pesquisa Comunicao e Cultura Visual do CNPq.
Professora visitante na Universidad Autnoma de
Barcelona em 1993 e 2000.
EDNA MIOLA
Professora do Programa de Ps-graduao em
Comunicao da Universidade Federal de Sergipe
(UFS). doutora em Comunicao Social pela

Universidade Federal de Minas Gerais. mestre em


Comunicao e Cultura Contemporneas pela
Universidade Federal da Bahia e graduada em
Comunicao Social/Publicidade e Propaganda pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
vencedora do Prmio Capes de Tese 2013 (Cincias
Sociais Aplicadas I) e editora adjunta da revista
Compoltica. Colabora o Grupo de Pesquisa em
Marketing (UFS), o Grupo de Pesquisa em Mdia e
Esfera Pblica (EME/UFMG), o Grupo de Pesquisa
em Poltica e Novas Tecnologias (Ponte/UFC) e
pesquisadora associada do Centro de Estudos
Avanados em Democracia Digital (CEADD/UFBA).
Atua nas reas de Publicidade e Propaganda,
Comunicao Poltica, Cibercultura e Polticas de
Comunicao.
EDUARDO YUJI YAMAMOTO
Doutor em Comunicao pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ). Docente e pesquisador da
Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro).
Tem formao em comunicao social (Jornalismo)
e especializao em comunicao popular e
comunitria ambas pela Universidade Estadual de
Londrina (UEL) , e mestrado em comunicao
miditica pela Universidade Estadual Paulista

(Unesp-Bauru). Atualmente pesquisa o estatuto


ontolgico da comunidade nas cincias humanas e
sociais desenvolvendo reflexes crticas sobre o
conceito de comunidade na Comunicao, em
parceria com o grupo de pesquisa Laboratrio de
Estudos
em
Comunicao
Comunitria
(LECC/UFRJ).
ERICK FELINTO
Professor associado do Programa de Ps-graduao
em Comunicao da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, onde desenvolve pesquisas sobre
cibercultura e a teoria da mdia alem, alm de
pertencer ao Conselho Editorial da Editora da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Eduerj).
pesquisador do CNPq e autor de diversos livros e
artigos cientficos, incluindo A imagem espectral:
Comunicao, cinema e fantasmagoria tecnolgica
(Ateli, 2008) e O explorador de abismos: Vilm
Flusser e o ps-humanismo (Paulus, 2012), com
Lucia Santaella. Membro da equipe internacional
responsvel pela elaborao do Dicionrio Flusser
na Alemanha, Felinto tambm integrante do
Conselho Editorial da nova coleo Recursions, da
Amsterdam University Press.

FRANCISCO RDIGER
Professor do Programa de Ps-graduao em
Comunicao da Pontifcia Universidade Catlica do
Rio Grande do Sul, mestre em Filosofia pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
e doutor em cincias sociais pela Universidade de
So Paulo. Leciona tambm nos departamentos de
Comunicao e Filosofia da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. Relativamente aos interesses de
pesquisa, seus estudos concentram-se no campo da
crtica indstria cultural e no dos estudos sobre
pensamento tecnolgico e cibercultura, incluindo-se
a trabalhos sobre cultura de massas, filosofia da
tcnica, teoria da comunicao etc. Publicou
recentemente Martin Heidegger e a questo da
tcnica (Sulina, 2014) e O amor e a mdia (Editora
da UFRGS, 2013).
LUS MAURO S MARTINO
Doutor em Cincias Sociais pela Pontifcia
Universidade Catlica de So Paulo, foi
pesquisador-bolsista na Universidade de East
Anglia (Reino Unido). Formou-se em Comunicao
pela faculdade Csper Lbero, de So Paulo, onde
atualmente professor do Programa de Ps-

graduao em Comunicao, e lidera o Grupo de


Pesquisa Teorias e Processos da Comunicao.
Autor, entre outros, dos livros Teoria da
Comunicao (Vozes, 2009), The mediatization of
religion
(Ashgate,
2013), Comunicao
&
Identidade (Paulus, 2010), alm de textos e artigos
em revistas cientficas e de circulao geral.
PATRCIA ROSSINI
Jornalista,
graduada
pela
Faculdade
de
Comunicao Social da Universidade Federal de
Juiz de Fora, mestre em Comunicao e Sociedade
pela mesma instituio e doutoranda do Programa
de
Ps-graduao
em
Comunicao
na
Universidade Federal de Minas Gerais, onde integra
o Grupo de Estudos em Mdia e Esfera Pblica
(EME/UFMG). Realizou estgio-sanduche na
Syracuse University (EUA, 2014) sob orientao da
professora
doutora
Jennifer
Stromer-Galley.
Desenvolve pesquisa na rea de Comunicao,
poltica e tecnologias, com nfase em conversao
poltica, engajamento e consumo de informao
poltica on-line, campanhas eleitorais, participao
poltica, e-democracia e comportamento em sites
de redes sociais. Tem artigos cientficos publicados
nas revistas Contempornea (UFBA) e Compoltica,

e captulos publicados nas coletneas Navigating


Cybercultures (Inter-Disciplinary Press, Oxford,
2013) e Mdias Sociais e Eleies 2010 (Papercliq,
2011).
PAULA GUIMARES SIMES
Professora do Programa de Ps-graduao em
Comunicao Social da Universidade Federal de
Minas Gerais. Possui graduao (2001), mestrado
(2004) e doutorado (2012) em Comunicao Social
pela mesma instituio. Tem experincia na rea
de Comunicao, com nfase em teoria da
Comunicao e metodologia de pesquisa, atuando
principalmente
nos
seguintes
temas:
acontecimento, imagem pblica, celebridades,
cultura da mdia. Dentre as ltimas publicaes,
destacam-se o artigo Enquadramento: diferentes
operacionalizaes analticas de um conceito
(2012, Revista Brasileira de Cincias Sociais, em
coautoria com Ricardo F. Mendona) e a
organizao do livro Celebridades no sculo XXI:
transformaes no estatuto da fama (2014, no
prelo, em parceria com Vera Frana, Joo F. Filho e
Lgia Lana).
REGIANE LUCAS DE OLIVEIRA GARCZ

Doutoranda
em
Comunicao
Social
pela
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde
tambm concluiu o mestrado e a graduao com
habilitao em jornalismo. pesquisadora do
Grupo de Pesquisa em Mdia e Esfera Pblica
(EME/UFMG). Desenvolve pesquisas sobre lutas por
reconhecimento, movimentos sociais, internet e
insero poltica das pessoas surdas, o que lhe
rendeu, em 2011, o Prmio Incluso da Cmara dos
Vereadores de Belo Horizonte, na categoria
Comunicao. Tem artigos publicados em revistas
c o m o European
Political
Science
Review;
Communication, Politics & Culture e E-comps.
ROBERTO ELSIO DOS SANTOS
Graduado em Jornalismo e Publicidade e
Propaganda pela Universidade Metodista de So
Paulo (1983), mestre em Comunicao pela
Universidade Metodista de So Paulo (1988),
doutor em Comunicao pelo Centro de
Comunicao e Artes da Escola de Comunicaes e
Artes da Universidade de So Paulo (ECA-USP,
1998). Tambm fez ps-doutorado no Centro de
Biblioteconomia e Documentao (2004) e livredocncia pelo Centro de Jornalismo e Editorao da
ECA-USP (2013). professor do Programa de ps-

graduao em Comunicao da Universidade


Municipal de So Caetano do Sul e dos cursos de
graduao de Comunicao e Pedagogia da mesma
instituio. vice-coordenador do Observatrio de
Histrias em Quadrinhos da ECA-USP e editor da
revista Nona Arte. Entre seus livros mais recentes
esto: Gibi: a revista sinnimo de quadrinhos (Via
Lettera, 2010), A histria em quadrinhos no Brasil
(Laos, 2011) e Humor e riso na cultura miditica
(Paulinas, 2012).
ROUSILEY C. M. MAIA
Doutora em cincia poltica pela Universidade de
Nottingham (Inglaterra), professora Associada no
Departamento de Comunicao na Universidade
Federal de Minas Gerais. autora de Deliberation,
the Media and Political Talk (Hampton Press,
2 0 1 2 ) , Media e Deliberao (FGV, 2008),
Comunicao e Democracia: Problemas &
Perspectivas (com Wilson Gomes, Paulus, 2008),
Recognition and the Media (Palgrave McMillan, no
prelo). coordenadora do Grupo de Pesquisa em
Mdia e Esfera Pblica (EME/UFMG) e tem artigos
publicados em vrios peridicos, incluindo EComps,
RBCS,
Famecos,
Journal
of
Communication, Contempornea, Press Politics,

Journal of Community Informatics, Political studies,


European Political Science Review, Journal of
Political Power. editora associada da The
International
Encyclopedia
of
Political
Communication (ICA/Wiley-Blackwell).
VANESSA VEIGA
Doutoranda
em
Comunicao
Social
pela
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e
investiga o direito memria e justia no Brasil,
explorando o caso da Comisso Nacional da
Verdade. mestre em Comunicao Social e
jornalista pela mesma universidade (UFMG). Sua
dissertao intitulada Direitos Humanos e suas
justificativas na mdia: a controvrsia envolvendo o
caso do PNDH-3 recebeu meno honrosa no
prmio de melhor dissertao pela Compoltica
(Associao Brasileira de Pesquisadores em
Comunicao e Poltica) em 2013. Pesquisadora do
Grupo de Pesquisa em Mdia e Esfera Pblica
(EME/UFMG). Tem interesses em estudos na
interface da comunicao e poltica, em temas que
envolvem direitos humanos, polticas pblicas,
teoria democrtica, teoria do reconhecimento,
memria e justia, e amrica latina.

WALDOMIRO VERGUEIRO
Graduado em Biblioteconomia e Documentao
pela Fundao Escola de Sociologia e Poltica de
So Paulo (1977), mestrado em Cincias da
Comunicao pela Escola de Comunicaes e Artes
da Universidade de So Paulo (ECA/USP, 1985),
doutorado em Cincias da Comunicao tambm
pela ECA-USP (1990) e ps-doutorado pela
Loughborough University of Technology (Inglaterra)
e Universidad Carlos III de Madrid (Espanha).
Professor da ECA-USP, atuando na graduao em
Biblioteconomia, bem como no mestrado e
doutorado em Cincia da Informao e Cincias da
Comunicao. Atualmente professor titular
aposentado da ECA-USP. Fundador e coordenador
do Observatrio de Histrias em Quadrinhos,
tambm na ECA/USP. Editor da revista Nona Arte,
do Observatrio de Histrias em Quadrinhos. Atua
como membro do corpo editorial de diversas
revistas cientficas no Brasil e no exterior. Publicou
dezenas de artigos em peridicos cientficos
nacionais e internacionais. Autor e/ou organizador
de mais de uma dezena de livros, entre os quais
podem ser destacados: Seleo de Materiais de
Informao (Briquet de Lemos, 1997), Qualidade
em Servios de Informao (Arte e Cultura, 2002),

Como usar as histrias em quadrinhos na sala de


aula (Contexto), Os pioneiros na pesquisa em
quadrinhos no Brasil (Editora Criativo, 2013) e
Muito alm dos quadrinhos (Devir, 2009).
WILSON GOMES
Professor titular de Teoria da Comunicao na
Universidade Federal da Bahia, pesquisador e
orientador no Programa de Ps-graduao em
Comunicao e Cultura Contemporneas daquela
universidade. graduado, mestre e doutor em
Filosofia pela Universitas a Scte. Thomae e
graduado em Teologia pela Universitas Gregoriana,
ambas em Roma. Doutorou-se em 1988 com uma
tese sobre a ideia de construo da realidade no
idealismo alemo, na fenomenologia e na
hermenutica. Em 1998, realizou estgio psdoutoral em Cinema na Universidade de So Paulo.
Desde 1989 ensina, pesquisa e orienta na rea de
Comunicao, nas especialidades de comunicao e
poltica, e democracia digital. autor de
Transformaes da poltica na era da comunicao
de massa (Paulus, 2004 e 2008), Jornalismo, fatos
e interesses (Insular, 2009) e coautor, com
Rousiley Maia, de Comunicao & democracia:
problemas e perspectivas (Paulus, 2008).

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA


REITORA
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VICE-REITOR
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EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA


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CONSELHO EDITORIAL
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PRESIDENTE
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VICE-PRESIDENTE
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SECRETRIA-GERAL
Profa. Dra. Gislene da Silva
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2014, autores.
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Feito o depsito legal.
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T314 Teorias da Comunicao no Brasil: reflexes
contemporneas / Organizadores, Vera Veiga Frana
... [et al.]. Salvador: Edufba, 2014.
800kB ; epub
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1. Comunicao - Brasil. 2. Comunicao - Filosofia.
I. Frana, Vera Veiga.
CDU: 659.3(81)

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