O Limiar Da Experiência Estética
O Limiar Da Experiência Estética
O Limiar Da Experiência Estética
Resumo: Este trabalho coloca em anlise algumas concepes sobre arte, obra de arte, atitude
esttica e experincia esttica com o intuito de propor o exerccio da racionalidade esttica
como uma ampliao da capacidade dos sujeitos para orientar sua percepo e compreenso
ante as infinitas possibilidades da existncia. A razo esttica habilita o sujeito para que se
concebam mundos no apenas a partir de e/ou sobre esquemas referenciais, mas a partir
de e sobre a experincia da presentificao do que existe, do ser-a, da histria efeitual e da
desrealizao dos limites estabelecidos pelas formas tradicionais de racionalidade. Postulo
a ideia da experincia esttica como uma oportunidade de ampliao, de desvelamento e
de expanso da subjetividade na medida em que representa uma abertura para a coleo
de exemplos que so a arte e a vida. A atitude esttica uma atitude desinteressada, uma
abertura, uma disponibilidade no tanto para a coisa ou o acontecimento em si, naquilo
que ele tem de consistncia, mas para os efeitos que ele pode produzir.
Palavras-chave: esttica; experincia; experincia esttica; arte; subjetivao.
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Pretendo apresentar algumas ideias e reflexes que, mais do que apontar caminhos, permitam ampliar a discusso acerca do significado e do sentido do trabalho
com as artes nas fronteiras do campo da educao. Mais especificamente, minha
ideia contribuir com alguns temas bastante caros formao de professores de
arte. Mais especificamente, pretendo ensaiar um confronto do tema do rigor na
experincia esttica, colocando em anlise algumas concepes sobre arte, obra de
arte, atitude esttica e experincia esttica.
Tomo como ponto de partida uma ideia bastante comum: a impossibilidade
de definio unvoca da arte. Ao longo da histria da humanidade, temos presenciado calorosos debates sobre esse tema, sem nunca termos alcanado um
conceito universal que silenciasse essa pergunta. Na Antiguidade, o campo da
arte circundava as noes de imitao e beleza, passando pela sua utilizao como
elemento decorativo. No auge da modernidade clssica, a arte aproximou-se da
sublimao, do sublime. Na contemporaneidade, aderida antes ao conceito do
que ao seu contedo expressivo estrito, a ideia de arte ampliou-se e ultrapassou os
limites da inteligibilidade. Alcanou-se o patamar em que tratamos de diferentes
formas de racionalidade em situao de simultaneidade e contingncia e, portanto,
caem por terra as iniciativas de circunscrever a arte s formas mais tradicionais ou
universais de racionalizao.
Vale dizer que j no se trata de perseguirmos alguma ideia de beleza como
parmetro. Tambm o belo, ao longo da histria do pensamento, foi deslocado
dos cnones que, pretensiosos e reducionistas, buscaram fixar seu significado.
No comeo, belo era o que imitava a realidade visvel, era o que correspondia
repetio do paradigma naturalista e realista de representao. Depois, ele passou
a ser tomado como sublimao, como efeito tangvel do sentimento oriundo da
relao que nossa razo pura estabelecia com o mundo. Mais tarde, passou a ser um
valor subjetivo, um sentimento singular proveniente de uma experincia nica e
individual que o sujeito tinha do mundo. Ou seja, assim como se passa com a arte,
o belo foi deslocado do campo de possveis estabelecido pelas formas tradicionais
ou universais de racionalidade.
Por fim, podemos tentar perguntar pela utilidade da arte. Da mesma forma,
veremos uma srie de deslocamentos ao longo da histria. No comeo, a arte tinha
por objetivo aproximar o homem do universo transcendente das divindades, dos
deuses, do sobrenatural. Tambm podemos identificar, em algumas civilizaes,
a arte com fins decorativos. Sob outro enfoque, podemos ver a arte assumir fins
expressivos, comunicativos e representativos: a obra de arte pode expressar algo
quando ela a materializao ou a vivificao de uma ideia ou sentimento que
apela ao seu criador para alcanar a existncia; a arte pode comunicar algo quando
sua materialidade portadora de um contedo, quando ela veicula uma ideia, uma
inteno, uma mensagem moral ou poltica; a arte pode representar algo quando,
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articulando sua potencialidade expressiva e comunicativa, significa algo, quando
sua existncia remete a algo que no est ali. Enfim, em termos de atribuio de
utilidade, chegamos ao que nos disse Oscar Wilde, em 1891, no Prefcio ao seu
Retrato de Dorian Gray (Wilde, 2000, p. 17): toda arte perfeitamente intil. Ou
seja, alcanamos a ideia de que a arte no serve para nada. Alis, para explorar um
pouco mais essa concepo, detenho-me no que diz esse autor. Segundo ele, revelar
a arte e ocultar o artista a finalidade da arte (idem, p. 17). Com essa ideia, ele
inaugura a viso contempornea da dimenso conceitual da arte e proporciona a
compreenso da experincia com a obra de arte como uma experincia singular e
subjetiva que pode bem ser individual ou coletiva, mas que definitivamente vai na
direo da singularidade. E a singularidade, nesse caso, tanto pode ser a do artista
quanto a do crtico ou, ainda, a do espectador. arte o que eu digo que arte.
arte o que eu fao ser arte. arte o que eu torno arte. E, em ltima anlise, ela
serve para produzir efeitos de sentido no criador, no crtico e no pblico. Ou seja, a
arte existe para produzir diferena no artista, no crtico e no pblico no vindo
ao caso, nesta circunstncia, o juzo de valor sobre se essa uma diferena para o
bem ou para o mal, j que falamos aqui de singularidades.
Enfim, para esse autor
toda arte , ao mesmo tempo, superfcie e smbolo. Os que
buscam sob a superfcie fazem-no por seu prprio risco.
Os que procuram decifrar o smbolo correm tambm seu
prprio risco. Na realidade, a arte reflete o espectador e no
a vida. (idem, p. 17)
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Comeo, aqui, pelo estabelecimento de uma condio de possibilidade para
a experincia esttica: a atitude esttica. Para que se possa viver uma experincia
esttica, antes de tudo, preciso assumir uma atitude esttica, ou seja, assumir uma
posio, uma postura que constitua e configure a nossa percepo. No como uma
intencionalidade, uma premeditao, uma antecipao racional do que est por vir,
mas como uma disposio contingente, uma abertura circunstancial ao mundo.
A premeditao da ordem da atitude prtica, utilitria, funcional, quando nos
dirigimos para o mundo com vistas a determinados fins, considerando as coisas e
os acontecimentos como meios teis para atingir esses fins.
A atitude esttica uma atitude desinteressada, uma abertura, uma disponibilidade no tanto para a coisa ou o acontecimento em si, naquilo que ele tem de
consistncia, mas para os efeitos que ele produz em mim, na minha percepo, no
meu sentimento. Tomo, aqui, o que postula Kant acerca do juzo esttico. Segundo
ele, quando apreciamos esteticamente, no se trata de simpatizar ou no com a
existncia da coisa, tampouco importa algo da sua existncia, em termos daquilo
que nos pode dizer o entendimento ou a explicao (Kant, 1993, p. 49-50). Diferentemente disso, trata-se de contemplar ativamente a coisa, ou seja, atentar para
o sentimento que a experincia da coisa produz em mim. O desinteresse reside na
suspenso dos juzos explicativos que o sujeito poderia proferir ante a coisa ou o
acontecimento que vive, de modo que possa colocar-se em uma posio de vulnerabilidade ao seu efeito. O juzo esttico, nesse sentido, refere-se no propriamente
a um objeto ou acontecimento, puramente, mas ao sentimento que esse objeto ou
acontecimento produz no sujeito. O interesse reduz o objeto ou o acontecimento
sua condio de bem de consumo ou veculo moral ou pea de coleo ou portador
de uma mensagem, etc., impedindo-o de tornar-se o disparador de algo que no
seja aquilo a que foi destinado pelo interesse.
A atitude esttica, ento, diz respeito abertura que o sujeito tem ante o mundo.
E essa atitude no se caracteriza por uma posio passiva nem ativa diante do objeto
ou do acontecimento, mas por uma disponibilidade que o sujeito tem. No se trata
de procurar submeter o objeto ou o acontecimento a certo esquema explicativo
que poderia produzir um conceito, um juzo, uma definio ou uma ideia nem
submeter-se a uma suposta essncia ou fundamento que estivesse contida no objeto
ou no acontecimento. Somos seres de encontro. Como nos diz Ortega-y-Gasset,
ns somos ns e nossa circunstncia; se no a salvamos, no salvamos tambm a
ns. Portanto, no se pode polarizar a atitude no sujeito nem no objeto. Ns nos
constitumos e constitumos o mundo realizando composies e arranjamentos
com a realidade circundante. A realidade, aquilo que existe (seja concreta e materialmente, seja abstrata e conceitualmente) no mera exterioridade, mas algo
que me constitui tanto quanto eu a constituo. Assim, no se trata de operarmos
na dimenso da racionalidade que busca efetuar uma dominao: no vou nem
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pretendo dominar a realidade nem ser dominado por ela. No se trata de efetuar
uma razo que apreende, possui, define, nomeia, reduz ou entende a realidade.
Trata-se, antes, de um jogo de mtua interferncia, de composio de possibilidades
que constituem sujeito e mundo. Do encontro e do arranjo entre sujeito e objeto
ou acontecimento resulta algo que ainda no existia, resulta um efeito novo: um
sentimento, um gosto, um estado que apenas existia enquanto possibilidade, como
porvir. Ao entrar em jogo com o objeto ou o acontecimento, eles deixam de ser
exteriores ao sujeito e passam a constituir o campo da experincia. E a que comea
a criao, a experincia esttica.
Podemos ter experincias estticas com relao a qualquer objeto ou acontecimento, independentemente de ser arte ou no, de ser belo ou no, de existir concretamente ou no. Qualquer coisa pode ser um objeto esttico se estabelecemos
ante ele uma atitude esttica. Podemos ter experincias estticas ao entrar em jogo
com uma msica erudita, uma msica popular, um som da natureza, um rudo
urbano ou, mesmo, com o silncio. Podemos ter experincias estticas com uma
pintura clssica, uma imagem sagrada, um desenho na parede de uma caverna,
uma fotografia, um filme, um desenho na areia do cho, uma paisagem, uma cena
urbana ou, mesmo, com uma imagem apenas imaginada ou sonhada. Podemos
ter experincias estticas sempre que adotamos uma atitude esttica ante qualquer
objeto da conscincia (Stolnitz, 1960, p. 49). Essa condio, entretanto, colocanos novamente diante de um dilema: a questo do rigor da experincia esttica.
Se tudo pode ser objeto esttico, se qualquer coisa pode s-lo, qual o critrio para
falarmos em experincia esttica?
Aqui neste ponto, para dar conta de enfrentar essa questo, vou abordar a experincia esttica primeiro do ponto de vista daquele que cria, o artista e, depois,
do ponto de vista daquele que frui, o pblico.
A atividade criadora do artista implica algumas condies e, dentre elas, destaco
uma que considero bsica: o domnio de uma linguagem, de uma tcnica, de uma
matria condio de possibilidade para a criao. A criao no uma atividade
espontnea. O fato de ser desinteressada no pode fazer dela uma abertura indefinida e incondicional. O desinteresse diz respeito ideia de que no se trava uma
relao de dominao entre o sujeito artista e o mundo que o cerca e o constitui,
mas que entre eles se produz uma zona de potncia, um campo de possibilidades,
o porvir de uma nova realidade.
Quando se produz um arranjo entre sujeito e mundo (entendido o mundo
aqui como qualquer daquelas realidades existentes ou no a que me referi
logo acima: uma msica, o silncio, uma paisagem, uma cena, um sentimento,
um sonho) e esse arranjo gera um estado diferente, um potencial deslocamento no
modo de ser do sujeito, uma vertigem, um embrulho no estmago, estamos falando
do aparecimento do primeiro movimento de emergncia da obra de arte. Uma
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experincia esttica, nesses termos, assemelha-se ao estado de esprito daquele que
se apaixona: no encontro com seu amado, inaugura-se um tipo de relao que no
de dominao, mas de composio, de arranjo, que desloca boa parte das referncias que at ento o constituam e o projeta numa espcie de abismo. aquele
momento em que faltam palavras para dizer, para descrever. Falta matria racional
para explicar o que est se passando. Algo comea a existir em mim que no consegue
via de expresso ou comunicao conhecida. E esse algo me apela, me pede que o
traga existncia, pede um corpo, uma materialidade, um substrato para existir.
Ento, com esse sentimento novo, esse algo, que inicio um jogo compreensivo,
uma dana que tem como propsito no o entendimento ou a explicao, mas a
compreenso: a sensibilidade, a ateno, a percepo disso que, por enquanto,
s uma substncia de contedo, ainda sem forma de expresso. Exercito a escuta
perspicaz e meticulosa disso que me assola e que ainda no tem nome. Perscruto
isso que ainda s movimento, isso que est pedindo vida, pedindo existncia,
pedindo expresso.
Dupla competncia se me exige esse ponto. Competncia de compreenso e
competncia de expresso.
A competncia da compreenso advm da experincia e pode ser aqui entendida
como discernimento. Discernimento, segundo Gadamer, mais que conhecimento,
algo a que se chega (Gadamer, 2008, p. 466). O contedo de verdade que produzimos pela experincia, justamente por seu carter de realidade que se efetuou,
de experincia que efetivamente aconteceu, remete sempre para novas experincias,
ou seja, para todas as experincias que poderiam ter sido efetuadas, para todas as
verdades que poderiam ter sido geradas ali. Nesse sentido, contrariando o senso
comum, entendemos que experimentada a pessoa que, justamente por ter tido
as experincias que teve, est aberta a novas e inditas experincias. Experimentado no aquele que sabe, mas, ao contrrio, aquele que est aberto ao porvir, ao
que ainda no sabe. O artista, nesse caso, tem a competncia do discernimento
porque sabe que aquilo que sabe a evidncia do limite do seu conhecimento, a
evidncia da sua finitude, da sua mnima posio na histria e na realidade que o
circunda e o circunscreve. O artista pode ser entendido, nesse caso, como o menos
dogmtico possvel porque teve tantas experincias, e j aprendeu tanto dessas tantas
experincias, que isso o faz aberto e capacitado para voltar a ter experincias e com
elas aprender (Gadamer, 2008, p. 465). O discernimento oriundo da experincia
possibilita-nos a evidncia de que as coisas no so apenas como supnhamos em
nossos exerccios explicativos e, dessa maneira, que as coisas experimentadas no
cabem na matria ou na forma expressiva tradicional. O discernimento, assim, o
que nos d a capacidade de compreender o que se passa, a tomada de conscincia
daquele algo que nos passa e para o qual ainda no temos palavras. O discernimento
, ao mesmo tempo, um quase-saber e um alm-saber, um pressentimento, a
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faculdade que temos de conhecer pela negao: aproximamo-nos do que pelo
exerccio de discernir o que no .
A outra competncia, da expresso, diz respeito prtica. Ela relativa ao
domnio tcnico e instrumental da matria e da linguagem que, operadas, vo
dar substncia e forma expresso. Ela advm do estudo, do domnio, do conhecimento e da prtica de uma determinada linguagem, de uma tcnica e de um
material. Essa competncia diz respeito capacidade prtica que um sujeito tem
para operar com uma linguagem (a poesia, a literatura, a msica, o desenho, a
pintura, a dana, o teatro, a escultura, etc.), desenvolver um modo (romance, novela, soneto, aquarela, leo, msica tonal, atonal, modal, dana clssica, folclrica,
etc.), utilizar um material (a lngua, o som, a tinta, a pedra, o ferro, o corpo, etc.)
e manejar uma ferramenta, um instrumento (a gramtica, um violino, o lpis, um
pincel, a voz, a cmera, enfim). Na medida em que aquele algo que emergiu na
experincia esttica pede existncia, necessrio dominar com competncia alguma
via de expresso. A criao somente ter consistncia se ancorada em uma matria
expressiva operada com rigor.
A livre-expresso um exemplo da operao imprpria da matria expressiva
quando o sujeito d vazo atividade criadora sem a necessria competncia no
trato do material ou da linguagem que emprega. Apoiado numa suposta espontaneidade, ele mais faz catarse do que cria. Ainda que possamos aproximar a catarse
da criao, no esse o propsito aqui: antes, pretendo evidenciar a necessidade
do rigor no processo de criao de uma obra de arte. Por exemplo, um sujeito s
capaz de improvisar em um campo no qual tenha um mnimo de competncia:
s posso improvisar uma msica ao violo se souber minimamente tocar violo;
s posso improvisar uma comida se souber cozinhar.
Enfim, concluindo minha especulao sobre a experincia esttica do artista,
torno a me referir experincia que ele tem com essa quase-forma que um contedo
indito de sua existncia faz assomar nele e que o convoca a criar. O artista fabrica
a obra ao mesmo tempo que fabricado por ela. E essa obra, enquanto produto,
que se d a ver (ou ouvir ou presenciar ou assistir, etc.) para o pblico.
Assim, chego ao segundo polo anunciado. No caso do pblico, trato da experincia esttica com algumas variaes. Igualmente, tomo como ponto de partida
a necessria atitude esttica, ou seja, uma atitude de abertura desinteressada ante
os efeitos que a realidade de um objeto ou acontecimento pode produzir.
As obras de arte sejam de que natureza forem representam uma zona de
confluncia de possibilidades que foi trazida vida pela operao de um artista e, por
isso, representam um campo de potncia ilimitado. Um objeto ou acontecimento
cultural ou artstico no est a meramente para ser compreendido, manejado ou
dominado, mas, ao contrrio, para ser experimentado. E isso significa que eles
representam instncias de convocao dos sujeitos, situaes de apelo ao jogo e
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composio com o pblico que voltaro a dar existncia sua materialidade. Um
livro, por exemplo, apenas um livro: um objeto material com peso e dimenses
concretas que o tornam meramente uma coisa. Mas, ao ser aberto e lido, transforma-se, torna-se uma agncia de novos sentidos que colocam em movimento
o repertrio e o universo daquele que l. Assim, qualquer objeto artstico ou
cultural: todos so e cada um nada muito mais do que um amontoado de algo
material papel, pedra, corpos, letras, notas, dados, cores, etc. at que entrem
em composio ou arranjo com um sujeito que estabelea com eles uma relao
esttica e os transfigure em algo que eles apenas eram em potncia. Todo objeto ou
acontecimento uma fonte inesgotvel de possibilidades que abarca um infinito
de sentidos, apesar de sua limitao material.
Por isso, trata-se de propor a atitude esttica como uma abertura desinteressada.
Movidos pelo interesse, nossa tendncia dominar (conceitual ou materialmente)
as realidades que nos cercam e, nesse delrio de poder, furtamo-nos a possibilidade
de sermos criativos. Entrar em jogo com um objeto ou acontecimento, de outro
modo, representa conceder-se a possibilidade de, num nico lance, configurar a
experincia esttica e ser configurado por ela. E aqui, da mesma maneira, confrontamo-nos com um dilema: se possvel produzir experincias estticas com
qualquer coisa, qual a medida do rigor que se coloca para ns?
bem verdade que podemos pensar na experincia esttica que ocorre por
arrebatamento, ou seja, que atropela o sujeito e o desloca radicalmente do campo
de racionalidade que o circunscrevia. Nesse sentido, lembro do que nos diz Hilda
Hilst sobre a potncia da poesia:
Um poema como um soco. E, se for perfeito, te alimenta
para toda a vida. Um soco certamente te acorda e, se for em
cheio, faz cair a tua mscara, essa frvola, repugnante, empolada mscara que tentamos manter para atrair ou assustar
ela diz. (Hilst, 1998, p. 53)
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a fruio e a experincia desinteressadas, para a abertura aos efeitos que o objeto
ou o acontecimento podem produzir. Se me atenho ao impulso de decifrao ou
entendimento do objeto ou do acontecimento, torno a cair na armadilha de tentar
domin-los sob certa forma de racionalidade, impedindo-me de sentir os efeitos
que esteticamente podem produzir. Da mesma forma, se me entrego livremente
experincia, tambm resvalo para o espontanesmo catrtico e leviano que resulta
da frequente falta de rigor. A produo de sentidos que caracteriza a experincia
esttica efeito do entrelaamento, do arranjamento que o sujeito faz com o objeto
ou com o acontecimento de maneira rigorosa, ou seja, levadas em considerao as
possibilidades de compreenso que a experincia torna viveis. E esse rigor responde competncia de perscrutar meticulosa e minuciosamente os pormenores do
objeto, alcanando a sutileza da perspiccia que a discriminao e o discernimento
conferem ao sujeito experimentado que, como j explorei acima, se constitui. O
sujeito experimentado no dogmtico e, por isso, consegue suspender seus preconceitos, clichs e esteretipos justamente porque a experincia o confronta sempre
com sua finitude, com a evidncia do limite de sua interpretao. O que ele pensa
sobre o que sente sempre apenas uma das inumerveis possibilidades de pensar
ou de sentir. A formao do pblico, a formao do sujeito fruidor passa, assim,
pela ampliao de sua capacidade perceptiva, no sentido de mostrar as armadilhas
da interpretao categrica e judicativa do gosto maniquesta (bom versus mau,
bonito versus feio, etc. ) e instigar o exerccio da compreenso como uma tomada
de ateno sobre os efeitos que a experincia pode produzir. Significa compreender
que no gostar , igualmente, uma forma de gostar. A formao do sujeito fruidor
consiste em explorar diferentes maneiras de compreender a experincia esttica,
possibilitando uma abertura diversidade de sentidos do mundo (ou seja, de
formas de sentir a realidade).
Ampliar o repertrio cultural, ampliar o repertrio de experincias representa,
assim, uma ampliao da capacidade de os sujeitos orientarem sua percepo e
compreenso ante as infinitas possibilidades da existncia. Inspirado por Thierry
de Duve (2009, p. 50), ouso afirmar que a vida como a arte no se definem:
a vida e a arte so uma coleo de exemplos. Nesse sentido, postulo a ideia da
experincia esttica como uma oportunidade de ampliao, de desvelamento e de
expanso da subjetividade na medida em que representa uma abertura para essa
coleo de exemplos.
Vale abrir, para finalizar, uma breve, mas nem por isso pouco importante digresso. Quero me referir possibilidade da constituio da obra de arte a partir
da experincia esttica com objetos ou acontecimentos no artsticos, ou seja,
no enquadrados nos cnones do que se considera arte, seja em que esfera for.
E quero, nessa digresso, referir-me tanto experincia do artista quanto do
crtico e do pblico. Quero retomar aqui um aspecto que ficou pulsando em
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diferentes momentos deste ensaio: o fato de podermos ter experincias estticas
com qualquer coisa.
Para demarcar a gnese dessa possibilidade, tomo a proposio de Marcel
Duchamp. Sua ideia de ready-made representa justamente a possibilidade de que
qualquer objeto existente possa, ao ser deslocado de seu contexto, tornar-se disparador de uma experincia esttica. Essa ideia desloca radicalmente a natureza da
condio esttica para a atitude que se possa ter diante do objeto. Nessa medida,
tanto o artista quanto o crtico ou o pblico tm a prerrogativa de transfigurar os
objetos e os acontecimentos, convertendo-os em objetos estticos. Mais uma vez,
o mesmo dilema: se tudo pode, qual o limite?
Antonio Ccero lembra-nos que, assim como nas artes visuais, o ready-made
levou muitos artistas e crticos de arte a considerarem obsoleta a arte de pintar
ou esculpir; na poesia, ele levou muitos poetas e crticos literrios a considerarem
obsoleta a arte de fazer poemas (Cicero, 2005, p. 107). Ora, se abdicarmos do
necessrio rigor, tambm aqui camos na inconsistncia da experincia esttica.
Temos que ter presente que o fato de ser possvel realizar experincias estticas
com qualquer coisa no significa que se trata da mesma natureza de experincia:
se somos capazes de ter uma experincia esttica com o barulho do vento ou
com o silncio, isso no significa que podemos prescindir da msica; se somos
capazes de realizar uma experincia esttica com um trocadilho, um anagrama,
um trava-lngua, uma parlenda ou uma frase recortada a esmo, no significa que
podemos prescindir da poesia; se podemos realizar uma experincia esttica com
o bater de uma onda do mar em nossos ps ou com um pr do sol, no significa
que podemos prescindir da pintura ou do cinema. A experincia que podemos
ter com uma pea de Bach, com uma msica de Luis Gonzaga, com uma cano
infantil, com o canto de um pssaro ou com o rudo de um trem no tem o mesmo
valor. Sim, todas podem constituir-se experincias estticas. Mas inegvel que
h uma grande diferena de valor entre elas (ressalte-se que essa diferena no diz
respeito a uma hierarquia em que algo pode valer mais ou menos mas que cada
experincia inaugura ou diz respeito a uma ordem singular e irredutvel a qualquer
outra!). Podemos captar e experimentar esteticamente qualquer coisa, sim. E essas
experincias sempre apresentam um grande potencial formativo para os sujeitos
nelas implicados. Porque a experincia consiste, justamente, no deslocamento que
sofremos da forma tradicional de racionalidade que nos circunscreve, colocandonos diante do indito, da novidade da interpretao. O fato de termos produzido
uma interpretao a partir de uma experincia a evidncia de que cada um que
experimente o que experimentamos poder produzir outra interpretao. Ademais,
se chegamos a produzir uma interpretao, porque infinitas outras interpretaes
permanecem como interpretaes possveis.
Assim, ante o mundo, temos a permanente e infindvel possibilidade de transfigurar a realidade e sermos transfigurados por ela: Marcel Duchamp transfigura
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a realidade quando desloca o urinol ou a roda de bicicleta para uma exposio;
Nuno Ramos transfigura a realidade quando expe trs urubus vivos na instalao
Bandeira Branca, na 29a Bienal de So Paulo; Frederico Moraes transfigura a realidade quando desloca os bordados e as colees de Arthur Bispo do Rosrio para
uma galeria; Fausto Fawcett (2000) transfigura a realidade quando brinca com o
anagrama Caroline Dickman Nicole Kidman no poema A fmea camafeu;
uma criana transfigura a realidade quando monta num cabo de vassoura e sai
cavalgando; um sujeito transfigura a realidade quando chora ante a viso do mar ou
quando escuta uma sonata; um amante apaixonado transfigura a realidade quando,
ante a insuficincia das palavras, faz silncio ou grita ou beija ou abraa.
A medida do rigor, nesse caso, est no entendimento da intradutibilidade do
contedo da experincia esttica, ou seja, na impossibilidade de aquele algo que
se produz no sujeito que experimenta esteticamente a realidade ser traduzido em
alguma linguagem ou forma de racionalidade conhecida. Por ser intraduzvel, a
forma de expresso que vai dar concretude ao contedo da experincia esttica
precisa ser inventada. Uma imagem que bem representa essa situao, a meu ver,
a idia do abismo. Como nos sugere Chantal Maillard, a experincia da criao
e a experincia esttica se assemelham projeo em um abismo: tudo comea
quando o mundo acaba. A experincia esttica inicia quando tudo o que sei e
tudo o que tenho sido j no bastam e o mundo apela por ser inventado. Ali onde,
para as formas tradicionais de racionalidade, o fim do mundo, porque no h
palavras, no h forma possvel de expresso, no h mais explicao, quando a
gente no entende mais nada, ali onde o mundo acaba que comea o percurso e o
processo de criao (Maillard, 1998, p. 252). Trata-se de aprender outra forma de
racionalidade, a razo esttica: aprender a viver conscientes das fices que criamos;
aprender a palpar o vazio no o vazio como ausncia, desaparecimento, fim ou
morte de algo, mas, ao contrrio, como origem, como porvir, como um perptuo
no-ser-mais ao lado de um no-ser-ainda, um no-ser-isso ou um no-ser-eu ao
lado de um ser-quase.
Os efeitos da experincia esttica os valores, os sentimentos, os gostos, os juzos,
as representaes, as categorias so as modalidades das experincias que vo se
modificando com a prpria histria, cujo ncleo sempre essa estranha satisfao
que resulta do reconhecimento da capacidade de construir, de produzir sentidos
que, quando a gente experimenta, ao mesmo tempo est construindo e produzindo
a gente mesmo (Maillard, 1998, p. 254). A razo esttica habilita o sujeito para que
se construam mundos no apenas a partir de e sobre esquemas referenciais, mas,
igualmente, a partir de e sobre a experincia da presentificao do que existe, do
ser-a, da histria efeitual e da desrealizao dos limites estabelecidos pelas formas
tradicionais de racionalidade. Novamente, reitero a ideia de que o que existe no
passvel de aprisionamento em uma definio, mas, de outro modo, o que existe
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uma coleo incomensurvel de exemplos. Cada sujeito personagem da fico,
da memria ou do presente representa uma forma de subjetivao possvel.
Enfim. Concluo esta reflexo, esta provocao, com algumas citaes que h
muito me acompanham:
O que o belo, seno um grau suportvel do terrvel? (Rilke,
1988, grifo meu)
Vai, vai, vai, disse o pssaro. O gnero humano no pode
suportar tanta realidade. O tempo passado e o tempo futuro,
o que poderia ter sido e o que foi, convergem para um s fim,
que sempre presente. (Eliot, 1981, grifo meu)
A realidade sempre mais ou menos do que ns queremos.
(Pessoa, 2006, grifo meu)
E, por fim,
No puedo hablar con mi voz, sino con mis voces. No
consigo falar com a minha voz, mas com as minhas vozes.
(Pizarnik, 1993, grifo meu)
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Recebido em 22 de fevereiro de 2011 e aprovado em 04 de novembro de 2011.
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