Revoltas de Escravos em Roma
Revoltas de Escravos em Roma
Revoltas de Escravos em Roma
Niteri
2011
Histria
Social;
Setor
NITERI
2011
AGRADECIMENTOS
RESUMO
ABSTRACT
The focus of this study is the significance of the rebellions of slaves to the Roman society of
the second century BC to AD in a crisis environment of the Roman Republic hatched revolts
led by large groups of slaves who had guns, but who had the majority share of rural slaves of
Ergastula, during a large influx of slaves for the Roman domains. In Sicily the First Servile
War broke out, which was leading a household slave named Euno. Both this rebellion as in
the famous revolt of Spartacus, the leaders of the movements were at the same time, political
leaders, military and religious, religion fulfilling the role of a program, a factor of cohesion
among the groups. The mobilization of former slaves reached its maximum level in these
uprisings, impacting the master class, forced to revise some of their practices, regulating the
relations between masters and slaves through the private state, especially in the regime of the
Principality, which gave some social rights to the slave workers from Italy and the provinces.
However, the greatest achievement of the rebel slaves was at the symbolic level. Although the
ambiguity persisted in the slave relationships, something inherent to them, and that the theory
of natural slavery to Aristotle was not exactly the paradigm of most Roman overlords. The
attitude of the intellectuals of the Roman world of the republican period, as Cato reproduced a
way to see the slaves as commodities. The humanity of the slave is recognized in the writings
of Plutarch and Appian, manifesting itself in an ever contradictory, however, but still
significant. Diodorus blamed excessive oppression Sicilian lords over slaves, generating
hatred and anger between them. In the Principality, the discourse of Seneca about the
humanity of slaves appears as one of the major worldviews of the dominant class. Thus, the
riots have produced a fissure in the dominant ideological discourse, forcing the master class to
create and articulate new forms of political and ideological domination over the underlings,
was the paradigm of slavery Republican overcome and replaced by new discourses and
paradigms. The former slaves did not get to develop a genuine class consciousness, but they
reach a certain degree of consciousness and never class for itself, but leaving no doubt a
situation of pure and simple class itself, expressing its relationship antagonism with their
masters, through flashes of consciousness that led to the development of a sense of class that
allowed their organization and mobilization in large uprisings, a political revolution to seize
state power in Sicily, even with the continuance of the slave and the establishment of a
Hellenistic type of monarchy, and an escape insurgent collective, as was the case of the revolt
led by Spartacus. Thus, the idea of a natural inferiority of slaves was put in check, reflecting
on the texts of the Roman intellectuals. The comparative method was used in this work to the
examples of slavery in colonial America illuminate the problems to ancient slavery.
Keywords: Roman Servile Wars, Roman Civil Wars, slave mode of production; Ideology;
Leak
Out;
Sense
of
Class.
SUMRIO
Introduo 7
Captulo 1: A anatomia do escravismo antigo 18
Introduo 18
1 Uma anlise comparativa da escravido 19
2 A Histria como um campo de possibilidades 32
3 Economia e Poltica na Antiguidade 37
4 O Eco das Fontes 42
5 A Lanterna da Teoria 52
6 A Arma do Mtodo 58
Concluso 62
Captulo 2: Roma: O Imprio do Mediterrneo 63
Introduo 63
1 Luta de Classes na Antiguidade 65
2 Guerras Civis em Roma 67
3 A Primeira Revolta de Escravos na Siclia 91
4 Siclia Rebelde 113
Concluso 118
Captulo 3: A Rebelio Escrava e o Sonho Possvel de Liberdade 122
Introduo 122
1 As Formas de Resistncia Escrava 124
2 O Tratamento Conferido aos Escravos no Mundo Romano 134
3 A Revolta de Esprtaco 139
4 A Revolta de Esprtaco na Historiografia Sovitica 158
5 O Impacto das Rebelies Servis na Viso de Mundo e na Poltica da Classe Dominante
Romana 161
6 Euno e Esprtaco: O Prometeu Escravo 164
Concluso 169
Concluso 171
Fontes 180
Bibliografia - 180
INTRODUO
Siclia, liderada por Euno, ser analisada em comparao com o processo similar mais
famoso. Discutir as semelhanas e diferenas entre estas duas revoltas, as maiores da
Antiguidade clssica, deve ser o primeiro passo de um trabalho que pretenda avanar nas
anlises at ento produzidas pela historiografia. til empregar o mtodo comparativo,
traando um paralelo entre a escravido moderna e a escravido antiga, de modo que a
primeira ajude a iluminar os pontos obscuros da segunda, precisando as semelhanas e
diferenas existentes entre estas duas estruturas sociais que guardam similaridades entre si,
mas que tambm distam no espao e no tempo, o que, portanto, exige o maior cuidado
possvel no sentido de evitar qualquer anacronismo. Cabe ainda enumerar outras revoltas de
escravos ocorridas na Antiguidade, estud-las no contexto geral de luta poltica entre as
fraes da classe dominante e de modificaes profundas no modo de produo escravista,
com a generalizao do escravo-mercadoria nas lavouras e com a mudana do padro agrrio
com o surgimento do latifndio. Com isso, pretendemos analisar o significado destas
rebelies de escravos para a sociedade romana, desde suas consequncias sobre a organizao
social e poltica de Roma at as conquistas e limites das lutas dos escravos antigos. Essa
discusso permeada pelo debate terico acerca da conscincia de classe das classes sociais
subalternas nas sociedades pr-capitalistas e dos limites histricos determinados por cada
poca e estrutura econmica vigente, demarcando a possibilidade histrica da revoluo. A
historiografia sovitica encarou, em geral, esses movimentos como sendo revolucionrios, o
que foi fortemente contestado pela historiografia ocidental. Trataremos desta discusso
visando classificar corretamente cada um desses movimentos rebeldes para uma compreenso
mais exata de seu significado histrico.
Esta no uma histria de elementos inertes, de peas de museu e realidades fixas e
imutveis. Tambm no uma interpretao unicamente particular e mais um entre tantos
discursos. o discurso de uma realidade em movimento e que se aproxima dela ou se prope
a isso, pelo menos. No se trata aqui de relatar simplesmente o que aconteceu. Tampouco se
trata de fazer uma histria do passado que se subordine inteiramente aos objetivos do
presente, pondo a nu os limites estruturais da sociedade estudada no sentido de uma luta que
efetivamente pudesse levar a cabo a abolio da escravido, o que s se mostrou vivel nos
Tempos Modernos, no sendo esta uma questo que estava colocada para os homens da
Antiguidade romana. Uma anlise contrafactual de determinados pontos para levantar
questes acerca dos cenrios que estavam colocados como possveis para os homens
concretos e reais daquele contexto histrico de grande valia. As possibilidades destes
10
movimentos, no entanto, devem ser percebidas naquilo que efetivamente pode ser
cientificamente inferido por ns. Tentamos perceber aqui a janela histrica que se abriu no
contexto de crise do sistema republicano romano e de consolidao do modo de produo
escravista e que permitiu a ecloso de insurreies de escravos numa dimenso nunca antes
vista, situando sempre estes acontecimentos numa anlise que enxergue a histria como um
campo de possibilidades e que busque interpretar as oportunidades e as escolhas que
estiveram colocadas no passado e como a percepo destes problemas pelos homens do tempo
estudado influenciou de forma decisiva as suas aes. Desse modo, podemos pr em relevo as
alternativas de fuga da Itlia que estiveram colocadas para o exrcito espartacano, primeiro
pelo norte e depois pelo sul, rumo Siclia, e concluir que a vitria daquela revolta era
possvel, no a de uma alternativa que no foi proposta por aqueles homens e mulheres, ou
seja, a abolio da escravatura, mas a possibilidade de obter a liberdade pela fuga coletiva,
recuperando cada indivduo a sua liberdade individual, retornando ao seu pas. Alm disso,
podemos redimensionar o significado de suas escolhas e o papel que elas cumpriram no
insucesso da rebelio, bem como na ferocidade com que o exrcito romano reprimiu aquele
movimento, justificada pelo perigo de se apresentar como um exemplo negativo para os
demais escravos do imprio, encorajando-os fuga, sendo, portanto, necessrias medidas
enrgicas que pacificassem os campos italianos.
Na anlise das revoltas de escravos na Roma antiga, utilizaremos como ferramenta
terica o marxismo. Acreditamos ser esta ferramenta vlida e no debate em questo a mais
adequada para projetar luz sobre a realidade daquela sociedade, permitindo-nos um
entendimento maior dos conflitos e contradies da situao estudada. O uso correto dos
conceitos necessrios para a anlise de extrema importncia e, por isso, este debate
conceitual ser devidamente apresentado, com a exposio de cada conceito e sua aplicao
no presente trabalho. O conceito de modo de produo, por exemplo, chave para
respondermos questo do por qu das revoltas de escravos da Siclia e de Esprtaco no
terem se convertido em revolues, apresentando uma alternativa societria, uma soluo para
a crise da Repblica. O conceito de formao econmico-social, que nos permite a anlise
particular, especfica e objetiva da economia escravista romana, suas etapas e seu
desenvolvimento, ser devidamente desdobrado na parte da pesquisa dedicada a isso e nos
fornecer subsdio para um estudo mais rico e aprofundado do tema. Alm disso, debruarnos-emos sobre os conceitos de classe social, conscincia de classe, classe em si e classe
para si, assim como outros termos, entre eles ideologia e estrutura de sentimentos, no que se
11
refere anlise especfica das classes sociais subalternas. Sabemos que somente as classes
dominantes alcanaram uma verdadeira conscincia de classe na Antiguidade e procuraremos
nesta dissertao abordar o quanto isso interferiu no curso da luta dos subalternos, que
sofriam a influncia da ideologia da classe dominante que atuava no sentido de desagregar
aqueles movimentos rebeldes, ao mesmo tempo que os escravos rebeldes formavam uma
classe na sua luta por liberdade, desenvolvendo algum grau de conscincia, atravs de
lampejos de conscincia que se manifestavam na situao extrema da luta aberta (fato raro na
Antiguidade). Se por um lado os escravos antigos nunca tiveram uma genuna conscincia de
classe, no se conformando numa classe para si, por outro, desenvolveram um sentimento de
classe, uma identidade entre si (coletiva), que servia para separar o ns do outro, sendo o
outro o inimigo, aquele que os prendia em suas correntes. O entendimento dos fatores
envolvidos nestes eventos, auxilia-nos na elaborao de uma concluso o mais satisfatria
possvel acerca do processo que levou fatalmente derrota dos escravos rebeldes, selando o
seu destino e o daquela sociedade para sempre.
O contexto das revoltas tambm ser abordado como condio bsica de seu
entendimento. Ao olharmos para o perodo em que se desenrolaram os levantes dos escravos
de Roma, percebemos um ambiente de transformaes em curso e de crise da antiga estrutura
poltica e social. Nos sculos II e I a.C. modificaes profundas no interior da sociedade
romana provocaram abalos severos na superfcie. As transformaes pelas quais passou o
modo de produo escravista em Roma acentuaram as contradies daquela sociedade,
levando mais tarde crise da Repblica. neste contexto que se inserem as grandes revoltas
de escravos de Euno e Esprtaco. Mas no podemos compreender em sua totalidade os
fenmenos que so objeto deste estudo apenas com uma anlise de conjuntura. Uma anlise
que privilegie a longa durao, numa perspectiva mais estrutural, previamente necessria
neste caso. Assim, estudando o processo de maneira mais global, recuando um pouco no
tempo, tendo como ponto de partida o sculo IV a.C. com a aprovao provavelmente nessa
poca da Lei Petlia Papria, que estabeleceu a abolio das dvidas dos camponeses e a
proibio de escraviz-los, por serem cidados romanos, at o sculo I d.C. ao analisarmos a
difuso do discurso estico que fundamentava a nova ideologia dominante para a sustentao
do regime imperial e escravista. Em suma, se por um lado o nosso estudo estar centrado no
perodo dos sculos II-I a.C., estabelecendo um corte cronolgico que abarque a crise da
Repblica Romana e de ecloso das grandes rebelies servis, por outro, s possvel
compreender o processo ora exposto na longa durao, tentando captar a totalidade deste
12
caminharam e lutaram, entre outros, Crasso, Euno e Esprtaco e seus dramas, conjugando
personagens, enredo e cenrios numa narrativa que desnude os problemas apontados pela
pesquisa. Esta tragdia foi encenada no palco do grande Imprio do Mediterrneo.
13
14
mesma coletnea1. Na Tese de Snia Rebel de Arajo2 tambm podemos encontrar as mesmas
fontes traduzidas, assim como no trabalho de Ciro Flamarion Cardoso, na coletnea de fontes
e comentrios crticos em Trabalho compulsrio na Antiguidade3. A obra De Agri Cultura de
Cato da mesma coletnea, onde pode ser encontrada a obra de Varro, numa traduo para
o ingls feita por William Davis Hooper4. Neste caso especfico, a falta de tempo apenas nos
obrigou a excluir Cato. Na obra de Peter Garnsey, Ideas of Slavery from Aristotle to
Augustine5, encontramos fragmentos de Aristteles e Sneca, com suas posies divergentes
sobre a escravido, com a defesa de Aristteles da teoria da escravido natural, a teoria mais
acabada acerca da escravido, produzida na Antiguidade, e a reflexo de Sneca, sculos mais
tarde durante o Principado, sobre a necessidade de se estabelecer uma relao harmnica entre
senhores e escravos, sem uma defesa do fim da escravido, mas ponderando sobre a
brutalidade excessiva empregada pelos senhores e condenando tal atitude, reivindicando, e
isso o mais importante, a humanidade dos escravos. Ao analisar as fontes, pudemos
1 WIEDEMANN, Thomas . Greek and Roman Slavery. Baltimore: The Johns Hopkins Press, 1981.
2 ARAJO, Snia Regina Rebel. A Viso dos Letrados sobre Rebelies de Escravos no Mundo Romano: Uma
Abordagem Semitica de Fontes Literrias. Volumes I e II. 1999. 198 f. Tese (Doutorado em Histria) Instituto de
Cincias Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niteri. 1999.
3 CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. Trabalho Compulsrio na Antiguidade. Rio de Janeiro: Edies Graal, 1984.
4 HOOPER, William Davis . De Agri Cultura. Londres: William Heinemann Ltd., 1979.
5 GARNSEY, Peter . Ideas of Slavery from Aristotle to Augustine. Nova Iorque. Cambridge University. Press,
1996.
15
7 JOLY, Fbio Duarte . A escravido na Roma antiga: poltica, economia e cultura. So Paulo: Alameda Casa
Editorial, 2005.
16
absoluto da teoria da escravido natural de Aristteles pelo discurso estico, visto que os
escravos continuaram a ser mercadorias e a serem encarados como tal, mas foi produzida uma
fissura (talvez este seja o termo mais preciso) no discurso ideolgico da classe dominante. E
aquilo que j era percebido no plano individual, nas relaes diretas entre determinado senhor
e determinado escravo, nas relaes concretas, particulares que o escravo era um ser
humano , com as vitrias do exrcito espartacano sobre o exrcito romano e a tomada do
poder de Estado na Siclia pelos escravos rebelados era alado para a esfera pblica e
admitido nas obras histricas, filosficas e literrias, apresentando as demonstraes de
coragem e inteligncia das lideranas dessas revoltas e em muitos casos, como afirmou tmida
e rapidamente Plutarco, a prpria base desse exrcito, os soldados recrutados entre os homens
mais brutos, da classe mais baixa, os trabalhadores das lavouras, os escravos dos ergstulos,
mesmo que depois os autores reafirmassem o carter dos escravos, segundo a viso elaborada
pelo discurso escravista, descrevendo o que estes escritores interpretaram como indisciplina,
destacando os elementos que poderiam enfatizar a superioridade do exrcito romano de
cidados e de homens livres. Esta ambiguidade, portanto, permanece, mas a brecha
conquistada nos prprios relatos da classe dominante, que nos permitiu escrever uma histria
do ponto de vista dos escravos a partir destas linhas de reconhecimento de sua humanidade e
capacidade de organizao o que pretendemos pr em destaque8.
Por fim, importante dizer que esta pesquisa tem uma histria e uma trajetria, tendo
se iniciado como uma comunicao ainda nos tempos de graduao e tomado a forma de uma
monografia anos mais tarde, at que, enfim, corporificou-se nesta dissertao de mestrado.
Sendo assim, trata-se aqui de uma sntese daquilo que j foi pesquisado e exposto tambm em
outras ocasies, com as concluses possveis at o momento a esse respeito. fundamental
destacar que esta no pode e nem tem a pretenso de ser uma obra definitiva acerca do tema.
apenas uma releitura de um assunto de conhecimento do pblico leigo, ainda que
superficial, e que guarda um histrico de debates bastante fecundo e que nos serve de ponto
de partida para a presente discusso, havendo importantes referncias na historiografia
sovitica, interpretaes tanto no campo weberiano ou de autores influenciados por Weber
quanto no marxismo ocidental e que permitem a construo de um texto repleto de referncias
8 Desenvolveremos essa discusso para a comprovao de nossa hiptese ao longo do trabalho, partindo do texto
de Plutarco, Crasso, apud WIEDEMANN, Thomas, op. cit.; ARAJO, op. cit.
17
valiosas. Desde j, pedimos desculpas pela quantidade excessiva de citaes que se seguiro
nas prximas pginas, mas sendo a anlise do discurso a nica ferramenta de que dispomos
neste caso e algumas explicaes acerca da teoria sejam necessrias para a construo de uma
linguagem comum sobre o assunto a partir desta perspectiva e abordagem, torna-se inevitvel
citar textualmente quase que cada autor.
A proposta de mostrar a trajetria de homens que foram legados ao esquecimento a
essncia do que realmente fazer uma histria das bases, do ponto de vista dos vencidos, e
uma crtica da histria, ou pelo menos da histria oficial e das verdades contidas nas fontes.
importante salientar que alm do mtodo comparativo, utilizaremos o mtodo estruturalista
gentico de Lucien Goldmann na anlise dos textos 9. Devo mencionar ainda a referncia a
Finley e Bradley, assim como Snia Rebel de Arajo e Ciro Cardoso para o desenvolvimento
deste estudo. Moses Finley, dedicado pesquisador da escravido, afirmou que em toda a
histria existiram somente quatro grandes revoltas de escravos: as duas da Siclia, a revolta de
Esprtaco e a revoluo de escravos negros do Haiti. As trs primeiras, ocorridas na
Antiguidade, foram derrotadas; e a ltima, ocorrida no perodo de revolues burguesas, de
desenvolvimento do capitalismo e de propagao das idias iluministas, foi vitoriosa. Desse
modo, assim como a escravido moderna, o escravismo colonial, serve para projetar luz sobre
problemas referentes escravido antiga, a resistncia dos escravos na Amrica pode
ressignificar as rebelies de escravos da Antiguidade e todas as demais formas de resistncia.
Se verdade que se aprende mais com as derrotas do que com as vitrias, ento estamos no
caminho certo. Sem falar no prazer do desafio, do quebra-cabeas que retrata a prpria
essncia do que a Histria: um quebra-cabeas com peas faltando. E por isso, precisamos
reconstruir os fatos, reconstruir mentalmente as peas que faltam, num exerccio de lgica e
imaginao. exatamente disso que se trata no trabalho em questo.
9 GOLDMANN, Lucien. A Sociologia do Romance. Traduo de lvaro Cabral. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Paz e
Terra S.A., 1976.
18
CAPTULO I
INTRODUO
Assim como impossvel construir as paredes e o teto de uma casa sem antes construir
a sua base e as colunas que a sustentam, devemos comear a nossa anlise pelo estudo da
estrutura social em que se desenrolaram as revoltas de escravos da antiga Roma. Neste
captulo, dedicar-nos-emos a sentir o cho em que pisamos antes de tratar dos diversos seres
que sobre ele transitam e que neste espao interagem. Isto no significa paralisar a realidade,
congel-la como numa fotografia. A realidade um movimento contnuo e toda anlise sria
tem que levar a todo instante este eterno devir em considerao e perceber todo o conjunto de
relaes existentes, captando a totalidade e no uma ou outra parte isoladamente, sob pena de
no compreendermos sequer a pequena parte estudada com tanto afinco e to intensamente.
Partiremos de um nvel macro de anlise e utilizaremos ainda o mtodo comparativo
para que possamos compreender toda a complexidade da estrutura social em questo. nesse
sentido que uma exposio, mesmo que breve, do escravismo colonial e sua comparao com
o escravismo antigo de grande valia para o completo entendimento das aes dos homens e
mulheres que lutaram e sonharam neste captulo da histria, relacionando o escravismo antigo
com a escravido moderna, buscando, atravs de padres, semelhanas, mas tambm das
diferenas e especificidades, compreender melhor uma sociedade que nos deixou menos
vestgios que as sociedades escravistas coloniais.
Uma exposio do quadro terico e metodolgico a ser utilizado faz-se essencial no
sentido do estabelecimento de um dilogo claro entre autor e leitor, travando as polmicas
com base no pleno conhecimento dos pressupostos desta pesquisa, isto , a escolha das fontes,
19
o que elas informam e o que silenciam, bem como o ponto de vista adotado na confeco
deste trabalho e na consecuo dos resultados obtidos mediante a confrontao da hiptese
com os relatos de Plutarco, Apiano, Diodoro e Aristteles. Desvendar as falhas que se
perpetuaram pela memria coletiva do povo romano e que se refletiram de alguma maneira na
histria oficial dos autores da poca e dos modernos historiadores que interpretaram aqueles
eventos, tendo como referncia uma concepo de mundo de uma classe social, uma viso de
mundo expressa pela pena de seus literatos e idelogos, a tarefa a qual nos propomos,
traando para tanto um plano de trabalho a ser apresentado neste momento.
20
Sendo assim, Gorender afirma que o escravismo colonial era um modo de produo
historicamente novo e que no se tratava de uma repetio do escravismo antigo agora em
outro ambiente. O ltimo tem caractersticas prprias e se insere num contexto bastante
distinto daquele do perodo da conquista e colonizao da Amrica.
A validade de uma anlise comparativa entre duas estruturas sociais diversas e
separadas no tempo e no espao, estando sempre presente o risco do anacronismo, afianada
pela prpria necessidade da aplicao do mtodo nesses estudos, tendo em vista a escassez de
dados e fontes de vrios tipos, a exclusividade dos escritores da classe dominante enquanto
autores dos textos que relatam a histria romana e a ausncia de vestgios arqueolgicos em
casos cruciais para que tivssemos algo o mais prximo possvel de uma certeza.
Desse modo, podemos considerar legtimo o recurso s analogias entre a escravido
antiga e moderna, desde que sejam observadas as respectivas diferenas existentes entre
ambas. Arajo segue ainda nesta linha de raciocnio no trecho seguinte, aplicando na prtica,
em sua prpria pesquisa, condensada em sua tese, o mtodo comparativo para desvendar os
segredos da escravido antiga luz das observaes e dados pertinentes escravido
moderna, mais abundantes e em larga medida vlidos:
21
O historiador Fbio Duarte Joly aponta tambm, nesse sentido, para os recursos e
perspectivas relativos s pesquisas sobre as sociedades escravistas e sobre a escravido. Tendo
a sua ateno centrada nos estudos acerca da sociedade escravista romana, no deixa de
perceber o escravismo num contexto mais amplo, o que abre a possibilidade de que sejam
traadas analogias teis na obteno de respostas que no podem ser fornecidas somente pela
anlise das fontes dos escritores antigos. No primeiro captulo de seu livro A escravido na
Roma antiga Joly escreve:
quase consenso atualmente, no campo dos estudos histricos, que a Itlia antiga,
sobretudo entre os sculos III a.C. e II d.C., fez parte, ao lado da Grcia clssica, do Brasil,
do sul dos Estados Unidos e do Caribe ingls e francs entre os sculos XVI e XIX, do restrito
grupo de sociedades escravistas. De acordo com o historiador Moses Finley (1991, p.84-5),
uma sociedade genuinamente escravista quando a escravido se torna uma instituio
essencial para a sua economia e seu modo de vida, no sentido de que os rendimentos que
mantm a elite dominante provm substancialmente do trabalho escravo.13
Isto significa que, ao contrrio do que preconizava uma viso evolucionista que
ganhou grande adeso de inmeros intelectuais diante da forte influncia poltica e terica do
stalinismo, principalmente no perodo da Guerra Fria, de que o escravismo seria a primeira
etapa de desenvolvimento de todas as sociedades de classes, seguida pelo feudalismo at o
12 ARAJO, op. cit., pp.152-153
22
capitalismo e, por fim, o socialismo, numa lgica linear, a escravido existiu enquanto modo
de produo em algumas poucas sociedades ao longo de toda a histria. Muitas sociedades,
em vrios continentes, contextos polticos e econmicos e pocas contaram com escravos na
produo ou com a existncia de uma parcela da populao que fosse escrava, mas sociedades
onde a mo-de-obra escrava exerceu papel fundamental na produo da riqueza social e na
produo da riqueza e reproduo e manuteno do poder e do modo de vida da classe
dominante foram raras. E ainda assim, o escravismo antigo existiu enquanto modo de
produo somente na Grcia e em Roma, enquanto o que existiu no Brasil, no sul dos Estados
Unidos e no Caribe foi um modo de produo distinto, tambm escravista, mas diferente do
modo de produo escravista antigo. Isto no quer dizer que o modo de produo escravista
colonial no guarde similitudes com o seu parente distante e ancestral em termos histricos e
cronolgicos o escravismo antigo possibilitando um estudo comparativo entre os dois
modos de produo.
Perry Anderson descreve o mundo greco-romano como um produto da escravido
antiga, estando um e outro ligados de modo absolutamente inseparvel. Para ele, a
Antiguidade grecorromana tambm era essencialmente mediterrnea, sendo o mar que leva
este nome a estrutura bsica e profunda de todo o seu desenvolvimento e civilizao.
Enquanto se observarmos a escravido moderna o Atlntico o palco de todo o comrcio de
mercadorias e trfico de escravos, o espao que liga aquele mundo formado por metrpole e
colnia, o Imprio Romano teve como palco de suas guerras e batalhas hericas, a sua
expanso e o estabelecimento de sua civilizao, a solidificao de sua cultura e seu
comrcio, de sua economia e relaes sociais, o mar Mediterrneo, sendo a escravido a base
de todas as relaes econmicas do imprio, aquela que garantia todo o esplendor da Cidade
Eterna. E justamente isso que diferencia Roma de todas as civilizaes do Oriente e do
Ocidente anteriores sua conquista, como nos informa o referido autor:
23
Antiguidade a Grcia, nos sculos V e IV a.C., e Roma, do sculo II a.C. ao sculo II d.C. ,
foram aquelas em que a escravido era macia e generalizada, entre outros sistemas de
trabalho. 14
14 ANDERSON, Perry. Passagens da Antiguidade ao feudalismo. Traduo de Beatriz Sidou. 5. ed. So Paulo:
Editora Brasiliense S.A., 2004.
24
sobre grandes massas de cativos de acordo com o grau de desenvolvimento do pas, segundo
nos informa o historiador Ciro Flamarion Cardoso.15
A escravido por dvidas e o hilotismo configuram-se em duas formas de servido
que predominaram na Antiguidade. E onde se enquadra a escravido-mercadoria que estamos
investigando? O surgimento de uma sociedade escravista descrito por Finley e por ele
destacada a multiplicidade de situaes em que se encontravam os escravos, razo pela qual
se ope aplicao do conceito de classe social para o escravo antigo, sendo, desse modo,
uma classe jurdica, uma propriedade, e este fato era o essencial para Moses Finley. O escravo
era uma mercadoria que podia ser comprada e vendida; era um estrangeiro desenraizado,
obtido atravs da guerra, do comrcio, da pirataria e encarado como propriedade daquele que
o aprisionou e que podia ser alugado, vendido ou libertado, se isso fosse da vontade de seu
senhor; a totalidade do poder do senhor sobre o escravo, no dispondo o ser humano
escravizado sobre o seu corpo. Nas palavras do prprio Finley:
A discusso levantada por Finley tem o mrito de expor as diversas situaes dos
escravos antigos ao contrrio das usuais generalizaes, que pouco servem para o avano do
conhecimento histrico. Os argumentos contrrios tese apresentada aqui sero expostos
15CARDOSO, Ciro Flamarion. Trabalho Compulsrio na Antiguidade, op. cit., p.29.
16 FINLEY, Moses. Escravido antiga e Ideologia Moderna. Traduo de Norberto Luiz Guarinello. Rio de Janeiro:
Edies Graal Ltda, 1991, p. 79.
25
mais adiante no texto. Mas por ora o que nos interessa entender o funcionamento da
sociedade escravista e como ela surge. O trecho a seguir trata das condies para o
nascimento de uma economia baseada na escravido-mercadoria em oposio teoria da
conquista, que atribui a origem do sistema escravista em Roma s suas guerras de expanso.
O argumento contrrio o seguinte:
Dito de outra forma, meu argumento que a demanda precede logicamente a oferta
de escravos. Se os romanos aprisionaram vrias dezenas de milhares de homens, mulheres e
crianas, no curso das guerras itlicas e pnicas, foi porque existia uma demanda de escravos
e no o contrrio. A existncia de uma demanda suficiente requer, ao menos, trs condies
necessrias. A primeira, num mundo predominantemente agrrio, a propriedade privada da
terra, suficientemente concentrada em algumas mos para que a fora de trabalho
permanente necessite de mo-de-obra extrafamiliar. A segunda um desenvolvimento
suficiente dos bens de produo e mercado para a venda (para a presente discusso
irrelevante tratar-se de um mercado distante, um mercado de exportao em sentido vulgar ou
de um centro urbano prximo). Hilotas e outras formas de trabalho dependente podem,
hipoteticamente, ser empregados em sociedades que no produzem mercadorias, mas no
escravos, que devem ser regularmente importados em grande quantidade, e cujo preo precisa
ser pago. A terceira condio negativa: a inexistncia de mo-de-obra interna disponvel,
obrigando os agenciadores de trabalho a recorrer a estrangeiros. Todas as condies devem
existir simultaneamente, como em Atenas e outras comunidades gregas no sculo VI a.C. e em
Roma, pelo menos desde o sculo III a.C.17
26
No caso da Grcia mais avanada, o sculo VI a.C., parece ter sido aquele em que
as condies acima se reuniram todas. O nico caso bem documentado (relativamente, alis)
o da tica. Nesta regio, h sinais de um aumento da populao, de uma concentrao da
propriedade rural em mos da aristocracia dos euptridas, de um progresso da urbanizao e
da produo para o mercado desde os primeiros sculos da poca Arcaica, intensificando-se,
porm, quanto mais nos aproximamos do sculo VI a.C. Em tal contexto, as reformas de Slon,
em 594 a.C., vieram garantir a terceira condio, tornando doravante impossvel o
recrutamento interno de mo-de-obra dependente. Os camponeses antes escravizados ou
reduzidos servido por dvidas, tornaram-se na sua maioria cidados, voltaram a ser
pequenos proprietrios e, como hplitas (soldados da infantaria pesada, organizados em
falanges disciplinadas), passaram a constituir a base das foras armadas atenienses. Tais
camponeses, escapados fazia pouco tempo da servido por dvidas, no trabalhariam
voluntariamente, em carter permanente, para os proprietrios mais ricos. A situao assim
criada, a escravido j existente como instituio intensificou-se, chegando-se ento
gradualmente a um verdadeiro modo de produo escravista. De fato, dadas as caractersticas
das foras produtivas vigentes, o surgimento e consolidao da categoria homem
livre/pequeno proprietrio/cidado/soldado dependeu do estabelecimento do escravismo.19
18 PRADO, Caio. Formao do Brasil Contemporneo: colnia. 23. ed. So Paulo: Editora Brasiliense S.A., 2004,
p. 122. A explicao para o uso da mo-de-obra escrava na Amrica colonial tambm pode ser encontrada em
CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. A Afro-Amrica: A escravido no novo mundo. In: Coleo Tudo Histria.
So Paulo: Editora Brasiliense S.A., 1982. A utilizao do mtodo comparativo, neste caso, possibilita a construo de
uma explicao plausvel e contribui no sentido de confirmar a tese de Finley acerca da precedncia da demanda por
mo-de-obra permanente para a produo mercantil para o surgimento de uma sociedade escravista.
27
No caso romano, Snia Regina Rebel de Arajo localiza o ponto crucial para o
desenvolvimento do modo de produo escravista, baseado no escravo-mercadoria, em Roma:
Assim, podemos considerar, com base nos autores citados acima, o modo de produo
escravista como uma forma original e especfica de apropriao do excedente do trabalho e
um tipo especfico de trabalho compulsrio, sendo bastante restrito a determinadas regies e
delimitado no tempo enquanto modo de produo dominante, mesmo que a escravido
enquanto instituio tenha existido em vrias sociedades e pocas de forma relativamente
disseminada. E este ltimo fato a fonte de maiores confuses. A sua difuso deve ser
comparada com a sua amplitude e importncia poltica, econmica, cultural e social em cada
sociedade onde existiu. Condies especficas geraram o escravismo antigo e o escravismo
colonial. A inexistncia de mo-de-obra interna disponvel, a falta de braos, foi um fator
preponderante no surgimento das sociedades escravistas. Alm disso, a produo escravista
est voltada para o mercado. No caso das colnias americanas, esta era uma forma de
economia majoritariamente dirigida para o abastecimento do mercado externo.
Schiavone utiliza o mtodo comparativo para examinar o escravismo antigo, luz das
anlises e dados de que dispomos sobre a escravido moderna, justificando ainda a utilizao
28
29
30
em que a escravido se conformaria no caso romano. Mas, neste trabalho, o que nos interessa
o protagonismo dos prprios escravos em sua luta por liberdade, nas diversas formas de
resistncia, espordica e cotidiana, em maior e menor escala; interessa-nos igualmente como
este fato se integra ao todo, ou seja, que papel estes seres humanos coisificados,
mercantilizados, reduzidos servido, transformados em propriedade privada de outrem,
desempenhou no desenrolar dos acontecimentos e na prpria ideologia e psicologia da classe
dominante.
Gza Alfldy24 explica os mecanismos de funcionamento da sociedade romana
primitiva. As mudanas estruturais que se processaram em Roma levaram a que os escravos,
antes membros da famlia romana, se tornassem estranhos em relao aos senhores, sendo
agora brutalmente explorados e, em sua maioria, desprovidos de qualquer lao ligando-os
sociedade na qual foram integrados contra a sua vontade. A separao completa que passou a
existir entre uns e outros e a crescente diferenciao social gerou um dio de classe sem
precedentes antes, fazendo com que os escravos identificassem uns aos outros enquanto iguais
e seus senhores como seus inimigos, criando, se no uma conscincia de classe, pelo menos
um sentimento de classe.
Na estrutura da sociedade romana arcaica o escravo desempenhava uma funo
muito distinta da que viria a desempenhar no perodo de fins da Repblica e incio do
Principado, auge do sistema escravista em Roma:
A escravatura s pde desenvolver-se na organizao social patriarcal da poca
arcaica por lhe ser atribuda uma funo na famlia, ncleo da vida social e econmica. Esta
forma patriarcal da escravatura, que conhecemos tambm na histria de outros povos, por
exemplo, na histria grega por intermdio da epopia homrica, divergia bastante da
escravatura do fim da Repblica e da poca imperial. Por um lado, o escravo era considerado
propriedade do seu senhor e no tinha direitos pessoais; era objeto de compra e venda e por
isso designado no apenas pelo nome de servus mas tambm pelo de mancipium
(propriedade); era tambm menos considerado que o homem livre, como no-lo demonstra
uma medida prevista pela Lei das XII Tbuas: quem partisse os ossos a um escravo era
obrigado a pagar apenas metade da compensao devida a quem infligisse uma leso
semelhante a um homem livre. Mas, por outro lado, a posio do escravo na famlia pouco
diferia da dos seus elementos. Era, tal como estes, membro a pleno da unidade familiar, fazia
a sua vida juntamente com eles e podia manter um contato pessoal estreito com o pater
famlias. Estava sujeito ao poder do pai de famlia tal como a esposa ou os filhos deste, que
o pai podia castigar ou at vender como escravos (nunca mais que trs vezes, segundo a Lei
das XII Tbuas). A sua funo econmica em pouco se diferenciava da dos membros livres da
31
famlia, pois para alm das suas tarefas como criado trabalhava como agricultor ou pastor na
propriedade da famlia, na companhia dos outros membros livres.(...)25
Desse modo, podemos perceber a mudana que se processou no sculo II a.C., com o
rpido desenvolvimento da escravido-mercadoria, como consequncia da Segunda Guerra
Pnica. O caminho j havia sido aberto pela Lei Petlia Papria e agora apontava-se para a
desagregao completa da antiga forma de escravido. Essas transformaes radicais foram a
base das rebelies servis e, em larga medida, das modificaes no governo e no Estado
romanos. O exerccio de comparar a escravatura arcaica com a escravido-mercadoria, a
escravido com outras formas de trabalho compulsrio no Mundo Antigo e a escravido
antiga e a escravido moderna permite-nos observar em detalhes as razes econmicas das
guerras entre senhores e escravos em Roma e os mecanismos de funcionamento do
escravismo antigo.
Em Alfldy, vemos a relao que os escravos e seus senhores estabeleciam e o que
ocorreu mais tarde com a disseminao da escravido-mercadoria, rompendo os antigos laos,
desestruturando e desfazendo as antigas relaes sociais. Nascia agora um novo mundo, que
era marcado pela imagem de grandes faixas de terra trabalhadas por verdadeiros exrcitos de
homens escravizados, trazidos do estrangeiro como prisioneiros de guerra.
importante destacar que no ainda o comrcio que diferencia o desenvolvimento
das sociedades escravistas de Roma e da Amrica. verdade que o comrcio mundial
capitalista alcanou propores inimaginveis na Antiguidade clssica, mas uma circulao
mercantil considervel tambm existiu na Roma antiga. Principalmente, a partir da segunda
metade do sculo II a.C. e os conflitos sociais da Repblica romana, envolvendo a disputa dos
Graco com a aristocracia senatorial e a conjurao de Catilina, passando ainda pela guerra
social, contexto poltico e social atravessado pelas maiores revoltas de escravos da
Antiguidade, houve um crescimento dos capitais comerciais e da circulao de mercadorias
no interior do imprio e no Mediterrneo. No entanto, a mentalidade aristocrtica, que no
privilegiava o reinvestimento, mas sim o consumo daquilo que era produzido, esgotando o
produto excedente em ostentao, sendo mais importante para a classe dominante romana a
ampliao de seu luxo e poder, atravs no s de sua riqueza, mas tambm do status, do que a
25 ALFLDY, op. cit., pp. 26-27.
32
aplicao desses capitais novamente no circuito produtivo. Para Aldo Schiavone este fato
que explica porque a sociedade romana permaneceu uma formao muito mais de ordens do
que de classes26. A lgica do escravismo antigo impunha-se aqui de maneira poderosa. O seu
trabalho tinha como funo manter e ampliar no s a riqueza econmica, mas tambm o
status, o luxo e tudo aquilo que representava o modo de vida da nobreza romana, uma classe
de origem guerreira, proprietria de terras com um elevado nvel de absentesmo, tendo a seu
servio administradores escravos, e que vivia para a poltica e a guerra. Em suma, era uma
classe social que via negativamente o trabalho manual. A sociedade romana era
profundamente marcada pela difuso da escravido-mercadoria, pela desvalorizao do
trabalho e pela ausncia de mquinas, que eram, naturalmente, substitudas pelos msculos
dos homens e mulheres escravizados. A aristocracia era o modelo daquela sociedade, sendo
vista como a melhor classe. E a liberdade aristocrtica era o oposto no s do trabalho
escravo, mas de qualquer trabalho manual, repetitivo e mecnico por natureza e que podia
muito bem ser executado igualmente por escravos. De incio, o trabalho das famlias
camponesas em suas prprias terras representava a autonomia desses homens, ao contrrio do
trabalho dos artesos, voltado para agradar e suprir as necessidades de outrem, que sempre foi
mal visto. No entanto, o desenvolvimento do sistema escravista no pode ter deixado de
influenciar de forma determinante a mentalidade coletiva de toda a sociedade. Esta uma
diferena fundamental entre os dois modos de produo, apesar de serem ambos baseados na
escravido-mercadoria: aqui o capital comercial no servia de combustvel para uma
industrializao, esgotando-se em si mesmo; a mo-de-obra escrava funcionava como
substituta do baixo nvel tecnolgico e garantia a ociosidade da aristocracia e a participao
poltica dos cidados.
33
34
sobre o Mediterrneo abriu o caminho, naquele momento, para uma revoluo municipal
que desse luz a um novo Estado municipal itlico, com um projeto de organizao
romano-itlica no centro do imprio, resultando na plena integrao das municipalidades
itlicas, fundada na plena participao na poltica e no poder de maneira efetiva das camadas
de cidados antigos e novos do territrio da pennsula.27
A nobreza senatorial no conseguia ver a si mesma como dirigente de um novo Estado
municipal itlico, entrincheirando-se na defesa dos seus privilgios. A luta feroz contra os
Graco e seu projeto reformista acabou sepultando a Repblica romana para sempre. Do
enfrentamento dos Graco com a nobreza senatorial at a Guerra Social esteve colocada uma
possibilidade real de renovao democrtica e de manuteno do regime republicano, com a
limitao da propriedade da terra e do nmero de escravos na Itlia, a restaurao do exrcito
romano enquanto uma milcia de cidados, a partir da redistribuio das terras pblicas,
fundao de colnias e ampliao do campesinato itlico e da cidadania romana para todos os
italianos, com a antiga glria conferida aos cidados romanos comuns, plenos de direitos e
participao poltica, econmica e militar. Com a conquista da cidadania romana pelos
itlicos, mesmo aps a derrota militar, este processo poderia ter sido retomado e um novo
curso na histria de Roma seria dado. Mas as conquistas militares de Csar e Pompeu, com
um novo afluxo de escravos, de cerca de um milho, como nunca antes houvera, a aquisio
de novas terras na Glia e novos recursos no Oriente terminaram por enterrar de vez o projeto
de democratizao da sociedade romano-itlica.
A partir de um determinado momento, a estrada que seguia em frente apresenta uma
bifurcao: no jogo de foras polticas e sociais da sociedade romana do perodo de crise da
Repblica os destinos coletivos so decididos. A classe dominante romana decide apostar num
caminho que considerou mais seguro. A nobreza senatorial abriu mo de parte de seu antigo
poder para seguir usufruindo plenamente de seus privilgios materiais. As sociedades
humanas fazem escolhas e as crises so momentos de oportunidade. O regime do Principado
apontou para uma estabilidade poltica e social que mantinha as condies econmicas
vigentes. Na medida em que no existiam foras polticas e sociais homogneas, coesas e
consistentes o suficiente para se opor seriamente ao projeto aristocrtico de revoluo
passiva, esta alternativa acabou prevalecendo. No entanto, este fato no deve servir para
27 SCHIAVONE, op. cit., pp.251-257.
35
obscurecer o processo real que existiu para os homens concretos e reais de uma dada poca.
Os resultados finais desse processo so o produto de uma correlao de foras existente na
conjuntura crucial para a definio do futuro daquela sociedade. Resgatar, portanto, as
alternativas que estiveram em jogo dar voz aos vencidos e compreender com maior clareza e
em maior profundidade as perspectivas de futuro que fizeram parte do passado. nessa
direo que aponta Schiavone:
36
37
Romano. A catstrofe era, desse modo, adiada, mas de forma alguma contornada e, muito
menos, impedida. O problema no era resolvido, mas postergado para que as geraes futuras
pagassem o preo da oportunidade perdida. O desmoronamento do Imprio Romano, a sua
crise e a sua queda, estavam absolutamente ligadas crise do sistema escravista. Mas isso no
importava para os grandes proprietrios de terras e de escravos que ocupavam as cadeiras do
Senado no momento da crise republicana. Eles mantiveram seus rendimentos e seu modo de
vida; e isso lhes bastava. Schiavone define o regime instaurado por Augusto como sendo o
sistema poltico que possibilitava o desenvolvimento pleno daquele sistema econmico:
O milagre romano atingia assim a sua plena projeo mundial: o imprio nunca
unificou as economias provinciais, mas construiu uma rede de interdependncias e de relaes
dantes desconhecida. O fracasso em aproveitar a nica oportunidade para se desenvolver no
provocou a curto prazo qualquer colapso. A paz de Augusto possibilitou, pelo contrrio, a
plena maturidade do sistema, embora sob um equilbrio sem perspectivas. A busca da
compatibilidade mais favorvel entre explorao provincial, produo escravista e expanso
comercial no foi uma inveno apenas romana: j tinha tido seu laboratrio em Atenas. Mas
foram as classes dirigentes do imprio que estenderam o experimento at a construo da
primeira economia-mundo de nossa histria.30
38
(...) De uma maneira mais exata e completa, podemos dizer que as foras produtivas
tpicas de um modo de produo dado representam a articulao histrica especfica entre: o
objeto de trabalho (recursos naturais e matrias-primas...) e o meio de trabalho (instrumentos
de produo...), que formam de conjunto os meios de produo; e os homens que participam
no processo de produo, considerados segundo suas capacidades fsicas e mentais. (...)32
32 CARDOSO, Ciro Flamarion Santana; PREZ, Hctor. El Concepto de Classes Sociales. San Jos, Costa Rica:
Editorial Nueva Dcada, 1982, p. 20.
39
34 Idem, ibidem, p. 9.
40
produtores ou para o comrcio local, era quantitativamente superior em todo o imprio. Este
plano da economia romana garantia a sobrevivncia da maior parte dos habitantes das
provncias e da Itlia.
As tecnologias que eram produzidas numa determinada regio podiam ser levadas para
outras reas atravs da migrao de inventores e artesos, assim como atravs do comrcio.
Outra maneira de disseminao de novas tcnicas foram as guerras de conquista:
As guerras tm sido desde os primrdios um meio notvel pelo qual processos
tcnicos e tcnicas tem sido transferidas de uma rea outra. A transferncia podia ter vrias
formas, dependendo da relao entre os rivais, e os mtodos pelos quais o vitorioso
consolidava suas conquistas.36
41
42
43
Por meio dos textos dos escritores antigos, podemos penetrar na sua viso de mundo.
As obras de Diodoro, Plutarco ou Apiano so marcadas pela ideologia da classe dominante
romana. A imagem dos escravos projetada por eles expressa o ponto de vista de sua classe.
Isso no invalida, de maneira alguma, o recurso interpretao e anlise destas fontes para a
compreenso do fenmeno em questo. Pretendemos exatamente extrair destes textos os
44
elementos que nos permitam construir uma imagem o mais prxima possvel da realidade
objetiva. Podemos aproveitar os relatos destes intelectuais orgnicos da aristocracia romana
com a finalidade de perceber o impacto que as lutas dos escravos tiveram na psicologia da
classe dominante. Este precisamente o caso do relato de Plutarco que deu origem nossa
hiptese.
A atualidade deste debate e a atrao exercida por estas fontes e tema ainda hoje so
impressionantes. Os textos bem escritos e que expressam com tanta clareza a histria romana
na perspectiva da nobilitas com certeza fazem ecoar ainda hoje as palavras que chegaram
desse modo at ns, oferecendo a oportunidade de se entender um captulo to decisivo e
extraordinrio da histria da humanidade. Junto do brado aristocrtico pode-se notar ressoar o
grito dos milhes de oprimidos, quase inaudvel, e, sem dvida, fragmentado. A imagem dos
vencidos aparece desbotada, borrada, mas ainda possvel ver as cores que a compunham e as
formas, mesmo desfiguradas, de um quadro permanentemente incompleto.
No que diz respeito aos escritores que produziram os relatos sobre as revoltas da
Siclia e de Esprtaco, temos que as suas obras foram escritas num momento posterior ao das
prprias revoltas. No caso da revolta de Esprtaco, os relatos foram produzidos j no perodo
do Principado. Conhecendo os referidos autores (Apiano, Plutarco e Diodoro) possvel
entender mais facilmente a forma como os textos foram escritos e o seu contedo. Apiano era
um grego de Alexandria e um cidado romano que escreveu seus textos no sculo II d.C.
Plutarco foi outro intelectual grego, de Queroneia, viveu entre a segunda metade do sculo I
d.C e a primeira metade do sculo II d.C. Ele foi sacerdote de Apolo em Delfos e era de
tendncia filosfica platonista. Diodoro da Siclia escreveu sobre a revolta de escravos
liderada por Euno no sculo I a.C, um sculo depois do acontecimento daquela revolta.
Mesmo que no tenha sido a nica perspectiva adotada pela classe dominante romana,
o paradigma da escravido natural de Aristteles tinha a sua fora, na medida em que este
filsofo produzira uma teoria mais acabada e sistematizada do que qualquer outra. Aristteles
foi um dos maiores filsofos da Grcia antiga, o aluno mais brilhante de Plato e o preceptor
de Alexandre, o Grande. Assim como Aristteles, Cato outro autor importante para
compreendermos uma das vises existentes e possveis acerca dos escravos e da escravido na
Antiguidade e, por isso, ser, mesmo que de forma sumria, exposta a sua viso sobre a
melhor maneira de se conduzir de modo lucrativo as fazendas e de como se comandar o
trabalho dos escravos, alm da percepo dos mesmos como simples mercadorias. Cato
(234-149 a.C.) passou sua juventude na fazenda de seu pai em Sabina e escreveu mais tarde
45
um importante tratado sobre como se conduzir uma fazenda e dirigir o trabalho dos escravos
na lavoura o De Agri Cultura e lutou na Segunda Guerra Pnica. Sem sombra de dvida,
podemos afirmar que a sua experincia de vida ajudou a moldar a sua concepo sobre os
escravos. Estes dois autores apresentam concepes mais rgidas sobre a relao homem livre
e escravo, produto de seu tempo a Grcia do sculo IV a.C. e a Repblica romana dos
sculos III e II a.C.
A nossa hiptese de trabalho, importante destacar, brotou da prpria anlise das
fontes, especialmente com a leitura do relato de Plutarco, que lanou luz sobre um problema
fundamental: os escravos eram desumanizados pela ideologia escravista. Mas em sua luta eles
enfrentaram homens livres romanos como iguais, com coragem, inteligncia e destreza,
qualidades tipicamente humanas. E manifestaram um valor moral elevado, demonstrando que
escravos, que eram inferiorizados no discurso oficial e na prtica sociais, podiam expressar o
melhor daquilo que eram consideradas como virtudes pelos romanos. Foi esta constatao que
norteou toda a nossa pesquisa.
Partimos de uma premissa: a de que a ideologia escravista, tal como havia sido
formulada por Aristteles, perdeu sua eficcia enquanto instrumento de dominao dos
proprietrios sobre os escravos e enquanto instrumento de coeso social. Com isso, as ideias
de Sneca sobre a humanidade dos escravos ganhariam relevo enquanto discurso integrante de
uma nova forma de dominao social, como parte do conjunto de novos instrumentos
poltico-ideolgicos desenvolvidos pela aristocracia romana, no regime do Principado, para
assegurar o seu domnio de classe. Na verdade, a classe dominante romana j expressava
anteriormente, em muitos casos, uma viso distinta daquela exposta de maneira rgida pelo
discurso aristotlico; e na outra ponta, talvez o discurso estico tenha sido um dos mais
radicais no reconhecimento da humanidade dos escravos mesmo que no propusesse o fim
da escravido, coisa que no estava colocada na Antiguidade contando com a adeso de
alguns importantes membros da aristocracia romana, mas no todos. De qualquer forma, a
ecloso de revoltas de escravos daquela magnitude, na proporo das revoltas de Esprtaco e
de Euno, no poderiam passar despercebidas. De fato, as rebelies servis foraram a classe
dominante romana a uma reformulao de sua prtica e de seu discurso. No havia como estes
acontecimentos no produzirem uma fissura no paradigma escravista republicano e realarem
ainda mais a ambiguidade do discurso escravista, manifestada de maneira muito clara nos
escritos de Plutarco e de Apiano. , portanto, da pena de Plutarco que nasce a possibilidade de
46
Esta foi a mais dura batalha de todas. Ele (Crasso) matou doze mil e trezentos, e
apenas dois deles foram encontrados com ferimentos nas costas: todos os outros ficaram
firmes em seus postos e morreram combatendo os romanos. (Plutarco, Crasso,
Ch.11.3)39
47
parcial, mesmo que apresentando um ponto de vista de uma classe sendo este ponto de
vista, o da classe dominante e o seu discurso, aquele que coesiona toda a sociedade e tem por
objetivo dirigir a ao e o pensamento tambm das demais classes sociais, legitimando o seu
domnio sustentar a velha concepo aristotlica da escravido natural, por exemplo. O
discurso dominante sofrera uma fissura e era preciso reinvent-lo, recicl-lo e reafirmar os
princpios e pressupostos da nobilitas com base em outros instrumentos mentais e categorias
tericas mais eficazes e lgicas nesta nova situao aberta.
A luta de classes na Roma antiga foi, principalmente, a luta entre ricos e pobres,
patrcios e plebeus, nobreza versus massas urbanas e camponesas e a luta poltica entre
optimates e populares, setores divergentes da prpria classe dominante, e uma luta que era,
em suma, protagonizada pelos homens livres. Apesar disso, a luta de classes entre senhores e
escravos no foi inexistente e a Primeira Revolta de Escravos da Siclia inaugura uma nova
fase neste conflito social, abre uma nova etapa na luta de classes da Roma antiga. Esta
rebelio escrava, ao mesmo tempo, representava o ponto culminante de um processo de
resistncia e luta que vinha se intensificando, num contexto de cada vez mais instabilidade
poltica e social, sendo, portanto, um dos inmeros atos que compuseram o eplogo de uma
etapa da luta de classes na Roma antiga, durante a fase final do perodo republicano; e o
princpio de uma nova fase de grandes lutas, de grandes revoltas, que iria de 135 a.C. at 71
a.C., entre a primeira metade do sculo II a.C. e a primeira metade do sculo I a.C., isto ,
num espao de tempo de mais de sessenta anos. Foram dcadas de lutas dos escravos. Agora
era a vez dos escravos tambm obterem conquistas na sociedade romana. Este perodo das
grandes revoltas servis se encerra com a guerra de Esprtaco, mas suas consequncias iro
perdurar e influenciar a estrutura do prprio Imprio. Mais adiante, trataremos das reformas
do Principado, mas a principal vitria foi simblica. A adoo do discurso estico por um
setor importante da classe dominante nos primeiros sculos do regime imperial e a posio
mais moderada dos esticos frente escravido, mais compreensiva e humana em relao aos
escravos, bem como a sua pregao de uma relao harmoniosa entre amos e servos,
demonstram uma mudana significativa na forma de se encarar o escravo tambm na esfera
pblica, tanto por parte do Estado quanto no mbito da filosofia e, portanto, da ideologia e do
meio intelectual. A intelectualidade e a burocracia de Estado admitiam que os escravos
deveriam ser respeitados como seres humanos e tratados bem, ressalvando que os mesmos
deviam obedincia aos seus mestres e proprietrios e que qualquer tipo de rebelio seria
severamente condenada, assim como o seriam os maus tratos que os escravos viessem a
48
sofrer. Alm disso, mesmo entre aqueles que no eram adeptos do discurso estico, a distncia
dos senhores de escravos do perodo do Principado para o perodo republicano bastante
ntida. Alis, a crtica esboada pelos prprios autores, responsveis por produzir verdadeiras
crnicas daquelas revoltas, aos senhores do tempo das rebelies servis s seria possvel com
alguma mudana, nem que fosse uma sutil e mesmo pequena inflexo no sentido de uma outra
forma de ver e pensar, distinta da anterior. Mas o que foi realmente significativo foi a
mudana no mbito do Estado. Os proprietrios de escravos da Siclia quando da poca da
revolta de Euno no garantiam o alimento e o vesturio adequados de seus servos, sua
propriedade, e o governo nada fazia quanto a isso. Parece que, neste sentido, o prncipe
passou a cumprir um papel de rbitro destas relaes, no sentido de reconhecerr tambm
alguns direitos aos escravos e, deste modo, evitar novas insurreies.
Devemos agora analisar de forma mais minuciosa o significado histrico e social do
impacto das grandes revoltas servis de Roma e a maneira como posto em relevo no relato de
Plutarco. Ao entrarmos em contato com o trabalho de Gorender, pudemos perceber concluses
bastante semelhantes com aquelas esboadas nesta dissertao, no que se refere aos breves
comentrios feitos pelo historiador citado sobre a escravido e as revoltas dos escravos em
Roma. Ele comea discutindo a contradio inerente condio escrava, que ao mesmo
tempo coisa, por ser uma propriedade, e um ser humano. Os fragmentos a seguir ajudam a
esclarecer este problema:
49
50
Itlia continental, nos dois ltimos sculos da Repblica. Com Antonino Pio, a legislao do
Imprio considerou crime de homicdio a morte, sem justo motivo, do escravo prprio, como
j o era a do escravo alheio pela Lei Cornlia. O escravo tambm ganhou o direito de
reclamar a mudana de senhor no caso de sevcias. A legislao imperial proibiu o envio de
escravos arena do circo para combate contra feras.42
Neste ponto crucial, a opinio de Jacob Gorender conflui com as nossas constataes.
Pretendemos desenvolver esta hiptese junto com uma hiptese terica em que analisada a
razo essencial para que estas revoltas no tenham se tornado revolues, pelo menos no no
sentido de revolues sociais. O conceito de revoluo tem sido encarado quase somente do
ponto de vista da revoluo social, mas este no o nico tipo de revoluo possvel. Em que
medida uma ou outra dessas revoltas no se configura numa revoluo poltica, por exemplo?
Esmiuar o problema e desvelar todos os limites e possibilidades que estiveram colocadas
para estes homens e as histrias possveis e como o fato da possibilidade de vitria polticomilitar destes escravos, mesmo que de forma parcial, influenciou no curso dos
acontecimentos. Qual foi a relao dessas rebelies com o fenmeno do cesarismo e o
advento do Principado?
Snia Regina Rebel de Arajo trata do impacto concreto das revoltas da Siclia e de
Esprtaco sobre a organizao poltica e social de Roma e de sua influncia no surgimento do
regime cesarista:
(...) o Imprio foi uma ditadura militar organizada para trazer ordem e pacificao
sociais. Tratava-se, ento, de exigir moderao dos senhores relativamente aos subalternos,
de um lado, e obedincia destes aos superiores, inclusive no que concerne a esposas e filhos,
da a Lex Julia De Adulteris Coercendis,(...). Quanto aos escravos, os imperadores, inclusive
Augusto, deram-se conta do perigo representado por estes, tanto pelo seu nmero expressivo,
quanto no que tange s revoltas do perodo republicano. Tentou-se evitar, portanto, que
houvesse exacerbao do tratamento conferido aos servos, editando os imperadores, uma
srie de leis contendo e proibindo abusos e castigos excessivos dos escravos pelos senhores.43
Isto demonstra de forma patente a relao entre estes movimentos de rebelio armada
das classes subalternas e a criao de um Estado rbitro das relaes sociais e dos conflitos
42 GORENDER, op. cit., p. 66.
51
polticos e sociais. Enfim, um ltimo exemplo de uma leitura das fontes sobre as revoltas feita
a partir de uma perspectiva marxista e que enfatiza o papel desses movimentos na mudana
ocorrida na mentalidade da classe dominante e na reformulao de seu discurso social pode
ser encontrada ainda em Arajo, numa afirmao que se assemelha a de Gorender e corrobora
com a hiptese defendida nesta dissertao:
A dicotomia da viso dos romanos sobre eles seres humanos e coisas permeava
todas as relaes sociais que envolvessem escravos: uma contradio essencial a este modo
de produo, e tal contradio o fulcro da minha hiptese geral de trabalho.
E no entanto, os escravos resistiam como podiam, tentando mudar sua posio
individual de cativos. Os tipos de resistncia variaram muitssimo de acordo com as
circunstncias, mas quero deixar claro que acredito firmemente que sua resistncia atingiu
duramente os senhores, em sua crena na inferioridade do escravo e em seu patrimnio
tambm, por motivos diversos fugas, suicdio de escravos, sabotagem na ameaa pblica
que esta resistncia sempre representou, com maior ou menor intensidade ao Estado
Romano.44
Assim, o eco das fontes chega at ns e o que podemos ouvir de realmente relevante
que aquilo que era afirmado na teoria pelos representantes e intelectuais da nobreza no
correspondia exatamente realidade objetiva, com o reconhecimento da humanidade dos
escravos sendo declarado abertamente, mesmo quando os escritos tentavam neg-lo.
Ao contrrio dos escritores do perodo do Principado, durante o perodo republicano
tanto o tratamento conferido na prtica aos escravos quanto o discurso ideolgico partiam
mesmo havendo excees da premissa de que o escravo era semelhante a um animal e sua
nica funo, a nica razo de sua existncia era proporcionar lucro e bem-estar ao seu amo.
Cato era o porta-voz desta tendncia dominante na Repblica. O escravo, para ele, era, antes
de mais nada, uma propriedade; e um instrumento de produo destinado a retirar do solo a
riqueza do proprietrio rural. Mas, para isso, a fazenda deveria ter boas condies estruturais
de clima, bom solo e numa localizao favorvel para a comercializao daquilo que
produzido. Uma boa terra e bem trabalhada seria fonte de grande prosperidade ao senhor
sempre. O papel a ser cumprido pelo vilicus tambm era fundamental. O que era esperado do
capataz foi descrito por Cato para que servisse de modelo para o bom andamento do trabalho
na lavoura e para que se assegurasse o cumprimento das tarefas que cabiam aos escravos:
52
E a lista de obrigaes do uillicus seguem, sempre com o alerta de que deveria estar
absolutamente submetido s ordens do senhor, estando apenas a administrar em seu lugar o
andamento do trabalho. Na prtica, quem conduzia os trabalhadores plantao, os punia
diante das faltas e garantia o sucesso da produo era o capataz. A aristocracia romana era
absentesta e estava muito mais envolvida com os negcios e a vida na cidade, com a poltica
e a guerra do que com as questes puramente econmicas. Na sua ausncia, um escravo que
estava acima dos outros e que era o seu brao direito, o seu supervisor, cumpria o conjunto de
afazeres relativos terra e aos escravos. Este escravo, no entanto, tambm precisava ser
vigiado e mantido sob a mesma disciplina, sendo este um dever do proprietrio. A sade e
bem-estar dos demais servos e o arbitramento das querelas existentes entre eles tambm eram
responsabilidades do capataz.
Em Joly a viso do escravo para Cato destacada de forma bastante precisa,
evidenciando a preponderncia do carter do escravo enquanto propriedade sobre todos os
outros aspectos para o referido autor:
53
Em primeiro lugar, fica claro que para Cato, em ltima instncia, a responsabilidade
pela prosperidade dos negcios do prprio proprietrio. Cabe a ele verificar cada dado, cada
trabalho que foi executado ou que deixou de ser executado e porqu. O capataz deve
comandar os demais escravos, mas o senhor deve comandar o capataz, que deve a ele total
obedincia. O senhor deve fiscalizar o trabalho do capataz. O mesmo deve ser cobrado,
prestar contas quanto sua tarefa de superviso da fazenda e dos servos. Quanto aos escravos
que trabalham diretamente na produo, o proprietrio deve encar-los como simples
mercadorias. Os escravos velhos e doentes devem ser descartados e vendidos. O senhor deve
se livrar daqueles servos que no forem mais eficientes e, portanto, lucrativos. Os escravos
so comparados no texto s ferramentas e ao gado. Os escravos velhos vm logo depois das
ferramentas velhas e assim como os bois velhos e o gado em mau estado devem ser
descartados. assim que a aristocracia romana do perodo republicano, ou uma poro
importante dela, enxergava aqueles seres humanos escravizados. Eles eram comparados a
instrumentos e animais. No texto, eles aparecem ao lado de vrias outras mercadorias, ao lado
de tudo aquilo que pode ser comprado e vendido. Eles eram parte de um conjunto de coisas
que s existiam para dar lucro ao proprietrio, para lhe garantir riqueza, e o mesmo deveria
fazer de tudo para evitar prejuzos.
Desse modo, podemos perceber que Cato fornecia o modelo de proprietrio de terras
e intelectual da aristocracia romana de sua poca, sob a Repblica. Retomando aquilo que
afirmamos no incio: sero as grandes revoltas servis que foraro a classe dominante a rever
suas prticas e seu discurso. Como vimos acima, Sneca nos fornece o exemplo maior do
novo discurso social inaugurado no regime imperial, como parte constitutiva de um novo
conjunto de mecanismos de controle social, novos mecanismos poltico-ideolgicos de
dominao. Assim, a aristocracia refora o seu domnio de classe como tambm retoma em
sua plenitude a direo da sociedade atravs do seu ponto de vista de classe, tornando-se no
s classe dominante, mas classe dirigente. Entretanto, teve de abrir mo de conduzir
diretamente o Estado, que passou a ser dirigido pela figura do Csar, o imperador,
assegurando a paz social.
46 Apud
54
5 A LANTERNA DA TEORIA
O empirismo lana a cincia histrica num beco sem sada. Somente por meio da
lanterna da teoria que podemos compreender inteiramente um fenmeno. De qualquer
modo, sempre olhamos para a realidade com uma lente que ajustada de acordo com um
determinado quadro terico. Sendo assim, mesmo que nos proclamemos avessos a qualquer
teoria ou elaborao a priori de uma hiptese, como condio necessria para a pesquisa,
ns sempre encaramos a vida a partir de uma perspectiva, de uma viso de mundo, que no ,
de modo algum, individual, determinada pelas fontes ou pelo mtodo simplesmente, mas que
social, de classe, ideolgica e embasada ou influenciada por uma teoria, qualquer que seja.
A referncia teoria ser permanente em todo este trabalho, permear cada discusso e
fundamentar os problemas levantados em cada captulo, fornecendo os instrumentos para a
sua soluo. Abordaremos o conceito de classes sociais e de conscincia de classe com a
profundidade possvel num texto como este, trataremos da conceituao das revoltas que so
nosso objeto dentro do paradigma marxista e investigaremos o conceito de revoluo. Mas
primeiro, devemos comear por definir se os escravos antigos eram ou no uma classe social.
Para isso, precisamos definir o que, do ponto de vista do marxismo, aqui adotado, uma classe
social.
Ciro Cardoso, Hctor Prez e Theotnio dos Santos so os autores que utilizaremos
para abrir este debate. Ciro Flamarion Cardoso e Hctor Prez apresentam, em seu livro El
concepto de clases sociales, a definio de classes sociais elaborada por Lnin, segundo a
qual as classes sociais so grupos reais, concretos sendo critrios fundamentais para distinguilas: o lugar ocupado num processo de produo dado; a relao entre os meios de produo e
o papel na organizao social do trabalho, que depende das relaes de produo, da diviso
social do trabalho e do nvel e das formas de desenvolvimento das foras produtivas,
podendo-se concluir a partir da que s tem sentido falar em classes sociais no contexto de
modos de produo historicamente determinados; outro critrio se refere distribuio,
como os meios de obteno e o volume da parte da riqueza social de que dispe cada classe;
por fim, o conceito de classes sociais aparece como inseparvel do conceito de explorao do
homem pelo homem.47
47 CARDOSO, Ciro Flamarion Santana; PREZ, Hctor. El Concepto de Classes Sociales, op. cit., pp. 14-15.
55
Assim, impossvel pensar classes sociais sem relacionar este conceito com o
conceito de explorao. A existncia de proprietrios e de no-proprietrios, de dominadores e
de dominados, de opressores e oprimidos, de exploradores e de explorados, revela-nos que as
classes sempre se constituem numa relao de antagonismo, sendo, por isso, o conceito de
classe social indissocivel do conceito de luta de classes. Isto significa, por fim, que no
podemos falar de classe social de forma isolada. Ao falarmos de classe social estamos sempre
falando de uma relao social e de uma relao social de explorao numa determinada
relao de produo. As contradies nem sempre se manifestam de forma aberta em grandes
lutas e revolues. No caso dessa pesquisa, trata-se de uma anlise das grandes rebelies de
escravos na Roma antiga, mas essa contradio tambm poderia muito bem ser encontrada
nas fugas dos escravos ou mesmo na baixa produtividade no trabalho ou destruio de
equipamentos ou o seu mau uso como forma de boicote ou de expresso qualquer de sua
rejeio sua condio de opresso.
Os autores ainda se opem queles estudiosos que, a exemplo de Max Weber, propem
a conceituao da sociedade no num sistema de classes, mas sim de estratificao social,
baseada em critrios como status, poder poltico, etc; ou queles que diferenciam as
sociedades pr-capitalistas da capitalista, afirmando que no havia classes nas sociedades prcapitalistas e sim castas, estados ou ordens. Os autores explicam que, no marxismo, estes no
so conceitos excludentes, por possurem um status terico diferenciado. No marxismo, a
sociedade de classes aparece como produto da desagregao das sociedades comunitrias
primitivas. Os diversos tipos de estratificao social que existiram nas sociedades prcapitalistas sejam castas, estamentos ou ordens, tinham um carter poltico, jurdico ou tnico,
no sendo de forma alguma alternativo a um sistema de classes baseado nas relaes de
produo, mas, sim, complementares e relacionados com ele.
O historiador Ciro Flamarion Cardoso, no que diz respeito ao tema da escravido,
defende que os escravos antigos formavam uma classe social48. Para Ciro Cardoso, no so
48 CARDOSO, Ciro Flamarion. Economia e Sociedade Antigas: Conceitos e debates. In: Sete Olhares sobre a
Antiguidade. Braslia: Editora UNB, 1994, pp. 186-190.
56
Deve-se talvez, neste ponto, levantar uma questo importante: o recuo das
interpretaes das sociedades antigas como sociedades de classes no se liga unicamente ao
uso inadequado de tal conceito no passado; nem se deve s a razes polticas e ideolgicas.
Ter sido ainda mais influente nesse sentido a presena, no seio do pensamento marxista
desde o prprio Marx , de uma dicotomia terica no emprego do conceito, o que terminou
levando a uma ciso entre os que s aceitam falar de classes quando se puder detectar uma
clara conscincia de classe e lutas de carter poltico entre as classes (presena de classes
para si formando um sistema antagnico) e outros que seguem Marx e Engels num emprego
mais geral do conceito (constatao da existncia de classes em si ou determinadas
economicamente). Na primeira opo, no pr-capitalismo, unicamente as classes dominantes
chegaram a adquirir conscincia, o que faz com que s sob o capitalismo contemporneo
encontremos sistemas de classes antagnicas em que tambm as classes dominadas possam
desenvolver uma conscincia adequada a seus interesses classistas. Na segunda opo, no
haveria inconveniente em estender a anlise das classes a toda a histria humana ps-tribal,
embora admitindo-se considerveis especificidades aos sistemas pr-capitalistas de classes 49
57
De maneira ainda mais sistemtica e didtica, Theotnio dos Santos expe com
detalhe e exatido o contedo destes conceitos:
Cabe, uma vez mais, relacionar esta discusso conceitual com o caso concreto que o
objeto de nosso estudo. Os escravos antigos formavam uma classe na medida em que
compartilhavam das mesmas condies de existncia, tinham em sua maioria a mesma
localizao na produo e na pirmide social; ou seja, no seu caso, estavam na base da
produo da riqueza social e da reproduo social das classes dominantes, da manuteno e
ampliao de sua riqueza, poder e modo de vida. Neste sentido, eram uma classe em si, que
chegou a desenvolver um certo grau de conscincia, pois conseguiu se organizar de forma
independente, autnoma em relao classe dominante, enquanto classe, levando em
49 CARDOSO, Ciro Flamarion. Economia e Sociedade Antigas: Conceitos e debates. In: Sete Olhares sobre a
Antiguidade, op. cit., p. 187.
50 SANTOS, Theotnio. Conceito de Classes Sociais. Traduo de Orlando dos Reis. 2. ed. Petrpolis: Editora
Vozes S.A., 1983, pp.30-31.
58
6 A ARMA DO MTODO
possamos ter uma viso mais correta dos fenmenos. Neste trabalho, especificamente,
trata-se de um fenmeno que ser analisado num perodo pr-estatstico. Ainda preciso
considerar que na histria no dispomos da possibilidade de realizar experincias como
nas cincias naturais. A maneira que temos de compensar e possibilitar uma aproximao
com o modelo lgico da experincia atravs do mtodo comparativo. No estudo das
sociedades escravistas, isto se torna ainda mais necessrio e til.
O maior perigo, neste mtodo, o de cometer anacronismos, principalmente
quando se comparam sociedades distintas no tempo e no espao e estruturalmente
diferentes. Existe outro problema, que se refere prpria verificao. Na presente
pesquisa, o risco de extrapolao daquilo que podemos realmente inferir a respeito dos
processos estudados real, diante da falta de dados, da escassez de fontes. A aferio
adequada das fontes disponveis condio bsica para a realizao de um trabalho
verdadeiramente cientfico sobre o tema. Desse modo, ser o carter dos testemunhos
conservados e que nos foram legados que determinaro a verificao possvel, no se
devendo preencher arbitrariamente as lacunas existentes, mas sendo preciso utilizar, no
entanto, todos os instrumentos disponveis para superar os obstculos impostos por uma
documentao insuficiente.
Outro mtodo que dever ser empregado nesta dissertao uma contribuio de
Lucien Goldmann. Com o seu mtodo estruturalista gentico, poderemos manejar de
maneira mais eficiente os textos dos escritores da classe dominante romana, produtos de
uma poca, de uma sociedade e da viso de mundo de uma classe, tudo isso na pena de
um escritor individual.
A relao dialtica entre foras produtivas e relaes de produo fundamental
enquanto fator explicativo das transformaes sociais, das mudanas e permanncias, das
possibilidades e limites estruturais. O desenvolvimento das foras produtivas determina a
configurao possvel das relaes de produo. As relaes de produo baseadas num
determinado regime de propriedade social estabelecem a forma e os limites das foras
produtivas de uma sociedade dada. O desenvolvimento das foras produtivas se choca
com os limites engendrados pelas relaes de propriedade e de explorao. Mas isso no
tudo para o marxismo. A contradio entre o desenvolvimento das foras produtivas e
idias so originadas no seu grupo social. Isto no quer dizer que o indivduo reflita
simplesmente a ideologia de sua classe. Por isso mesmo, preciso analisar o texto
propriamente dito, em todos os seus detalhes, e perceber as particularidades do autor e do
conjunto de influncias, ou melhor dizendo, tentar ouvir a infinidade de vozes que ecoam
em unssono da boca e da pena do autor individual. Entretanto, deve-se localizar a voz
mais forte deste coro. O que prevalece e d coerncia ao texto, possibilitando o
entendimento da obra e sua relao com a realidade social em que se insere, a
conscincia de classe. Nesse sentido, uma obra literria, cientfica, poltica e filosfica
sempre obra de uma classe social.
A obra de Plutarco, da qual extramos nossa hiptese, emblemtica. Ela reflete
toda a ambiguidade da relao da classe de senhores de escravos com seus servos, ao
reconhecerem neles homens ou atitudes humanas, ao mesmo tempo em que os tratavam
como animais na teoria e na prtica. O medo e o desprezo aristocrticos pelos escravos
rebeldes tambm bastante visvel em sua obra. As influncias das mudanas polticas,
sociais e filosficas dos primeiros sculos do regime imperial tambm se fazem
presentes. Comparando sua obra com a de Apiano, por exemplo, abordaremos diferenas
sensveis de opinio, enfoque e mesmo divergncia ou omisso quanto a fatos mais ou
menos relevantes. Mas, no essencial, ambos formam uma unidade, possibilitando-nos
uma noo mais ou menos exata dos sentimentos e ideologia da classe dominante
romana.
Podemos destacar ainda a sntese apresentada por Snia Rebel acerca da
metodologia de Lucien Goldmann e de sua aplicao no caso concreto dos estudos da
escravido romana, no sendo esta, de modo algum, uma inovao metodolgica nossa,
mas que cumpre um papel fundamental na comprovao de uma hiptese de trabalho que
est inserida numa pesquisa original, que visa a uma hiptese geral sobre o impacto das
lutas dos escravos sobre a classe dominante e a sociedade romana de conjunto:
Desse modo, situamos este estudo no campo da Histria Social. uma histria
social nos seus dois sentidos: tanto no sentido de uma histria total, ou seja, que articula
os diversos nveis que para efeitos de anlise decompomos e abstramos da realidade,
quanto enquanto uma especialidade centrada no estudo dos grupos sociais, neste caso
especfico, das classes scias e seus conflitos. A seguir, apresentaremos uma citao de
Ciro Cardoso sobre o problema da escassez e dos tipos de fontes (quase sempre da classe
dominante) no caso dos estudos sobre as classes sociais subalternas e suas lutas e a
prpria nfase na investigao dos movimentos sociais e numa histria das massas, dos
grandes agrupamentos humanos, das coletividades:
56 CARDOSO, Ciro Flamarion Santana; PREZ, Hctor. Os Mtodos da Histria. Traduo: Joo Maia. 6. ed.
Rio de Janeiro: Edies Graal, 2002, p. 383.
CONCLUSO
A concluso deste captulo no pode ir muito alm daquilo que j foi exposto
acima. No temos muito a acrescentar a no ser que a apresentao minuciosa de todos os
pressupostos, teorias, conceitos e mtodos tornar infinitamente mais compreensvel o
texto nos seus prximos captulos.
Trataremos, no captulo seguinte, de situar as grandes revoltas servis de Roma no
contexto que as produziu. Por mais que parea algo desnecessrio para aqueles que j
conhecem mais a fundo a histria de Roma, temos a opinio de que muitas das polmicas
existentes no debate de cada histria singular tm sua origem nos mtodos, conceitos,
paradigmas e mesmo na interpretao das sociedades como um todo e que estas
diferenas mais profundas se refletem de forma mais aguda na discusso do objeto de
estudo de cada caso, sem que a polmica se restrinja ao caso em si.
Este captulo introdutrio cumpre o papel de iniciar um dilogo com as fontes e de
traar um caminho para a sua interpretao. Alm disso, busca orientar toda a discusso,
definindo os conceitos-chave e estabelecendo as linhas gerais da dissertao com uma
exposio resumida de cada um dos principais debates e elementos que constituem a
realidade estudada e suas interpretaes. Os limites e possibilidades daquelas revoltas, a
composio social daqueles movimentos, o impacto deles sobre a classe dominante e a
sociedade como um todo e a conjuntura histrica em que se desenvolveram as principais
rebelies servis da Roma antiga e de toda a Antiguidade clssica.
CAPTULO II
Assim, tudo o que Roma tinha de ilustre vivia nos campos e cultivava as terras,
tornando-se costume s a procurar os esteios da repblica. Sendo esse o estado
dos mais dignos patrcios, acabou respeitado por todos; a vida simples e
trabalhosa dos camponeses foi preferida vida ociosa e corrupta dos burgueses
de Roma, e no houve quem, infeliz proletrio na cidade, no se tornasse, como
trabalhador dos campos, cidado respeitvel. No foi sem motivo, dizia Varro,
que nossos magnnimos ancestrais estabeleceram na aldeia o viveiro desses
homens fortes e bravos que os defendiam em tempo de guerra e os nutriam em
tempo de paz. (Rousseau)
INTRODUO
trabalharam, amaram e lutaram nesta regio no tiveram os seus nomes inscritos nos
anais da Histria, foram elas que moldaram a geografia poltica e econmica da regio; e
seus sonhos e suas lutas so os que sero lembrados nestas pginas.
Por ltimo, daremos nfase luta dos irmos Graco contra a nobreza senatorial,
que precipitou uma guerra civil que levaria ao fim da Repblica e abriu um perodo de
grandes possibilidades para os escravos, que souberam aproveitar a dissenso no interior
da classe dominante para lutar pela conquista da sua liberdade; e prpria revolta de
escravos da Siclia, liderada por Euno. Neste captulo, percorreremos os passos dos
homens que estiveram diante de uma alternativa histrica, de um momento em que aquilo
que poderia ser improvvel tornar-se-ia possvel se a luta do campo democrtico liderado
pelos Graco fosse vitoriosa e se seus sucessores seguissem o caminho de uma luta
conseqente por reformas, que terminaria quase que inevitavelmente na j mencionada
por ns revoluo municipal. Mas a luta pelo poder poltico pessoal e, mais que isso,
restrito s altas esferas de uma elite quase que exclusivamente romana, jogou por terra
uma oportunidade histrica. Os escravos rebeldes tambm se elevaram para muito alm
de sua condio, sonharam o seu sonho coletivamente e manifestaram de forma aberta e
violenta o seu humano desejo de libertao do jugo da escravido. Este o panorama de
uma poca em que um futuro alternativo era possvel, um tempo em que outros sonhos
eram possveis, outros modelos de sociedade e um curso alternativo no desenvolvimento
histrico do Ocidente, em especial. Trata-se do momento decisivo que abriu uma vaga de
lutas quase ininterruptas que eram ao mesmo tempo produto e produtoras de uma crise
estrutural sem precedentes e a partir de um determinado ponto do desenvolvimento
histrico sem retorno. O ponto alto da luta de classes na Antiguidade.
58 LUKCS, Georg. A Conscincia de Classe. In: Histria e Conscincia de Classe. Traduo de Telma
Costa. Porto: Publicao Escorpio, 1974, p. 69.
trata pura e simplesmente de se apoderar de terras, escravos, etc, mas tambm nas
relaes econmicas ditas pacficas.59
para o pasto do gado de particulares tambm estava limitado, sendo uma lei que estava
plenamente em vigor at 167 a.C., quando passa a ser mais sistematicamente
desrespeitada pelos grandes proprietrios, que tratavam o ager publicus como sua
propriedade privada, aprofundando o problema e apontando uma dinmica que tendia a
se enraizar na prtica e na conscincia da classe dominante, trazendo efeitos sociais, com
o aumento progressivo do nmero de escravos na Itlia e o empobrecimento e
proletarizao acelerada dos camponeses nas dcadas que antecederam a agitao poltica
de Tibrio Graco, tornando esses trinta anos de no aplicao efetiva da lei determinantes
para cristalizar a posio aristocrtica contra qualquer tipo de reforma que diminusse
seus ganhos imediatos e afetasse de alguma maneira seus interesses privados e
individuais. Esta conjuntura de vitrias militares que consolidaram Roma como a grande
potncia imperial do Mediterrneo e o processo de enriquecimento de uma nobreza antes
guerreira, que se colocava frente de um exrcito campons, de uma infantaria composta
de soldados romanos imbudos da esperana de melhorar de vida, mas tambm de valores
guerreiros e patriticos, atiou sua ambio e a fez cada vez mais parasitria, distante do
prprio local de produo, de onde vinha sua riqueza, absentesta, utilizando o Senado da
Repblica para salvaguardar as posies conquistadas nas relaes internacionais, mas
tambm no mbito interno, reforando todos os meios de obter ganhos, desrespeitando as
leis que no convinham e que no fundo marcavam um outro momento na conjuntura
poltica, econmica e social. Pelo menos por um tempo, Roma no precisaria se
preocupar com a invaso de inimigos externos ou mesmo com a possibilidade de algum
pas, de alguma potncia estrangeira ameaar a sua posio na regio mediterrnica.
Desde 168 a.C., a Macednia no era mais uma ameaa. Em 146 a.C., Cartago fora
completamente destruda, no representando mais uma sria ameaa desde a Segunda
Guerra Pnica. Neste mesmo ano tambm foi destruda Corinto; a Grcia e a Pennsula
Ibrica, na sua maior parte, j estavam ocupadas. Em 148 a.C. a Macednia tornou-se
provncia romana e a frica em 146 a.C., alm de territrios da sia em 133 a.C. E era
desta posio mais segura no plano externo e dos interesses internos em desenvolver a
produo escravista em grandes e mdias propriedades rurais, altamente lucrativa para a
nobilitas, que partia a resistncia obstinada a qualquer tipo de reforma favorvel aos
cidados populares e aos italianos. Os cidados romanos que viviam de seu trabalho, mas
que no tinham laos de dependncia pessoal com os nobres, no eram de seu interesse.
As contradies sociais aguaram-se, uma vez mais, s que no era mais uma luta entre
uma nobreza de sangue e uma ordem formada pelos cidados comuns, ricos ou pobres. A
luta entre ricos e pobres em Roma nunca fora to aberta e declarada. Uma oligarquia
composta pelos ricos e proprietrios das duas antigas ordens explorava agora todos os
recursos do imprio em seu benefcio e relegavam para segundo plano as necessidades
dos homens livres e pobres da nova Roma. Este era o pano de fundo dos primeiros
embates entre reformistas e conservadores no final do regime republicano.
somente analisando este novo contexto histrico e social que podemos
compreender em toda profundidade o carter revolucionrio da proposta de reforma
agrria de Tibrio Graco. Se observarmos atentamente, no era uma proposta de
expropriao dos ricos, mas de limitao legal de sua ao usurpadora do solo italiano,
restaurando ao povo romano o direito social, e tambm poltico tendo em vista o carter
da cidadania romana ainda nessa poca, de posse da terra. De acordo com Ciro Cardoso,
o projeto de lei de Tibrio Graco estabelecia o seguinte:
60 CARDOSO, Ciro F.Sociedade, Crise Poltica e Discurso Histrico-Literrio na Roma Antiga. In: Phonix/
UFRJ. Laboratrio de Histria Antiga. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998, p. 76.
Ciro Cardoso61 relata que o Senado, no podendo barrar a lei como tal (j que os
plebiscita uma vez aprovados eram vlidos mesmo sem aprovao senatorial), tentou
boicotar a atuao da comisso votando uma verba insuficiente para a realizao dos seus
trabalhos; e que, diante da morte de talo III, monarca do reino helenstico de Prgamo
que deixara em testamento o seu reino para Roma, Tibrio teria feito aprovar uma lei que
destinava s rendimentos derivados da nova provncia, o antigo reino de Prgamo, para o
financiamento da reforma agrria estabelecida pela lei Semprnia. Deste modo, Tibrio
Graco entrou num terreno que antes era exclusivo do Senado. Os costumes romanos
reconheciam o Senado como o rgo responsvel pelas finanas, pela poltica externa e
pela diplomacia. A conformao do Imprio Romano e o estabelecimento de uma
economia baseada nas uillae e nos latifndios e na escravido-mercadoria, numa escala
inimaginvel at ento, vedaram permanentemente o caminho para uma democratizao
do Estado romano. A via ateniense no se repetiria em solo itlico. A Itlia era governada
por uma oligarquia solidamente estabelecida, com mecanismos de controle sobre o
processo poltico, de represso e de controle social infinitamente superiores aos que
existiram na Grcia. Nesse sentido, as aes radicalizadas do imperioso tribuno da plebe
assustaram a aristocracia, que tratou de se organizar e de se mobilizar contra um inimigo
to perigoso. A tentativa de reeleio de Tibrio Graco confirmava os seus temores, no
porque pudesse se tornar um rei ao perpetuar-se no poder, coisa que no entanto foi
alegada. O que realmente causava temor que ele pudesse se tornar um Pricles e
governar por vrios anos, apoiado na assemblia popular e contra os interesses mais
imediatos da oligarquia, limitando o seu domnio pleno na economia e na poltica.
Sendo assim, o pontfice mximo Cipio Nasica invadiu com seus fiis a
assembleia popular, que se reunia naquele momento no Capitlio, mesmo diante da
recusa do cnsul que, presente na reunio senatorial que ocorrera nessa ocasio, negarase a agir ilegalmente; Nasica, com sua atuao ilegal, ceifou a vida de seu primo Tibrio
Graco. Atacado primeiro por outro tribuno da plebe, ele e mais de trezentos de seus
61 CARDOSO, Ciro F.Sociedade, Crise Poltica e Discurso Histrico-Literrio na Roma Antiga, op. cit.,
p. 77.
correligionrios foram mortos o que, naturalmente, gerou a ira popular. Por isso,
mesmo dando prosseguimento perseguio da faco de reformistas radicais que se
constitua a partir da polarizao das lutas sociais entre ricos e pobres, mediante um
tribunal especial organizado para condenar morte por conspirao vrios outros
partidrios de Graco, tendo frente deste processo os cnsules de 132 a.C. e o prprio
Cipio Nasica, o Senado foi obrigado a afastar este ltimo da Itlia usando um pretexto e
buscou salvaguardar-se nos processos de enfrentamento futuros, aprovando, em 121 a.C.,
o Senatus consultum ultimum, agora no contexto do embate com o seu irmo, Caio
Graco.
Apiano (Guerras Civis, I, 17) deu bastante destaque a este evento, concluindo ter
sido ele uma espcie de pecado original das guerras civis romanas, onde o uso da
violncia como arma poltica foi empregado pela prpria aristocracia e legitimado por
uma parcela da sociedade:
Desta forma, Graco, o filho daquele Graco que foi duas vezes cnsul, e de
Cornlia, a filha daquele Cipio que abateu a hegemonia cartaginesa, pereceu, enquanto
ainda era tribuno, no Capitlio, por causa de um projeto excelente porm perseguido de
forma violenta. E este crime odioso, o primeiro que teve lugar na assemblia pblica,
no ficou isolado, e de quando em quando foi seguido de outros similares. A cidade, ante
a morte de Graco, se mostrou dividida entre a dor, de um lado, daqueles que se
compadeciam de si mesmos e daqueles, assim como da situao presente, na crena de
que j no existia um governo e sim o imprio da fora e da violncia, e, de outro lado, a
alegria dos que pensavam que tudo havia sado conforme seus desejos. E estas coisas
tinham lugar enquanto Aristnico combatia contra os romanos pelo domnio da sia. 62
ressaltadas por Apiano, que considera este um crime odioso. O crime ainda mais
grave se considerado enquanto o primeiro de muitos, tendo inaugurado uma prtica
poltica que levaria degenerao das disputas polticas em luta fratricida. O projeto de
Tibrio ainda considerado pelo autor como um projeto excelente; se observarmos
atentamente a frase final do pargrafo e a razo que levou Apiano a mencionar o fato,
compreenderemos melhor o porqu. A revolta de Aristnico ocorria exatamente no
momento em que Tibrio Graco era assassinato, justamente aquele que queria restaurar a
classe camponesa romana e ocupar as terras da Itlia com trabalhadores livres, cidados e
membros naturais da milcia camponesa que era o exrcito romano da poca, o mesmo
exrcito que conquistou com o seu valor o mundo mediterrnico. O perigo das revoltas de
escravos ficava evidente para rodos aqueles que viviam naqueles dias e presenciavam os
acontecimentos daqueles tempos de crise. A diviso no seio da sociedade romana tambm
fica aqui evidente com um setor apoiando a medida extrema, ilegal e violenta, contra um
inimigo do poder aristocrtico, e um setor que chorava a morte de um de seus lderes e a
agonia da prpria repblica. O ataque violento ao programa de reformas que favoreceria a
parcela mais desfavorecida da populao tambm foi sentido com tristeza pela maioria do
povo.
A respeito da relao entre as revoltas servis e a necessidade da realizao de uma
reforma agrria pode ser percebida no prprio discurso de Tibrio Graco, quando o
mesmo lanou o seu projeto, sendo este momento descrito novamente por Apiano:
(...) At que Tibrio Semprnio Graco, homem ilustre e notvel por sua
ambio, de grande capacidade oratria e muito conhecido por todos, por todas estas
razes, certa vez, pronunciou um discurso solene, enquanto era tribuno da plebe, com
relao raa itlica em tom de reprovao porque um povo muito valente na guerra e
unido por laos de sangue se estava esgotando pouco a pouco devido a indigncia e a
falta de populao sem ter sequer a esperana de um remdio. Mostrou seu
descontentamento com a horda de escravos por consider-la intil para a milcia e
jamais digna de confiana para seus donos (...)63
(...) o recente descalabro sofrido na Siclia por estes nas mos de seus escravos
por ter aumentado o nmero de servos pelas exigncias da agricultura (...) a guerra
sustentada pelos romanos contra eles (os escravos), que no era fcil, mas sim muito
prolongada em sua durao e envolvendo diversos tipos de perigos.(...) 64
65 BLOCH, Leon. Lutas Sociais na Roma Antiga. Lisboa: Publicaes Europa-Amrica, 1956, p. 160.
de Caio Graco, esta era uma medida excepcional aplicada nas pocas de maior carestia e
que, ao aprov-la em carter ordinrio, concedia-se ao proletariado parte da riqueza social
de Roma, alcanando este proletariado urbano as vantagens que o governo romano
obtinha com a explorao das provncias. J na tentativa de reeleio de Tibrio o povo
urbano havia cumprido um papel de ponto de apoio de sua poltica e foi este fato que
levou uma faco aristocrtica a mat-lo, pois estava obtendo sustentao daquela que era
tradicionalmente a reserva eleitoral da nobilitas. Caio desde o incio procurou ganhar o
apoio deste setor, mesmo que suas medidas fortalecessem o xodo rural de um
campesinato empobrecido que, percebendo as facilidades da vida na capital do imprio,
aflua em ritmo crescente e ainda mais acelerado para a cidade.
Alm disso, Caio Graco procurou dividir a classe dominante romana. Tentou obter
o apoio dos equestres concedendo-lhes alguns dos direitos e privilgios antes exclusivos
ordem dos senadores. Uma dessas medidas foi a de transferir para os cavaleiros os
postos de jurados, at ento reservados aos membros do Senado 66. Caio Graco
continuou, como fizera seu irmo, a apresentar projetos de lei para serem votados
diretamente pela assemblia popular, sem consultar o Senado da Repblica, apoiando-se
nas conquistas histricas do povo romano, como a que foi estabelecida pela lei Hortnsia,
de 287 a.C., fazendo valer por si a deciso tomada pelo povo em plebiscitum. Apesar
disso, era usual consultar o Senado e as medidas dos irmos Graco apontavam para uma
radicalizao da democracia e da soberania da vontade popular, para um reforo do poder
e da legitimidade da assembleia popular em detrimento do Senado. Mas este era um
regime essencialmente oligrquico. A nobilitas no toleraria ver seu glorioso Senado,
fonte de todo o poder e dignidade da Repblica romana, transformar-se num conselho
como a Bul de Atenas ou mesmo em algo prximo disso. Na verdade, a oligarquia
senatorial era incapaz de tolerar a mnima diminuio do seu controle sobre a poltica de
Estado. A assembleia popular romana no seria a Eclsia dos gregos atenienses. O tempo
de fazer concesses ao povo havia terminado. E mesmo quando, no regime imperial,
importantes concesses referentes aos direitos sociais dos cidados do imprio so feitas,
66 BLOCH, op. cit., p. 162.
Ao regressar de frica, Caio Graco verificou que o seu colega Lvio Druso
gozava da confiana do povo. Ao apresentar pela terceira vez a sua candidatura para
tribuno, Graco foi derrotado. O Senado, vendo que o seu poderoso inimigo tinha perdido
a sua anterior influncia sobre as multides, julgou chegado o momento de iniciar a sua
obra de reao. De resto, o momento era extraordinariamente propcio, pois tinha sido
eleito o cnsul Lcio Opmio, o vencedor de Fregella, encarniado inimigo da poltica
dos irmos Gracos. A luta estalou ao propor-se a supresso da colnia Junnia. As
sangrentas cenas que se desenrolaram quando Tibrio foi assassinado voltaram a
reproduzir-se, mas com muito maior fria e violncia. Morreram muitas centenas de
partidrios dos Gracos com os dois representantes mais ilustres do partido reformador:
Caio Graco e Flvio Flaco (121 a.C.).67
Desta vez, a nobreza senatorial cercou-se de artifcios legais para tentar legitimar
a sua poltica violenta de eliminao fsica de seus inimigos polticos. Parece estar correta
a opinio de Apiano: este conflito marcou uma mudana profunda na poltica romana,
sendo um divisor de guas, inclusive na forma que tomaram a partir de ento as lutas
sociais. Na batalha travada entre a nobilitas e o povo, que alcanou um nvel de grande
radicalidade, enquanto no passado a luta entre patrcios e plebeus levara quase
constituio de um Estado paralelo dos plebeus e em momento algum degenerara de fato
para a luta armada durante toda a disputa entre patrcios e plebeus o que se viu foi uma
constante luta poltica , agora a nova aristocracia romana, nova no s por no ser mais
a velha aristocracia patrcia, tendo nascido das lutas entre as duas ordens do incio da
repblica, mas porque era agora uma aristocracia senhora de todo o mundo mediterrnico
e no apenas de uma cidade-Estado, no estava disposta a fazer quaisquer concesses.
Era uma classe dominante que passara a se sustentar do sangue e suor dos milhares de
escravos trazidos de outros pases como prisioneiros de guerra e da explorao das
provncias, nascida das guerras contra Cartago; principalmente, uma aristocracia ainda
mais belicista e imperialista. E era o imperialismo romano que matinha o Estado e a
aristocracia. Os privilgios sociais conquistados por estes nobres distanciam-nos
67 BLOCH, op. cit., p. 166.
enormemente daquela nobreza da sociedade romana arcaica, governante de uma cidadeEstado, como outras tantas cidades-Estado da Itlia e do Mediterrneo. A nobilitas
patrcio-plebeia, em fins do sculo II a.C., governava um imprio de estrutura bastante
complexa e que contava com uma intensa circulao de mercadorias e uma administrao
crescentemente sofisticada. No momento da queda do regime republicano, a realidade
poltica e social j estava transformada e o regime imperial foi uma forma de ajustar o
aparato de Estado a estas novas estruturas:
fortalecimento do poder unipessoal na figura dos tribunos; ou ainda, dos generais, ainda
mais cedo do que realmente aconteceu na histria romana. Portanto, a nobilitas nada mais
fez do que se agarrar s posies conquistadas e tentar mant-las a todo custo. Por outro
lado, verdade que a proposta dos Graco tambm tinha elementos extremamente
positivos, no sentido de evitar o desastre da Repblica, fortalecendo o exrcito de
cidados, com um programa que atendesse aos camponeses, aqueles que constituam as
fileiras do exrcito que conquistou o Mediterrneo, e impediria ou atrasaria, pelo menos,
o seu processo de profissionalizao e portanto a criao de laos de lealdade entre os
soldados e os generais que se tornaram mais fortes do que aqueles entre os cidados e o
Estado, talvez porque mais diretos e reais. De qualquer modo, tanto uma proposta quanto
a outra eram essencialmente reacionrias. A proposta dos Graco, apesar de atender s
reivindicaes das massas e aprofundar a democracia, pretendia fazer a histria
retroceder e isto no era possvel. Talvez as suas propostas fossem, talvez, viveis num
momento anterior, mas no patamar a que havia chegado o desenvolvimento econmico e
social de Roma era, no mnimo, improvvel que fosse possvel restaurar o antigo Estado
campons. J a poltica da nobilitas era essencialmente conservadora. A nobreza
senatorial pretendia congelar o tempo histrico num eterno presente, mantendo
indefinidamente sua Repblica, sua economia e seus privilgios e isto tambm no era
possvel. Na verdade, a nica maneira de manter a economia escravista-mercantil e os
seus privilgios de classe era abrir mo de sua Repblica. Somente o poder unipessoal,
to combatido pelos senadores, desde Tibrio Graco at Jlio Csar, seria capaz de fazer
as concesses necessrias e instaurar um regime de represso permanente que mantivesse
a paz social. Neste sentido, o primeiro passo no caminho da monarquia foi o prprio
senatus consultum ultimum:
trabalho da terra como atividade prpria de homens livres, uma escola de soldados. Com
ela se preserva a antiga estirpe da tribo, que se transforma nas cidades, onde se
estabelecem mercadores e artesos estrangeiros medida que os nativos emigram atrados
pela esperana de maiores riquezas. De qualquer modo, onde h escravido, os libertos
buscam sua subsistncia em tais atividades, muitas vezes acumulando riqueza: por isto, na
antiguidade, estas atividades estavam, geralmente, nas mos deles e, portanto, eram
consideradas imprprias para os cidados; da a opinio de que a admisso dos artesos
cidadania plena seria procedimento arriscado (os gregos, em regra, os excluam dela).
A nenhum romano era permitido levar a vida de um pequeno comerciante ou arteso 72
O resultado disso ser sentido sculos mais tarde, quando a cidadania romana
perderia definitivamente toda a sua importncia poltica. A distino entre cidados e nocidados determinava na Repblica os direitos e privilgios exclusivos da cidadania
romana. Mas com o advento do regime monrquico, j no Alto Imprio, o poder da
assembleia popular foi se perdendo progressivamente e, com isso, era retirado o poder do
povo romano sobre o governo. Segundo Ciro Cardoso 73 foi isso que permitiu que a
cidadania fosse sendo estendida sem maiores problemas aos provinciais at que, em 212
d.C., o imperador Caracala concedesse a cidadania a todos os habitantes livres do Imprio
Romano, com muito poucas excees. No reinado do imperador Adriano, no incio do
sculo II d.C., surge a distino formal e depois tambm legal entre os honestiores, a elite
rica e privilegiada, e os humiliores, a grande massa da populao livre, sendo a
consequncia mais drstica desta nova diviso social sancionada pela lei a possibilidade de
se tratar os humiliores da maneira que era antes reservada aos escravos, podendo agora os
homens livres e pobres do imprio sofrer penas humilhantes como a flagelao, a tortura
nos interrogatrios e o uso arbitrrio da fora pelas autoridades. A proteo e as garantias
de que os cidados romanos antes gozavam frente s autoridades governamentais foram
perdidas no ponto culminante de um processo que teve incio com o empobrecimento e a
proletarizao dos camponeses e o retrocesso nos direitos polticos dos plebeus diante da
As aes dos irmos Graco tiveram consequncias polticas que iam para muito
alm da conjuntura em que se desenrolaram aqueles eventos. As suas idias e o seu
exemplo no podiam ser destrudos com a mesma facilidade com que se destruram os seus
corpos. Um grupo de adeptos tornou-se o continuador do seu trabalho, tendo tomado o
nome de populares ou defensores do povo e as medidas propostas por Caio Graco serviram
de base para o programa da recm-surgida faco popular. Reagindo a este novo
movimento organizado dos reformistas, a faco senatorial passou a autodenominar-se os
optimates, os melhores. No entanto, a luta no era mais entre aqueles que queriam
radicalizar a democracia e fazer valer a vontade popular e os defensores de um regime
puramente oligrquico; o que estava em jogo, agora, era a disputa pelo controle do poder
de Estado. As guerras civis entre populares e optimates giravam em torno da disputa dos
cargos no governo, mas tambm configuravam um confronto de diferentes concepes
sobre qual era a melhor forma de conduzir o Imprio Romano.
Segundo Norma Mendes, os Populares eram aqueles que atravs de programas de
reformas buscavam o apoio do povo e os timos (Optimates) eram os que tinham como
(...) A primeira tarefa de Mrio era reformar o exrcito. Pela fora das
circunstncias, o exrcito deixara de ser, na prtica, a milcia dos cidados, proprietrios de
terra, que atendiam a uma convocao anual. A milcia se transformou, gradualmente, num
exrcito permanente, porque as provncias exigiam a presena de tal fora. A tradio
segundo a qual o exrcito era recrutado exclusivamente entre cidados romanos que possuam
terra tornava quase impossvel alistar com a necessria rapidez o nmero de homens
necessrios.(...) os convocados no desejavam prestar servio durante anos no exrcito,
sabendo durante todo esse tempo que sua propriedade, na ptria, necessitava de cuidados. Ao
mesmo tempo, o nmero de proprietrios decrescia, e a convocao de recrutas recaa
repetidas vezes sobre as mesmas famlias, ao passo que a populao das cidades e aldeias,
que aumentava constantemente, escapava ao servio militar. Mrio realizou suas reformas nos
dias sombrios da guerra com os cimbros e deu fim, para sempre, concepo de um exrcito
de donos de terras. Convocou o proletariado s armas, atraindo-o com salrios e a promessa
de uma recompensa em terras, quando o perodo de servio expirasse. A antiga milcia
transformou-se assim num exrcito profissional, com voluntrios que prestavam longo tempo
de servio.(...)77
O autor continua o texto em que diz que, com esta nova fora, Mrio defendeu a Itlia
contra a invaso dos cimbros e teutes, no ano de 102 a.C., dizimando-os parcialmente no Sul
da Glia e no Norte da Itlia. Esta era a prova da eficincia do novo exrcito e de sua
necessidade nestes novos tempos, tanto pela ameaa externa, mas, principalmente, pelas
mudanas na ordem social da Repblica romana, com o enfraquecimento poltico do
campesinato e dos plebeus como um todo. As medidas dos populares, na verdade, no
apontavam no sentido da restaurao da antiga fora do povo romano, mas no sentido do
poder unipessoal.
A transformao do exrcito, da antiga milcia de cidados num exrcito de
proletrios, na prtica clientes de um general, foi o saldo final da luta entre Mrio e o Senado.
Quando Caio Mrio foi eleito pela sexta vez cnsul em 100 a.C., fez aprovar com o tribuno
Apuleio Saturnino uma lei agrria que concedia terras da recm-conquistada parte do Sul da
Glia. Mas j no era mais um projeto como o de Caio ou Tibrio Graco. As terras foram
concedidas aos veteranos do exrcito de Mrio. Havia, ainda, uma proposta mais ampla de
criar colnias nas provncias ocidentais formadas de cidados romanos e aliados,
romanizando o Ocidente. A oposio aristocrtica a este projeto provocou uma nova luta
armada entre o Senado e o partido popular. Mrio, ento, foi, segundo Rostovtzeff, obrigado
a ajudar o Senado a esmagar a rebelio e a luta de ruas iniciada por Apuleu (Apuleio) e seus
partidrios.78
Dez anos depois do esmagamento da rebelio liderada pelos populares teve incio a
chamada Guerra Social (91-89 a.C.). A tentativa de Lvio Druso de aprovar a lei que estendia
a cidadania romana a todos os italianos instigou os lderes italianos a travar uma luta sem
77 ROSTOVTZEFF, M. Histria de Roma. Traduo de Waltensir Dutra. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1977, p. 109.
trgua em nome deste direito. Druso foi assassinado e os italianos recorreram luta armada
para conquistar o direito de cidadania. Este foi um conflito de grande impacto na sociedade
romana, pois o nmero de mortes s era comparvel ao das Guerras Pnicas. Roma decidiu
negociar e os italianos terminaram por conseguir o seu objetivo, que era a cidadania romana.
Logo em seguida comeava, em 88 a.C., a disputa entre Mrio e Sila. E foi o ltimo que, pela
primeira vez, marchou com seu exrcito contra Roma. Iniciava-se a primeira revoluo militar
da histria romana e a cidade era tomada de assalto, culminando no assassinato de lderes da
faco democrtica e na revogao das novas leis aprovadas por eles. As tropas leais a Sila,
reunidas na Campnia, e que de l partiram e ocuparam a capital, agora seguiam o seu general
rumo ao Oriente para saquear o mximo que pudessem. Com sua partida, os democratas
reassumiram o controle do governo e iniciaram o primeiro longo reinado de terror, esmagando
a resistncia do Senado, eliminando seus inimigos s centenas ao serem delatados, ou por
suspeita, sem julgamento ou investigao. No regime de terror institudo pelos populares, as
vtimas foram todas senadores e cavaleiros, membros da aristocracia. O perodo de massacres
durou dois anos (88-87 a.C.) e no ano seguinte, em 86 a.C., Mrio e Cina, os lderes da faco
popular que estavam frente do processo foram eleitos cnsules, tendo Caio Mrio falecido
logo em seguida. Cina comandou o massacre aos aristocratas, utilizando-se, inclusive, de
bandos de escravos por ele libertados e que depois foram mortos por um destacamento de
soldados gauleses. Foi ele o homem que liderou os carrascos da classe dominante romana. Os
democratas no sairiam impunes pela ofensa e agresso promovida contra a aristocracia e o
seu vingador foi Sila. Ele voltou do Oriente vitorioso e com um rico esplio de guerra. Os
italianos estavam do lado dos democratas, mas muitos desertaram no curso da guerra.
Milhares de cidados romanos e aliados, a maioria samnitas, foram mortos sob as muralhas de
Roma. Sila repetiu o exemplo de Mrio e marchou sobre a cidade, que foi tomada por suas
tropas em 82 a.C. Ele exterminou de modo cruel seus adversrios polticos e introduziu outra
inovao criada no curso das guerras civis: a medida da proscrio. Durante seu governo,
listas de vtimas eram divulgadas, sem qualquer julgamento, inqurito e prova de culpa e era
oferecida uma recompensa aos seus assassinos, mesmo que fossem escravos ou libertos.
Depois da batalha entre Mrio e Sila, Roma nunca mais seria a mesma. Os exrcitos se
transformaram num instrumento poltico nas mos dos generais de que dependia a sua
remunerao e que os usavam de acordo com os seus interesses pessoais. As tropas que antes
no podiam entrar em Roma, no s penetraram em suas muralhas como marcharam sobre ela
e a ocuparam como se fosse a cidade de um inimigo estrangeiro. Os generais comportavam-se
como conquistadores de Roma, que passava a ser de quem a tomasse. A ttica do terror, a
prtica da matana em alta escala e da perseguio poltica, alcanando o mais alto grau ao
instituir-se a proscrio, tornaram-se armas corriqueiras na luta poltica e militar entre os
campos opostos.
Sila agiu no sentido de restaurar a antiga ordem republicana e, ao mesmo tempo,
impugnar as importantes conquistas sociais obtidas ao longo dos anos. Ele ps em prtica
suas reformas sob o ttulo de ditador, escolhido pelo povo por um perodo ilimitado, o que
criou mais um precedente, instituindo-se, assim, o primeiro governo verdadeiramente
autocrtico desde o fim da monarquia etrusca. A autoridade e o poder do Senado foram
restaurados e aumentados. Os senadores voltavam a ter privilgios na administrao da
justia, com a absoluta excluso dos equestres do jri dos mais altos tribunais. Os proletarii
perderam o direito ao cereal barato e os tribunos da plebe passaram a ser severamente
censurados, vigiados e controlados, devendo seus projetos ser apresentados ao Senado e por
este sancionados antes que fossem submetidos discusso e aprovao da assembleia
popular; os ex-tribunos no podiam mais concorrer s mais altas magistraturas, sendo vedado
aos representantes da plebe participar do Senado, governar uma provncia ou comandar um
exrcito. Cnsules, pretores e todos os demais magistrados estavam absolutamente
submetidos ao Senado. Alm disso, como forma de evitar que o Senado da Repblica romana
fosse ameaado em seu poder por uma fora armada, Sila determinou que todos os soldados
que voltassem das provncias para a Itlia deveriam depor suas armas e se transformar em
civis. A Constituio de Sila era essencialmente aristocrtica e recuperava o poder para as
mos da oligarquia senatorial. Foram Pompeu e Crasso, dois antigos partidrios de Sila, que
enterraram sua Constituio em 70 a.C., pelo direito de serem eleitos cnsules sem
permanecerem na cidade, mantendo o seu poder e suas conquistas. Em nome de seus
interesses pessoais, eles se aliaram aos democratas para obter um ganho poltico imediato.
Enquanto isso, destacava-se como liderana da faco popular, Jlio Csar, futuro aliado e
depois rival dos dois novos senhores de Roma.
daquele Estado ou o retorno a uma suposta poca de ouro de Roma. De qualquer modo, a
repblica j estava agonizante e o Senado no podia cumprir mais qualquer papel
dirigente na sociedade romana do sculo I a.C. Sendo assim, em 60 a.C., Jlio Csar,
Pompeu e Crasso constituram informalmente, isto , sem embasamento legislativo,
como um acordo privado entre generais o Primeiro Triunvirato. Csar foi, ento, eleito
cnsul para o ano 59 a.C. e ficou com o governo das Glias Cisalpina e Transalpina por
cinco anos. Ele agia como rbitro das disputas entre Crasso e Pompeu e manteve o quanto
pde o triunvirato, pois de todos era o que menos tinha a ganhar com a retomada do
controle poltico pelo Senado, o que menos tinha influncia naquela instncia, estando
todo o seu poder no exrcito e no povo e no acordo poltico que havia estabelecido por
cima com os lderes mais proeminentes da repblica, agindo quase que totalmente por
fora do Senado. Com a morte de Crasso, foi s uma questo de tempo at que Pompeu e
Csar se enfrentassem. Pompeu foi eleito como cnsul nico, com poderes de ditador, em
52 a.C., para restaurar a ordem social estremecida pelas agitaes polticas na cidade. Em
49 a.C., Pompeu rompeu com Jlio Csar. Csar, ento, atravessou o Rubico, limite da
provncia sob sua administrao com a Itlia, e marchou sobre Roma. Pompeu fugiu da
Itlia e terminou morto na frica, assassinado em nome de Ptolomeu XIV, rei do Egito.
O fim do Primeiro Triunvirato teve como consequncia final a ditadura de Csar. Ele
foi o chefe supremo do Estado romano de 46 a.C. at 44 a.C. Ao contrrio de Mrio e Sila,
no estabeleceu um regime de terror. Pelo contrrio, Jlio Csar procurou trabalhar com seus
adversrios, convocando-os a cooperar com o novo governo. Ele no representou um chefe
democrata no poder, nem tampouco um representante da velha aristocracia. Caio Mrio foi o
representante da plebe e do exrcito de proletrios no governo romano, inimigo mortal da
aristocracia. Sila restaurou o poder do Senado e era o representante da oligarquia senatorial,
sendo no s o lder da classe dominante e de seu domnio, mas da ordem dos senadores em
especial. J Ccero foi o representante da classe dominante em seu conjunto senadores e
equestres , do cartel da ordem, da nobilitas patrcio-plebia e das demais classes
proprietrias, do imprio nascido das Guerras Pnicas. Mas Jlio Csar no pretendia, nem
restaurar o poder do Senado, nem reconhecer a soberania da plebe romana. Ele no era mais
um lder democrata, mas se apoiava nas massas para administrar o Estado. Csar acumulou
vrios cargos, funes e atribuies simultaneamente, foi eleito ditador por um perodo de dez
nos em 46 a.C. e ditador vitalcio em 45 a.C. O Senado passava a se constituir pelos seus
partidrios e, na prtica, funcionava como um conselho. Ele controlava a mquina estatal e
todos os seus funcionrios, nomeava magistrados e promulgava editos sem discusso pelo
Senado. O assassinato de Jlio Csar no foi capaz de reverter o processo por ele iniciado. O
Segundo Triunvirato, formado (desta vez com uma base legal) por Antnio, Otvio e Lpido,
deu continuidade ao trabalho de Csar, dividindo entre seus membros as provncias ocidentais
e encarregando-os da reorganizao do Estado com poderes ilimitados pelo prazo de cinco
anos. Segundo Rostovtzeff80, os itens do acordo firmado entre os trinviros receberam a forma
de lei em 27 de novembro de 43 a.C., com a apresentao e a aprovao de um estatuto pelo
tribuno Tcio. Os trs lderes cesarianos retiraram do Senado os frutos que tanto esperavam de
sua conspirao bem-sucedida. Mas o seu poder estava para sempre solapado e quando os
ltimos defensores do sistema oligrquico foram derrotados em 42 a.C., tratava-se apenas de
uma questo de tempo at que a disputa entre Marco Antnio, senhor do Oriente e aliado de
Clepatra, e Otvio, o escolhido do Senado, representante do Ocidente, da Itlia e de Roma,
se definisse para sempre em favor da monarquia. A questo fundamental era quem seria o
monarca e quem iria comandar o novo imprio, Ocidente ou Oriente. Na batalha do cio, em
31 a.C., a situao estava decidida em favor da Itlia e de Otvio; com a morte de Antnio e
Clepatra, em 30 a.C., e a tomada de Alexandria, capital do Egito, Otvio transformava-se no
nico senhor do Imprio Romano, exercendo o seu poder como o Augusto (de 27 a.C. a 14
d.C.). Formava-se uma monarquia militar que no desprezava o Senado, mas tornava-o
novamente a instituio na qual estava representada a mais alta nobreza romana, sem, no
entanto, o antigo poder que exercera no regime republicano, tendo restaurado unicamente o
seu prestgio. O poder efetivo era do princeps, do Csar.
O nascimento do regime dos Csares pode ser datado tanto a partir do governo de
Jlio Csar, de Otvio, futuro imperador Augusto, e at mesmo de Pompeu, havendo em seu
governo diversos empreendimentos que poderiam ser considerados precursores do
evergetismo dos projetos imperiais, como a construo de teatros e templos. Se observarmos o
processo de conjunto, teremos que vrios personagens, em vrias situaes diferentes,
80 ROSTOVTZEFF, op. cit., p. 143.
Otvio Augusto fundou a monarquia que seu pai adotivo quis fundar. Seguiu, no
entanto, mtodos diferentes. Aps vencer Marco Antnio na Batalha de cio em 31, Otvio
percebeu que em sua ao poltica no poderia menosprezar os sentimentos enraizados no
cidado pela tradio republicana e deveria considerar que aqueles que combateram ao seu
lado desejavam, juntamente com a paz, a manuteno de suas prerrogativas e privilgios
scio-econmicos. Da, a interpretao marxista que vincula o regime poltico do Principado
com a consolidao do modo de produo escravista.83
Fbio Duarte Joly84 corrobora com anlise da estratgia empreendida por Otvio e vai
mais longe ao afirmar que o Senado chegava a ser um parceiro importante do imperador no
regime do principado. Para este autor, o principado comeou sob a gide das armas, mas no
se manteve exclusivamente. O Principado estava amparado no s no exrcito, mas tambm
81 BEARD, Mary; CRAWFORD, Michael. Rome in the Late Republic. Londres: Gerald Duckworth e Co. Ltd,
1985, p. 84.
(...) Pode-se afirmar que o cesarismo expressa uma situao na qual as foras em
luta se equilibram de modo catastrfico, isto , equilibram-se de tal forma que a continuao
da luta s pode terminar com a destruio recproca. Quando a fora progressista A luta
contra a fora regressiva B, no s pode ocorrer que A vena B ou B vena A, mas tambm
pode suceder que nem A nem B venam, porm se debilitem mutuamente, e uma terceira fora,
C, intervenha de fora, submetendo o que resta de A e de B. Na Itlia, depois da morte do
Magnfico, sucedeu precisamente isto, como sucedera no mundo antigo com as invases
brbaras.
Mas o cesarismo, embora expresse sempre a soluo arbitral, confiada a uma
grande personalidade, de uma situao histrico-poltica caracterizada por um equilbrio de
foras de perspectiva catastrfica, no tem sempre o mesmo significado histrico. Pode haver
um cesarismo progressista e um cesarismo regressivo; e, em ltima anlise, o significado
exato de cada forma de cesarismo s pode ser reconstrudo a partir da histria concreta e no
de um esquema sociolgico. O cesarismo progressista quando sua interveno ajuda a fora
progressista a triunfar, tambm neste caso com certos compromissos e limitaes, os quais, no
entanto, tm um valor, um alcance e um significado diversos daqueles do caso anterior. Csar
e Napoleo I so exemplos de cesarismo progressista. Napoleo III e Bismarck, de cesarismo
regressivo. Trata-se de ver se, na dialtica revoluo-restaurao, o elemento revoluo ou o
elemento restaurao que predomina, j que certo que, no movimento histrico, jamais se
volta atrs e no existem restauraes in toto. De resto, o cesarismo uma frmula polmicoideolgica e no um cnone de interpretao histrica. Pode ocorrer uma soluo cesarista
mesmo sem um Csar, sem uma grande personalidade herica e representativa. Tambm o
sistema parlamentar criou um mecanismo para tais solues de compromisso. Os governos
trabalhistas de Mac Donald eram, num certo grau, solues dessa natureza; o grau de
cesarismo elevou-se quando foi formado o governo com Mac Donald primeiro-ministro e a
maioria conservadora.(...)85
85 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do crcere. Volume 3. Traduo de Luiz Srgio Henriques, Marco Aurlio
Nogueira e Carlos Nelson Coutinho. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Civilizao Brasileira, 2007, pp.76-77.
alicerces e sendo, por isso mesmo, to ameaadores. Ali estavam os braos que aravam as
terras do imprio, o suor que regava esse solo em cada dia de trabalho na lavoura, homens
que, como tantos outros, sangravam por Roma. Os escravos gladiadores que sangravam na
arena para o divertimento do povo romano rebelaram-se no sculo seguinte. Nesse sentido, os
ventos que sopravam do Sul anunciavam os distrbios futuros. Seria tambm do Sul da Itlia
que viria a revolta de Esprtaco, s que do continente e do que era realmente a Itlia nos
tempos antigos, no de uma provncia, mesmo que to prxima quanto a Siclia. Os autores
antigos no deixaram de relacionar as duas rebelies servis vendo a tentativa de fuga de
Esprtaco para a ilha da Siclia tambm como uma tentativa de reacender a chama da rebelio
escrava naquelas terras.
A revolta dos sabinos em Roma no sculo III a.C. iniciou uma srie de pequenas
revoltas escravas que colocaram o governo romano em alerta para o clima de subverso e a
possibilidade de sublevao daqueles que eram propriedade da classe senhorial:
construir uma aliana com o povo pobre da cidade. Em segundo lugar, o objetivo da rebelio
era conseguir o retorno destes escravos para sua terra natal. Para isso, os rebeldes alternam o
enfrentamento direto, o confronto, com a negociao. Um suposto apoio externo tambm
funcionaria como um elemento a mais na negociao pela libertao coletiva daqueles
escravos. Em terceiro lugar, o fato de ser aquela uma revolta de escravos dificulta uma
negociao deste tipo, pois como poderia o Senado romano estabelecer qualquer espcie de
acordo com homens que eram inferiores, servos estrangeiros? A prpria discusso ocorrida
entre os senadores sobre a natureza daquele conflito, no momento em que o Capitlio estava
cercado e o governo romano ameaado, pe em evidncia esta questo ideolgica
fundamental da sociedade escravista romana. importante observar que o povo romano no
s no se aliou aos escravos como esmagou os rebeldes, entregando-os ao governo que
empreendeu a sua crucificao, pena de morte romana. Alguns conflitos entre cidados
romanos contavam com a participao de escravos. Algumas revoltas de escravos contavam
com a participao de homens livres e pobres da Itlia, como foi o caso da revolta de
Esprtaco. Mas no raras vezes esta aliana no era possvel ou era quebrada. Na verdade, no
havia uma comunidade de interesses entre os servos de Roma e os cidados pobres romanos.
Os objetivos limitados dessas insurreies, que expressavam a conscincia possvel dos
escravos antigos, determinavam os limites destas alianas. Questes tnicas e de classe
entrelaavam-se gerando possibilidades e limites para um movimento mais amplo. Os pobres
queriam trigo mais barato, no mximo terras dentro da prpria Itlia. Os escravos queriam
voltar para os seus pases, isto , eles queiram sair da Itlia. Nunca esteve na ordem do dia a
derrubada do governo ou o fim da escravido. Neste caso, o risco de uma invaso estrangeira
ou o simples fato de uma revolta de estrangeiros pr em perigo as instituies romanas e seu
governo foi interpretado pelo povo como uma ameaa para ele mesmo; afinal, os povos que
eram derrotados e conquistados tornavam-se escravos dos vencedores, essa era a regra. Desse
modo, a rebelio servil parecia ameaar muito mais do que somente os proprietrios e o
Senado. Assim, podemos perceber que alianas entre as classes sociais subalternas na
Antiguidade eram extremamente difceis.
O sculo II a.C. pode ser considerado o sculo da rebelio escrava na histria romana.
Muitas e importantes revoltas ocorreram precisamente neste perodo. A primeira deste ciclo
de rebelies servis do sculo II foi a revolta escrava no Lcio, no ano de 198 a.C., em Stia.
Esta conspirao de prisioneiros cartagineses foi trada por dois escravos. Este um exemplo
claro da influncia da ideologia da classe dominante no sentido de desagregar e de
desarticular um movimento dos subalternos. O pretor de Roma, L. Cornlio Merula, reprimiu
e perseguiu os rebelados escondidos nos arredores de Stia, submetendo-os ao suplcio.
Tambm neste caso o nico objetivo era o retorno para a ptria. A fuga era a estratgia
principal de todos os levantes de escravos.
Em 196 a.C., escravos rurais da Etrria organizaram-se num exrcito e ameaaram
Roma. O pretor M. ulio combateu os escravos rebeldes em campo aberto e os derrotou. Os
lderes da rebelio foram crucificados para que servissem de exemplo, sem falar de que eram
elementos perigosos, justamente pela sua capacidade de liderana, de mobilizao e de
organizao. Quanto aos seus seguidores, foram devolvidos aos seus amos para que voltassem
ao trabalho e continuassem a ser explorados, preservando assim foras produtivas de grande
valor como os escravos, num momento em que isto ainda era possvel, no necessitando o
governo recorrer a uma represso mais generalizada. Outra revolta de pastores da Aplia
contou com uma represso muito maior com o massacre de cerca de sete mil escravos
rebeldes, sob as ordens do pretor L. Postmio.87
Estes foram os principais antecedentes da Primeira Guerra Servil. Como podemos ver,
a insurreio escrava na Siclia ocorreu sob um clima de rebelio geral, como nunca antes na
histria de Roma e como nunca mais haveria. O contexto de disputa acirrada no interior da
classe dominante foi um elemento decisivo para que se pudesse criar a oportunidade de
tomada do poder pelos rebeldes, que passaram a controlar a ilha constituindo um novo
governo.
As causas da revolta so expostas por um vis moralista nos escritos de Diodoro. No
entanto, a sua interpretao no deixa de ter valor na medida em que destaca o regime
excessivamente opressivo ao qual estavam submetidos os escravos sicilianos, ao mesmo
tempo em que prevalecia uma certa ausncia de controle sobre os movimentos e aes dos
escravos, sendo, de certa forma, as ms aes at mesmo incentivadas, delitos e atos violentos
87 ARAJO, op. cit., pp. 175-177; Fonte: Tito Lvio, op. cit., XXXII, 29, XXXIII, 36, XXXIX, 29, 8.
pela sobrevivncia, juntamente com o descaso das autoridades que ainda no cumpriam as
funes reguladoras das relaes sociais conforme exerceriam no perodo imperial:
No texto fica bem clara a associao entre os vcios dos escravos com os de seus
senhores e como a falta de virtude dos senhores e o descumprimento de seus deveres
enquanto proprietrios e amos eram fatores geradores de instabilidade na ilha, sendo
mesmo a fonte daquele clima de insegurana e de subverso. O fato dos proprietrios de
escravos da Siclia incentivarem e estimularem os seus servos, inclusive, ao roubo para a
garantia mnima de algum alimento e roupas para vestir, contribua para semear o medo
entre os homens livres, principalmente entre as famlias mais abastadas, detentoras de
posses que poderiam ser objeto do crime praticado pelos escravos; alm disso, foi um dos
fatores que desencadearam o levante de homens brutalmente explorados e maltratados,
que sob o comando de Euno, ameaaram a ordem republicana. Diodoro d um destaque
para os pastores que, pelo seu modo de vida, mostraram-se ainda mais propensos ao
enfrentamento.
Deram essa liberdade (de roubar) a homens que devido a seu poder fsico
eram capazes de pr em prtica qualquer coisa que planejassem fazer, (...) homens que
devido falta de comida eram forados a empreitadas arriscadas, e isso logo levou a um
aumento da taxa de crime. Comearam matando pessoas que estavam viajando s ou em
pares, em lugares especialmente afastados. Depois reuniram-se em grupos e atacaram as
fazendas (...) noite, pilhando seus domnios e matando quem resistisse. Eles tornavamse cada vez mais ousados e a Siclia deixou de ser passagem noite para os viajantes.
(...) Todos os lugares foram atingidos pela violncia e roubo e assassinato. Mas pelo fato
Neste fragmento aparece outra razo para a ecloso da Primeira Guerra Servil. Na
penltima frase, Diodoro afirma que os pastores estavam equipados como soldados,
assim como os escravos gladiadores da revolta de Esprtaco. Este parece ser um elemento
relevante para o incio destas insurreies, isto , a existncia de um grupo de escravos
que tivessem sua disposio armas para comear um conflito que depois estender-se-ia
para os demais, em especial os mais explorados os escravos rurais dos ergstulos.
Vale a pena destacar ainda o fator demogrfico como um dos mais importantes
para o acontecimento da rebelio escrava da Siclia, havendo muitos escravos de primeira
gerao na ilha, nutrindo um dio mortal por aqueles que lhes arrancaram de seus lares
para que vivessem sob um regime de extrema opresso e de explorao. Isto criou as
condies para uma guerra prolongada e at mesmo a vitria, mesmo que parcial e
temporria, dos rebeldes.
Os escravos que havia na Siclia eram to numerosos que quem ouvia falar
disto no acreditava, pensando que devia se tratar de um exagero. (Diodoro,
fragmentos dos livros XXXIV e XXXV)90
90 Apud KOVALIOV, S.I. Histria de Roma. Tomo II. Traduo de Marcelo Ravoni. Buenos Aires: Editorial
Futuro, 1959, p. 194.
a misria extrema das camadas sociais mais baixas. Na Siclia, os poucos camponeses
viviam tambm numa situao de muita pobreza, o que influenciou na derrubada do
governo da ilha, que no contava com uma base social mais ampla e slida entre a
populao livre para resistir rebelio servil. Alm disso, somava-se grande
concentrao de escravos um fator agravante desta situao: uma parte considervel dos
escravos sicilianos eram provenientes da Sria. 91 Assim, muitos dos servos dos senhores
sicilianos compartilhavam uma mesma lngua, religio e cultura, facilitando a
organizao de uma revolta, havendo, desse modo, menos dificuldades na comunicao
entre os escravos. O nmero elevado de homens escravizados trabalhando na ilha
permitiu a formao de um verdadeiro exrcito rebelde e fez explodir uma insurreio, ao
contrrio das pequenas conspiraes que antecederam as Guerras Servis da Siclia.
Todos esses elementos forjaram uma identidade cultural, social e poltica entre os
escravos rebeldes. A grande quantidade de cativos de origem sria, sem dvida, foi um
fator determinante, mas no absoluto. Se por um lado foi possvel construir a unidade
necessria para empreender o combate, por outro lado no impediu traies no seio dos
prprios revoltosos, o que enfraqueceu a resistncia frente o exrcito romano.
que no era somente atravs da coero que os senhores exerciam o seu controle sobre os
seus servos. A ideologia cumpria uma funo desarticuladora das revoltas fundamental. O
terico marxista que melhor desenvolveu o tema foi Antonio Gramsci:
94 REIS, Joo Jos; SILVA, Eduardo. Negociao e Conflito: A Resistncia Negra no Brasil Escravista. So
Paulo: Companhia das Letras, 1989.
compararmos com os escravos rurais dos ergstulos, o que lhe permitiu conduzir a
agitao que gerou a revolta armada dos servos sicilianos contra os seus amos. Euno era
ainda um lder religioso; dizia ele ter contato com a Deusa Sria, Atargatis. Em seus
relatos para os escravos, mas tambm para os convidados dos banquetes, sem que os
mesmos encarassem com muita seriedade, ao contrrio daqueles da mesma classe de
Euno, o futuro lder da rebelio servil dizia que havia se tornado consorte da Deusa Sria
em npcias rituais, identificando-se com o deus solar Haddad, e lanava chamas pela
boca, utilizando uma noz e algum combustvel, e com estes truques tentava impressionar,
principalmente a seus pares, afirmando trazer mensagens da divindade sria. O escravo
ainda falava que ia ser rei da ilha e que aqueles que eram agora escravos formariam um
reino na Siclia (Diodoro, XXXIV-XXXV). Arajo 95 reproduz este relato de Diodoro e
apresenta os primeiros passos da agitao poltica dos escravos sicilianos e os motivos
que determinaram a escolha de Euno como sua liderana. O aspecto religioso tambm
cumpriu um papel fundamental na escolha de Esprtaco como principal liderana da
revolta de escravos iniciada no Sul da Itlia no sculo I a.C.
A revolta de escravos da Siclia comeou na propriedade de um senhor de
escravos chamado Damfilo. Ele era um criador de gado e tratava de forma cruel a seus
escravos pastores, os iniciadores da rebelio na ilha. Diodoro, historiador e filsofo grego
do sculo I a.C., de uma poca de grandes transformaes e de um ambiente marcado por
novas teorias e doutrinas, como a dos esticos. No novo contexto do regime imperial aos
escravos eram garantidos certos direitos, juntamente com suas obrigaes perante o seu
senhor. A partir do reinado de Augusto, os maus tratos, a crueldade excessiva com os
servos j era condenada, sendo vista como fonte de tumultos e revoltas. Se dos escravos
era exigida a obedincia e o trabalho diligente, era exigido dos amos um tratamento justo
em relao queles que estavam sob suas ordens. partindo deste ponto de vista que
Diodoro condena as aes de Damfilo como perniciosas e o torna responsvel pelos
acontecimentos que culminaram no levante generalizado dos escravos, bem como eram
Pois a Sorte tinha decretado que Enna, a cidadela de toda a ilha, deveria ser
seu Estado. Quando ouviram isso, presumiram que o mundo espiritual lhes daria
cobertura em sua empreitada e suas emoes estavam to decididas rebelio que nada
podia retardar seus planos. Ento imediatamente libertaram aqueles escravos que
estavam acorrentados e reuniram aqueles dos outros que viviam por perto. Em torno de
quatrocentos deles reuniram-se em um campo perto de Enna. Fizeram um pacto solene
entre si e trocaram um juramento com a fora de sacrifcios noturnos, e ento armaramse to bem quanto a ocasio permitia. Todos apoderaram-se da arma mais efetiva de
todas, a fria, dirigida destruio do amo e da ama que os tinham humilhado. Euno os
comandava. Gritando, encorajando uns aos outros, irromperam na cidade mais ou
menos no meio da noite e mataram muitas pessoas. (Diodoro, 24b) 97
oriental que j lhes era conhecido. O nome mesmo de Antoco, dado a Euno, estava
muito difundido na dinastia dos Selucidas. 98
Este fato de extrema importncia, pois mostra at onde os escravos antigos eram
capazes de ir em sua luta; no estava colocado nenhum processo de transformao social,
no havendo sido sequer a escravido abolida por completo pelos rebeldes, que
mantiveram vivos os senhores que sabiam fazer armas para abastecer o novo exrcito. A
reproduo pura e simples de uma forma de governo j existente buscava ao mesmo
tempo legitimidade para o novo governo perante os seus sditos, como tambm era a
nica opo vislumbrada pela direo do movimento naquelas circunstncias e como
produto do seu tempo.
Desse modo, podemos concluir que os escravos antigos no eram capazes de
realizar uma revoluo social. Isto no quer dizer que, mesmo sendo raras, no tenham se
insurgido contra os seus senhores numa luta aberta, em verdadeiras guerras, com
exrcitos e generais. As insurreies escravas, se no ameaaram o sistema, pelo menos
marcaram um avano de conscincia da classe dos escravos e demonstraram a sua
capacidade de organizao e de mobilizao coletivas. No caso da Primeira Guerra
Servil, estamos diante de uma insurreio que culminou na tomada do poder na ilha, com
a instaurao de um novo governo, chefiado pelos ex-escravos. Eles demonstraram
grande inteligncia, tentando preservar ao mximo as foras produtivas existentes, como
a mo-de-obra especializada e as plantaes, e evitaram criar um ambiente em que os
romanos pudessem obter algum apoio popular, no mexendo com os trabalhadores,
agredindo e matando os senhores ricos e proprietrios, mas no os homens livres e pobres
que habitavam a Siclia:
100 ARCARY, Valrio. As Esquinas Perigosas da Histria. So Paulo:Editora Xam, 2004, p. 32.
Derrubar o antigo poder uma coisa, tomar o poder outra coisa. 101
Sendo assim, nenhuma classe social sai de uma situao subalterna da noite para o
dia. E isso tanto mais difcil no caso das classes sociais subalternas. A insurreio ,
101 TROTSKY, Leon. A Histria da Revoluo Russa.Volume III. Traduo de E. Huggins. 3. ed. Rio de
Janeiro: Editora Paz e Terra S.A., 1978, p. 843.
A partir da anlise das fontes e com base no auxlio da teoria marxista e seus
conceitos aqueles que consideramos mais adequados para esta situao histrica
determinada, tendo-se, porm, todo o cuidado necessrio na sua aplicao, por serem
originalmente voltados para o entendimento das sociedades modernas e sua dinmica, o
que no invalida o seu uso naquilo que o essencial e possvel de ser utilizado para as
sociedades antigas, como a maioria das elaboraes de tericos marxistas; considerando
tudo o que foi dito, podemos concluir que o caso da Primeira Revolta de Escravos da
Siclia enquadra-se perfeitamente no conceito de revoluo poltica, conforme fora
formulado pelos marxistas que se opunham s teses stalinistas e sua forma de enxergar a
Histria, as sociedades e sua dinmica.
104 ARCARY, op. cit., pp. 36-37.
Nesta passagem, Aristteles escreve que se trata da uma revoluo quando existe
uma mudana de regime poltico, como a passagem de um regime oligrquico para um
regime democrtico; mas h tambm uma revoluo, para o filsofo, nos casos em que
grupos de homens derrubam do poder outros homens que antes governavam dentro de um
mesmo regime, sem realizar reformas polticas; h ainda os casos de mudanas em partes
da constituio de um Estado. De qualquer modo, so processos turbulentos, tumultos
polticos, revoltas e golpes de Estado. Estas foram as revolues, revolues polticas
todas elas, do tempo de Aristteles. Ele ainda aborda apenas os conflitos polticos entre
homens livres, sejam eles entre os membros das prprias classes dominantes, sejam entre
ricos e pobres, mas sempre entre homens livres, nunca entre livres e escravos. No
entanto, Aristteles no viu grandes rebelies servis, que s existiram no perodo de fins
da repblica romana, com a consolidao do modo de produo escravista e sua
transformao para um sistema qualitativamente superior quele que existiu em Atenas
ou mesmo em Roma no incio da repblica. As condies objetivas, com a concentrao
de milhares de escravos trabalhando numa mesma regio, centenas numa mesma
propriedade, muitos deles escravos de primeira gerao devido dinmica acelerada de
crescimento do imprio, alm dos elementos subjetivos, sendo um dos principais a
105 ARISTTELES. A Poltica. 15.ed. Traduo: Nestor Silveira Chaves. Introduo: Ivan Lins. Rio de
Janeiro: Ediouro Publicaes S.A., 1988, p. 148.
prpria diviso no interior da classe dominante, que levava a conflitos polticos srios e
que, juntamente com as guerras externas, diminuam a capacidade dos proprietrios de
controlarem seus servos, envolvidos que estavam em lutas intestinas. importante
ressaltar, entretanto, que mesmo nesse perodo a regra foram as pequenas conspiraes,
tentativas de fuga e algumas insurreies, sendo o controle de um grupo de escravos
sobre toda uma provncia romana um fato absolutamente excepcional em toda a sua
histria. Mas o seu acontecimento mais do que suficiente para que o encaremos da
maneira que devida, como uma revoluo poltica genuna, apesar de sua derrota ao
trmino do confronto militar com o exrcito romano.
Esta revoluo escrava teve um impacto sobre outras comunidades, provncias e
propriedades com trabalhadores escravos; somente a destruio do exrcito rebelde da
provncia da Siclia poria fim onda de insubordinao desencadeada por esse conflito.
Novamente, devemos destacar que a rebelio estourara num momento de grande
fragilidade do sistema republicano diante da ameaa que surgia no horizonte hegemonia
poltica da ordem dos senadores sobre a sociedade romana. A revolta ocorreu no
momento em que o pretor nomeado para administrar a ilha ainda no havia chegado para
assumir seu cargo:
Foi nesta ocasio que o irmo de Clo, Comano, foi capturado, tentando
escapar da cidade sitiada. No fim o srio Serapio traiu a cidadela e o governador foi
capaz de trazer sob seu controle todos os fugitivos na cidade. Ele os torturou e depois os
atirou de um penhasco. De l ele foi para Enna, a qual ele sitiou da mesma maneira; ele
forou os rebeldes a ver que suas esperanas tinham chegado a um beco sem sada. Seu
comandante Clo veio para fora da cidade e lutou heroicamente com uns poucos
homens at que os romanos foram capazes de mostrar o seu cadver coberto de feridas.
Esta cidade tambm foi capturada atravs da traio, at porque ela no poderia ter sido
tomada nem pelo mais poderoso exrcito. Euno levou sua escolta de uns mil homens e
fugiu de uma forma covarde para uma regio onde havia muitos penhascos. Mas os
homens com ele perceberam que eles no poderiam evitar seu destino, pois que o
governador (cnsul) Rupilius j estava indo na direo deles, e eles decapitaram uns aos
outros com suas espadas. O fazedor de milagres Euno, o rei que tinha fugido por sua
covardia, foi arrastado para fora das cavernas onde ele estava se escondendo com
quatro serviais um cozinheiro, um padeiro, um homem que o massageava no banho e
um quarto que costumava entret-lo quando ele estava bebendo. Ele foi posto sob
custdia; seu corpo foi comido por uma multido de piolhos, e ele terminou os seus dias
em Morgantina na maneira apropriada por sua vilania. Em seguida, Rupilius marchou
atravs de toda Siclia com uns poucos soldados selecionados e libertou-a de todo
vestgio de bandos de bandidos mais cedo que o esperado. 108
A ilha havia sido tomada por bandidos, segundo o que consta do texto, mas pode
ser que muitos destes bandidos fossem os prprios escravos rebeldes, sendo equiparada a
insurreio escrava ao banditismo. evidente que os tumultos que ocorriam na Siclia
iam para alm da rebelio servil, pois os homens livres e pobres da provncia tambm se
aproveitaram da situao para saquear, sendo, portanto, possvel que nem todos os ditos
bandidos propriamente escravos; no entanto, isto no anula o fato de que era inteno do
autor equiparar os rebeldes a bandidos e que a revolta em si criou uma conjuntura
favorvel para atos de banditismo, na medida em que provocou a desordem na ilha da
Siclia.
No incio do fragmento, Diodoro aponta tanto os atos de bravura quanto os atos de
traio. Comano e Clo lutaram e morreram bravamente. Serapio traiu os seus
companheiros, cedendo ao desespero, e permitiu que as tropas romanas entrassem na
cidade de Tauromnio. O mesmo ocorreu na cidade de Enna, quando outro escravo traiu
o movimento tambm. Os rebeldes foram torturados. O desespero levou os habitantes de
Tauromnio ao canibalismo, devido fome, conforme fora apresentado na passagem
anterior, e os escravos da escolta de Euno que fugiram de Enna, suicidaram-se,
decapitando uns aos outros, com medo dos suplcios que teriam de suportar caso fossem
feitos prisioneiros. A contradio da natureza do escravo e da escravido e as
ambigidades do discurso da classe dominante transparecem neste texto. Coragem e
covardia caminham juntas. Exemplos de grandes homens e de grandes lderes lado a lado
dos exemplos de vilania e de imoralidade. De qualquer modo, o mesmo projetado sobre
os senhores, sendo Damfilo o maior exemplo de um mau senhor. Tanto o levante dos
escravos quanto a crueldade dos amos sicilianos so considerados nefastos. O discurso
ideolgico que norteia a pena de Diodoro e que configura o contedo poltico e moral de
seus escritos o que aponta na direo da harmonia entre senhores e escravos e na
responsabilidade das autoridades na regulao destas relaes, bem como na virtude
necessria classe dominante para bem administrar a propriedade e seus servos. Em
relao aos escravos, reivindica-se para eles um tratamento justo e humano, exigindo-se
apenas o seu trabalho disciplinado e sua obedincia aos seus amos e s leis. Este discurso,
naturalmente, refletia a nova situao social vigente no regime do Principado. O Estado
passaria agora a arbitrar as relaes sociais entre amos e servos, evitando novos conflitos
dessa dimenso.
Quando a revolta da Siclia chegou ao fim, depois que Ruplio liquidou com os
ltimos focos de resistncia, os escravos rebeldes foram reintegrados produo. As
execues em massa foram canceladas, porque havia uma necessidade de braos na ilha e
como boa parte dos trabalhadores eram escravos, devido concentrao enorme de mode-obra servil na provncia, os ex-rebeldes tornavam imprescindveis para economia
siciliana naquele momento. Os proprietrios tiveram que admitir os escravos capturados
por Ruplio durante a represso revolta e a tranqilidade foi novamente devolvida
regio, pelo menos por ora.
importante salientar o fato monumental que representou o levante de escravos
da Siclia. A Primeira Guerra Servil foi antecedida por vrias pequenas conspiraes e
rebelies, marcada por outras revoltas que ocorreram enquanto transcorria o conflito na
ilha, e num espao de tempo relativamente curto, outras rebelies servis expressivas se
sucederam a ela. Um exemplo a revolta de Aristnico. Esta rebelio servil aconteceu
nos anos de 132 a 130 a.C. na sia Menor. Com a morte do rei talo III, rei do reino de
Prgamo, em 133 a.C., o reino foi entregue por ele em testamento ao povo romano. A
agitao dos escravos e o descontentamento dos pobres do campo e da cidade do reino de
Prgamo transformavam-no num barril de plvora prestes a explodir a qualquer
momento. Aproveitando-se deste momento conturbado, Aristnico, filho de Eumenes II tambm pai de talo - com uma cortes de feso reclamou para si o trono de Prgamo.
Mas para conquistar o reino ele teria que se apoiar nos elementos descontentes,
chamando os escravos a se libertarem, diante da difcil empreitada, aumentado assim os
seus exrcitos. Quanto ao programa dos rebeldes, Kovaliov aponta, como sendo bastante
provvel, o culto da divindade solar, de importncia na sia e na Sria, como base
religiosa e ideolgica dos seguidores de Aristnico. Kovaliov escreve que os revoltosos
tinham um programa social utopista de criao do Estado do Sol, o reino da liberdade e
da igualdade, no qual no existiriam nem ricos nem pobres, nem escravos nem
senhores.109 O que h de mais relevante na breve exposio e anlise deste historiador o
109 KOVALIOV, op. cit., p. 201.
peso mais expressivo da populao livre na revolta, participando ativamente dela, mais
do que nos outros casos; no pretendemos aqui esmiuar esta rebelio, na tentativa de nos
atermos ao nosso recorte, que o estudo da Primeira Revolta de Escravos da Siclia e a
Revolta de Esprtaco, mas uma exposio, mesmo que sumria, assim como aquela que
fizemos em relao s rebelies servis que antecederam a da Siclia, faz-se necessria
para a compreenso do conjunto e um entendimento mais preciso do problema. Portanto,
sem que aprofundemos a discusso com a anlise das fontes, basta-nos apenas aquilo que
j vem sendo tratado pela historiografia. Ainda em Kovaliov, encontramos o destaque
dado participao mais significativa de homens livres e pobres nesta revolta servil:
4 SICLIA REBELDE
A ilha da Siclia foi o palco das grandes guerras servis do sculo II a.C. Depois da
represso primeira rebelio servil, liderada por Euno, a situao permaneceu
relativamente calma por algumas dcadas, cerca de trinta anos, mas passado esse tempo,
estava a provncia novamente em ebulio e o fantasma da insurreio escrava pairava,
uma vez mais, sobre as cabeas dos ricos proprietrios.
As revoltas servis da Siclia continuariam a assombrar a classe dominante romana
por muitos anos aps seu fim, aparecendo durante a revolta de Esprtaco o medo de que
sua fuga para o Sul, em direo ilha, pudesse reacender a chama da rebelio naquele
que se mostrou o solo mais frtil para a luta contra os senhores e o Estado escravista.
Alm da revolta de Aristnico, uma srie de levantes de escravos ocorreu na Itlia
entre a primeira e a segunda guerra servil, sendo a primeira delas em Nucria; a segunda
prxima a Cpua, com dezenas de escravos rebelados; e a terceira, envolvendo um jovem
eqestre, Ttio Vtio, que se endividou para comprar uma escrava por quem se
apaixonara e matou os credores. 111 Assim, podemos concluir que a situao de
instabilidade no havia desaparecido, sendo apenas uma questo de tempo para que,
numa conjuntura favorvel, um novo levante de grandes propores ameaasse a ordem e
a propriedade romanas.
A oportunidade surgiu durante a guerra entre os romanos e os cimbros. Um
momento excepcional, uma conjuntura extraordinria, marcada por uma guerra externa,
foi necessria para que uma nova insurreio eclodisse; por mais que j despontasse no
horizonte a possibilidade de uma guerra servil no contexto de insubordinao dos
escravos da Itlia, o fato da aristocracia romana estar envolvida numa guerra difcil com
outro povo, demandando todas as suas energias, homens e esforos, com suas atenes
voltadas para fora, enquanto dentro das fronteiras do imprio fervilhava o
descontentamento e a revolta, foi decisivo. Era o consulado de Caio Mrio, que lutou na
guerra contra Jugurta e venceu os cimbros e teutes, sendo o grande lder romano, uma
liderana popular e um hbil general, que empreendeu a reforma militar que transformou
111ARAJO, op. cit., p. 191.
a antiga milcia de cidados num verdadeiro exrcito profissional, alterando para sempre
o jogo poltico em Roma, tornando o comando do exrcito fundamental para o comando
poltico da Repblica. O poder unipessoal materializava-se na figura do general, com
suas tropas leais, o embrio do futuro imperador, o prncipe, que extrairia o seu poder do
exrcito, do apoio das massas e do acordo com o Senado. A Repblica passava por um
momento de grandes mudanas precisamente quando explodiu a Segunda Guerra Servil
da Siclia. Diante da falta de soldados para enfrentar os inimigos cimbros, os romanos
tiveram de libertar escravos para lutar como soldados de Roma, situao somente
possvel devido a uma necessidade extrema e mesmo desesperadora. O governador da
Siclia, L. Nerva ordenou, ento, que os cativos bitnios de origem fossem libertados para
que pudessem servir na guerra. Os demais escravos da ilha solicitaram ao governador que
fossem tambm alforriados, mas Nerva voltou atrs em seu decreto diante da presso
poltica exercida pelos proprietrios de terras e de escravos da Siclia e foi isto que
instaurou o clima de revolta na provncia. A indeciso das classes proprietrias, sua
diviso quanto ao que fazer perante uma circunstncia perigosa, indicava uma fragilidade
que podia ser percebida e explorada pelos subalternos.
Em 104 a.C. comea a rebelio escrava. Uma primeira revolta ocorreu prxima a
Helicia e foi liderada por um escravo chamado Vrio, que tinha sob seu comando cerca
de trinta escravos rurais. Eles mataram seus amos noite, enquanto eles dormiam e
fugindo, conseguindo reunir, nesse momento, cerca de cento e vinte escravos. Licinius
Nerva recorreu a um escravo bandido chamado Gaio Titnio para que ele se infiltrasse no
movimento e os trasse; reaparece nesta passagem a traio de um escravo como sendo
determinante para a derrota da revolta servil. Na revolta de Euno, a cidade de Enna s
pde ser conquistada por que um escravo entregou os seus companheiros, pois do
contrrio bem provvel que o stio tivesse se estendido por muito mais tempo, no
mnimo. Sendo assim, a maioria das rebelies no foi derrotada pela fora, tendo cado
cidades e quilombos por causa do desespero de indivduos no interior da coletividade, o
que evidenciava no um fenmeno individual, at por ser recorrente, mas um sintoma,
uma expresso da ausncia de uma ideologia organicamente constituda, de uma
conscincia de classe. Mas o clima de insurreio estava instaurado e se espalhara por
vrios lugares, Herclea, Enna, e alguns escravos refugiaram-se no monte Capriano. Aps
infligir uma amarga derrota guarnio de Enna, os rebeldes j somavam mais de seis
mil e representavam o pesadelo vivo dos proprietrios sicilianos, o retorno do reinado dos
servos sobre seus amos, um reino de terror para qualquer aristocrata da poca, uma
completa inverso da ordem das coisas, e num contexto em que Roma travava uma dura
batalha contra uma ameaa estrangeira. No entanto, desta vez os escravos rebeldes no
chegaram to longe. Eles no conseguiram tomar o controle de toda a ilha, como na
primeira guerra servil.
Os rebeldes vitoriosos escolheram o seu rei, tal como se dera na rebelio liderada
por Euno, que se intitulou rei Antoco. Na Segunda Guerra Servil, o escravo eleito para
chefiar a rebelio foi Slvio, tambm um adivinho, sendo um lder poltico e religioso,
alm de militar. Segundo Diodoro (4.1-8), Slvio ordenou que as cidades fossem evitadas
e dividiu o exrcito em trs sees, com seus respectivos comandantes, avanando sobre
Morgantina, libertando escravos e aumentando os seus efetivos, ao mesmo tempo em que
desmoralizava e, portanto, enfraquecia poltica e militarmente o governador da provncia.
No entanto, a orientao geral era para que a rebelio permanecesse no meio rural, na
opinio de Arajo112 por serem as cidades centros de poder das autoridades locais. As
dificuldades que estavam colocadas para a conquista das reas urbanas impunham ao
agora Rei Trifo uma poltica mais prudente. Devemos lembrar ainda que partiram das
cidades as traies ao movimento comandado por Antoco e Clo, estando os escravos
urbanos mais suscetveis ao controle ideolgico da classe senhorial. A fase vitoriosa da
guerra para os escravos repetiu o ocorrido na primeira fase da primeira revolta de
escravos: outro escravo cilcio liderou um movimento paralelo em outra parte da ilha e se
uniu posteriormente ao exrcito rebelde mais bem organizado, pondo-se sob o comando
do lder do maior movimento de resistncia escrava da Siclia. No caso da segunda
revolta, Atnio uniu-se a Slvio. O novo general do escravo intitulado Rei Trifo tambm
era um homem dotado de poderes sobrenaturais, sendo um astrlogo e, assim, algum
que predizia o futuro. Slvio/Trifo montou, assim como Euno/Antoco, uma corte de
tipo helenstico.113 Um dos fatos mais importantes desta revolta talvez tenha sido a
tomada de Triocala, que marcou o tipo de rebelio que estamos caracterizando. Triocala
era uma fortaleza natural, e l os escravos rebeldes formaram uma espcie de quilombo.
Como era uma regio de terras frteis e gua abundante, os revoltosos no passariam
pelas mesmas dificuldades de seus antecessores, os seguidores de Euno, que sofreram
pela fome durante o stio s cidades promovido pelo exrcito romano na represso ao
levante. Arajo114 resume o relato de Diodoro (7.1-4) e aponta para a formao de um
conselho de homens destacados pela inteligncia, numa organizao poltica tipicamente
aristocrtica, e de um rei ex-escravo que vivia num palcio fortificado, dando audincias
coroado e usando trajes luxuosos romanos, um signo de ostentao, tpico da realeza e da
nobreza, mas que no condizia com a situao desesperadora que enfrentavam. Por mais
que sua fortaleza parecesse inexpugnvel, Roma no descansaria at debelar o
movimento rebelde. Se por um lado os seguidores de Slvio aprenderam com a derrota de
Euno e no despenderam energias e recursos para tomar cidades, nem ficaram
encurralados em lugares que no poderiam fornecer vveres por perodos longos de stio,
talvez tenham menosprezado os romanos ao considerarem-se to seguros aquilombados
em Triocala. Nesse sentido, Esprtaco parece ter sido o lder mais consciente ao apontar
para a fuga para a fora da Itlia, como a nica maneira de escapar da escravido ou da
morte. De qualquer modo, o estabelecimento de um tipo de quilombo caracteriza esta
revolta como uma fuga para fora; no s os escravos rebeldes no queriam abolir a
escravido, como sequer era de seu interesse assumir o controle de toda Siclia. A fuga ,
para Joo Jos Reis, a principal forma de resistncia escrava e, no presente caso que
estamos examinando, dos conceitos utilizados por este historiador, o que podemos tomar
Sendo assim, o destino dos ltimos rebeldes pode ter sido parecido com aquele
dos escravos da escolta de Euno que se suicidaram ou uma morte indigna pelas mos dos
romanos como a punio que recaiu sobre os espartacanos, que foram crucificados. Seja
pela crucificao, seja pela morte na arena com as feras, a punio era extremamente
severa. No fragmento transparece uma viso positiva da hiptese de suicdio coletivo,
sendo vista at mesmo como honrosa e herica a postura de Stiro, que se suicidou por
ltimo, sem fraquejar. Esta uma viso muito comum entre os esticos que consideravam
que o suicdio poderia ser uma morte digna, se a alternativa a ele era uma morte indigna
pelas mos de outro ou uma vida indigna, imposta pelas circunstncias, pelos outros ou
por si mesmo. Nesse sentido, tanto Diodoro quanto os outros escritores aos quais ele se
refere refletem esta concepo comum nos crculos aristocrticos do regime do
Principado.
A Siclia rebelde foi silenciada. A represso violenta que se abateu sobre as duas
revoltas servis serviu para aplacar a insubordinao dos escravos da ilha, impondo-lhes a
obedincia atravs do medo. Seriam necessrias mais trs dcadas para que estourasse
outra grande revolta de escravos, agora no corao do imprio, bem na Pennsula Itlica,
sob a liderana de um escravo gladiador chamado Esprtaco. A revolta comeara em
Cpua, no Sul da Itlia. Do Sul partiram os grandes movimentos de resistncia escrava
opresso romana; por isso, a tentativa de fuga para o sul, para a Siclia, pretendida pelo
comandante do exrcito de escravos da Itlia, aterrorizou os membros da classe
dominante romana. O fantasma da rebelio servil da Siclia era o pesadelo da aristocracia
italiana, romana e siciliana. Euno foi o primeiro Prometeu dos escravos do imprio;
aprisionado, como o heri mtico que fora acorrentado, terminou seus dias. Esprtaco,
assim como Trifo e Atnio, morreria em batalha e seria mais uma assombrao do
passado que os escritores do regime imperial tentariam exorcizar, mostrando a tragdia de
suas vidas, sem deixar de reconhecer, no entanto, que em seus atos de coragem e nos seus
planos engenhosos manifestava-se a sua humanidade.
CONCLUSO
As lutas entre patrcios e plebeus deram origem a uma nova aristocracia, formada por
patrcios e plebeus ricos, na verdade, uma oligarquia que se tornaria cada vez mais insensvel
s necessidades dos pobres de Roma. As vitrias dos plebeus lhes renderam instituies que
serviram como base de apoio para a luta contra os oligarcas. O tribunato da plebe e a
Assemblia Popular foram, bastante mais tarde, os instrumentos dos lderes democrticos
durante as guerras civis.
O grau de radicalizao atingido pela luta dos plebeus levou quase dualidade de
poderes na Repblica romana, com a constituio de um quase governo paralelo ao governo
da Roma Patrcia. O nvel de organizao e de mobilizao alcanado pela plebe fez com que
a antiga nobreza de sangue cedesse e buscasse o acordo com os seus membros privilegiados.
As leis aprovadas durante este perodo de agitao dos plebeus apontou no sentido da
democratizao do Estado at o ponto estabelecido pelos prprios plebeus ricos. O
compromisso firmado entre as classes proprietrias consolidou o regime republicano em sua
forma oligrquica.
As Guerras Pnicas transformaram Roma de uma cidade-Estado num verdadeiro
imprio; no entanto, as instituies da civitas no foram abandonadas. O recm-criado
Imprio Romano tinha sua frente uma classe de grandes proprietrios de terras e de
escravos, donos de latifndios e de milhares de escravos que empregavam como mo-de-obra
em suas fazendas. Este processo levou expropriao dos camponeses, diante do seu
empobrecimento, das guerras constantes, culminando na sua proletarizao. A Lei Petlia
Papria aboliu a escravizao por dvidas dos cidados romanos, mas abriu tambm o caminho
para o surgimento do modo de produo escravista baseado na escravido-mercadoria,
destruindo a antiga escravatura primitiva, empregando-se agora milhares de escravos de
primeira gerao, capturados em sua terra natal, feitos prisioneiros de guerra e submetidos a
um tratamento brutal. A classe dominante do novo Imprio Romano e da nova Repblica,
nova em sua configurao social, no podia mais fazer certas concesses sem abrir mo de
seus privilgios e isto precipitou as guerras civis que geraram a crise da Repblica e o seu fim
com o advento do Principado.
A luta iniciada por Tibrio Graco foi continuada por seu irmo, Caio Graco, e apesar
da derrota do seu projeto de reforma agrria, o que encerrou qualquer possibilidade, mesmo
que remota, de restaurar a antiga cidadania romana e o exrcito de cidados de Roma, teve
srias consequncias para o desenvolvimento das lutas polticas e sociais posteriores. A
derrota dos irmos Gracos deixou como nica alternativa para o exrcito romano seguir forte
o suficiente para enfrentar seus inimigos externos, tornar-se um exrcito profissional. Esta
reforma realizada por Caio Mrio detonou um processo que, com a intensificao das lutas
entre populares e optimates, culminaria no cesarismo. O desrespeito s leis e tradies no
curso da luta entre as fraes da classe dominante corroeu o Estado republicano at o ponto
em que suas instituies no atendiam mais aos imperativos da nova conjuntura poltica e
social.
As grandes revoltas de escravos da Roma republicana se deram num momento em que
a classe dominante estava envolvida em guerras civis e guerras externas, criando um ambiente
de convulso social permanente por quase dois sculos e gerando a oportunidade de revolta e
fuga para massas imensas de homens e mulheres escravizados.
Na Primeira Guerra Servil, Euno liderou, junto com Clo, um verdadeiro exrcito de
escravos, motivados inicialmente revolta pelos maus tratos de seus senhores. Neste primeiro
movimento de resistncia escrava, os rebeldes conseguiram assumir o controle de toda a ilha,
organizando um governo semelhante s monarquias helnicas, sendo Euno eleito rei e tendo
sido formada uma corte. Neste, assim como em nenhum outro movimento, foi empreendida
uma mudana radical da estrutura social. Os ex-escravos escravizaram seus antigos senhores,
reproduzindo as mesmas prticas econmicas do imprio. Mas a derrubada de um governo do
poder, com a subida de outro, com uma reorganizao do Estado, com a substituio de uma
classe por outra na gesto desse mesmo Estado configura, no mnimo, este movimento
revolucionrio, mesmo que se trate de uma revoluo poltica apenas. de vital importncia
destacar ainda as traies ocorridas no curso da revolta. As cidades que caram nas mos do
exrcito romano foram por meio da traio de escravos do interior das prprias cidades. Desse
modo, podemos dizer que no havia uma conscincia de classe, sendo a influncia ideolgica
da classe dominante poderosa ao ponto de desagregar os rebeldes e enfraquecer suas fileiras,
levando a rupturas e deseres. Alm disso, a falta de um programa coerente, que
tentativa de retir-los de l fora. Para a derrota desta segunda rebelio foram fundamentais
os erros tticos no curso da luta, sendo muitos motivados pelas dissenses no interior do
movimento.
O resultado destas insurreies foi a morte de milhares de escravos, tendo sido todas
elas, invariavelmente, esmagadas. Porm, o que elas puseram em relevo foi a capacidade de
organizao e luta de homens que em teoria eram considerados inferiores e que eram
mantidos sob a mais rgida vigilncia para que no pudessem se levantar, mas que mesmo
assim o fizeram. A maioria deles eram escravos rurais e aqueles que tinham acesso a armas, a
informaes e maior liberdade de movimentos foram suas lideranas. Os lderes eram ao
mesmo tempo chefes polticos, militares e religiosos e a religio funcionava como um
programa para esses movimentos. Sem dvida, o perodo de crise da repblica foi marcado
pelas disputas entre os grandes generais romanos pelo esplio de guerra que era Roma. Mas
est gravado para sempre na histria o papel que estas revoltas tiveram na vida social e no
imaginrio das classes dominantes que passaram a temer os servos e aquilo que eles eram
capazes de realizar, conforme podemos ver nos escritos que perduram at os dias de hoje.
O enfoque dado para as revoltas servis do sculo II a.C. concedeu preferncia sua
ligao com o contexto mais geral da crise republicana. No que se refere revolta de
Esprtaco, pretendemos inseri-la no universo da resistncia escrava, enumerando as formas de
resistncia possveis e relacionando-a com as duas guerras servis que a antecederam. A mais
ameaadora de todas as rebelies de escravos para a aristocracia romana foi tambm o ltimo
suspiro de uma etapa marcada por grandes insurreies, o ltimo captulo de uma jornada, o
encerramento de uma vaga de lutas que inaugurava tambm um novo perodo mais marcado
pela conciliao e pelas concesses feitas aos escravos, como forma de evitar conflitos dessa
monta. Euno mostrou que era possvel que um bando de escravos governasse uma provncia
inteira. Esprtaco ensinou que a fuga para a liberdade era realmente possvel e quase a
realizou, sendo vencido pelas amarras de seu tempo, que levaram o seu exrcito a se
fragmentar e a hesitar quando deveria se mostrar resoluto. Mas importante frisar que, a cada
revolta, os novos rebeldes que surgiam aprendiam com os erros do passado e davam um passo
adiante. No podemos exigir dos homens aquilo que eles jamais poderiam ter sido. Tudo que
podemos e devemos fazer investigar e expor aquilo que eles fizeram e o que poderiam ter
CAPTULO III
O combate de todas coisas pai, de todas rei, a uns manifestou como deuses, a outros como
homens; de uns fez escravos, de outros livres. (Herclito)
INTRODUO
A partir da anlise dos dois primeiros captulos, podemos concluir que as grandes
rebelies servis aconteceram numa conjuntura excepcional e de grandes transformaes; era
tambm uma conjuntura de intensos conflitos entre as fraes da classe dominante, o que
criou as condies necessrias para que ocorressem revoltas bem-sucedidas. Na medida em
que os de cima no entravam em acordo sobre que alternativa adotar para solucionar a crise
da Repblica e do sistema escravista, agora modificado, baseado na escravido-mercadoria
em larga escala e de uso extensivo em grandes propriedades de terras, a possibilidade de lutar
pela liberdade colocou-se na ordem do dia para os escravos de Roma.
Euno e Esprtaco foram as principais lideranas das mais importantes revoltas de
escravos que desafiaram Roma. Os escravos eram submetidos a jornadas de trabalho
extenuantes e tratados frequentemente de forma cruel por seus senhores. Os escravos
sicilianos tinham que roubar se quisessem vestir-se e alimentar-se. Alm disso, sofriam
violncias fsicas de seus senhores de maneira recorrente. Tanto na revolta de escravos da
Siclia quanto na revolta de Esprtaco os escravos rurais foram a maioria dos exrcitos. A
vanguarda dos exrcitos rebeldes era formada pelos escravos que tinham acesso a armas, que
gozavam de uma liberdade maior de movimentos ou que tinham algum tipo de treinamento
militar, como os pastores e os gladiadores. Euno e Esprtaco foram lderes polticos, militares
e religiosos, sendo escolhidos por este conjunto de qualidades.
Na revolta de Esprtaco, mais do que em qualquer outra, a possibilidade de se obter a
liberdade esteve no horizonte. As fragilidades na organizao dos escravos, as dissidncias
levando por vezes ao fracionamento das tropas, os limites de sua conscincia, a influncia da
ideologia dominante e os erros tticos do exrcito rebelde foram determinantes para que os
escravos espartacanos no tenham sido bem-sucedidos em sua fuga. Mas ela era de realizao
possvel, tanto pelo norte quanto pelo sul da Itlia, em direo ilha da Siclia. Fatores
estruturais, sem dvida, mas elementos conjunturais e da ordem dos eventos impediram a
concretizao dos planos de Esprtaco. Isto levanta a questo das possibilidades existentes
nos marcos de uma dada estrutura social e de uma determinada poca histrica. Uma
revoluo social e a construo de uma sociedade alternativa, livre da escravido, com a
abolio da escravatura ainda na Antiguidade eram impossveis. No o era, oorm, uma fuga
coletiva de um exrcito de escravos rebeldes. O sonho de Esprtaco foi o plano mais sbrio e
consequente de todos os lderes de revoltas servis da Roma antiga.
A resistncia escrava sempre existiu nas mais variadas formas, mas assumiu uma outra
feio na medida em que a repblica entrou em crise, uma crise poltica de grandes
propores, que acabou gerando uma verdadeira crise institucional, em vrios momentos, mas
de modo permanente, estrutural e irreversvel, justamente no perodo mais prximo da revolta
de Esprtaco, assumindo o seu carter mais dramtico no momento posterior, marcado pela
conjurao de Catilina, a luta entre Pompeu e Jlio Csar, a ditadura de Csar, a luta entre
Marco Antnio e Otvio e a vitria do ltimo, enterrando de uma vez por todas a Repblica
romana. Com isso, grandes insurreies escravas ocorreram nos perodos de crise
institucional, havendo sempre uma curta trgua entre as faces da classe dominante para
reprimir os levantes dos subalternos, e diante da vitria de um agrupamento poltico sobre o
outro. Durante a vigncia desses movimentos insurrecionais e momentos de crise social e
poltica, com a combinao de guerras civis e guerras servis, o paradigma escravista
republicano esteve tambm em crise e a fissura provocada no arcabouo terico da classe
dominante, colocando em descrdito o seu discurso oficial, tal como ele se apresentava, no
podendo os senhores, nas fazendas ou no Senado, tratar aquelas rebelies como atos de
banditismo, nem verdadeiras guerras como casos de polcia. Tal foi o resultado destas aes e
acontecimentos extraordinrios.
A insurreio iniciada pelos gladiadores de Cpua gerou terror entre as altas esferas da
sociedade romana e os homens livres e ricos da Repblica temiam por suas propriedades e por
suas vidas e tambm pelo mau exemplo que um exrcito de escravos fugidos, que saqueavam
a Itlia e rumavam triunfantes para fora da pennsula, poderia representar. Os ricos
proprietrios romanos agiram enquanto classe na represso ao movimento espartacano. Este
ser o centro de nossa discusso neste ltimo captulo sobre as revoltas servis do perodo
republicano.
Partimos, nesta pesquisa, da premissa de que a resistncia dos escravos sua condio
de servido, em todas as sociedades escravistas, seja no mundo greco-romano, seja no Novo
Mundo, foi permanente. um fato indissocivel da escravido a rebelio contra a mesma.
Esta afirmao pode parecer absurda se virmos que estatisticamente foram poucas as grandes
revoltas de escravos em todas as pocas e lugares, salvo algumas excees. No entanto, no se
trata aqui de limitar o conceito de resistncia somente aos grandes eventos. Muito pelo
contrrio. Devemos encarar a realidade tal como ela se apresentava para os homens concretos
e reais de um determinado contexto social e histrico. Hoje em dia, quando os trabalhadores
organizam uma greve, eles tm que fazer reunies, assemblias, organizar comandos de greve,
discutir entre si qual a melhor estratgia, contar com as dissidncias no interior de seus
movimentos, enquanto enfrentam a represso policial, dos patres e do Estado das mais
variadas maneiras. Resumindo de modo muito sumrio j podemos perceber as imensas
dificuldades com as quais se deparam todos os movimentos de trabalhadores, todos os
movimentos dos subalternos, ainda em nosso tempo. Agora, imaginemos as possibilidades de
organizao de uma rebelio ou mesmo de um movimento reivindicatrio numa sociedade
escravista, na qual os escravos no tinham direitos polticos e de cidadania, sofriam violncias
de forma sistemtica e permanente, podiam ser torturados por seus senhores e pelo Estado e
mortos tambm; um regime no qual eram introduzidas divises pela prpria classe dominante
que iam para alm da ideologia, como a cultura diversificada de vrios povos e,
principalmente, o aspecto da lngua, fundamental para a comunicao e consequente
organizao das pessoas por uma questo em comum, sendo parte da estratgia dos senhores
misturar escravos dos mais variados povos numa mesma unidade de produo. Uma parcela
importante dos escravos, como os escravos que trabalhavam nas lavouras, ficavam
trancafiados e eram acorrentados; os gladiadores lutavam na arena uns com os outros pela
prpria vida; os escravos domsticos eram monitorados e controlados diretamente pelos seus
amos. fcil compreender porque foram to raras as revoltas na maioria das vezes. Porm,
isso no o mais importante. O que h de mais significativo que, apesar de todos esses
limites, impedimentos e dificuldades, mesmo assim, quando a oportunidade se deu, rebelies
servis eclodiram e aterrorizaram os proprietrios de escravos. O extraordinrio no que
tenham sido to poucas, mas o seu contrrio, o fato de que elas expressaram em diversos
casos uma superao dos limites estruturais para uma mobilizao dos escravos enquanto
classe. E tambm puderam expressar que um descontentamento, uma reao, um rechao
condio servil j eram esboados antes mesmo das grandes insurreies e que muitas outras
formas de resistncia cotidiana ocorriam justamente por essa negao a uma situao de
privao da liberdade e de explorao desmedida e violncia institucionalizada contra aqueles
que eram encarados como propriedade.
Keith Bradley118 elabora os argumentos em que se baseiam essas afirmaes e traa
um paralelo interessante entre a escravido na Roma antiga e a escravido no Novo Mundo,
bem como entre as formas de resistncia e o seu alcance em ambos os casos. Desse modo, o
referido autor apresenta a forma adequada de se trabalhar comparativamente no caso dos
estudos sobre sociedades escravistas. Analisando, em primeiro lugar, as principais revoltas
ocorridas na Amrica colonial e na Roma republicana, podemos perceber as semelhanas e
diferenas mais marcantes que, naturalmente, expressam-se de maneira mais ntida nas
118
BRADLEY, Keith. Esclavitud y Sociedad em Roma. Traduo: Fina Marf. Barcelona: Ediciones
situaes mais extremas. Bradley advoga a ideia de que a resistncia dos escravos era
permanente, no sendo de maneira nenhuma harmoniosa a relao entre senhores e escravos,
mesmo quando da conquista de certos direitos:
No entanto, seja numa grande escala ou num nvel mais reduzido, como a
conspirao do ano 24 d.C. organizada no sul da Itlia por um antigo membro da guarda
pretoriana, as revoltas de escravos foram muito escassas depois de Esprtaco, pelo que
muitos estudiosos tem considerado que no havia nenhum motivo para se sublevar. A
principal falha desta tese supor falsamente que a revolta era a nica via de que
dispunham os escravos e que, em sua ausncia, reinava a calma. No Novo Mundo, as
revoltas de escravos foram particularmente virulentas no Caribe, porm no Brasil ou nos
Estados Unidos, como em Roma, foram pouco freqentes. Na realidade, no se presencia
uma revolta parecida com a de Esprtaco at princpios do sculo XIX, quando o
A relevncia do trabalho de Bradley reside no fato de que ele nos ajuda a dissipar
a iluso de que a ocorrncia de insurreies escravas na Amrica tenha sido to
infinitamente superior como se poderia supor. A realidade que revoltas como a de
Esprtaco e do Haiti so eventos extraordinrios e que ultrapassam os limites estruturais
vigentes impulsionados por conjunturas igualmente excepcionais, tornando-os nicos,
num contexto em que as dificuldades de organizao de levantes desse tipo, diante dos
riscos de traio e do medo dos castigos que certamente recaem sobre os escravos
rebeldes que, porventura, sejam derrotados em sua luta, fazem da revolta aberta a menos
adotada pelos escravos, o que no significa que o sentimento de rebelio no seja
permanente. Mesmo que no fossem to espetaculares, as demais formas de luta
empreendidas pelos escravos causavam srios prejuzos ao sistema social que dependia
desta fora de trabalho, sendo um fator de crise importante para o regime escravista:
Estas formas iam desde atos violentos, como ataques suicidas ou mortais sobre
os proprietrios de escravos (muitas vezes provocados por um tratamento
excessivamente brutal), a aes como mentir, fraudar e roubar, fingir estar doente,
trabalhar a um ritmo deliberadamente lento ou recorrer a pequenas sabotagens para
indicar que no cooperariam com seu proprietrio no trabalho dirio, que lhe causariam
desconfortos constantes e que fariam o que estivesse ao seu alcance para mitigar a
opresso. A mdio prazo, existia a fuga, prtica frequente para tomar uma pausa
temporria ou com a esperana de escapar da escravido para sempre. (...) 121
120 BRADLEY, op. cit., pp.137-138. Ver o relato sobre a Revoluo Haitiana, na perspectiva de uma
revoluo escrava associada s revolues burguesas europias, no excelente livro de C.L.R. James, Os
Jacobinos Negros.
122 As formas de resistncia dos escravos, numa anlise comparativa entre escravido antiga e escravido
moderna, podem ser encontradas em REIS, J. J., op. cit., e BRADLEY, K., op. cit. Sobre a hiptese de uma baixa
produtividade da produo escravista ver GENOVESE, Eugene. A Economia poltica da escravido. In:
Coleo Amrica: Economia e Sociedade. Traduo de Fanny Wrobel e Maria Cristina Cavalcanti. Rio de
Janeiro: Editora Pallas S.A., 1976.
O Prefeito da Cidade, Lucius Pedanius Secundus, foi morto por um dos seus
prprios escravos,... Seja como for, de acordo com um costume antigo, todos os escravos
que vivessem sob o mesmo teto deveriam ser executados. Mas uma multido de
manifestantes logo se reuniu nesta ocasio, numa tentativa de salvar tantas vidas
inocentes. A coisa quase se transformou numa revolta, e a casa do Senado foi cercada.
No prprio Senado, alguns tinham um forte sentimento contra uma severidade excessiva,
mas a maioria se manifestou contra qualquer mudana. Tal foi o caso de Gaius Cassius
Longinus, que quando chegou a sua vez falou assim: ... Um ex-cnsul foi morto em sua
prpria casa pela traio de um escravo, que ningum denunciou... Ento, deixem-nos
impunes, mas se o Prefeito da Cidade no tem segurana, quem a tem? Pedanius
Secundus tinha quatrocentos escravos e estes no foram suficientes para salv-lo; quem
pode, ento, sentir-se em segurana? ... (...) Prevaleceu a opinio favorvel a que se
decretasse a execuo. Mas a deciso no podia ser aplicada, pois uma grande multido
se reuniu carregando tochas e armando-se com pedras, e conseguiu interromper a
execuo. Ento o imperador publicou um dito censurando o povo, e quando os
condenados estavam sendo conduzidos para a morte, fez com que todo o caminho
estivesse guardado por um destacamento de soldados. 124
124 Tcito, Anais, XIV, 42-45 apud CARDOSO, op. cit., p. 144-145.
executados de aviso para que todos os escravos do imprio entendessem qual era o seu
lugar e que as leis seriam aplicadas em todo o seu rigor para a manuteno da ordem:
muitas das vezes, e para a sua organizao e mobilizao poltica, mas tambm
dificultava as possibilidades de controle ideolgico, pois se no havia uma comunidade
de interesses no interior da classe dos escravos, com uma diversidade tnica e religiosa
bastante grande, muito menos, deles com os senhores. Mesmo com os escravos mais
ntimos era impossvel a construo de qualquer tipo de identificao e os laos de afeto
no eram suficientes para a construo de laos de confiana, pois mesmo os servos mais
prximos e que cresceram na casa do senhor, diante de uma ofensa ou da oportunidade da
fuga no hesitariam em matar o seu amo. Ainda sobre esse trecho, ele apresenta um
problema que a necessidade do Estado e o interesse pblico dever sobrepor-se aos
interesses individuais, sendo, portanto, lcito matar inocentes se for para preservar a
ordem pblica. Quanto a isto nenhuma concesso deveria ser feita, nem para a plebe, nem
para os escravos, nem para aqueles que no Senado tentavam um consenso com as classes
no-proprietrias, como forma de garantir a estabilidade. Na opinio do historiador e do
senador que teria proferido o discurso relatado, 126 a manuteno da estabilidade poltica e
da ordem social vigentes s poderia ser conquistada por meio da represso queles que
demonstraram desprezo para com as leis e instituies romanas diante do assassnio de
um homem da posio de Pednio, pondo em risco a segurana de todos os donos de
escravos, criando uma situao de instabilidade nas relaes escravistas, at que a
autoridade do senhor sobre o escravo fosse realmente restabelecida, com a demonstrao
pblica das consequncias desastrosas de um crime dessa magnitude para aquele que o
pratica e alertando a todos os servos de Roma que a cumplicidade com atos desse tipo
no seria tolerada e seria severamente punida. Somente assim os membros da classe
senhorial romana poderiam dormir tranquilos em suas casas, livres do temor de perderem
a vida a qualquer momento na segurana ou suposta segurana de seus lares. E somente
desse modo poderia ser contida a insubordinao escrava que poderia se alastrar para a
126Convm lembrar que os discursos atribudos a personagens histricos, desde os primeiros historiadores
gregos, eram um recurso retrico dos autores, que tratavam de imaginar o que, pela lgica da situao,
poderia ter sido dito na ocasio descrita; no havia, na Antiguidade, arquivos pblicos que preservassem
discursos polticos, se bem que alguns autores, como Cicero, tratassem de torn-los conhecidos tambm por
escrito. Em alguns casos, uma memria oral poderia ter sido preservada e passada adiante, de parte dos que,
presentes, ouviram o discurso de fato proferido e dele se lembravam em linhas gerais; ignoramos, porm,
na maioria dos casos, o alcance real deste fato.
produo e quem sabe que consequncias graves teria. Vale a pena salientar que a revolta
de Esprtaco tinha ocorrido no fazia nem um sculo e que a classe dominante romana
teve de promover uma crucificao em massa dos escravos rebeldes sobreviventes para
que o clima de revolta entre os escravos desaparecesse diante do terror sentido perante
uma punio que implicava um sofrimento terrvel, uma cena horrenda que fez da estrada
que vai de Cpua a Roma um aviso bem claro para que os escravos que por ela passassem
pensassem duas vezes antes de se rebelarem. E esta foi a ltima grande insurreio de
escravos da Roma antiga. Quem sabe que resultados poderiam ter a complacncia do
Senado com o crime perpetrado contra o prefeito de Roma? Na verdade, a classe
dominante agiu com um profundo realismo poltico, fazendo logo todo o mal de uma vez
e impedindo que os escravos se tornassem confiantes e encarassem a preservao das
vidas dos inocentes como sinal de fraqueza dos seus senhores, ainda mais depois da
presso popular contra a execuo, e se generalizasse a resistncia escrava nas suas
formas mais agudas e violentas.
Por fim, vale destacar novamente a importncia das revoltas de escravos e de sua
ocorrncia. Trabulsi127, ao tratar da raridade dessas revoltas aponta para algumas de suas
causas: as grandes concentraes de escravos eram evitadas, os escravos de origens
diferentes eram misturados em dosagens prprias, para que desse modo se retardasse a
comunicao e organizao da resistncia por causa da diversidade de lnguas, costumes
e religies; no entanto, este autor ressalta a importncia das grandes revoltas de escravos
por terem questionado, mesmo que provisoriamente, o mundo elitista e hierrquico, tal
como ele se apresentava na realidade objetiva e na ideologia dominante; apontando, ao
mesmo tempo, as suas limitaes, como o fato de nunca terem proposto uma abolio da
escravido e uma alternativa de sociedade ao escravismo. O autor apresenta em seu
estudo a concluso de que a tomada de conscincia era difcil e as revoltas raras; raras,
127
Mobilizao Poltica na Grcia. In: Ensaio sobre a Mobilizao Poltica na Grcia Antiga. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2001.
mas concentradas no tempo. Esta ltima parte de extrema importncia para o nosso
estudo. O fato de que todas as grandes insurreies de escravos tenham ocorrido num
curto espao de tempo, num perodo de cerca de um sculo, e que vrias outras pequenas
revoltas e conspiraes tenham se dado nos sculos II e I a.C., mais do que em qualquer
outro perodo da histria romana, demonstra que o momento histrico que o nosso
objeto de estudo foi parte de uma poca de grandes transformaes e possibilidades.
rival no mundo antigo a partir de ento. Na Macednia, em 197 a.C., foram cerca de 5000
prisioneiros; na Ilria, em 177 a.C., cinco mil ou mais; na Sardenha, em 177 a.C., 80000
foram mortos ou capturados; no Epiro, em 167 a.C., 150000; em Cartago, no ano 146
a.C., 50-60000; na guerra contra os teutes e os cimbros, em 102-101 a.C., foram feitos
cerca de 140000 prisioneiros; e nos nove anos de campanha de Jlio Csar na Glia (5849 a.C.) cerca de um milho de prisioneiros de guerra, podendo ser bem menos, no
entanto, algo em torno de 150000, um nmero ainda assim bastante expressivo. 129 Estes
homens capturados seriam os braos a arar as terras itlicas, a principal fora produtiva
do novo imprio, e seres humanos transformados em propriedade dos romanos. O
Mediterrneo foi, assim, uma regio que produzia novos escravos para os mercados de
Roma a cada nova batalha que era travada entre a cidade mais importante da Itlia e os
demais pases do Ocidente e do Oriente, da Europa, da frica e da sia, trazendo homens
e mulheres de vrios povos, de vrios costumes, de vrias culturas e religies. Desse
modo, o escravismo antigo alcanou o seu pleno desenvolvimento sob a gide do Imprio
Romano, durante o domnio romano sobre as terras que tinham os seus litorais banhados
pelo mar Mediterrneo.
O tratamento dado aos escravos era brutal e desumanizador. Eles eram tratados
como coisas, como propriedades. Os escravos no tinham direitos nem cidadania, sendo
aos mesmos vedados o exerccio do voto e o servio militar. Eles estavam sujeitos a
punies severas como o aprisionamento nos ergstulos e a execuo por um delito
qualquer, de acordo com a vontade e o julgamento de seu senhor. De acordo com os
autores acima citados, os romanos no acreditavam que a escravido fosse errada, pois
era prtica universal da poca. 130 Os povos escravizados tambm no consideravam a
escravido errada em si mesma, e, por isso, em todas as rebelies servis, os rebeldes
tentaram acabar somente com a sua prpria servido e no com o trabalho escravo em
129 Idem, ibidem, p.10
geral; no foram lutas para abolir um sistema econmico-social ou para substitu-lo por
outro, mas fugas para fora, fosse com o objetivo de retornar terra natal, fosse para
formar comunidades independentes ou Estados paralelos, reproduzindo, porm, as
relaes escravistas na sua prpria organizao social.
Os escravos eram muito explorados e tinham uma vida durssima, mas uma coisa
era certa: os escravos rurais tinham uma vida ainda mais dura e muito mais horas de
trabalho.
A vida na fazenda era, em geral, muito mais dura para um escravo que a vida
na cidade. Ele tinha um longo dia nove a quinze horas com um intervalo no meio. (...)
Dias de folga na fazenda eram menos frequentes que na cidade; e no podemos ter
certeza de quantos dias de folga um escravo recebia.131
Desse modo, podemos entender porque a maioria dos soldados dos exrcitos de
escravos rebeldes, tanto de Euno quanto de Esprtaco, eram escravos rurais. A vida no
campo era mais difcil, os escravos trabalhavam mais e sofriam mais castigos e torturas.
Apesar disso, os seus senhores tinham por obrigao garantir-lhes roupas e alimentos,
minimamente, e quando isso no ocorria de maneira adequada revoltas como a da Siclia
podiam eclodir, tendo como estopim o mais bsico que a subsistncia. De qualquer
modo, em geral, os escravos rurais foram menos alimentados e vestidos menos
adequadamente. O modo de vida dos escravos dos ergstulos era um dos piores possveis
para um ser humano escravizado e forado a trabalhar para os senhores de terras
romanos, itlicos e sicilianos no perodo da Repblica. Os escravos que desagradavam ao
seu senhor ou ao capataz da fazenda eram mantidos acorrentados durante a noite no
ergastulum, priso comum maior parte das fazendas romanas de certa importncia
durante muito tempo. Uma outra diferena existente entre os escravos urbanos e os
escravos rurais, alm do regime de trabalho mais flexvel dos primeiros e relaes mais
amenas, se possvel dizer tal coisa de uma relao escravista, era a premiao dada aos
escravos urbanos que caam na graa de seu senhor na forma de dinheiro, o chamado
131 Idem, ibidem, pp. 27-28.
peculium, com o qual eles podiam comprar sua liberdade a partir de um valor estipulado
pelo amo e acordado entre as partes, aps um certo perodo de servido, sendo algo mais
raro nas relaes no campo, aparecendo neste caso, como o mais habitual a promoo dos
melhores escravos a cargos de trabalho mais leve e prestigioso, implicando tambm mais
responsabilidade e ao mesmo tempo mais privilgios, como a funo de uillicus ou
capataz. Os capatazes administravam as propriedades rurais na ausncia dos senhores e
deviam-lhes total obedincia e lealdade, exercendo a funo de dirigir e controlar os
demais escravos, coordenando a produo, resolvendo os possveis problemas e,
principalmente, garantindo o lucro dos proprietrios.
O trabalho nas minas tambm era dos mais sofridos para aqueles que acabavam
escravizados, sendo forados ao trabalho extenuante. Diodoro da Siclia descreve o
trabalho nas minas e o sofrimento dos escravos que tinham por sorte cumprir esta tarefa
at o fim dos seus dias:
Os escravos que trabalhavam nas minas produziam aos seus senhores vastos e
incrveis lucros, mas ao mesmo tempo eles desgastavam os seus corpos nas escavaes
subterrneas tanto de dia quanto de noite. Muitos deles morrem por causa das pssimas
condies que eles tem de enfrentar. No h pausa ou intervalo de descanso em seu
trabalho. Eles so forados pelos golpes dos capatazes a suportar o seu terrvel destino e
suas vidas se esvaem deste modo miservel. Ainda alguns deles, por conta de sua fora
fsica e mental, conseguem suportar seu tormento por um longo tempo. A morte
prefervel para eles que prolongar o seu sofrimento. (Diodoro da Siclia, 5, 38,1) 132
confisso daquilo que se supunha que ele soubesse acerca de um crime que ocorresse na
residncia do seu amo:
3 A REVOLTA DE ESPRTACO
opostos optimates e populares e agora mais ainda os principais generais na disputa pelo
poder, somada s guerras externas, como a que se deu contra Sertrio na Espanha e
Mitrdates na sia Menor, eram os elementos mais explosivos de um contexto poltico e
social que impulsionava os escravos revolta aberta, alm das razes econmicas
subjacentes e constitutivas deste processo, com um elevado grau de explorao dos
escravos e o desenvolvimento acelerado do modo de produo escravista, bem como a
sua consolidao nos moldes de uma grande produo escravista voltada para o mercado.
A vida de um escravo gladiador era a de uma existncia miservel, de um ser
humano que vivia para a morte e que esperava a sua morte todos os dias; matar para
sobreviver e sobreviver para continuar matando. Um cartaz publicitrio pintado em uma
parede em Pompia, cidade destruda por uma erupo do Vesvio em 79 d.C.,
conservando assim vrios vestgios daquela poca, hoje vestgios arqueolgicos
fundamentais para o nosso conhecimento acerca do passado romano, anuncia combates
de gladiadores durante cinco dias do ms de maro, contando o referido espetculo com
feras. O divertimento romano de assistir gladiadores lutando entre si para preservar a
prpria vida e, ao mesmo tempo, tentando escapar de serem estraalhados pelas bestas
selvagens reduzia estes escravos a um patamar dos mais inferiores daquela sociedade e
semeava em seus coraes o dio contra Roma:
Podemos constatar que era possvel tornar-se um liberto, mesmo sendo gladiador,
mas uma vida to incerta e quase sempre to curta, no devia fazer com que os escravos
julgassem a melhor atitude a espera, preferindo talvez a fuga ou o suicdio. De qualquer
modo, mesmo uma fuga, para que fosse bem-sucedida, era tarefe rdua e difcil,
impelindo os escravos espera, mais pela falta de alternativa do que por um
conformismo ou aceitao de sua condio. O certo que quando a oportunidade surgiu,
136 MASSEY;MORELAND, op. Cit., pp. 36-37.
estratgia militar no mundo antigo a estratgia de guerra romana , bem como a sua
capacidade oratria, foram os elementos decisivos para que ele assumisse a dianteira das
tropas rebeldes e conquistasse a posio de chefe, consolidando-a mais tarde com sua
generosidade e justia na distribuio do saque. Em Plutarco, alm dos dons mgicos,
elemento tambm presente nas lideranas das duas revoltas de escravos da Siclia,
Esprtaco aparece como um lder inteligente, forte e sbio e algum que valia mais do
que a sua sorte e que era mais grego do que a sua origem, ou seja, Esprtaco era
escravo e gladiador por um mero acaso, pois, pelo seu talento e capacidades, ele deveria
ocupar, ainda que fosse como escravo, uma posio de escravo domstico ou qualquer
outra funo mais suave e mais prestigiosa, dentro daquilo que eram as possibilidades e
perspectivas de melhores condies e de status na vida de um escravo no mundo romano.
Assim, para Plutarco, havia destinos mais adequados para cada tipo de escravo de acordo
com as suas habilidades:
(deus filho de Jpiter e pai de Dionsio, sendo a viso da serpente ligada ao culto
sabazista, oriundo da Trcia). A liderana simblica e efetiva do gladiador trcio, casado
com uma sacerdotisa de Dionsio, provinha da sua capacidade, mas tambm das crenas
populares da poca, que o habilitavam, mais do que a qualquer outro, a ser o chefe
principal do exrcito rebelde.
No texto de Plutarco aparece o nome do lanista, o dono da escola de gladiadores,
como Lntulo Vtia, mas a maioria dos historiadores concorda que o seu nome Cn.
Lntulo Baciato. O dio que os escravos nutriam em relao a amos desse tipo
evidente. Na escola de gladiadores os escravos eram treinados para combater at a morte
na arena; esta era a vida desgraada que o lanista oferecia queles homens que eram sua
propriedade. A rebelio, que comeou como uma revolta local contra um determinado
senhor, assim como ocorrera com Damfilo, na Siclia, transformou-se numa fugarompimento ou numa fuga para fora, com os escravos fugitivos aquilombando-se no
Vesvio. O crescimento do exrcito rebelde generalizou a insurreio de escravos por
toda Itlia, levando diversos escravos rurais a apostarem numa fuga coletiva para fora da
pennsula. Apesar do impacto desta revolta, no podemos classific-la como uma
revoluo. Os espartacanos no pretendiam abolir a escravido, ento, no se tratava de
uma revoluo social. Eles tambm no derrubaram o governo de Roma, nem formaram
um novo governo, mesmo que com um regime poltico-social idntico, tomando o poder
poltico de Estado, como fizeram os sicilianos na rebelio liderada por Euno, e, sendo
assim, no podemos classificar esta insurreio como uma revoluo poltica. Assim, de
acordo com o paradigma marxista, que o que norteia esta pesquisa, no possvel
afirmar que se tratou de um verdadeiro processo revolucionrio, mas foi realmente uma
revolta popular e uma luta de classes que colocou senhores e escravos em campos
opostos numa verdadeira guerra. Tratou-se de uma luta social e poltica que representou
um marco na Antiguidade clssica e uma das maiores insurreies de escravos da
Histria, e em verdade a maior delas at a Revoluo Haitiana.
Tratamos nesta dissertao do tema das classes sociais e do porqu de
considerarmos os escravos antigos uma classe. importante aqui elucidarmos o
importante aspecto da luta de classes, tema que j foi parcialmente abordado no segundo
captulo, pelo menos no plano mais terico. Interessa-nos salientar que a luta dos
espartacanos foi efetivamente uma luta poltica (se bem que no fosse, como j
afirmamos, uma revoluo poltica); e que seus objetivos, embora os possamos
considerar limitados de uma perspectiva moderna, representavam a poltica possvel
naquele momento histrico e eles chegaram mais longe do que nenhum outro naquela
estrutura social e contexto poltico e cultural. Parece-nos tambm exagerado
considerarmos que somente os homens livres empreenderam uma luta efetiva e
significativa na Antiguidade. Na verdade, as classes subalternas, em geral, nas formaes
sociais pr-capitalistas, sempre que puderam, levantaram-se contra a sua situao de
explorao e de opresso, impactando a sociedade e, principalmente, ameaando o status
quo, o domnio de classe vigente e seu nvel de riqueza social e prestgio poltico. Joo
Jos Reis fornece-nos uma interpretao poltica das lutas sociais das camadas
socialmente exploradas do perodo anterior ao capitalismo:
A poltica tem sido considerada o universo dos homens livres das sociedades
modernas. Os rebeldes que fizeram seus movimentos em contextos pr-industriais ou prcapitalistas ganharam a denominao de rebeldes primitivos e seus movimentos foram
chamados de pr-polticos. Essa merminologia de inspirao evolucionista, elaborada
com certo cuidado por Eric Hobsbawn, j foi habilmente criticada por nossos
antroplogos e historiadores. Eles colocaram as peas no lugar certo: no se trata de
uma questo de pr ou ps, trata-se do diferente. Os rebeldes primitivos faziam a
poltica que podiam fazer face aos recursos com que contavam, a sociedade em que
viviam e as limitaes estruturais e conjunturais que enfrentavam. 141
revolta liderada por Euno na ilha da Siclia, vrias outras rebelies servis eclodiram.
Imaginem s se o exrcito espartacano tivesse alcanado o seu objetivo e realizado a
incrvel fuga para fora da Itlia? Quantas outras fugas em massa de escravos no teriam
havido em sequncia? isso que explica a dura represso ao movimento com a
crucificao de seis mil prisioneiros, ainda que isso significasse destruir foras
produtivas, pois preservava o futuro.
Plutarco segue o relato, comeando pelo sentido de tudo aquilo que tinha relao
com os escravos e do quanto era visto como indigno tanto para os senhores quanto para
os prprios escravos, ao mesmo tempo em que expe as vitrias espetaculares do exrcito
de Esprtaco, nas primeiras batalhas da guerra servil:
O autor afirma que, logo que puderam, os escravos rebeldes trocaram suas armas
de gladiadores pelas armas do exrcito romano, por considerarem as primeiras indignas,
desonrosas e brbaras. Com certeza, isto deve ter ocorrido; evidencia unicamente que a
ideologia dominante tambm exercia influncia sobre os escravos que, assim como seus
amos, enxergavam tudo que se relacionava com a escravido como inferior e brbaro;
143 Apud ARAJO, op. cit., p. 11.
mas talvez as armas apreendidas fossem vistas tambm como armas melhores e mais
eficientes para os combates numa guerra. Alm disso, a cada vitria do exrcito
espartacano, os rebeldes pegavam as armas das tropas derrotadas para se abastecer de
armamentos de forma contnua. No texto fica claro que os romanos subestimaram os
escravos rebeldes e que os espartacanos utilizaram tticas de guerrilha, como
escaramuas, para vencer os seus inimigos em combate, obtendo sempre uma vantagem
numa luta assimtrica entre um exrcito profissional de uma grande potncia e uma tropa
rebelde com poucos recursos. Outro fato interessante que, neste trecho, Plutarco chama
a todos os escravos que atacaram os soldados romanos de gladiadores, que era o
segmento que detinha a liderana das tropas rebeldes. O autor escreve que os romanos
foram pegos desprevenidos, estavam despreparados, e ficaram aterrorizados com o ataque
surpresa engendrado por Esprtaco e seus comandantes. Diante do sucesso dos
revoltosos, homens livres se uniram a eles e assumiram diversas funes, dentre elas
tambm a de combater. Plutarco descreve um exrcito extremamente organizado.
Trabalhadores rurais, como boiadeiros e pastores, foram os livres que se juntaram a
Esprtaco. Dentre os pastores possvel que existissem escravos pastores tambm e,
assim como se deu com os livres, entre os escravos os rurais tambm foram a maioria a
afluir para a revolta. Neste trecho tambm fica ntida a engenhosidade de Esprtaco frente
s adversidades.
Apiano aborda como os senadores romanos encaravam aquela revolta e que foi o
menosprezo das principais autoridades republicanas quele movimento que levou os
primeiros exrcitos mandados derrota:
Varnio Glaber foi mandado contra ele primeiro, e depois Pblio Valrio, no
com exrcitos regulares, mas sim com foras arregimentadas s pressas e ao acaso, pois
os romanos no a consideravam ainda uma guerra, mas sim uma razzia, algo como um
surto de roubos. Eles atacaram Esprtaco e foram vencidos. Esprtaco capturou at o
cavalo de Varnio; o prprio general romano escapou por pouco de ser capturado por
um gladiador. Depois disto, um nmero ainda maior de pessoas agregou-se a Esprtaco,
at que seu exrcito contasse com cerca de 70000 homens. Para estes, ele fabricou armas
e reuniu armamentos, enquanto Roma mandara os cnsules com duas legies.(Apiano,
XIV, 116)144
Uma delas, [das legies] derrotou Crixo com 30000 homens prximo ao Monte
Gargano, dois teros dos quais sucumbiram junto com ele. Esprtaco tentou abrir
caminho atravs dos Apeninos em direo aos Alpes e regio da Glia, mas um dos
cnsules antecipou-se e impediu sua fuga, enquanto o outro mantinha sua retaguarda sob
controle. Ele voltou-se contra eles um aps o outro e derrotou-os um por um. Eles
bateram em retirada, de modo confuso, em vrias direes. Esprtaco sacrificou
trezentos prisioneiros romanos ao esprito de Crixo, e marchou sobre Roma com 120000
homens da infantaria; tendo queimado todo o material sem utilidade, matou todos os
prisioneiros e abateu seus animais de carga, a fim de executar prontamente seu
movimento. Muitos desertores ofereceram-se a ele, embora ele no os aceitasse. Os
cnsules novamente encontraram-no na regio do Piceno. Aqui havia sido travada outra
grande batalha e houve, tambm uma outra grande derrota dos romanos. Esprtaco
mudou sua inteno de marchar sobre Roma. Ele ainda no se considerava pronto para
este tipo de luta, j que sua fora total no estava armada adequadamente, pois nenhuma
cidade juntou-se a ele, mas somente os escravos, desertores e a ral. No entanto, ele
ocupou as montanhas ao redor de Trio e tomou a prpria cidade. Ele proibiu que os
mercadores trouxessem ouro e prata, e no permitiu que seus prprios homens os
adquirissem, mas comprou grande quantidade de ferro e bronze e no interferiu com
aqueles que negociassem com tais artigos. Abastecido em abundncia com material
dessa procedncia, seus homens proveram-se de muitas armas e fizeram pilhagens
freqentes por um tempo. Quando eles, em seguida, travaram combate com os romanos,
novamente foram vitoriosos, e voltaram carregados com esplios.(Apiano, As Guerras
civis, XIV, 117)146
deixava para trs tudo que no fosse essencial. Ele abatia os animais de carga e queimava
o material que no podia levar, provavelmente, para no deix-los para as tropas
inimigas. Os saques eram uma forma de garantir o abastecimento de seu exrcito. Ele
permitia o comrcio que era de seu interesse para equipar as suas tropas. Esprtaco
rejeitava tudo que fosse suprfluo, mesmo as riquezas como prata e ouro, preferindo, ao
invs disso, adquirir bronze e ferro para a fabricao de armas para fazer a guerra. Os
esplios de guerra conquistados nas batalhas ou nos saques s regies que ocupavam
eram a forma principal de fornecimento de suprimentos para os revoltosos. Esta
sobriedade de Esprtaco garantiu por algum tempo a sua vitria, mas a sorte da guerra
comeou a mudar com a entrada em cena de um importante personagem desta histria
trgica, que cumpriu um papel decisivo para que os romanos retomassem posies
perdidas e avanassem sobre o exrcito de escravos. Este homem era Crasso.
A grande virada no conflito para um cenrio mais favorvel aos romanos deu-se
efetivamente quando Licnio Crasso assumiu o comando das legies que marchariam
contra Esprtaco. Os soldados romanos que se mostraram indignos e covardes foram
severamente punidos com o castigo da dizimao, em desuso na poca, mas que foi
considerado pelo general romano como necessrio para restabelecer a disciplina em suas
fileiras. Segundo Apiano, os soldados passaram a temer mais a Crasso do que aos
espartacanos, o que serviu para encoraj-los a lutar com todas as foras, sem recuar,
impondo, assim, aos rebeldes importantes e sucessivas derrotas. Quatro mil soldados
romanos foram sorteados para serem executados de forma exemplar para que servissem
de aviso aos demais. Plutarco tambm escreve sobre a aplicao deste castigo, e informanos que o sorteio se deu entre aqueles que haviam manifestado mais medo e que esta
forma de punio era marcada pela humilhao, por ser uma morte desonrosa. Tanto em
Apiano quanto em Plutarco este o momento em que Esprtaco muda seus planos e tenta
escapar da pennsula pelo sul, rumo Siclia:
Quanto aos quinhentos que haviam manifestado mais medo, ele os repartiu em
cinquenta grupos de dez, em cada um dos quais fez morrer um homem designado por
sorteio. Castigo tradicional h muitas geraes. E, com efeito, a vergonha se liga a esse
gnero de morte, muitos detalhes do qual, apavorantes e sinistros, agravam a execuo,
efetuada vista de todos. Assim corrigindo seus homens, Ele os comandou na direo do
inimigo. Esprtaco, porm, se retirara em direo ao mar pela Lucnia. Achando no
estreito barcos de piratas cilcios, ele decidiu tentar um golpe na Siclia, lanando dois
mil homens ilha para ali reacender a guerra servil, que, extinta havia pouco tempo, s
tinha necessidade de umas fagulhas para voltar a arder. Mas os cilcios, aps fazer
acordo com ele e receber gratificaes, o enganaram, partindo sozinhos. (Plutarco,
Crasso, 10)148
Neste fragmento, podemos notar que para os romanos estes eventos no estavam
desconectados. Eles viam total relao entre as guerras servis e a memria das revoltas da
Siclia e de seu impacto ainda estava presente no momento em que eclodiu a revolta de
Esprtaco. Plutarco afirma que apenas algumas fagulhas bastariam para reacender a
guerra servil na ilha da Siclia. Isto quer dizer que a situao ainda era delicada e que o
controle sobre os trabalhadores escravos, mesmo depois da represso Segunda Guerra
Servil, era muito dbil e que as condies que geraram as duas revoltas anteriores no
haviam se alterado substancialmente. O autor afirma que Esprtaco pretendia dar um
148 Idem, ibidem, p.12.
golpe de Estado na Siclia, remetendo ao que ocorrera na primeira rebelio servil, quando
Euno deu um golpe e assumiu o controle do governo da ilha. Assim, para os dois autores,
as condies na provncia ao sul seriam mais favorveis e permitiriam aos espartacanos
resistir mais tempo. A traio dos piratas cilcios foi decisiva para que o plano de
Esprtaco malograsse. Os rebeldes estavam, agora, encurralados. As tropas de Crasso
avanavam sobre eles, tendo atrs de si o seu general com a espada e o chicote para
for-los a lutar, retirando-lhes o medo do exrcito de escravos, atravs do medo que lhes
incutia pelos castigos severos que os aguardavam em caso de desero. Antes de Licnio
Crasso passar ao comando dos exrcitos romanos, vimos nos relatos sobre vrias
deseres e de como estes desertores tentaram, inclusive, passar para o outro lado, sendo,
no entanto, recusados pelos escravos. O novo general era ao mesmo tempo estrategista e
carrasco, um comandante com amplos poderes para uma situao de extremo perigo. O
aumento no efetivo de soldados, com um nmero de legies muito superior ao que fora
designado pelo Senado no princpio, tambm demonstrou o medo crescente dos
senadores diante daquela guerra que acontecia na prpria Itlia.
O general dos escravos tambm tentava maneiras de incentivar os seus soldados a
lutarem com todas as foras, conscientizando-os do terrvel destino que teriam caso
fossem vencidos:
A morte pela cruz no viria das mos de Esprtaco, naturalmente, como a punio
aos romanos que partiu das mos de Crasso, mas sim de Roma; demonstrando de maneira
bastante pedaggica, o lder escravo expunha de forma quase proftica o futuro que
teriam e porque deveriam travar uma luta desesperada pela sua liberdade e por suas vidas.
Ele j havia sacrificado prisioneiros romanos antes em ritual e honra a Crixo e agora
executava de modo exemplar um soldado romano. Diferentemente da rebelio conduzida
por Euno, Esprtaco no parece ter feito escravos, executando de diversas formas os seus
prisioneiros. O seu exrcito tambm no se firmou numa posio geogrfica fixa por
muito tempo, como acontecera nas revoltas anteriores. Este era um exrcito em marcha
permanente e quase ininterrupta e uma comunidade mvel de homens e mulheres pobres
e ex-escravos. Uma nao errante de desvalidos. Em circunstncias assim no era
interessante ou prudente ter cativos. A ao educativa para os soldados rebeldes foi uma
tentativa desesperada de abrir-lhes os olhos para a gravidade da situao. Tanto as aes
de um general quanto de outro revelavam que circunstncias desesperadas pediam
medidas desesperadas e os dois apostaram todas as fichas em vencer o conflito ou, no
caso de Esprtaco, fugir da Pennsula Itlica o mais rpido possvel. Mas nem todos os
esforos do lder gladiador foram suficientes para evitar as constantes dissidncias entre
os escravos. Uma das batalhas mais sangrentas, retratadas em cores vivas por Plutarco,
foi justamente o enfrentamento e consequente massacre de uma dessas tropas dissidentes
do exrcito espartacano pelas tropas de Crasso:
carter vacilante, oscilando o tempo todo em sua estratgia. Um fator positivo, entretanto,
era o seu dinamismo. Na medida em que o exrcito romano eliminava seus lderes, outras
lideranas surgiam do prprio processo de luta, como se deu com a morte de Crixo e
Enomau, assumindo Gancio e Casto posies de comando. Novos generais eram
forjados no calor das batalhas para chefiar o movimento rebelde. Esprtaco seguia como
sua liderana principal, mas tinha de enfrentar constantes rupturas e, s vezes, era
vencido pela opinio da maioria na hora de decidir a melhor estratgia. Mas o que era
apontado como um elemento negativo pelos autores romanos evidenciava, ao mesmo
tempo, ser aquele um movimento dinmico e democrtico, diferente da concepo
romana da guerra, onde o general determinava, ou parecia ser assim nos relatos relativos
a esse processo poltico e militar em especial, de forma irrevogvel as tticas e estratgias
de batalha. Assim como o produto dos saques era distribudo de maneira igualitria entre
todos, as decises tambm pareciam ter um carter coletivo nessa revolta popular,
havendo algo como assemblias, sendo necessrio ao lder do movimento convencer os
seus liderados, no pela coero, mas pela oratria. significativo que apenas dois
escravos tenham tentado fugir do campo de batalha e que a maioria absoluta tenha
permanecido defendendo os seus postos na luta contra as tropas de Crasso, o que foi
reconhecido pelo autor, demonstrando que valores como a coragem no eram exceo,
algo que poderia se manifestar em alguns elementos apenas, que por mero acaso teriam
se tornado escravos e sido designados para funes mais rebaixadas como a de gladiador,
tal como ocorrera com Esprtaco; este fragmento deixa claro que esta coragem
excepcional podia se manifestar nas massas de escravos rebeldes tambm. Alm disso,
aqui aparecem mulheres, que participavam da revolta tambm, que apoiavam o
movimento.
Pouco antes da batalha final, Esprtaco derrotou Quinto, que era um dos generais
de Crasso, e o questor Escrofa, tornando os rebeldes confiantes novamente, o que influiu
decisivamente nos passos seguintes do exrcito espartacano:
... Crasso tentou de todas as maneiras dar combate a Esprtaco para que
Pompeu no pudesse colher a glria da guerra. O prprio Esprtaco, pensando
antecipar-se a Pompeu, convidou Crasso a entender-se com ele. Quando suas propostas
foram rejeitadas com desprezo, ele resolveu arriscar uma batalha, e como sua cavalaria
havia chegado, avanou com todo o seu exrcito atravs das linhas do exrcito que lhe
fazia cerco, e avanou para Brundusium com Crasso perseguindo. Quando Esprtaco
soube que Lculo acabara de chegar a Brundusium da sua vitria contra Mitrdates,
perdeu toda esperana e trouxe suas foras, que eram ento muito numerosas ainda,
para perto das de Crasso. A batalha foi longa e sangrenta, como era de se esperar de
tantos milhares de homens desesperados. Esprtaco foi ferido na coxa por uma lana e
ajoelhou-se, segurando seu escudo sua frente e lutando assim contra seus atacantes at
que ele e a grande massa dos que com ele estavam foram cercados e mortos. O resto de
seu exrcito entrou em pnico e foi massacrado maciamente. To grande foi a matana
que se tornou impossvel contar os mortos. Os romanos perderam mais ou menos mil
homens. O corpo de Esprtaco no foi achado. Muitos dos seus homens fugiram do
campo de batalha para as montanhas, onde os seguiu Crasso. Eles se dividiram em
quatro grupos, e continuaram a lutar at que todos pereceram, com exceo de seis mil
que foram capturados e crucificados ao longo de toda a estrada de Cpua a Roma.
(Apiano, As Guerras Civis, XIV, 120)152
Apiano fala de uma batalha difcil, na qual muitos romanos morreram, e que o
prprio Esprtaco lutou at a morte, assim como aqueles que com ele estavam. O corpo
do lder do exrcito espartacano nunca foi encontrado. Antes do confronto direto, ele
tentou todos os tipos de escaramuas e subterfgios, buscando at mesmo um
entendimento com Crasso, propondo um acordo, que foi pelo general romano rejeitado
com desprezo, por se tratar das propostas de um escravo e no de um verdadeiro general,
de um exrcito de escravos fugitivos e no do exrcito de outra nao, no sendo possvel
nem digno firmar tratados com tropas como as de Esprtaco. Os rebeldes foram cercados
por trs generais Crasso, Pompeu e Lculo e suas respectivas legies. Os escravos
sobreviventes, ao serem capturados, sofreram o destino para o qual Esprtaco os havia
alertado: foram crucificados. A crucificao em massa se deu ao longo da estrada que ia
de Cpua, cidade onde se iniciou a revolta, a Roma, a capital do imprio, para servir de
exemplo para todos os escravos da Itlia e de todo o Imprio Romano, para mostrar o que
acontece com aqueles que desafiam a ordem estabelecida, com os escravos fugitivos e
rebeldes, com aqueles que ameaam a segurana dos cidados romanos e suas
propriedades. O relato de Apiano teve como centro as operaes militares ocorridas
durante toda a guerra servil. E no final de seu texto, ao contrrio do que buscou Plutarco,
ele apresenta uma batalha sangrenta, na qual os dois lados lutaram bravamente, apesar de
mencionar o fato dos rebeldes terem entrado em pnico depois da morte de seu lder. J
Plutarco tenta reafirmar o discurso escravista, enfatizando a covardia dos escravos nesse
152 Apud CARDOSO, op. cit., pp. 143-144.
diante do fato de que todos os textos foram produzidos pela classe dominante. Para isso,
tendo em vista a sua importncia e alcance, no podemos ignorar o tratamento dado pela
historiografia sovitica ao tema, nem deixar de formular uma crtica consistente mesma.
153 RUBINSOHN, W. Z. SpartacusUprising and Soviet Historical Writing. Oxford: Oxford University Press,
1987, p. 1.
a partir do sculo V d.C. Desse modo, Roma teve sua derrocada pela via revolucionria,
tendo os escravos antigos como protagonistas dessa revoluo. 154
O contexto poltico dos expurgos stalinistas na Unio Sovitica dos anos 30
produziu uma historiografia totalmente alinhada com o dogmatismo que marcou o que foi
denominado de marxismo-leninismo por Stlin. Misulin foi um dos intelectuais que
representou esta tendncia. Ele era membro do PCUS desde 1927, co-editor do nico
peridico especializado em Histria Antiga da Unio Sovitica, o V. D. I., e se tornou
Diretor da Seo de Histria Antiga do Instituto Histrico da Academia de Cincias, em
1938, obtendo o seu Doutorado em 1943. Ele publicou trs artigos e dois livros sobre a
revolta de Esprtaco e ganhou notoriedade por estes trabalhos na URSS. 155
O mais importante que Misulin escreveu uma histria das rebelies de escravos
da Roma antiga que estava em consonncia com os dogmas do Estado sovitico:
154 ARAJO, A Viso dos Letrados sobre Rebelies de Escravos no Mundo Romano: Uma Abordagem
Semitica de Fontes Literrias, op. cit., pp. 234-235.
A interpretao histrica de Misulin estava impregnada de contedo polticoideolgico e traava um paralelo com questes modernas e caras ao Partido, no sentido
de construir uma anlise que dava justificao terica ao combate empreendido pela
maioria da sua direo aos seus opositores. Assim, Esprtaco teria sido o verdadeiro
lder do proletariado e o Grande Lder, que teve seus planos derrotados pela
indisciplina da pequena burguesia, representada pelos homens livres e pobres e pelos
extremistas de esquerda Crixo, Enomau, Gancio e Casto, que poderiam ser
identificados com os trotskistas da oposio de esquerda. 157
A crtica s posies de Misulin partiu de Kovalev (Kovaliov), uma das mais
surpreendentes, por ser este autor um dos representantes da revoluo em duas etapas.
Neste historiador, a frente nica entre escravos, colonos e brbaros para derrubar o
imprio aparece como parte de seu esquema, que exclua a revolta de Esprtaco como
parte dessa revoluo que efetuou a passagem da sociedade escravista para o feudalismo.
Em Kovalev, o levante de Esprtaco foi uma insurreio revolucionria, mas no uma
verdadeira revoluo, pois no teria alterado o modo de produo, com a passagem do
poder poltico das mos de uma classe social para outra. 158 Ainda se pode dizer de
Kovalev que ele datou corretamente a revolta de Esprtaco (73-71 a.C.) e tambm a
situou mais realisticamente em relao futura transio ao feudalismo.
159
mesmo falar de uma transio revolucionria da Repblica para o Principado, mas tendo
como centro o conflito entre os homens livres:
Uma noo mais rgida em relao aos escravos presente em Cato ou na teoria da
escravido natural de Aristteles, que foi o grande paradigma escravista da Antiguidade,
foi posta em xeque pela ecloso das revoltas servis dos sculos II e I a.C. e a forma com
que as mesmas se desenvolveram, ameaando o modo de vida e as propriedades romanas.
160 Idem, ibidem, p.13.
Qualquer ser humano que, por natureza, pertena no a si mesmo mas a outro
, por natureza, escravo; e um ser humano pertence a outro sempre que fizer parte da
propriedade, ou seja, uma parte da propriedade que um instrumento para a ao de seu
senhor. (Aristteles, Poltica 1254 a 4-18 )161
161Apud GARNSEY, Peter. Ideas of Slavery from Aristotle to Augustine. (Coletnea de documentos). Nova
Iorque. Cambridge University. Press, 1996, p.108.
No caso de Euno, ele praticamente difamado por Diodoro, que o apresenta como
um homem covarde e enganador. Como lder de uma revolta de escravos, para a ideologia
dominante, Euno s poderia ser um homem do tipo mais vil, um bandido. O exemplo de
escravo bom era aquele que obedecia disciplinadamente o seu amo. Ele foge para uma
caverna junto com os seus servos pessoais. Ele contava histrias fantsticas para os
senhores que faziam parte do grupo de relaes de seu amo e depois para os seus
comandados, durante a rebelio, sendo visto como um farsante. As qualidades de Euno
no so destacadas no texto de Diodoro. Ele um dos alvos principais de sua condenao
moral.
No caso de Esprtaco parece ter sido diferente. Ele no s tem seu valor
reconhecido, como exaltado em relao aos demais escravos. Talvez isso tenha se dado
desse modo, porque os dados disponveis eram claros demais em favor de Esprtaco.
Porm, ele era reconhecido como um grande homem e um grande general, mas de um
exrcito de homens sem valor, de seres da pior espcie, vis, escravos. Ele no podia ser
considerado diretamente inferior. Trs homens, principalmente, aterrorizaram Roma em
toda a sua histria, graas s suas qualidades pessoais de lderes, e impuseram amargas
derrotas aos romanos, amedrontando-os: Anbal, Esprtaco e Esprtaco. Os romanos no
tinham como considerar Esprtaco inferior sem inferiorizarem a si mesmos; alm disso,
ele poderia sempre ser apresentado como uma exceo. A ideologia escravista
incorporava a ideia de que certos homens que no fossem escravos poderiam cair na
servido por algum acaso da vida, tal como se deu com o grande filsofo Plato, e, ao que
parece, como era apresentado o prprio Esprtaco, algum que valia mais do que a sua
sorte. Criar um abismo moral entre o comandante e suas tropas era o nico recurso que
os idelogos da nobreza senatorial tinham para diminuir sua importncia. E o fizeram em
vrios momentos, ao retratarem o exrcito de escravos como indisciplinado, o oposto do
exrcito romano de homens livres e cidados. claro que, com isso, Esprtaco, em certa
medida, apesar de sua coragem e inteligncia, tambm aparecia como um mau general,
que no sabia disciplinar e conduzir as suas tropas.
Plutarco, ao relatar a batalha final entre Crasso e Esprtaco, homens que deixam a
impresso, a partir desta leitura, de terem sido vtimas do destino. Esprtaco abandonado
por seus soldados e Crasso injustiado por Roma, que no soube reconhecer toda a sua
grandeza:
(...) Esprtaco, vendo que no havia outro jeito, alinhou todo o seu
exrcito. Logo de incio, quando lhe levaram o seu cavalo, puxou a sua espada, dizendo:
Se eu vencer, terei muitos bons cavalos, os dos inimigos; se for vencido, j no
precisarei de cavalos. Degolou, ento o cavalo. Tentou, a seguir, abrir caminho at
Crasso, desafiando armas e feridas. No o atingiu, mas matou dois centuries que o
haviam atacado. Por fim, enquanto seus soldados fugiam, ficando sozinho e cercado por
grande nmero de romanos, foi trespassado de golpes enquanto continuava a defenderse. Crasso havia feito mudar a fortuna, dirigira bem as operaes e arriscara a prpria
vida. Mesmo assim, o sucesso no deixou de aumentar a glria de Pompeu, pois os
rebeldes escapados do combate e havia cinco mil deles! chocaram-se com suas
tropas e foram mortos, o que permitiu que escrevesse ao Senado: Crasso venceu os
escravos fugitivos ostensivamente; quanto a mim, cortei as razes da guerra.
Concluindo: Pompeu celebrou um brilhante triunfo sobre Sertrio e a Espanha.
Enquanto Crasso nem tentou solicitar o grande triunfo. Longe disto! Acreditava que
celebrar at mesmo o triunfo a p, chamado de ovao, aps uma guerra servil, seria vil
e indigno. (Plutarco, Crasso, 11)167
fugitivos um destino individual de homens livres. Isso assim porque, segundo Arajo
(2006, p.25), que se baseia neste ponto em Yvon Garlan, ainda que os prisioneiros trcios,
germanos e gauleses, que tomaram parte nesta revolta, cassem na escravido
coletivamente, em especial por meio da guerra, o seu destino no cativeiro era individual,
pois eram vendidos para donos individuais. Assim, o destino do escravo sempre um
destino individual, ao contrrio de outras formas de servido coletivas da Antiguidade.
Na revolta liderada por Euno, falamos aqui em revoluo unicamente por um
elemento distintivo de todas as demais rebelies de escravos da Roma antiga, mesmo a de
Esprtaco, que foi a tomada do poder poltico de Estado e o estabelecimento de um novo
governo pelos rebeldes sicilianos. Para uma definio de revoluo poltica pouco
importa se o Estado siciliano continuou a ter escravos ou se o tipo de governo institudo
no foi uma forma revolucionria, mas um modelo de regime poltico j conhecido; o
que importa que houve a derrubada de um governo e a constituio de um novo
governo por outra classe social. O fato disto no ter evoludo para uma revoluo social
ou que sequer pudesse evoluir para isso devido aos limites estruturais do mundo antigo
para um projeto que precisou de sculos de desenvolvimento social, econmico,
filosfico e cultural para que pudesse germinar no invalida o feito realizado pelos
escravos sicilianos. Tambm no podemos classificar como um simples golpe, porque
no foi um golpe poltico dado por uma minoria ou que apenas trocou os homens que
ocupavam os cargos governamentais; houve aqui um genuno movimento de massas, uma
insurreio, que no se esgotou em si mesma, que no formou simplesmente uma
comunidade independente parte, como um quilombo, assim como se deu na Segunda
Revolta da Siclia, e que no foi uma fuga, representando sim uma fuga da sua prpria
escravido, mas no em termos territoriais como a revolta de Esprtaco, o que deixa para
ns apenas a alternativa de reconhecer que este foi um dos momentos em que uma classe
subalterna economicamente explorada na Antiguidade realizou de fato uma revoluo,
no tendo homens livres como protagonistas, mas como homens sujeitos a um trabalho
compulsrio e reduzidos juridicamente condio de propriedade. Isto em nada se
confunde com a anlise da historiografia sovitica, de inspirao stalinista, tambm
criticada neste trabalho, que via nestas revoltas de conjunto como revolues, num
sentido geral, e como parte da revoluo no s poltica, mas econmica e social que
levou ao fim do Imprio Romano, sendo parte de um amplo movimento articulado com
homens livres e pobres do imprio e os chamados povos brbaros. sabido que sequer
uma parte significativa de homens livres da Itlia e da Siclia aderiram a estas revoltas;
alm disso, as prprias rebelies no eram articuladas e coordenadas entrre si; eram,
todas elas, movimentos isolados. O seu carter parcial, local e por interesses diretos e
imediatos foi a maior limitao de todas essas revoltas e a maior prova de que os escravos
no se enxergavam enquanto classe, no desenvolveram uma genuna conscincia de
classe, nem se propunham a suplantar o regime escravista pela via da revoluo. O
isolamento desses diversos movimentos, junto com as traies, serviu para facilitar a sua
represso e j preparavam desde o incio a sua derrota. Mas no podemos exigir dos
escravos antigos aquilo que mesmo para os escravos das colnias nos Tempos Modernos
era uma tarefa que dependia de uma conjuntura absolutamente extraordinria, como a que
se deu em Saint-Domingue, estando o movimento de escravos que culminou na
Revoluo Haitiana, ligado ao contexto interno explosivo da colnia, mas tambm
revoluo burguesa na Frana, sua Metrpole. Se eles nunca se propuseram a destruir o
sistema escravista pela revoluo, ao menos destronaram os seus antigos senhores e
assumiram o seu lugar, ainda que por um breve momento. Assim ao se encerrar o
primeiro ensaio geral da luta dos escravos, os rebeldes sicilianos organizaram um Estado,
preservando as foras produtivas da ilha para o funcionamento da economia e
constituindo um governo e um exrcito para cuidar da administrao pblica e da defesa
frente ao contra-ataque romano, que viria recuperar sua provncia pela fora das armas.
No subttulo acima, evocamos o mito de Prometeu. Na histria contada por
Hesodo em Os trabalhos e os dias e na Teogonia168, Prometeu rouba de Zeus o fogo,
ddiva divina, e o entrega os homens; foi Prometeu tambm que ensinou aos homens as
artes, as cincias e tudo o que se relacionava aos conhecimentos e ao trabalho que nos
168 HESODO. Os Trabalhos e os Dias. Introduo, traduo e comentrios: Mary de Camargo Neves
Lafer. So Paulo: Iluminuras Projetos e Produes Editoriais Ltda, 1991; Teogonia a origem dos deuses.
Traduo: Jaa Torrano. So Paulo: Iluminuras Projetos e Produes Editoriais Ltda., 1992.
fazem humanos e nos diferenciam dos outros animais. Os escravos eram equiparados
pelo discurso ideolgico greco-romano a animais e a instrumentos de trabalho,
ferramentas que falam. A humanidade perdida no discurso vigente e tambm em sua
prtica social, a cada castigo sofrido, a cada noite dormida no ergstulo, a cada combate
na arena com as feras era recuperada na prpria experincia de sua luta, que os escravos
de Roma empreenderam pela sua liberdade, e que ao conseguir obter vitrias sobre os
romanos tambm era recuperada no discurso social, dando maior relevo s qualidades
propriamente humanas daqueles que caram na escravido. Euno e Esprtaco foram as
lideranas produzidas por aquela conjuntura poltica, econmica e social, os indivduos
mais conscientes e capazes para conduzir aos seus pares para a fuga da vida de servido
que levavam. O processo de luta e de organizao gerava uma nova realidade, na qual os
rebeldes passavam por um processo de desalienao progressiva, ainda que limitada, ao
se libertarem da explorao e da reificao de forma mais completa para alguns, inclusive
do ponto de vista da classe dominante, como era o caso de Esprtaco, mas para todos
eles, em especial na revolta que percorreu a Itlia entre 73-71 a.C., no interior de sua
comunidade todos eram livres e iguais e isso j era o maior grau de liberdade que se
poderia alcanar entre os grupos subalternos na Antiguidade. A aluso ao mito de
Prometeu, parte da cultura grega, helnica, e ocidental, como definio do significado de
humanidade frente realidade da escravido pode servir-nos como forma de perceber o
mpeto humano liberdade, ao conhecimento e criao, que se manifesta at naqueles
que mais so privados disso. Tambm podemos ver em Euno e Esprtaco, que
convenceram seus companheiros a iniciar uma luta que se tornou depois muito maior do
que todos eles e muito maior do que imaginavam, mas que apontava desde o princpio um
norte, seja a constituio de uma corte com um chefe escravo como rei, seja pela marcha
para a liberdade na terra natal, encarnando, assim, aquele que de uma fasca incendeia os
pilares do domnio aristocrtico, despertando na conscincia a necessidade de passar da
passividade ou da resistncia passiva para a revolta aberta, impelidos tambm pela
prpria necessidade objetiva, imposta pela realidade concreta, incontornvel e criadora,
ao mesmo tempo, de uma oportunidade mpar.
CONCLUSO
CONCLUSO
A esmagadora maioria dos escravos era composta pelos escravos rurais, que sero
a base dos exrcitos de escravos rebeldes, que tiveram como vanguarda de seu
movimento os setores que tinham acesso a armas, como pastores e gladiadores. A
participao de alguns escravos de tipo urbano e de escravos domsticos na liderana das
revoltas, como Esprtaco e Euno um gladiador e um escravo domstico
respectivamente, forneceu a estes movimentos os quadros que necessitavam para sua
direo. A capacidade de Esprtaco na estratgia justificada por Apiano por sua
participao no exrcito romano, inclusive, por mais que esta afirmao parea muito
mais uma forma de justificar e explicar, de acordo com a ideologia escravista, como um
escravo poderia ser um general melhor que muitos dos melhores generais romanos.
Apesar da situao extrema de opresso sob a qual viviam os escravos, as condies para
a organizao de uma revolta eram muito difceis, pois os escravos viviam sob forte
vigilncia, acorrentados e com pouca oportunidade de comunicao. Nas cidades
existiam muitas das condies objetivas favorveis para a organizao de uma revolta,
como maior mobilidade, liberdade de movimentos, facilidade para a comunicao e
acesso a bens culturais importantes, conhecimentos, elementos que influenciam na
organizao e na construo de um programa mais coerente para um movimento e sua
articulao; no entanto, as melhores condies de vida e a expectativa de uma vida
melhor e da prpria obteno da liberdade no motivavam os escravos a arriscar tudo em
uma revolta, o que poria sob risco as chances pacficas de se obter a liberdade, por meio
da emancipao; ou seja, onde havia algumas das condies objetivas dizemos algumas
lado deles outra pequena propriedade, outro campons e outra famlia. Algumas dezenas
delas constituem uma aldeia, e algumas dezenas de aldeias constituem um departamento.
A grande massa da nao francesa , assim, formada pela simples adio de grandezas
homlogas, da mesma maneira por que batatas em um saco constituem um saco de
batatas. Na medida em que milhes de famlias camponesas vivem em condies
econmicas que as separam umas das outras, e opem o seu modo de vida, os seus
interesses e sua cultura aos das outras classes da sociedade, estes milhes constituem
uma classe. Mas na medida em que existe entre os pequenos camponeses apenas uma
ligao local e em que a similitude de seus interesses no cria entre eles comunidade
alguma, ligao nacional alguma, nem organizao poltica, nessa exata medida no
constituem uma classe. So, consequentemente, incapazes de fazer valer seu interesse de
classe em seu prprio nome, quer atravs de um Parlamento, quer atravs de uma
conveno. No podem representar-se, tm que ser representados.(...) 169
169 MARX, Karl. O 18 Brumrio de Lus Bonaparte. In: Os Pensadores. Seleo por Jos Arthur Giannotti.
Traduo de Leandro Konder. So Paulo: Editora Abril S.A. Cultural e Industrial, 1974, pp. 402-403.
dos seus sentidos tem o tempo verbal do passado que o obstculo mais importante ao
reconhecimento da rea da experincia social que est sendo definida. Falamos de
elementos caractersticos do impulso, conteno e tom; elementos especificamente
afetivos da conscincia e das relaes, e no de sentimento em contraposio ao
pensamento, mas de pensamento tal como sentido e sentimento tal como pensado: a
conscincia prtica de um tipo presente, numa continuidade viva e inter-relacionada.
Estamos ento definindo esses elementos como uma estrutura: como uma srie, com
relaes internas especficas, ao mesmo tempo engrenadas e em tenso. No obstante,
estamos tambm definindo uma experincia social que est ainda em processo, com
freqncia ainda no reconhecida como social, mas como privada, idiossincrtica, e
mesmo isoladora, mas que na anlise (e raramente de outro modo) tem suas
caractersticas emergentes, relacionadoras e dominantes, e na verdade suas hierarquias
especficas. Essas so, com freqncia, mais reconhecveis numa fase posterior, quando
foram (como ocorre muitas vezes) formalizadas, classificadas e em muitos casos
incorporadas s instituies e formaes. Mas j a essa altura o caso diferente: uma
nova estrutura de sentimento j ter comeado a se formar, no verdadeiro presente
social.171
171 WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Traduo de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1988, pp.134-135.
nos dias de hoje, em qualquer guerra, como o fato de Esprtaco ter sido trado pelos
piratas cilcios ou alguns dos percalos que sofreu e que impediram sua fuga pelo norte
tambm. Quando se inicia um conflito, no se sabe exatamente, a priori, quem ir vencer.
Naturalmente, os escravos antigos tinham muito contra eles, devido aos limites
estruturais estabelecidos e j por ns discutidos. Mas no podemos creditar tudo a foras
histricas invisveis e achar que resolveremos todos os problemas com uma anlise
meramente estrutural. A oportunidade existiu e o sonho de liberdade daqueles escravos
realmente existiu, no na forma de uma libertao geral, mas a conquista da liberdade
atravs daquela que foi a mais espetacular fuga coletiva da Histria. No pretendemos
rejeitar, de modo algum, a relao entre a conscincia possvel de uma classe e a estrutura
social. Na verdade exatamente o oposto; devemos tentar compreender a conscincia
possvel, relacionando-a tambm com a experincia social e como determinadas
conjunturas abrem uma janela histrica que permite que os atores polticos produzam
novas alternativas, transbordando as margens mais ou menos estreitas de uma dada
formao econmico-social. Lucien Goldmann define conscincia real e conscincia
possvel e atravs dessas definies poderemos traar a relao dialtica existente entre
ambas e como isso se traduz em momentos em que as oportunidades geradas pela
dinmica social podem alargar o campo de possibilidades antes delimitado:
172 GOLDMANN, Lucien. Cincias Humanas e Filosofia. Traduo de Lupe Cotrim Garaude e J. Arthur
Giannotti. So Paulo: Difuso Europia do Livro, 1967, p. 99.
Embora partindo da perspectiva que de fato seria possvel uma revoluo polticosocial seguida ou conjuntamente com uma revoluo econmico-social dirigida pelos
escravos em aliana com outros grupos sociais, defendendo que o mesmo teria ocorrido
quando da queda do Imprio Romano, no podemos desconsiderar a observao relevante
feita no que tange ao perodo de rebelies servis que estamos estudando de que um fator
essencial que levou derrota destes movimentos que eles se deram num momento de
florescimento da sociedade escravista romana, isto , justamente no perodo de
implantao do modo de produo escravista enquanto um modo de produo estruturado
e consolidando-se como o dominante no imprio, em especial na Siclia e na Itlia,
precisamente onde ocorreram as maiores revoltas de escravos da Roma antiga. Assim,
condies objetivas e subjetivas somadas foram fatores limitadores no s de uma
revoluo, impossvel nesses casos nos termos em que pensavam os historiadores
soviticos, como tambm do sucesso de atos insurrecionais simplesmente e que
pretendiam a fuga do imprio e nada mais. Na verdade, as insurreies de escravos,
embora no tenham servido para libertar os escravos que delas participaram ativamente,
contriburam para as modificaes ocorridas em Roma no sculo I a.C. e jogaram um
papel na conjuntura poltica e econmica de fins do regime republicano.
Kovaliov aponta tambm o impacto direto na economia representado pela revolta
de Esprtaco:
No entanto, mesmo que a rebelio de 73-71 tenha sido sufocada, ela desferiu
um golpe na economia escravista da Itlia. Como conseqncia da rebelio, a Itlia
tinha perdido nada menos que 100.000 escravos, os campos foram devastados e muitas
cidades destrudas. 174
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