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Revoltas de Escravos em Roma

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE


PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA
MESTRADO EM HISTRIA ANTIGA E MEDIEVAL

RAFAEL ALVES ROSSI

As Revoltas de Escravos na Roma Antiga e o seu impacto sobre a Ideologia e a Poltica


da Classe Dominante nos Sculos II a.C. a I d.C.:
Os casos da Primeira Guerra Servil da Siclia e da Revolta de Esprtaco

Niteri
2011

RAFAEL ALVES ROSSI

As Revoltas de Escravos na Roma Antiga e o seu impacto sobre a Ideologia e a Poltica


da Classe Dominante nos Sculos II a.C. a I d.C.:
Os casos da Primeira Guerra Servil da Siclia e da Revolta de Esprtaco

Dissertao apresentada ao Curso de PsGraduao em Histria da Universidade


Federal Fluminense, como requisito para a
obteno do Grau de Mestre. rea de
Concentrao:

Histria

Social;

Setor

Temtico de Histria Antiga e Medieval.

Orientador: Prof. Dr. CIRO FLAMARION CARDOSO

NITERI
2011

AGRADECIMENTOS

Eu gostaria, antes de mais nada, de agradecer ao meu orientador, o Professor Ciro


Flamarion Cardoso, por ter me auxiliado nesta pesquisa desde os tempos de Graduao,
quando iniciei o estudo do tema para uma comunicao que apresentei nas Jornadas do CEIA
e que depois se tornou o assunto da minha monografia, tendo optado por dar continuidade e a
aprofundar essa pesquisa agora na dissertao. As discusses francas, a disponibilidade para
tirar minhas dvidas e a fornecer materiais sempre que eu necessitava e a liberdade que me foi
dada pelo Professor Ciro para desenvolver as minhas idias, alm de rever, criticar e ajudarme a embasar melhor os meus argumentos tornaram realmente possvel que eu conseguisse
concluir este trabalho, espero que com xito.
A Professora Snia Rebel de Arajo tambm merece um agradecimento especial por
ter me ajudado e fornecido materiais desde a poca da monografia e agora tambm na
dissertao, tendo feito valiosas crticas na minha Qualificao e auxiliado novamente com a
bibliografia e com suas sugestes. Alm disso, sempre esteve disposio para sanar
quaisquer dvidas que eu apresentasse e fazer sugestes para melhorar a pesquisa em curso.
Agradeo tambm Professora Norma Musco Mendes que disponibilizou materiais,
fez sugestes e criticou o trabalho para o seu aperfeioamento.
Agradeo a todos os meus amigos, estudantes, funcionrios e professores da
Universidade Federal Fluminense, que compartilharam comigo angstias e felicidades,
conquistas e expectativas e que estiveram comigo nesta jornada.
Agradeo minha famlia e aos meus amigos e a todos aqueles que, de alguma
maneira, fizeram parte desta trajetria, direta ou indiretamente.
Por fim, agradeo com todo amor e carinho minha companheira de vida, a minha
esposa Pmela, que sempre me apia em tudo o que fao e que nesse caso no foi diferente,
emprestando-me sempre os seus ouvidos, quando eu queria comentar com algum prximo
sobre o trabalho e que sempre com sua inteligncia e sensibilidade criticou de forma
construtiva a pesquisa realizada. Devo agradecer-lhe tambm por sempre ter se prontificado a
me ajudar sem reclamar, com seu companheirismo e amizade.

RESUMO

O tema central do presente estudo o significado das rebelies de escravos para a


sociedade romana dos sculos II a.C. a I d.C. Na conjuntura de crise da Repblica Romana
eclodiram grandes revoltas lideradas por grupos de escravos que portavam armas, mas que
tiveram a participao majoritria dos escravos rurais dos ergstulos, num perodo de grande
afluxo de cativos para os domnios romanos. Na Siclia estourou a Primeira Guerra Servil, que
teve como lder um escravo domstico chamado Euno. Tanto nesta rebelio quanto na famosa
Revolta de Esprtaco, os lderes dos movimentos eram, ao mesmo tempo, chefes polticos,
militares e religiosos, cumprindo a religio o papel de um programa, sendo um fator de
coeso dos grupos. A mobilizao dos escravos antigos atingiu o seu nvel mximo nestas
insurreies, impactando a classe senhorial, forada a rever algumas de suas prticas,
regulando-se as relaes entre senhores privados e escravos atravs do Estado, em especial no
regime do Principado, que concedeu alguns direitos sociais aos trabalhadores escravizados da
Itlia e das provncias. No entanto, a maior conquista dos escravos rebeldes foi no plano
simblico. Embora persistisse a ambiguidade nas relaes escravistas, algo inerente s
mesmas, e ainda que a teoria da escravido natural de Aristteles no fosse exatamente o
paradigma da maioria dos senhores romanos. A atitude de intelectuais do mundo romano do
perodo republicano, como Cato, reproduzia uma forma de ver os escravos como meras
mercadorias. A humanidade dos escravos reconhecida nos textos de Plutarco e de Apiano,
manifestando-se de maneira sempre contraditria, entretanto, mas ainda assim significativa.
Diodoro culpou os senhores sicilianos pela opresso excessiva sobre os escravos, gerando
dio e revolta entre os mesmos. No Principado, o discurso de Sneca acerca da humanidade
dos escravos aparece como uma das principais vises de mundo da classe dominante. Assim,
as revoltas produziram uma fissura no discurso ideolgico dominante, forando a classe
senhorial a criar e articular novas formas de dominao poltico-ideolgica sobre os
subalternos, tendo sido o paradigma escravista republicano superado e substitudo por novos
discursos e paradigmas. Os escravos antigos no chegaram a desenvolver uma genuna
conscincia de classe, mas alcanaram um certo grau de conscincia, no sendo nunca classe
para si, mas saindo, sem dvida, de uma situao pura e simples de classe em si, manifestando
a sua relao de antagonismo com seus senhores, atravs de lampejos de conscincia que
levaram ao desenvolvimento de um sentimento de classe que permitiu sua organizao e
mobilizao em grandes insurreies, numa revoluo poltica com a tomada do poder de
Estado na Siclia, ainda que com a manuteno do regime escravista e do estabelecimento de
uma monarquia de tipo helenstica, e numa fuga coletiva insurrecional, como foi o caso da
revolta liderada por Esprtaco. Desse modo, a idia de uma inferioridade natural dos escravos
foi posta em xeque, refletindo-se nos textos dos intelectuais romanos. O mtodo comparativo
foi empregado neste trabalho para que os exemplos da escravido na Amrica colonial
iluminassem os problemas levantados para a escravido antiga.
Palavras-chave: Guerras Servis Romanas; Guerras Civis Romanas; Modo de Produo
Escravista; Ideologia; Fugas para Fora; Sentimento de Classe.

ABSTRACT

The focus of this study is the significance of the rebellions of slaves to the Roman society of
the second century BC to AD in a crisis environment of the Roman Republic hatched revolts
led by large groups of slaves who had guns, but who had the majority share of rural slaves of
Ergastula, during a large influx of slaves for the Roman domains. In Sicily the First Servile
War broke out, which was leading a household slave named Euno. Both this rebellion as in
the famous revolt of Spartacus, the leaders of the movements were at the same time, political
leaders, military and religious, religion fulfilling the role of a program, a factor of cohesion
among the groups. The mobilization of former slaves reached its maximum level in these
uprisings, impacting the master class, forced to revise some of their practices, regulating the
relations between masters and slaves through the private state, especially in the regime of the
Principality, which gave some social rights to the slave workers from Italy and the provinces.
However, the greatest achievement of the rebel slaves was at the symbolic level. Although the
ambiguity persisted in the slave relationships, something inherent to them, and that the theory
of natural slavery to Aristotle was not exactly the paradigm of most Roman overlords. The
attitude of the intellectuals of the Roman world of the republican period, as Cato reproduced a
way to see the slaves as commodities. The humanity of the slave is recognized in the writings
of Plutarch and Appian, manifesting itself in an ever contradictory, however, but still
significant. Diodorus blamed excessive oppression Sicilian lords over slaves, generating
hatred and anger between them. In the Principality, the discourse of Seneca about the
humanity of slaves appears as one of the major worldviews of the dominant class. Thus, the
riots have produced a fissure in the dominant ideological discourse, forcing the master class to
create and articulate new forms of political and ideological domination over the underlings,
was the paradigm of slavery Republican overcome and replaced by new discourses and
paradigms. The former slaves did not get to develop a genuine class consciousness, but they
reach a certain degree of consciousness and never class for itself, but leaving no doubt a
situation of pure and simple class itself, expressing its relationship antagonism with their
masters, through flashes of consciousness that led to the development of a sense of class that
allowed their organization and mobilization in large uprisings, a political revolution to seize
state power in Sicily, even with the continuance of the slave and the establishment of a
Hellenistic type of monarchy, and an escape insurgent collective, as was the case of the revolt
led by Spartacus. Thus, the idea of a natural inferiority of slaves was put in check, reflecting
on the texts of the Roman intellectuals. The comparative method was used in this work to the
examples of slavery in colonial America illuminate the problems to ancient slavery.
Keywords: Roman Servile Wars, Roman Civil Wars, slave mode of production; Ideology;
Leak
Out;
Sense
of
Class.

SUMRIO

Introduo 7
Captulo 1: A anatomia do escravismo antigo 18
Introduo 18
1 Uma anlise comparativa da escravido 19
2 A Histria como um campo de possibilidades 32
3 Economia e Poltica na Antiguidade 37
4 O Eco das Fontes 42
5 A Lanterna da Teoria 52
6 A Arma do Mtodo 58
Concluso 62
Captulo 2: Roma: O Imprio do Mediterrneo 63
Introduo 63
1 Luta de Classes na Antiguidade 65
2 Guerras Civis em Roma 67
3 A Primeira Revolta de Escravos na Siclia 91
4 Siclia Rebelde 113
Concluso 118
Captulo 3: A Rebelio Escrava e o Sonho Possvel de Liberdade 122
Introduo 122
1 As Formas de Resistncia Escrava 124
2 O Tratamento Conferido aos Escravos no Mundo Romano 134
3 A Revolta de Esprtaco 139
4 A Revolta de Esprtaco na Historiografia Sovitica 158
5 O Impacto das Rebelies Servis na Viso de Mundo e na Poltica da Classe Dominante
Romana 161
6 Euno e Esprtaco: O Prometeu Escravo 164
Concluso 169
Concluso 171
Fontes 180
Bibliografia - 180

INTRODUO

O texto a seguir no pretende ser um monumento em homenagem e em honra dos


grandes homens. A histria objeto desta pesquisa no se configurou como um relato de
grandes feitos; no uma histria de grandes conquistas. Aquele que buscar certezas no as
encontrar aqui. Trata-se de um trabalho baseado na trajetria dos explorados e dos oprimidos
e parte do ponto de vista. Esta uma histria necessariamente fragmentria. A Histria
escrita pelos vencedores. Olh-la com os olhos dos vencidos, dos de baixo, dar-lhes voz,
algo extremamente difcil, na medida em que, na sua maior parte, as fontes existentes foram
produzidas pela classe dominante. Em se tratando de Histria Antiga, isso ainda mais
verdadeiro. A verdade dos fatos deve ser procurada nas entrelinhas; os fatos, reconstitudos a
partir de suas pegadas e lacunas; o discurso dos oprimidos, formulado nos silncios, nas
brechas do discurso da classe dominante. A viso dos vencidos deve ser projetada a partir das
imagens que aqueles que venceram pintaram, formando o todo com os traos firmes do solo
por onde marchas de desvalidos forjaram sua superfcie, vestgios daqueles que foram
silenciados. No presente caso, no objeto de nossa anlise as revoltas de escravos na Roma
antiga mais do que s recortar o tema, preciso de certo modo esculpi-lo. E se quisermos
penetrar fundo no mago das contradies daquela sociedade, precisaremos cavar os tmulos
sem lpide dos annimos que verdadeiramente fizeram parte desta histria, daqueles que se
rebelaram contra o destino e desafiaram os limites de seu tempo, agarrando-se a uma
oportunidade, apostando na possibilidade de ter uma vida em liberdade, em um tempo em que
isso era uma jia rara e um privilgio social.
De todas as rebelies de escravos da Roma antiga, a mais famosa foi a de Esprtaco.
Eternizado no filme pico de Stanley Kubrick Spartacus o heri, lder desta revolta,
aparece para ns como um grande libertador, como o anunciador da libertao geral da
humanidade, mesmo que tenha pertencido a um tempo em que isto era objetivamente
impossvel. O filme uma produo hollywoodiana do ano de 1960 e foi filmado e exibido no
contexto da Guerra Fria, num momento em que o mundo estava polarizado pela luta poltica e
ideolgica entre capitalismo e socialismo, na trilha da luta do proletariado por um mundo
mais justo e igualitrio, sem exploradores. Em 2004 foi feita uma refilmagem do clssico
numa verso para a TV, o que prova que, mesmo em outro contexto poltico, continua atual a
memria de um heri dos desfavorecidos, da luta do oprimido contra o opressor, do explorado
contra o explorador. O cinema permitiu que esta mensagem chegasse s mais amplas massas

no mundo todo. ao conhecimento do pblico leigo, at daqueles que nunca estudaram ou


entraram em contato com uma fonte histrica relacionada ao tema, a fabulosa odisseia dos
escravos pelos campos italianos da Repblica romana e sua batalha de vida e de morte contra
os seus senhores. Mas este j era um tema de grande interesse dos militantes socialistas no
incio do sculo XX. A figura de Esprtaco simbolizava a luta pela liberdade e a luta contra a
explorao. Inspirando o movimento socialista da poca da Revoluo Russa de 1917, os
comunistas que rompiam com a II Internacional durante a Primeira Guerra Mundial
denominaram o seu movimento de Liga Spartacus, fundada em 1915 por Karl Liebknecht,
Rosa Luxemburgo e Clara Zetkin, na Alemanha. Essa gerao de militantes revolucionrios
foi profundamente influenciada pela revolta de escravos da Antiguidade na construo de uma
teoria da histria que fizeram. Assim, depois da revoluo socialista na Rssia, feita por
operrios e camponeses, liderada pela Partido Bolchevique, e suas principais lideranas
polticas daquele momento, Lnin e Trotsky, nos anos que se seguiram, os historiadores
soviticos estudaram o tema desde o incio da revoluo, atravessando todo o perodo
stalinista, o que influenciou profundamente as hipteses e interpretaes do significado
daquele movimento, mantendo-se objeto de interesse de diversos pesquisadores tambm no
perodo posterior ao governo de Stlin na URSS. A historiografia sovitica produziu uma
imagem da revolta de Esprtaco que encarava aquela rebelio como uma verdadeira revoluo
e como parte de um processo mais amplo que culminou na queda do Imprio Romano, no que
foi considerado por Mishulin e Kovaliov como a segunda fase da revoluo que, unindo
escravos, colonos e brbaros, levou ao desmoronamento do mundo antigo e surgimento do
feudalismo. Neste esquema, a revolta de Esprtaco

encaixar-se-ia no que foi por estes

historiadores considerado como a primeira etapa dessa revoluo. As diferenas existentes no


interior da historiografia sovitica ser parte da exposio do ltimo captulo. Esta insurreio
escrava tambm foi retratada pela literatura moderna. O romance de Howard Fast, Esprtaco,
foi publicado em 1952, contando a histria dos escravos rebeldes da Roma antiga e de sua luta
contra a aristocracia romana, e serviu para popularizar a Revolta de Esprtaco, inspirando o
filme homnimo de Kubrick. Howard Fast foi autor de vrios romances de contedo poltico
e atuou junto de sindicatos e de movimentos antifascistas, tendo sido preso durante o
McCartismo. Em 1953, ele recebeu o Prmio Stlin da Paz.
A revolta de Esprtaco tem despertado por geraes a imaginao e o interesse de
artistas e de historiadores. E merece ser reexaminada sempre luz das novas interpretaes e
atualizada em suas abordagens e concluses. Alm desta, a Primeira Revolta de Escravos da

Siclia, liderada por Euno, ser analisada em comparao com o processo similar mais
famoso. Discutir as semelhanas e diferenas entre estas duas revoltas, as maiores da
Antiguidade clssica, deve ser o primeiro passo de um trabalho que pretenda avanar nas
anlises at ento produzidas pela historiografia. til empregar o mtodo comparativo,
traando um paralelo entre a escravido moderna e a escravido antiga, de modo que a
primeira ajude a iluminar os pontos obscuros da segunda, precisando as semelhanas e
diferenas existentes entre estas duas estruturas sociais que guardam similaridades entre si,
mas que tambm distam no espao e no tempo, o que, portanto, exige o maior cuidado
possvel no sentido de evitar qualquer anacronismo. Cabe ainda enumerar outras revoltas de
escravos ocorridas na Antiguidade, estud-las no contexto geral de luta poltica entre as
fraes da classe dominante e de modificaes profundas no modo de produo escravista,
com a generalizao do escravo-mercadoria nas lavouras e com a mudana do padro agrrio
com o surgimento do latifndio. Com isso, pretendemos analisar o significado destas
rebelies de escravos para a sociedade romana, desde suas consequncias sobre a organizao
social e poltica de Roma at as conquistas e limites das lutas dos escravos antigos. Essa
discusso permeada pelo debate terico acerca da conscincia de classe das classes sociais
subalternas nas sociedades pr-capitalistas e dos limites histricos determinados por cada
poca e estrutura econmica vigente, demarcando a possibilidade histrica da revoluo. A
historiografia sovitica encarou, em geral, esses movimentos como sendo revolucionrios, o
que foi fortemente contestado pela historiografia ocidental. Trataremos desta discusso
visando classificar corretamente cada um desses movimentos rebeldes para uma compreenso
mais exata de seu significado histrico.
Esta no uma histria de elementos inertes, de peas de museu e realidades fixas e
imutveis. Tambm no uma interpretao unicamente particular e mais um entre tantos
discursos. o discurso de uma realidade em movimento e que se aproxima dela ou se prope
a isso, pelo menos. No se trata aqui de relatar simplesmente o que aconteceu. Tampouco se
trata de fazer uma histria do passado que se subordine inteiramente aos objetivos do
presente, pondo a nu os limites estruturais da sociedade estudada no sentido de uma luta que
efetivamente pudesse levar a cabo a abolio da escravido, o que s se mostrou vivel nos
Tempos Modernos, no sendo esta uma questo que estava colocada para os homens da
Antiguidade romana. Uma anlise contrafactual de determinados pontos para levantar
questes acerca dos cenrios que estavam colocados como possveis para os homens
concretos e reais daquele contexto histrico de grande valia. As possibilidades destes

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movimentos, no entanto, devem ser percebidas naquilo que efetivamente pode ser
cientificamente inferido por ns. Tentamos perceber aqui a janela histrica que se abriu no
contexto de crise do sistema republicano romano e de consolidao do modo de produo
escravista e que permitiu a ecloso de insurreies de escravos numa dimenso nunca antes
vista, situando sempre estes acontecimentos numa anlise que enxergue a histria como um
campo de possibilidades e que busque interpretar as oportunidades e as escolhas que
estiveram colocadas no passado e como a percepo destes problemas pelos homens do tempo
estudado influenciou de forma decisiva as suas aes. Desse modo, podemos pr em relevo as
alternativas de fuga da Itlia que estiveram colocadas para o exrcito espartacano, primeiro
pelo norte e depois pelo sul, rumo Siclia, e concluir que a vitria daquela revolta era
possvel, no a de uma alternativa que no foi proposta por aqueles homens e mulheres, ou
seja, a abolio da escravatura, mas a possibilidade de obter a liberdade pela fuga coletiva,
recuperando cada indivduo a sua liberdade individual, retornando ao seu pas. Alm disso,
podemos redimensionar o significado de suas escolhas e o papel que elas cumpriram no
insucesso da rebelio, bem como na ferocidade com que o exrcito romano reprimiu aquele
movimento, justificada pelo perigo de se apresentar como um exemplo negativo para os
demais escravos do imprio, encorajando-os fuga, sendo, portanto, necessrias medidas
enrgicas que pacificassem os campos italianos.
Na anlise das revoltas de escravos na Roma antiga, utilizaremos como ferramenta
terica o marxismo. Acreditamos ser esta ferramenta vlida e no debate em questo a mais
adequada para projetar luz sobre a realidade daquela sociedade, permitindo-nos um
entendimento maior dos conflitos e contradies da situao estudada. O uso correto dos
conceitos necessrios para a anlise de extrema importncia e, por isso, este debate
conceitual ser devidamente apresentado, com a exposio de cada conceito e sua aplicao
no presente trabalho. O conceito de modo de produo, por exemplo, chave para
respondermos questo do por qu das revoltas de escravos da Siclia e de Esprtaco no
terem se convertido em revolues, apresentando uma alternativa societria, uma soluo para
a crise da Repblica. O conceito de formao econmico-social, que nos permite a anlise
particular, especfica e objetiva da economia escravista romana, suas etapas e seu
desenvolvimento, ser devidamente desdobrado na parte da pesquisa dedicada a isso e nos
fornecer subsdio para um estudo mais rico e aprofundado do tema. Alm disso, debruarnos-emos sobre os conceitos de classe social, conscincia de classe, classe em si e classe
para si, assim como outros termos, entre eles ideologia e estrutura de sentimentos, no que se

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refere anlise especfica das classes sociais subalternas. Sabemos que somente as classes
dominantes alcanaram uma verdadeira conscincia de classe na Antiguidade e procuraremos
nesta dissertao abordar o quanto isso interferiu no curso da luta dos subalternos, que
sofriam a influncia da ideologia da classe dominante que atuava no sentido de desagregar
aqueles movimentos rebeldes, ao mesmo tempo que os escravos rebeldes formavam uma
classe na sua luta por liberdade, desenvolvendo algum grau de conscincia, atravs de
lampejos de conscincia que se manifestavam na situao extrema da luta aberta (fato raro na
Antiguidade). Se por um lado os escravos antigos nunca tiveram uma genuna conscincia de
classe, no se conformando numa classe para si, por outro, desenvolveram um sentimento de
classe, uma identidade entre si (coletiva), que servia para separar o ns do outro, sendo o
outro o inimigo, aquele que os prendia em suas correntes. O entendimento dos fatores
envolvidos nestes eventos, auxilia-nos na elaborao de uma concluso o mais satisfatria
possvel acerca do processo que levou fatalmente derrota dos escravos rebeldes, selando o
seu destino e o daquela sociedade para sempre.
O contexto das revoltas tambm ser abordado como condio bsica de seu
entendimento. Ao olharmos para o perodo em que se desenrolaram os levantes dos escravos
de Roma, percebemos um ambiente de transformaes em curso e de crise da antiga estrutura
poltica e social. Nos sculos II e I a.C. modificaes profundas no interior da sociedade
romana provocaram abalos severos na superfcie. As transformaes pelas quais passou o
modo de produo escravista em Roma acentuaram as contradies daquela sociedade,
levando mais tarde crise da Repblica. neste contexto que se inserem as grandes revoltas
de escravos de Euno e Esprtaco. Mas no podemos compreender em sua totalidade os
fenmenos que so objeto deste estudo apenas com uma anlise de conjuntura. Uma anlise
que privilegie a longa durao, numa perspectiva mais estrutural, previamente necessria
neste caso. Assim, estudando o processo de maneira mais global, recuando um pouco no
tempo, tendo como ponto de partida o sculo IV a.C. com a aprovao provavelmente nessa
poca da Lei Petlia Papria, que estabeleceu a abolio das dvidas dos camponeses e a
proibio de escraviz-los, por serem cidados romanos, at o sculo I d.C. ao analisarmos a
difuso do discurso estico que fundamentava a nova ideologia dominante para a sustentao
do regime imperial e escravista. Em suma, se por um lado o nosso estudo estar centrado no
perodo dos sculos II-I a.C., estabelecendo um corte cronolgico que abarque a crise da
Repblica Romana e de ecloso das grandes rebelies servis, por outro, s possvel
compreender o processo ora exposto na longa durao, tentando captar a totalidade deste

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processo histrico especfico em todos os aspectos e em cada etapa de seu desenvolvimento.


O impacto e as consequncias dessas rebelies so parte integrante e fundamental deste
trabalho; e uma periodizao que parta de uma abordagem mais detalhada do sculo II a.C. e
que se estenda at o incio do Principado, no sculo I d.C., foi considerada a mais adequada.
Queremos penetrar em cada camada do objeto abordado e seguir numa sequncia
lgica o caminho a ser perseguido pelo nosso raciocnio, compreendendo passo a passo o
tema escolhido, de acordo com o recorte feito. Comeamos falando do smbolo que se tornou
Esprtaco. Aqui o desafio chegar o mais perto possvel do homem que foi Esprtaco, do
homem que foi Euno, do homem que foi Crasso, do homem que foi Pompeu, Jlio Csar,
Otvio e os irmos Graco: os homens de carne, osso e sangue que fizeram essa histria, que
tomaram parte nessa tragdia, que protagonizaram o drama da existncia humana, numa luta
de vida e morte entre escravido e liberdade.

O cho em brasa por onde marcharam,

caminharam e lutaram, entre outros, Crasso, Euno e Esprtaco e seus dramas, conjugando
personagens, enredo e cenrios numa narrativa que desnude os problemas apontados pela
pesquisa. Esta tragdia foi encenada no palco do grande Imprio do Mediterrneo.

contexto destas revoltas o da conformao deste grande imprio e os conflitos sociais


gerados por uma transformao econmica, poltica e geogrfica ou geopoltica de tal
magnitude. Uma histria de homens notveis, dos grandes lderes aos annimos que fazem a
Histria. A histria de suas lutas, seus sonhos, suas lgrimas, seus pensamentos, seus
sentimentos. Uma histria feita por idias e msculos. Uma histria de limites e
possibilidades. O uso da teoria aqui cumpre o papel fundamental de desvelar o contedo
social real presente nas obras e, no somente, aquilo que era pretendido pelo autor, orientado
por sua ideologia, pela sua viso de mundo, e com essa iluminao, com a lanterna da teoria,
podemos ver mais claramente o desenrolar do movimento real destes acontecimentos
extraordinrios. Neste texto, pretendemos que cada captulo seja como uma camada e que a
cada pgina o leitor possa ir mais fundo, penetrando no mago da sociedade escravista
romana, para compreender o panorama e as contradies daquela sociedade. Somente assim a
tarefa de expor em sua exatido o processo que envolveu os personagens que povoam os
relatos estudados de uma maneira realmente cientfica ser cumprida. A diviso dos captulos
seguiu essa lgica, portanto, sendo o captulo I uma exposio acerca das fontes, mtodos e da
prpria teoria, na perspectiva do materialismo histrico e do mtodo comparativo, utilizando
como fontes Cato e Plutarco, compreendendo o modo de produo escravista antigo, a base
estrutural da sociedade romana e o palco em que foram travadas as maiores demonstraes de

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luta de classes na Antiguidade, denominando este captulo de A anatomia do escravismo


antigo. O captulo II chamar-se- Roma: o Imprio do Mediterrneo e ser nele que o leitor
poder examinar o contexto em que se deram as revoltas servis, utilizando Apiano e Diodoro
nestas pginas, abordando, dentro da conjuntura de luta poltica entre os Gracos e a nobreza
senatorial e posteriormente entre optimates e populares, a revolta de escravos da Siclia,
dando nfase revolta de Euno, o primeiro ensaio de uma grande rebelio de escravos, com
desdobramentos impressionantes como a conquista do poder poltico na ilha pelos rebeldes. O
seu exemplo impulsionou outros levantes de escravos, todos reprimidos, e foi seguido de duas
grandes rebelies em um espao de tempo relativamente curto a revolta de Aristnico e a
Segunda Revolta da Siclia. No captulo III, chamado A rebelio escrava e o sonho possvel
de liberdade, a anlise da resistncia escrava em todas as suas dimenses aparece como o
eixo norteador de todo o captulo, que discute ainda o tratamento conferido aos escravos no
perodo estudado e a maior revolta de todas a revolta de Esprtaco. Travando um dilogo
permanente com as fontes, alternando entre Apiano e Plutarco e debatendo as interpretaes e
as posies poltico-ideolgicas destes dois autores, demarcando suas diferenas, mas
situando a ambos num mesmo campo, que comungava de uma determinada viso de mundo,
por pertencerem a uma mesma classe social, o que, naturalmente, tem reflexos em suas
anlises histricas e filosficas e em seus textos literrios, e, desse modo, traar, em linhas
gerais, a sequncia dos acontecimentos e a forma como eles foram pensados e reconstrudos
pela classe dominante romana no perodo do Principado, para que possamos reinterpret-los
luz do nosso tempo e de pesquisas histricas recentes.
As fontes levantadas para este trabalho foram os textos de Apiano e Plutarco, presentes
na coletnea de Thomas Wiedemann, Greek and Roman Slavery, onde temos Crasso, das
Vidas Paralelas, de Plutarco, e Guerras Civis em Roma, de Apiano, sobre a revolta de
Esprtaco, e os relatos de Diodoro sobre a revolta de escravos da Siclia tambm presente na

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mesma coletnea1. Na Tese de Snia Rebel de Arajo2 tambm podemos encontrar as mesmas
fontes traduzidas, assim como no trabalho de Ciro Flamarion Cardoso, na coletnea de fontes
e comentrios crticos em Trabalho compulsrio na Antiguidade3. A obra De Agri Cultura de
Cato da mesma coletnea, onde pode ser encontrada a obra de Varro, numa traduo para
o ingls feita por William Davis Hooper4. Neste caso especfico, a falta de tempo apenas nos
obrigou a excluir Cato. Na obra de Peter Garnsey, Ideas of Slavery from Aristotle to
Augustine5, encontramos fragmentos de Aristteles e Sneca, com suas posies divergentes
sobre a escravido, com a defesa de Aristteles da teoria da escravido natural, a teoria mais
acabada acerca da escravido, produzida na Antiguidade, e a reflexo de Sneca, sculos mais
tarde durante o Principado, sobre a necessidade de se estabelecer uma relao harmnica entre
senhores e escravos, sem uma defesa do fim da escravido, mas ponderando sobre a
brutalidade excessiva empregada pelos senhores e condenando tal atitude, reivindicando, e
isso o mais importante, a humanidade dos escravos. Ao analisar as fontes, pudemos
1 WIEDEMANN, Thomas . Greek and Roman Slavery. Baltimore: The Johns Hopkins Press, 1981.

2 ARAJO, Snia Regina Rebel. A Viso dos Letrados sobre Rebelies de Escravos no Mundo Romano: Uma
Abordagem Semitica de Fontes Literrias. Volumes I e II. 1999. 198 f. Tese (Doutorado em Histria) Instituto de
Cincias Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niteri. 1999.

3 CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. Trabalho Compulsrio na Antiguidade. Rio de Janeiro: Edies Graal, 1984.

4 HOOPER, William Davis . De Agri Cultura. Londres: William Heinemann Ltd., 1979.

5 GARNSEY, Peter . Ideas of Slavery from Aristotle to Augustine. Nova Iorque. Cambridge University. Press,
1996.

15

encontrar o reconhecimento da humanidade dos escravos nos textos de Apiano, mas


principalmente em Plutarco. O autor de Crasso em um dado momento reconhece o valor dos
escravos rebeldes, sua coragem na luta ao enfrentarem os romanos. Essa breve observao do
autor assume grande importncia para a nossa pesquisa, levando-nos a concluses
interessantes e que parecem se confirmar se contextualizarmos o momento do texto, no
Principado, e as mudanas ocorridas nos planos social, poltico e ideolgico, sendo a filosofia
estica bastante difundida nos primeiros sculos do regime imperial, combinada com o
reconhecimento de alguns direitos aos escravos. Sendo assim, desenvolvemos a nossa
hiptese com base nessas observaes. A ambiguidade presente na viso da aristocracia a
respeito do escravo e da escravido se manifesta em diversos trechos das obras dos principais
autores utilizados nesta pesquisa, que retratam as revoltas, que so Apiano, Plutarco e
Diodoro. O texto de Apiano tambm utilizado a partir da traduo de Antonio Sancho Royo 6.
Passagens de Cato e Tcito tambm so extradas do livro de Fbio Duarte Joly A
escravido na Roma antiga7.
A hiptese central desta pesquisa que, apesar de terem sido derrotadas militarmente,
as grandes revoltas servis da Roma antiga serviram para pr em xeque a teoria da escravido
natural, a viso do escravo como simples animal ou coisa, representada no discurso oficial, e
mais do que isso, a prpria afirmao da inferioridade dos escravos presente mesmo naquele
discurso, que j relativizava a posio mais rgida da teoria aristotlica, provocando mudanas
no discurso da classe dominante e na sua forma de perceber os escravos, produzindo mesmo
uma fissura no plano ideolgico, por se tratar, pela primeira vez, da afirmao patente na
realidade da humanidade desses homens brutalmente escravizados, no se podendo mais,
apesar dos esforos feitos no sentido de reafirmar essa suposta inferioridade natural dos
escravos pelos idelogos da aristocracia romana, impedir que os escravos obtivessem essa
importante vitria simblica. Talvez no possamos falar de uma substituio em carter
6 ROYO, Antonio Sancho . Histria de Roma II: Guerras Civiles (libros I e II). Madri: Editorial Gredos S.A., 1985.

7 JOLY, Fbio Duarte . A escravido na Roma antiga: poltica, economia e cultura. So Paulo: Alameda Casa
Editorial, 2005.

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absoluto da teoria da escravido natural de Aristteles pelo discurso estico, visto que os
escravos continuaram a ser mercadorias e a serem encarados como tal, mas foi produzida uma
fissura (talvez este seja o termo mais preciso) no discurso ideolgico da classe dominante. E
aquilo que j era percebido no plano individual, nas relaes diretas entre determinado senhor
e determinado escravo, nas relaes concretas, particulares que o escravo era um ser
humano , com as vitrias do exrcito espartacano sobre o exrcito romano e a tomada do
poder de Estado na Siclia pelos escravos rebelados era alado para a esfera pblica e
admitido nas obras histricas, filosficas e literrias, apresentando as demonstraes de
coragem e inteligncia das lideranas dessas revoltas e em muitos casos, como afirmou tmida
e rapidamente Plutarco, a prpria base desse exrcito, os soldados recrutados entre os homens
mais brutos, da classe mais baixa, os trabalhadores das lavouras, os escravos dos ergstulos,
mesmo que depois os autores reafirmassem o carter dos escravos, segundo a viso elaborada
pelo discurso escravista, descrevendo o que estes escritores interpretaram como indisciplina,
destacando os elementos que poderiam enfatizar a superioridade do exrcito romano de
cidados e de homens livres. Esta ambiguidade, portanto, permanece, mas a brecha
conquistada nos prprios relatos da classe dominante, que nos permitiu escrever uma histria
do ponto de vista dos escravos a partir destas linhas de reconhecimento de sua humanidade e
capacidade de organizao o que pretendemos pr em destaque8.
Por fim, importante dizer que esta pesquisa tem uma histria e uma trajetria, tendo
se iniciado como uma comunicao ainda nos tempos de graduao e tomado a forma de uma
monografia anos mais tarde, at que, enfim, corporificou-se nesta dissertao de mestrado.
Sendo assim, trata-se aqui de uma sntese daquilo que j foi pesquisado e exposto tambm em
outras ocasies, com as concluses possveis at o momento a esse respeito. fundamental
destacar que esta no pode e nem tem a pretenso de ser uma obra definitiva acerca do tema.
apenas uma releitura de um assunto de conhecimento do pblico leigo, ainda que
superficial, e que guarda um histrico de debates bastante fecundo e que nos serve de ponto
de partida para a presente discusso, havendo importantes referncias na historiografia
sovitica, interpretaes tanto no campo weberiano ou de autores influenciados por Weber
quanto no marxismo ocidental e que permitem a construo de um texto repleto de referncias

8 Desenvolveremos essa discusso para a comprovao de nossa hiptese ao longo do trabalho, partindo do texto
de Plutarco, Crasso, apud WIEDEMANN, Thomas, op. cit.; ARAJO, op. cit.

17

valiosas. Desde j, pedimos desculpas pela quantidade excessiva de citaes que se seguiro
nas prximas pginas, mas sendo a anlise do discurso a nica ferramenta de que dispomos
neste caso e algumas explicaes acerca da teoria sejam necessrias para a construo de uma
linguagem comum sobre o assunto a partir desta perspectiva e abordagem, torna-se inevitvel
citar textualmente quase que cada autor.
A proposta de mostrar a trajetria de homens que foram legados ao esquecimento a
essncia do que realmente fazer uma histria das bases, do ponto de vista dos vencidos, e
uma crtica da histria, ou pelo menos da histria oficial e das verdades contidas nas fontes.
importante salientar que alm do mtodo comparativo, utilizaremos o mtodo estruturalista
gentico de Lucien Goldmann na anlise dos textos 9. Devo mencionar ainda a referncia a
Finley e Bradley, assim como Snia Rebel de Arajo e Ciro Cardoso para o desenvolvimento
deste estudo. Moses Finley, dedicado pesquisador da escravido, afirmou que em toda a
histria existiram somente quatro grandes revoltas de escravos: as duas da Siclia, a revolta de
Esprtaco e a revoluo de escravos negros do Haiti. As trs primeiras, ocorridas na
Antiguidade, foram derrotadas; e a ltima, ocorrida no perodo de revolues burguesas, de
desenvolvimento do capitalismo e de propagao das idias iluministas, foi vitoriosa. Desse
modo, assim como a escravido moderna, o escravismo colonial, serve para projetar luz sobre
problemas referentes escravido antiga, a resistncia dos escravos na Amrica pode
ressignificar as rebelies de escravos da Antiguidade e todas as demais formas de resistncia.
Se verdade que se aprende mais com as derrotas do que com as vitrias, ento estamos no
caminho certo. Sem falar no prazer do desafio, do quebra-cabeas que retrata a prpria
essncia do que a Histria: um quebra-cabeas com peas faltando. E por isso, precisamos
reconstruir os fatos, reconstruir mentalmente as peas que faltam, num exerccio de lgica e
imaginao. exatamente disso que se trata no trabalho em questo.

9 GOLDMANN, Lucien. A Sociologia do Romance. Traduo de lvaro Cabral. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Paz e
Terra S.A., 1976.

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CAPTULO I

A ANATOMIA DO ESCRAVISMO ANTIGO

Os homens fazem sua prpria histria, mas no a fazem como querem; no a


fazem sob circunstncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se
defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradio de
todas as geraes mortas oprime como um pesadelo o crebro dos vivos.
(Karl Marx)

INTRODUO

Assim como impossvel construir as paredes e o teto de uma casa sem antes construir
a sua base e as colunas que a sustentam, devemos comear a nossa anlise pelo estudo da
estrutura social em que se desenrolaram as revoltas de escravos da antiga Roma. Neste
captulo, dedicar-nos-emos a sentir o cho em que pisamos antes de tratar dos diversos seres
que sobre ele transitam e que neste espao interagem. Isto no significa paralisar a realidade,
congel-la como numa fotografia. A realidade um movimento contnuo e toda anlise sria
tem que levar a todo instante este eterno devir em considerao e perceber todo o conjunto de
relaes existentes, captando a totalidade e no uma ou outra parte isoladamente, sob pena de
no compreendermos sequer a pequena parte estudada com tanto afinco e to intensamente.
Partiremos de um nvel macro de anlise e utilizaremos ainda o mtodo comparativo
para que possamos compreender toda a complexidade da estrutura social em questo. nesse
sentido que uma exposio, mesmo que breve, do escravismo colonial e sua comparao com
o escravismo antigo de grande valia para o completo entendimento das aes dos homens e
mulheres que lutaram e sonharam neste captulo da histria, relacionando o escravismo antigo
com a escravido moderna, buscando, atravs de padres, semelhanas, mas tambm das
diferenas e especificidades, compreender melhor uma sociedade que nos deixou menos
vestgios que as sociedades escravistas coloniais.
Uma exposio do quadro terico e metodolgico a ser utilizado faz-se essencial no
sentido do estabelecimento de um dilogo claro entre autor e leitor, travando as polmicas
com base no pleno conhecimento dos pressupostos desta pesquisa, isto , a escolha das fontes,

19

o que elas informam e o que silenciam, bem como o ponto de vista adotado na confeco
deste trabalho e na consecuo dos resultados obtidos mediante a confrontao da hiptese
com os relatos de Plutarco, Apiano, Diodoro e Aristteles. Desvendar as falhas que se
perpetuaram pela memria coletiva do povo romano e que se refletiram de alguma maneira na
histria oficial dos autores da poca e dos modernos historiadores que interpretaram aqueles
eventos, tendo como referncia uma concepo de mundo de uma classe social, uma viso de
mundo expressa pela pena de seus literatos e idelogos, a tarefa a qual nos propomos,
traando para tanto um plano de trabalho a ser apresentado neste momento.

1 UMA ANLISE COMPARATIVA DA ESCRAVIDO

Em primeiro lugar, em se tratando de um estudo sobre a escravido impossvel para


um brasileiro no ter como primeiro reflexo comparar o escravismo antigo com aquele que
existiu aqui no perodo colonial at o final do sculo XIX. Talvez este ato quase instintivo,
provocado pelas referncias existentes em nossa memria social, na memria coletiva de
nosso povo, nas nossas tradies e quem sabe at no nosso inconsciente, tenha algo a nos
dizer e a acrescentar nossa pesquisa.
Jacob Gorender escreveu um importante trabalho sobre o escravismo colonial10,
elucidando diversas questes acerca de nossa histria e demarcando, ao mesmo tempo, as
diferenas desta estrutura social para com todas as outras que haviam existido at ento na
Europa. A esse respeito, o autor destaca a originalidade deste modo de produo,
absolutamente novo, e das implicaes disso na diferenciao das formaes sociais das
colnias americanas para com a escravido grega e romana ou para com o feudalismo
europeu. Gorender apresenta as trs hipteses elencadas por Marx diante de um processo de
conquista de um povo por outro em que haja uma diferena marcante entre seus modos de
produo. No trecho a seguir, o autor refuta as trs possibilidades apresentadas por Marx no
que se refere ao caso brasileiro, refutando a hiptese de que o Brasil poderia ser uma sntese
dos modos de produo das tribos indgenas que habitavam este territrio e daquele existente
10 GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 2. ed. So Paulo: Editora tica, 1978.

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em Portugal. Tambm no foi uma continuidade do modo de produo feudal predominante


na Metrpole, nem representou a manuteno do modo de produo dos povos originrios,
afirmando uma outra possibilidade para o caso especfico das colnias escravistas da
Amrica:

Impe-se, por conseguinte, a concluso de que o modo de produo escravista


colonial inexplicvel como sntese de modos de produo preexistentes, no caso do Brasil.
Seu surgimento no encontra explicao nas direes unilaterais do evolucionismo e do
difusionismo. No que o escravismo colonial fosse inveno arbitrria fora de qualquer
condicionamento histrico. Bem ao contrrio, o escravismo colonial surgiu e se desenvolveu
dentro de determinismo scio-econmico rigorosamente definido, no tempo e no espao. Deste
determinismo de fatores complexos, precisamente, que o escravismo colonial emergiu como
um modo de produo de caractersticas novas, antes desconhecidas da histria humana. Nem
ele constituiu repetio ou retorno do escravismo antigo, colocando-se em sequncia
regular ao comunismo primitivo, nem resultou da conjugao sinttica entre as tendncias
inerentes formao social portuguesa do sculo XVI e s tribos indgenas. 11

Sendo assim, Gorender afirma que o escravismo colonial era um modo de produo
historicamente novo e que no se tratava de uma repetio do escravismo antigo agora em
outro ambiente. O ltimo tem caractersticas prprias e se insere num contexto bastante
distinto daquele do perodo da conquista e colonizao da Amrica.
A validade de uma anlise comparativa entre duas estruturas sociais diversas e
separadas no tempo e no espao, estando sempre presente o risco do anacronismo, afianada
pela prpria necessidade da aplicao do mtodo nesses estudos, tendo em vista a escassez de
dados e fontes de vrios tipos, a exclusividade dos escritores da classe dominante enquanto
autores dos textos que relatam a histria romana e a ausncia de vestgios arqueolgicos em
casos cruciais para que tivssemos algo o mais prximo possvel de uma certeza.
Desse modo, podemos considerar legtimo o recurso s analogias entre a escravido
antiga e moderna, desde que sejam observadas as respectivas diferenas existentes entre
ambas. Arajo segue ainda nesta linha de raciocnio no trecho seguinte, aplicando na prtica,
em sua prpria pesquisa, condensada em sua tese, o mtodo comparativo para desvendar os
segredos da escravido antiga luz das observaes e dados pertinentes escravido
moderna, mais abundantes e em larga medida vlidos:

11GORENDER, Jacob, op. cit., p.54

21

Quais as caractersticas mais relevantes deste sistema, pertinentes tanto


escravido antiga quanto moderna , decorrentes daqueles traos acima apontados como
centrais o escravo uma propriedade, e como tal est sob o poder e vontade do senhor, o
que facilitado pelo fato de se tratar de um estrangeiro desprovido de laos culturais e
familiares e que poderiam causar reaes mais ou menos extremadas dos escravos? A
primeira, sem dvida, a falta de liberdade de movimentos, o que levava a graus variados de
aprisionamento, at o limite de tranc-lo nos ergstulos. A segunda, importava em no dispor
de controle sobre seu trabalho: ele no influa ou deveria influir, sobre o que era produzido e
como se produzia, pois teria que obedecer aos ditames do senhor ou de seus prepostos. Ser
explorado, no dispor dos frutos de seu trabalho, a terceira caracterstica, uma decorrncia
lgica das anteriores. Pelo fato destes dependentes escravos responderem com o corpo a todas
as ofensas, e para distingu-los dos livres, era necessrio que fossem degradados fisicamente,
tanto pelos castigos fsicos rotineiros, quanto pelo fato de, na Antiguidade, seu testemunho em
juzo ser tomado sempre sob tortura, e tambm porque os escravos eram considerados,
sempre, disponveis para relaes sexuais.12

O historiador Fbio Duarte Joly aponta tambm, nesse sentido, para os recursos e
perspectivas relativos s pesquisas sobre as sociedades escravistas e sobre a escravido. Tendo
a sua ateno centrada nos estudos acerca da sociedade escravista romana, no deixa de
perceber o escravismo num contexto mais amplo, o que abre a possibilidade de que sejam
traadas analogias teis na obteno de respostas que no podem ser fornecidas somente pela
anlise das fontes dos escritores antigos. No primeiro captulo de seu livro A escravido na
Roma antiga Joly escreve:

quase consenso atualmente, no campo dos estudos histricos, que a Itlia antiga,
sobretudo entre os sculos III a.C. e II d.C., fez parte, ao lado da Grcia clssica, do Brasil,
do sul dos Estados Unidos e do Caribe ingls e francs entre os sculos XVI e XIX, do restrito
grupo de sociedades escravistas. De acordo com o historiador Moses Finley (1991, p.84-5),
uma sociedade genuinamente escravista quando a escravido se torna uma instituio
essencial para a sua economia e seu modo de vida, no sentido de que os rendimentos que
mantm a elite dominante provm substancialmente do trabalho escravo.13

Isto significa que, ao contrrio do que preconizava uma viso evolucionista que
ganhou grande adeso de inmeros intelectuais diante da forte influncia poltica e terica do
stalinismo, principalmente no perodo da Guerra Fria, de que o escravismo seria a primeira
etapa de desenvolvimento de todas as sociedades de classes, seguida pelo feudalismo at o
12 ARAJO, op. cit., pp.152-153

13JOLY, op. cit., p.11

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capitalismo e, por fim, o socialismo, numa lgica linear, a escravido existiu enquanto modo
de produo em algumas poucas sociedades ao longo de toda a histria. Muitas sociedades,
em vrios continentes, contextos polticos e econmicos e pocas contaram com escravos na
produo ou com a existncia de uma parcela da populao que fosse escrava, mas sociedades
onde a mo-de-obra escrava exerceu papel fundamental na produo da riqueza social e na
produo da riqueza e reproduo e manuteno do poder e do modo de vida da classe
dominante foram raras. E ainda assim, o escravismo antigo existiu enquanto modo de
produo somente na Grcia e em Roma, enquanto o que existiu no Brasil, no sul dos Estados
Unidos e no Caribe foi um modo de produo distinto, tambm escravista, mas diferente do
modo de produo escravista antigo. Isto no quer dizer que o modo de produo escravista
colonial no guarde similitudes com o seu parente distante e ancestral em termos histricos e
cronolgicos o escravismo antigo possibilitando um estudo comparativo entre os dois
modos de produo.
Perry Anderson descreve o mundo greco-romano como um produto da escravido
antiga, estando um e outro ligados de modo absolutamente inseparvel. Para ele, a
Antiguidade grecorromana tambm era essencialmente mediterrnea, sendo o mar que leva
este nome a estrutura bsica e profunda de todo o seu desenvolvimento e civilizao.
Enquanto se observarmos a escravido moderna o Atlntico o palco de todo o comrcio de
mercadorias e trfico de escravos, o espao que liga aquele mundo formado por metrpole e
colnia, o Imprio Romano teve como palco de suas guerras e batalhas hericas, a sua
expanso e o estabelecimento de sua civilizao, a solidificao de sua cultura e seu
comrcio, de sua economia e relaes sociais, o mar Mediterrneo, sendo a escravido a base
de todas as relaes econmicas do imprio, aquela que garantia todo o esplendor da Cidade
Eterna. E justamente isso que diferencia Roma de todas as civilizaes do Oriente e do
Ocidente anteriores sua conquista, como nos informa o referido autor:

(...)O modo de produo escravo foi uma inveno decisiva do mundo


grecorromano, que constituiu a base definitiva tanto para suas realizaes quanto para seu
eclipse. A originalidade deste modo de produo deve ser sublinhada. A escravido em si tinha
existido sob vrias formas atravs da Antiguidade no Oriente Prximo (como aconteceria
mais tarde em outros lugares na sia); mas ela sempre fora uma condio juridicamente
impura tomando com frequncia a forma de servido por dbitos ou de trabalho penal
entre outros tipos de servido, formando simplesmente uma categoria muito baixa num
continuum amorfo de dependncia e falta de liberdade que se estendia bem acima na escala
social. Tambm nunca foi o tipo predominante de apropriao do excedente nas monarquias
pr-helnicas: era um fenmeno residual que existia margem da principal fora de trabalho
rural. (...) O Mundo Antigo nunca foi contnua ou ubiquamente marcado pela predominncia
do trabalho escravo. Mas suas grandes pocas clssicas, quando floresceu a civilizao da

23

Antiguidade a Grcia, nos sculos V e IV a.C., e Roma, do sculo II a.C. ao sculo II d.C. ,
foram aquelas em que a escravido era macia e generalizada, entre outros sistemas de
trabalho. 14

Devemos integrar o escravismo antigo num contexto mais amplo de um conjunto de


formas de trabalho compulsrio dominante na Antiguidade. O trabalhador livre existia na
Antiguidade, sem dvida, mas das diversas formas de trabalho dependente que advinham as
riquezas das aristocracias, desde o Egito dos faras at a Roma dos generais e imperadores.
Vale lembrar que o tema central desta pesquisa o estudo, no de qualquer forma de trabalho
compulsrio, servido ou mesmo escravido, mas da escravido-mercadoria, em que o
escravo propriedade de um senhor e est a ele submetido, sendo esta fora de trabalho
utilizada em larga escala naquela sociedade. No Egito antigo, mesmo os trabalhadores que
podiam ser considerados livres estavam submetidos corveia real, sendo trancafiados noite
numa priso local e devendo desempenhar um trabalho especfico de maneira compulsria a
servio do Estado em grandes construes ou quaisquer outras tarefas que demandasse o
Estado faranico. Os escravos com frequncia pertenciam ao rei no Egito antigo e, na maioria
dos perodos, eram de nmero pouco significativo frente massa de camponeses que, de fato,
sustentavam a economia do pas. Alm disso, os escravos egpcios tinham personalidade
jurdica, podendo adquirir propriedade e at mesmo se casar com pessoas livres.
Definitivamente, a sociedade egpcia no era uma sociedade escravista, apesar do trabalho
compulsrio ser generalizado mesmo entre os camponeses livres que, de qualquer modo,
estavam submetidos corveia. Na Baixa Mesopotmia, eram feitos escravos os prisioneiros
de guerra, mas numa escala infinitamente menor do que no mundo greco-romano, sendo, nos
perodos mais antigos. grande parte dos prisioneiros de sexo masculino sacrificados aos
deuses, quando no eram mortos em campo de batalha, sendo transformados ainda em
trabalhadores dependentes no escravizados aqueles que no eram mortos. As mulheres
escravas, no entanto, eram mais numerosas. Isto indica um limitado papel econmico e social
dos escravos na Mesopotmia devido dificuldade de um efetivo controle poltico-militar

14 ANDERSON, Perry. Passagens da Antiguidade ao feudalismo. Traduo de Beatriz Sidou. 5. ed. So Paulo:
Editora Brasiliense S.A., 2004.

24

sobre grandes massas de cativos de acordo com o grau de desenvolvimento do pas, segundo
nos informa o historiador Ciro Flamarion Cardoso.15
A escravido por dvidas e o hilotismo configuram-se em duas formas de servido
que predominaram na Antiguidade. E onde se enquadra a escravido-mercadoria que estamos
investigando? O surgimento de uma sociedade escravista descrito por Finley e por ele
destacada a multiplicidade de situaes em que se encontravam os escravos, razo pela qual
se ope aplicao do conceito de classe social para o escravo antigo, sendo, desse modo,
uma classe jurdica, uma propriedade, e este fato era o essencial para Moses Finley. O escravo
era uma mercadoria que podia ser comprada e vendida; era um estrangeiro desenraizado,
obtido atravs da guerra, do comrcio, da pirataria e encarado como propriedade daquele que
o aprisionou e que podia ser alugado, vendido ou libertado, se isso fosse da vontade de seu
senhor; a totalidade do poder do senhor sobre o escravo, no dispondo o ser humano
escravizado sobre o seu corpo. Nas palavras do prprio Finley:

Estes trs componentes da escravido a posio do escravo como propriedade, a


totalidade do poder sobre ele e a falta de laos de parentesco davam ao proprietrio, a
priori, poderosas vantagens com relao a outras formas de trabalho involuntrio: maior
controle e flexibilidade no emprego de sua fora de trabalho e uma liberdade muito maior na
disposio do trabalho indesejado. Como conseqncia, desenvolveu-se uma hierarquia no
seio da populao escrava. Basta pensar nas seguintes situaes, todas simultneas: escravos
nas minas de ouro e prata da Espanha ou acorrentados nas fazendas da Itlia; escravos no
servio pblico imperial; escravos capatazes e supervisores nos campos; escravos urbanos,
que conduziam seus prprios estabelecimentos comerciais e manufatureiros em Roma e em
outras cidades da Itlia, pelo uso do peculium (.. ). Em outras palavras, os escravos
constituam um tipo dentro da classe mais geral de trabalho involuntrio, podendo se dividir
em subtipos com sentido prprio. Ou ainda, dito de outra forma, os escravos eram uma classe
lgica e uma classe jurdica, mas no, no sentido usual do termo, uma classe social. 16

A discusso levantada por Finley tem o mrito de expor as diversas situaes dos
escravos antigos ao contrrio das usuais generalizaes, que pouco servem para o avano do
conhecimento histrico. Os argumentos contrrios tese apresentada aqui sero expostos
15CARDOSO, Ciro Flamarion. Trabalho Compulsrio na Antiguidade, op. cit., p.29.

16 FINLEY, Moses. Escravido antiga e Ideologia Moderna. Traduo de Norberto Luiz Guarinello. Rio de Janeiro:
Edies Graal Ltda, 1991, p. 79.

25

mais adiante no texto. Mas por ora o que nos interessa entender o funcionamento da
sociedade escravista e como ela surge. O trecho a seguir trata das condies para o
nascimento de uma economia baseada na escravido-mercadoria em oposio teoria da
conquista, que atribui a origem do sistema escravista em Roma s suas guerras de expanso.
O argumento contrrio o seguinte:

Dito de outra forma, meu argumento que a demanda precede logicamente a oferta
de escravos. Se os romanos aprisionaram vrias dezenas de milhares de homens, mulheres e
crianas, no curso das guerras itlicas e pnicas, foi porque existia uma demanda de escravos
e no o contrrio. A existncia de uma demanda suficiente requer, ao menos, trs condies
necessrias. A primeira, num mundo predominantemente agrrio, a propriedade privada da
terra, suficientemente concentrada em algumas mos para que a fora de trabalho
permanente necessite de mo-de-obra extrafamiliar. A segunda um desenvolvimento
suficiente dos bens de produo e mercado para a venda (para a presente discusso
irrelevante tratar-se de um mercado distante, um mercado de exportao em sentido vulgar ou
de um centro urbano prximo). Hilotas e outras formas de trabalho dependente podem,
hipoteticamente, ser empregados em sociedades que no produzem mercadorias, mas no
escravos, que devem ser regularmente importados em grande quantidade, e cujo preo precisa
ser pago. A terceira condio negativa: a inexistncia de mo-de-obra interna disponvel,
obrigando os agenciadores de trabalho a recorrer a estrangeiros. Todas as condies devem
existir simultaneamente, como em Atenas e outras comunidades gregas no sculo VI a.C. e em
Roma, pelo menos desde o sculo III a.C.17

A tese da conquista pode ser facilmente rebatida. Basta resgatarmos o exemplo


mesopotmico em que os prisioneiros de guerra eram sacrificados aos deuses ou utilizados em
outras funes como trabalhadores dependentes, sendo somente uma parte deles escravizados.
J a precedncia da demanda pode ser comprovada pela comparao com o caso brasileiro.
Caio Prado Jnior chega a concluses bastante parecidas no que se refere ao estudo do Brasil
colonial escravista:

Com a grande propriedade monocultural instala-se no Brasil o trabalho escravo.


No s Portugal no contava populao suficiente para abastecer sua colnia de mo-deobra, como tambm, j o vimos, o portugus, como qualquer outro colono europeu, no
emigra para os trpicos, em princpio para se engajar como simples trabalhador assalariado
do campo. A escravido torna-se assim necessidade: o problema e a soluo foram idnticos
em todas as colnias tropicais e mesmo subtropicais da Amrica. Nas inglesas do Norte, onde
se tentaram a princpio outras formas de trabalho, alis uma semi-escravido de
trabalhadores brancos, os indentured servants, a substituio pelo negro no tardou muito.
alis esta exigncia da colonizao dos trpicos americanos que explica o renascimento da

17 Idem, ibidem, pp. 88-89.

26

escravido na civilizao ocidental em declnio desde fins do Imprio Romano, e j quase


extinta de todo neste sc.XVI em que se inicia aquela colonizao.18

Sendo assim, a falta de braos que explica a utilizao de mo-de-obra estrangeira


na produo. O desenvolvimento do mercado ajuda a explicar a forma de trabalho
compulsrio a escravido-mercadoria. O melhor exemplo da Antiguidade, que corrobora a
tese da precedncia da demanda e expe uma situao em que a falta de braos de
trabalhadores dependentes torna possvel o emprego do escravo-mercadoria como o
preferencial o da Atenas clssica, aps as reformas de Slon, e, com isso, permite-nos
compreender qual a influncia destas reformas e da principal delas, a abolio da escravido
por dvidas, no surgimento de uma sociedade escravista:

No caso da Grcia mais avanada, o sculo VI a.C., parece ter sido aquele em que
as condies acima se reuniram todas. O nico caso bem documentado (relativamente, alis)
o da tica. Nesta regio, h sinais de um aumento da populao, de uma concentrao da
propriedade rural em mos da aristocracia dos euptridas, de um progresso da urbanizao e
da produo para o mercado desde os primeiros sculos da poca Arcaica, intensificando-se,
porm, quanto mais nos aproximamos do sculo VI a.C. Em tal contexto, as reformas de Slon,
em 594 a.C., vieram garantir a terceira condio, tornando doravante impossvel o
recrutamento interno de mo-de-obra dependente. Os camponeses antes escravizados ou
reduzidos servido por dvidas, tornaram-se na sua maioria cidados, voltaram a ser
pequenos proprietrios e, como hplitas (soldados da infantaria pesada, organizados em
falanges disciplinadas), passaram a constituir a base das foras armadas atenienses. Tais
camponeses, escapados fazia pouco tempo da servido por dvidas, no trabalhariam
voluntariamente, em carter permanente, para os proprietrios mais ricos. A situao assim
criada, a escravido j existente como instituio intensificou-se, chegando-se ento
gradualmente a um verdadeiro modo de produo escravista. De fato, dadas as caractersticas
das foras produtivas vigentes, o surgimento e consolidao da categoria homem
livre/pequeno proprietrio/cidado/soldado dependeu do estabelecimento do escravismo.19

18 PRADO, Caio. Formao do Brasil Contemporneo: colnia. 23. ed. So Paulo: Editora Brasiliense S.A., 2004,
p. 122. A explicao para o uso da mo-de-obra escrava na Amrica colonial tambm pode ser encontrada em
CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. A Afro-Amrica: A escravido no novo mundo. In: Coleo Tudo Histria.
So Paulo: Editora Brasiliense S.A., 1982. A utilizao do mtodo comparativo, neste caso, possibilita a construo de
uma explicao plausvel e contribui no sentido de confirmar a tese de Finley acerca da precedncia da demanda por
mo-de-obra permanente para a produo mercantil para o surgimento de uma sociedade escravista.

19 CARDOSO, op. cit., pp. 40-41.

27

No caso romano, Snia Regina Rebel de Arajo localiza o ponto crucial para o
desenvolvimento do modo de produo escravista, baseado no escravo-mercadoria, em Roma:

As condies para a formao do modo de produo escravista estavam


maduras, pelo menos, a partir do sculo IV a.C. quando a Lei Petlia Papria proibiu a
escravizao de homens livres e pobres aos credores ricos. Estava criada, assim, a ltima
condio para o surgimento do escravo-mercadoria, j que as outras duas condies a
propriedade privada e concentrada da terra e o aparecimento do mercado a precediam e
acompanhavam, pois Roma estava em franco processo de expanso militar.
A propriedade sobre a terra uma grande concentrao fundiria acompanhou o
processo de expanso militar romana sobre a Itlia e, aps as guerras pnicas, sobre o
Mediterrneo, deslocando camponeses de suas pequenas propriedades familiares. A expanso
militar, efetuada s custas dos camponeses expropriados, implicou um imenso nmero de
cativos que, transformados em escravos, foram vendidos para trabalhar nas grandes
propriedades territoriais, - o padro agrrio agora est baseado nas villae e latifndios j
que era necessrio o emprego de mo-de-obra suplementar e numerosa nas terras
aambarcadas pela classe dominante. Destaco os efeitos da guerra aniblica para explicar o
incremento em pouco tempo desse processo: a introduo nos campos italianos e sicilianos de
massas impressionantes de cativos, um desenvolvimento sem precedentes da agricultura com
base em mo-de-obra escrava; opresso romana no Sul da Itlia, especialmente Cpua, pelo
apoio que a populao deu aos cartagineses.20

Assim, podemos considerar, com base nos autores citados acima, o modo de produo
escravista como uma forma original e especfica de apropriao do excedente do trabalho e
um tipo especfico de trabalho compulsrio, sendo bastante restrito a determinadas regies e
delimitado no tempo enquanto modo de produo dominante, mesmo que a escravido
enquanto instituio tenha existido em vrias sociedades e pocas de forma relativamente
disseminada. E este ltimo fato a fonte de maiores confuses. A sua difuso deve ser
comparada com a sua amplitude e importncia poltica, econmica, cultural e social em cada
sociedade onde existiu. Condies especficas geraram o escravismo antigo e o escravismo
colonial. A inexistncia de mo-de-obra interna disponvel, a falta de braos, foi um fator
preponderante no surgimento das sociedades escravistas. Alm disso, a produo escravista
est voltada para o mercado. No caso das colnias americanas, esta era uma forma de
economia majoritariamente dirigida para o abastecimento do mercado externo.
Schiavone utiliza o mtodo comparativo para examinar o escravismo antigo, luz das
anlises e dados de que dispomos sobre a escravido moderna, justificando ainda a utilizao

20 ARAJO, op. cit., pp.21-22.

28

desta metodologia com a premissa de que o pensamento histrico intrinsecamente


analgico.21
Em Aldo Schiavone podemos constatar as semelhanas e diferenas entre a escravido
antiga e a escravido moderna de forma mais ntida. Segundo o autor:

As escravides modernas, todas originalmente coloniais no Brasil, nas ilhas do


Caribe e tambm no Sul dos Estados Unidos afirmaram-se e consolidaram-se por razes
peculiares (a escassez de mo-de-obra no Novo Mundo, a penetrao europeia
contempornea ao longo da costa da frica ocidental) em cenrios rurais relativamente
perifricos, seno mesmo marginais, com relao ao centro cada vez mais manufatureiro e
industrial da nova economia europeia e atlntica; seus problemas foram sobretudo de
compatibilidade com um modo de produo bem mais expansivo e dominante, baseado
exclusivamente no trabalho livre.
Pelo contrrio, o sistema escravista romano representou no tocante aos
resultados e organizao de longe a forma econmica mais avanada e unificada dentre as
civilizaes antigas: o verdadeiro centro propulsor de toda a economia mediterrnea, e
sempre foi, do ponto de vista produtivo, substancialmente sem alternativas, tanto tericas
quanto prticas. (...)22

E justamente esta falta de uma alternativa de sociedade ao modo de produo


escravista antigo o fato mais revelador do insucesso das revoltas servis, da decadncia e queda
do imprio romano e do sistema escravista e o principal trao distintivo entre o mundo antigo
e o mundo moderno. Tratava-se ainda de um mundo onde a mo-de-obra era explorada por
mecanismos extra-econmicos, pelo menos a mo-de-obra dependente e que estava
subordinada classe dominante daquela sociedade e localizava-se no centro da produo da
riqueza social na Antiguidade. A forma de se obter esta fora de trabalho era, outrossim,
externa ao sistema produtivo. Schiavone tambm faz questo de ressaltar que o nico
mecanismo de auto-alimentao da economia romana era a guerra, a rapina blica. A guerra
era, segundo o autor, o mecanismo de sustentao poltica da economia.23
21 SCHIAVONE, Aldo. Uma Histria Rompida: Roma Antiga e Ocidente Moderno. Traduo de Fbio Duarte Joly.
So Paulo: EDUSP, 2005, p. 168.

22 SCHIAVONE, op. cit., p.168.

23 Idem, ibidem, p.122.

29

A origem do sistema escravista na Repblica romana, baseado no escravo-mercadoria,


remonta ao sculo IV a.C., com a aprovao da Lei Petlia Papria, que aboliu a escravido
por dvidas a que estavam submetidos os camponeses. Este foi o processo e a legislao
equivalentes s reformas de Slon em Atenas. Tal como no caso ateniense tambm foi um
produto da luta de classes. Os plebeus, em sua luta por direitos polticos e sociais, arrancaram
essa conquista e derrotaram os patrcios no que concerne a este tema. A sua vitria no se
estendeu a uma participao efetiva dos plebeus, pelo menos no dos plebeus pobres, no
poder, que se manteve essencialmente oligrquico. A sua participao e influncia polticas,
portanto, foram muito limitadas e quase sempre formais. Uma nova aristocracia surgiu
daquele processo histrico a nobilitas patrcio-plebia , cuja ao impediu a
democratizao efetiva do Estado romano. Em Atenas, os camponeses conquistaram a plena
democratizao do Estado e ganharam o direito de administrar a justia e de comandar a
poltica atravs da Assemblia. evidente que os aristocratas continuaram a controlar o
processo poltico atravs da manipulao das massas, mas tendo que contar em grande medida
com o seu consentimento e fazendo concesses aos trabalhadores. Os homens livres e pobres
tinham o seu lugar na repblica ateniense. O fato de, em Roma, a oligarquia ter mantido o seu
poder e grande parte de seus privilgios ajuda a explicar o seu desenvolvimento da maneira
como se deu, com a concentrao das terras em grandes propriedades nas mos de uns poucos
homens ricos, dando outra forma escravido-mercadoria nesta formao econmico-social.
Diferentemente de Atenas, onde os proprietrios mais importantes tinham algumas dezenas de
escravos, aqui se contava aos milhares. Todo o esplendor de Roma deve-se no s ao grau
atingido pela amplitude e importncia das relaes sociais escravistas, mas tambm
expropriao dos camponeses. As lutas sociais em Roma, protagonizadas pelos homens livres,
influenciaram e determinaram as modificaes ocorridas no mundo do trabalho e, mais
precisamente, nas relaes de produo fundamentais daquela sociedade. O escravo, que antes
fazia parte da famlia romana, torna-se mercadoria e passa a ser empregado em um nmero
nunca antes visto com a abolio da servido por dvidas e a expulso progressiva dos
camponeses de suas terras, com a consequente concentrao fundiria em mos das pessoas
ricas, aristocratas ou no (libertos, por exemplo, podiam ser grandes proprietrios de terras), e
depois do advento do regime imperial, fruto das guerras civis, aliadas ao impacto das grandes
revoltas de escravos do perodo republicano, conquistam os mesmos certos direitos.
inegvel que a luta dos homens livres, a luta entre ricos e pobres, estabeleceu os parmetros

30

em que a escravido se conformaria no caso romano. Mas, neste trabalho, o que nos interessa
o protagonismo dos prprios escravos em sua luta por liberdade, nas diversas formas de
resistncia, espordica e cotidiana, em maior e menor escala; interessa-nos igualmente como
este fato se integra ao todo, ou seja, que papel estes seres humanos coisificados,
mercantilizados, reduzidos servido, transformados em propriedade privada de outrem,
desempenhou no desenrolar dos acontecimentos e na prpria ideologia e psicologia da classe
dominante.
Gza Alfldy24 explica os mecanismos de funcionamento da sociedade romana
primitiva. As mudanas estruturais que se processaram em Roma levaram a que os escravos,
antes membros da famlia romana, se tornassem estranhos em relao aos senhores, sendo
agora brutalmente explorados e, em sua maioria, desprovidos de qualquer lao ligando-os
sociedade na qual foram integrados contra a sua vontade. A separao completa que passou a
existir entre uns e outros e a crescente diferenciao social gerou um dio de classe sem
precedentes antes, fazendo com que os escravos identificassem uns aos outros enquanto iguais
e seus senhores como seus inimigos, criando, se no uma conscincia de classe, pelo menos
um sentimento de classe.
Na estrutura da sociedade romana arcaica o escravo desempenhava uma funo
muito distinta da que viria a desempenhar no perodo de fins da Repblica e incio do
Principado, auge do sistema escravista em Roma:
A escravatura s pde desenvolver-se na organizao social patriarcal da poca
arcaica por lhe ser atribuda uma funo na famlia, ncleo da vida social e econmica. Esta
forma patriarcal da escravatura, que conhecemos tambm na histria de outros povos, por
exemplo, na histria grega por intermdio da epopia homrica, divergia bastante da
escravatura do fim da Repblica e da poca imperial. Por um lado, o escravo era considerado
propriedade do seu senhor e no tinha direitos pessoais; era objeto de compra e venda e por
isso designado no apenas pelo nome de servus mas tambm pelo de mancipium
(propriedade); era tambm menos considerado que o homem livre, como no-lo demonstra
uma medida prevista pela Lei das XII Tbuas: quem partisse os ossos a um escravo era
obrigado a pagar apenas metade da compensao devida a quem infligisse uma leso
semelhante a um homem livre. Mas, por outro lado, a posio do escravo na famlia pouco
diferia da dos seus elementos. Era, tal como estes, membro a pleno da unidade familiar, fazia
a sua vida juntamente com eles e podia manter um contato pessoal estreito com o pater
famlias. Estava sujeito ao poder do pai de famlia tal como a esposa ou os filhos deste, que
o pai podia castigar ou at vender como escravos (nunca mais que trs vezes, segundo a Lei
das XII Tbuas). A sua funo econmica em pouco se diferenciava da dos membros livres da

24 ALFOLDY, Gza. A Histria Social de Roma. Lisboa: Editorial Presena, 1989.

31

famlia, pois para alm das suas tarefas como criado trabalhava como agricultor ou pastor na
propriedade da famlia, na companhia dos outros membros livres.(...)25

Desse modo, podemos perceber a mudana que se processou no sculo II a.C., com o
rpido desenvolvimento da escravido-mercadoria, como consequncia da Segunda Guerra
Pnica. O caminho j havia sido aberto pela Lei Petlia Papria e agora apontava-se para a
desagregao completa da antiga forma de escravido. Essas transformaes radicais foram a
base das rebelies servis e, em larga medida, das modificaes no governo e no Estado
romanos. O exerccio de comparar a escravatura arcaica com a escravido-mercadoria, a
escravido com outras formas de trabalho compulsrio no Mundo Antigo e a escravido
antiga e a escravido moderna permite-nos observar em detalhes as razes econmicas das
guerras entre senhores e escravos em Roma e os mecanismos de funcionamento do
escravismo antigo.
Em Alfldy, vemos a relao que os escravos e seus senhores estabeleciam e o que
ocorreu mais tarde com a disseminao da escravido-mercadoria, rompendo os antigos laos,
desestruturando e desfazendo as antigas relaes sociais. Nascia agora um novo mundo, que
era marcado pela imagem de grandes faixas de terra trabalhadas por verdadeiros exrcitos de
homens escravizados, trazidos do estrangeiro como prisioneiros de guerra.
importante destacar que no ainda o comrcio que diferencia o desenvolvimento
das sociedades escravistas de Roma e da Amrica. verdade que o comrcio mundial
capitalista alcanou propores inimaginveis na Antiguidade clssica, mas uma circulao
mercantil considervel tambm existiu na Roma antiga. Principalmente, a partir da segunda
metade do sculo II a.C. e os conflitos sociais da Repblica romana, envolvendo a disputa dos
Graco com a aristocracia senatorial e a conjurao de Catilina, passando ainda pela guerra
social, contexto poltico e social atravessado pelas maiores revoltas de escravos da
Antiguidade, houve um crescimento dos capitais comerciais e da circulao de mercadorias
no interior do imprio e no Mediterrneo. No entanto, a mentalidade aristocrtica, que no
privilegiava o reinvestimento, mas sim o consumo daquilo que era produzido, esgotando o
produto excedente em ostentao, sendo mais importante para a classe dominante romana a
ampliao de seu luxo e poder, atravs no s de sua riqueza, mas tambm do status, do que a
25 ALFLDY, op. cit., pp. 26-27.

32

aplicao desses capitais novamente no circuito produtivo. Para Aldo Schiavone este fato
que explica porque a sociedade romana permaneceu uma formao muito mais de ordens do
que de classes26. A lgica do escravismo antigo impunha-se aqui de maneira poderosa. O seu
trabalho tinha como funo manter e ampliar no s a riqueza econmica, mas tambm o
status, o luxo e tudo aquilo que representava o modo de vida da nobreza romana, uma classe
de origem guerreira, proprietria de terras com um elevado nvel de absentesmo, tendo a seu
servio administradores escravos, e que vivia para a poltica e a guerra. Em suma, era uma
classe social que via negativamente o trabalho manual. A sociedade romana era
profundamente marcada pela difuso da escravido-mercadoria, pela desvalorizao do
trabalho e pela ausncia de mquinas, que eram, naturalmente, substitudas pelos msculos
dos homens e mulheres escravizados. A aristocracia era o modelo daquela sociedade, sendo
vista como a melhor classe. E a liberdade aristocrtica era o oposto no s do trabalho
escravo, mas de qualquer trabalho manual, repetitivo e mecnico por natureza e que podia
muito bem ser executado igualmente por escravos. De incio, o trabalho das famlias
camponesas em suas prprias terras representava a autonomia desses homens, ao contrrio do
trabalho dos artesos, voltado para agradar e suprir as necessidades de outrem, que sempre foi
mal visto. No entanto, o desenvolvimento do sistema escravista no pode ter deixado de
influenciar de forma determinante a mentalidade coletiva de toda a sociedade. Esta uma
diferena fundamental entre os dois modos de produo, apesar de serem ambos baseados na
escravido-mercadoria: aqui o capital comercial no servia de combustvel para uma
industrializao, esgotando-se em si mesmo; a mo-de-obra escrava funcionava como
substituta do baixo nvel tecnolgico e garantia a ociosidade da aristocracia e a participao
poltica dos cidados.

2 A HISTRIA COMO UM CAMPO DE POSSIBILIDADES

A Histria , antes de mais nada, possibilidade. verdade que existem determinaes


estruturais e que os homens agem de acordo com as circunstncias em que se encontram, mas
eles agem. Os homens fazem a sua histria. E se isso implica em possibilidades, tambm

26 SCHIAVONE, op. cit., p.243.

33

implica em escolhas. Os indivduos fazem escolhas a todo momento, mas no s no plano


individual que o espao para a escolha e a liberdade de ao existe; tambm as coletividades
escolhem. Os grupos sociais escolhem. Os povos escolhem. As classes sociais escolhem. Isso
no quer dizer que tanto os grupos sociais quanto os indivduos no estejam sujeitos a
determinaes. Mas existe uma margem de manobra. E existem momentos da histria que
esta margem de manobra particularmente maior e mais interessante. quando mais de uma
possibilidade se apresenta como vivel, dependendo das escolhas dos grupos e das relaes de
foras em jogo. O perodo conturbado do final da Repblica romana, com intensas lutas
polticas e sociais, com disputas entre as faces polticas da classe dominante e os sucessivos
levantes das camadas subalternas da sociedade, configurou-se numa janela histrica em que
foi possvel lutar e sonhar com a vitria de um projeto alternativo de sociedade e de uma
oportunidade de liberdade para muitos. E foi essa janela de oportunidade que se fechou com a
vitria do projeto conservador, corporificado na aliana forjada entre o Csar, o Senado e o
Exrcito, com o respaldo das massas. Esta aliana conservadora e a afirmao desta
alternativa societria reconfiguraram o aparato poltico-administrativo para ajust-lo s novas
necessidades do imprio mediterrnico e do sistema social baseado na elevada concentrao
fundiria e na escravido-mercadoria empregada em larga escala como modelo econmico e
social hegemnico. O caminho para uma progressiva democratizao do Estado, com o
restabelecimento do campesinato-cidado como o exrcito da Repblica e a extenso dos
direitos de cidadania aos itlicos, no apenas num sentido formal, mas como base poltica e
militar da Repblica, estava, ento, vedado.
O cesarismo como alternativa crise da Repblica e, bem mais tarde, o
desmoronamento do Imprio Romano, com a sua crise final, pela prpria crise do escravismo
e pelas invases brbaras, no foram as nicas alternativas e possibilidades que estiveram
colocadas na realidade. A histria romana poderia ter tomado outro rumo e aqui este exerccio
mental de investigar hipteses que podem de alguma forma iluminar pontos ainda no muito
esclarecidos ou complexos de um problema se faz necessrio. O curso dos acontecimentos
nunca esteve predeterminado. Em algum momento, aquilo que existia enquanto possibilidade
torna-se inevitvel, mas somente depois de suplantados ou superados os outros projetos
histricos em disputa.
Esta soluo alternativa levantada no livro Uma Histria Rompida: Roma Antiga e
Ocidente Moderno, de Aldo Schiavone, e consiste da defesa da tese de que em fins da
Repblica a desagregao do velho bloco aristocrtico que comandara a expanso romana

34

sobre o Mediterrneo abriu o caminho, naquele momento, para uma revoluo municipal
que desse luz a um novo Estado municipal itlico, com um projeto de organizao
romano-itlica no centro do imprio, resultando na plena integrao das municipalidades
itlicas, fundada na plena participao na poltica e no poder de maneira efetiva das camadas
de cidados antigos e novos do territrio da pennsula.27
A nobreza senatorial no conseguia ver a si mesma como dirigente de um novo Estado
municipal itlico, entrincheirando-se na defesa dos seus privilgios. A luta feroz contra os
Graco e seu projeto reformista acabou sepultando a Repblica romana para sempre. Do
enfrentamento dos Graco com a nobreza senatorial at a Guerra Social esteve colocada uma
possibilidade real de renovao democrtica e de manuteno do regime republicano, com a
limitao da propriedade da terra e do nmero de escravos na Itlia, a restaurao do exrcito
romano enquanto uma milcia de cidados, a partir da redistribuio das terras pblicas,
fundao de colnias e ampliao do campesinato itlico e da cidadania romana para todos os
italianos, com a antiga glria conferida aos cidados romanos comuns, plenos de direitos e
participao poltica, econmica e militar. Com a conquista da cidadania romana pelos
itlicos, mesmo aps a derrota militar, este processo poderia ter sido retomado e um novo
curso na histria de Roma seria dado. Mas as conquistas militares de Csar e Pompeu, com
um novo afluxo de escravos, de cerca de um milho, como nunca antes houvera, a aquisio
de novas terras na Glia e novos recursos no Oriente terminaram por enterrar de vez o projeto
de democratizao da sociedade romano-itlica.
A partir de um determinado momento, a estrada que seguia em frente apresenta uma
bifurcao: no jogo de foras polticas e sociais da sociedade romana do perodo de crise da
Repblica os destinos coletivos so decididos. A classe dominante romana decide apostar num
caminho que considerou mais seguro. A nobreza senatorial abriu mo de parte de seu antigo
poder para seguir usufruindo plenamente de seus privilgios materiais. As sociedades
humanas fazem escolhas e as crises so momentos de oportunidade. O regime do Principado
apontou para uma estabilidade poltica e social que mantinha as condies econmicas
vigentes. Na medida em que no existiam foras polticas e sociais homogneas, coesas e
consistentes o suficiente para se opor seriamente ao projeto aristocrtico de revoluo
passiva, esta alternativa acabou prevalecendo. No entanto, este fato no deve servir para
27 SCHIAVONE, op. cit., pp.251-257.

35

obscurecer o processo real que existiu para os homens concretos e reais de uma dada poca.
Os resultados finais desse processo so o produto de uma correlao de foras existente na
conjuntura crucial para a definio do futuro daquela sociedade. Resgatar, portanto, as
alternativas que estiveram em jogo dar voz aos vencidos e compreender com maior clareza e
em maior profundidade as perspectivas de futuro que fizeram parte do passado. nessa
direo que aponta Schiavone:

O colapso do quadro aristocrtico, somado consolidao da romanizao e da


concentrao na Itlia de uma quantidade de riquezas e de capacidades produtivas e
comerciais nunca antes presentes no mundo antigo, estava abrindo uma poca de
oportunidades sem precedentes. Estava inaugurando-se um daqueles raros e preciosos
momentos de criatividade da histria, em que as potencialidades acumuladas em uma
impetuosa fase expansiva, mesmo j tendo obtido resultados relevantes, ainda no estavam
consolidadas de forma definitiva, e podiam tomar direes diversas, tambm muito distantes
entre si. Se algo poderia mudar, era agora: a nica ocasio em que os efeitos das dinmicas
postas em movimento poderiam superar os limites do sistema que as havia produzido.28

importante ressaltar o trecho em que o autor escreve que as potencialidades


acumuladas em uma impetuosa fase expansiva, mesmo j tendo obtido resultados relevantes,
ainda no estavam consolidadas de forma definitiva, e podiam tomar direes diversas.
Chamamos a ateno para esta frase em especial porque nela est contida toda a tese do autor.
A Histria no composta de fatos predeterminados. Na verdade, ao acumular elementos que
apontavam, primeiramente, num sentido, tambm eram criadas outras alternativas, pois este
acmulo de potencialidades significava igualmente uma liberao de foras sociais. Os
camponeses romanos e itlicos e os grupos de proprietrios e os setores da elite que estavam
fora do centro do poder e de seus privilgios buscavam o seu lugar ao sol, a sua parte do
recm-nascido imprio romano. Na arena da poltica foi travada uma batalha histrica que
exerceria uma influncia determinante em todo o desenvolvimento ulterior do Ocidente. Uma
luta pica pelo futuro se desencadeou e teve seu primeiro revs para as foras que defendiam
um outro progresso, uma estrada alternativa quela para a qual rumava a sociedade romana,
no episdio do assassinato de Tibrio Graco. A proposta de Tibrio favorecia e fortalecia a
longo prazo o Senado, mais do que os senadores romanos podiam supor. As sucessivas
derrotas polticas e militares de um projeto de sociedade que se contrapunha s tendncias
oligrquicas exclusivistas da aristocracia da civitas romana no conseguiram eclipsar o seu
28 SCHIAVONE, op. cit., pp. 254-255.

36

significado. A soluo monrquica suplantou fisicamente os protagonistas e as idias de uma


Itlia composta por trabalhadores livres em sua maioria, a predominncia da pequena
propriedade rural sobre a grande propriedade e um papel poltico e militar elevado para o
campesinato itlico, que foi a base do exrcito vitorioso que conquistou o Mediterrneo e
formou o maior imprio da Antiguidade, alm de uma consequente democratizao das
instituies polticas do imprio, aproximando-se mais de Atenas do que do Oriente; mas um
imprio cada vez mais oriental foi se formando em suas estruturas polticas bsicas,
principalmente a partir do perodo do regime do Dominato, afastando-se mesmo da
monarquia republicana de Augusto, que, apesar de prncipe, governava com o Senado, no
mais o Senado da Repblica, importante destacar; mas a busca do consenso ainda prevalecia
sobre a autoridade desptica. As propostas de um Estado campons ou de um Estado itlico
foram sepultadas para sempre, mas nunca esquecidas. O que no foi tambm determinou a
forma como se deram os acontecimentos que culminaram no Principado. E as conquistas,
mesmo parciais, das camadas mais baixas da sociedade romana no primeiro sculo do regime
imperial so outra evidncia da fora do programa democrtico na crise republicana, mas que
no era capaz de arregimentar setores sociais nem de conquistar a simpatia de uma parcela
majoritria do povo para que pudesse derrotar o programa conservador aristocrtico:

No lugar de uma reviravolta municipal capaz de levar a cabo os resultados itlicos


da romanizao, a crise do sculo I conduziu, com Augusto, a uma grandiosa estabilizao
neoaristocrtica, que redimensionou a posio da Itlia, dissolvendo-a na geometria
pluralista e policntrica de um governo do mundo.29

O consenso aristocrtico tomou forma no regime monrquico. A tendncia exclusivista


da oligarquia senatorial romana prevaleceu, tendo a nobreza senatorial, porm, de ceder o
monoplio do poder poltico e depositar na figura do Csar a autoridade que antes era sua.
Esta alternativa era a que melhor preservava os privilgios sociais conquistados pela nobilitas
e promovia o ajuste perfeito das instituies polticas s condies econmicas vigentes, em
contraposio linha reformista que freava, de certo modo, o avano da economia escravista,
mas que oferecia uma alternativa mais interessante para o beco sem sada que se tornou o
escravismo antigo, principalmente com o fim do perodo de maior expanso do Imprio

29 SCHIAVONE, op. cit., p. 264.

37

Romano. A catstrofe era, desse modo, adiada, mas de forma alguma contornada e, muito
menos, impedida. O problema no era resolvido, mas postergado para que as geraes futuras
pagassem o preo da oportunidade perdida. O desmoronamento do Imprio Romano, a sua
crise e a sua queda, estavam absolutamente ligadas crise do sistema escravista. Mas isso no
importava para os grandes proprietrios de terras e de escravos que ocupavam as cadeiras do
Senado no momento da crise republicana. Eles mantiveram seus rendimentos e seu modo de
vida; e isso lhes bastava. Schiavone define o regime instaurado por Augusto como sendo o
sistema poltico que possibilitava o desenvolvimento pleno daquele sistema econmico:

O milagre romano atingia assim a sua plena projeo mundial: o imprio nunca
unificou as economias provinciais, mas construiu uma rede de interdependncias e de relaes
dantes desconhecida. O fracasso em aproveitar a nica oportunidade para se desenvolver no
provocou a curto prazo qualquer colapso. A paz de Augusto possibilitou, pelo contrrio, a
plena maturidade do sistema, embora sob um equilbrio sem perspectivas. A busca da
compatibilidade mais favorvel entre explorao provincial, produo escravista e expanso
comercial no foi uma inveno apenas romana: j tinha tido seu laboratrio em Atenas. Mas
foram as classes dirigentes do imprio que estenderam o experimento at a construo da
primeira economia-mundo de nossa histria.30

Sendo assim, o principado de Augusto serviu para consolidar as tendncias centrais


que vinham se afirmando desde as Guerras Pnicas, passando pelas conquistas de Jlio Csar
na Glia e de Pompeu no Oriente. A dinmica da economia apontava para o Estado
monrquico como forma de garantir um aparato poltico-administrativo capaz de arbitrar os
diferentes conflitos polticos e sociais e as prprias relaes sociais de produo. isso que,
em parte, ajuda a explicar porque, no regime imperial, no ocorreram grandes rebelies servis
como aquelas de fins da Repblica. A nova mquina estatal funcionava como um mecanismo
poltico-ideolgico de dominao social e de estabilizao poltica da nova sociedade romana.
Os reformistas no contavam com uma base social suficientemente coesa para fazer frente ao
bloco aristocrtico. A oligarquia senatorial, por seu turno, tambm no tinha capacidade de
manter indefinidamente um sistema poltico j h muito falido. Em que pese todos os esforos
de proeminentes lideranas, como Ccero que combateu Catilina e Jlio Csar e todos aqueles
que, na sua viso, tentavam usurpar o poder do Senado e dar fim Repblica, e de sua poltica
de concrdia das ordens, e Sila que restabeleceu durante seu governo o poder do Senado e
foi um ardoroso inimigo das lideranas reformistas e democrticas, como Caio Mrio, a
30 SCHIAVONE, op. cit., p. 265.

38

Repblica no sculo I a.C. no passava de um cadver insepulto, uma ordem social


ultrapassada; era preciso admitir: o antigo regime estava morto. E cada ano que passava era
um passo a mais em direo ao abismo. A nobreza patrcio-plebia no teve outra escolha a
no ser apoiar-se no prncipe, uma figura acima das ordens tradicionais, que unificava
senadores e eqestres, a classe dominante romana e as novas elites itlicas, as
municipalidades itlicas, as provncias e a capital do imprio, o exrcito e a plebe, uma
liderana baseada no poder unipessoal legitimada pelo reconhecimento formal do Senado de
sua autoridade e pela delegao plebiscitria das massas de toda a Itlia e das provncias do
imprio:
A genialidade da soluo de Augusto consistiu em transformar paradoxalmente as
prprias fragilidades das alternativas em pontos de fora da estratgia adotada. Se no havia
flego para um projeto de reformas ancorado em novos protagonistas sociais, exteriores ao
bloco aristocrtico, o nico caminho possvel era promover e organizar uma sbia revoluo
passiva dos velhos grupos dirigentes.31

3 ECONOMIA E POLTICA NA ANTIGUIDADE

Os elementos constitutivos de um modo de produo so o desenvolvimento das


foras produtivas e as relaes de produo vigentes. A respeito das foras produtivas, os
autores Ciro Cardoso e Hctor Prez destacam:

(...) De uma maneira mais exata e completa, podemos dizer que as foras produtivas
tpicas de um modo de produo dado representam a articulao histrica especfica entre: o
objeto de trabalho (recursos naturais e matrias-primas...) e o meio de trabalho (instrumentos
de produo...), que formam de conjunto os meios de produo; e os homens que participam
no processo de produo, considerados segundo suas capacidades fsicas e mentais. (...)32

31 SCHIAVONE, op. cit., p. 268.

32 CARDOSO, Ciro Flamarion Santana; PREZ, Hctor. El Concepto de Classes Sociales. San Jos, Costa Rica:
Editorial Nueva Dcada, 1982, p. 20.

39

Assim, podemos arriscar uma anlise, mesmo que sumria, do equipamento


tecnolgico disponvel para os romanos antigos, a dinmica social, a diviso social do
trabalho existente na Antiguidade clssica e o desenvolvimento tcnico das sociedades grega e
romana.
K. D. White escreve sobre o contexto de inveno, inovao e desenvolvimento
tcnico do mundo clssico. O autor resgata, em primeiro lugar, a idia de que a tecnologia no
um fenmeno recente, produto da Revoluo Industrial, mas uma parte integrante das
sociedades humanas desde o Paleoltico33. O ser humano um animal social e todos os
progressos biolgicos de nossa evoluo tornaram o homem um fabricante de mquinas e
instrumentos com os quais altera o ambiente ao seu redor. O desenvolvimento de novas
tcnicas leva ao controle humano do ambiente fsico e provoca mudanas e novos problemas
para as prprias sociedades humanas, problemas que podem ser resolvidos somente atravs de
mais mudanas tcnicas34. Mas a inveno no a nica via pela qual podemos interpretar o
desenvolvimento das foras produtivas de uma determinada sociedade. Durante o perodo
clssico, as inovaes tecnolgicas tambm circularam pelas diversas regies, mesmo que no
existisse uma globalizao como nos dias de hoje, ou como por todo o capitalismo, desde a
sua origem, com a integrao de mais e mais regies num mercado mundial. A circulao de
informaes e tcnicas era, sem dvida, infinitamente mais limitada, mas no devemos
desprezar a existncia de um mercado mundial na regio do Mediterrneo, sob o domnio
romano. O carter dual da economia romana revelava os limites e possibilidades que
existiram na Antiguidade clssica. Segundo Schiavone35, a economia romana era um sistema
agrrio-mercantil de base escravista, que congregava, de um lado, uma economia mercantil
desenvolvida, sendo a base da produo para o mercado sempre escravista, e, de outro lado,
uma economia natural ou de subsistncia, que, estando voltada para o autoconsumo direto dos
33 WHITE, K.D. Greek and Roman Technology. Londres: Thames and Hudson Ltd, 1984, p. 6.

34 Idem, ibidem, p. 9.

35 SCHIAVONE, op. cit., pp. 100-101.

40

produtores ou para o comrcio local, era quantitativamente superior em todo o imprio. Este
plano da economia romana garantia a sobrevivncia da maior parte dos habitantes das
provncias e da Itlia.
As tecnologias que eram produzidas numa determinada regio podiam ser levadas para
outras reas atravs da migrao de inventores e artesos, assim como atravs do comrcio.
Outra maneira de disseminao de novas tcnicas foram as guerras de conquista:
As guerras tm sido desde os primrdios um meio notvel pelo qual processos
tcnicos e tcnicas tem sido transferidas de uma rea outra. A transferncia podia ter vrias
formas, dependendo da relao entre os rivais, e os mtodos pelos quais o vitorioso
consolidava suas conquistas.36

O caso romano explicitado pelo referido autor, demonstrando como os romanos


apropriaram-se das conquistas intelectuais de outros povos e as propagaram pelas terras mais
vastas e empregaram seus preceitos para o aumento da produtividade e progresso da cincia e
da qualidade de vida no mbito de uma rede mais ampla e complexa de pases, povos e
relaes polticas e sociais, promovendo o desenvolvimento tcnico, cientfico, econmico e
social no Imprio Romano. Podemos arriscar-nos a dizer que fazia parte do butim de guerra a
conquista de novos conhecimentos e equipamentos. Roma conquistou dos gregos, por
exemplo, muito mais do que terras, tambm sua medicina, sua engenharia, sua arquitetura, sua
cincia. Da atual regio da Frana e da Blgica, os romanos apoderaram-se do conhecimento
em metalurgia dos celtas.37
Apesar disso, muito do conhecimento produzido era meramente especulativo. O
trabalho manual no era valorizado pela concepo aristocrtica de mundo. Cientistas como
os que temos hoje e a unio entre cincia e tecnologia tambm no eram comuns. De um lado
estava o filsofo e de outro estava o arteso, separados por um imenso abismo social. Este foi
um fator muito importante no sentido de limitar os possveis progressos tcnicos na
Antiguidade greco-romana avanada (j que o desprezo pelo arteso e pela tecnologia
aumentou com o tempo). A maioria absoluta das pessoas vivia de forma simples no campo. As
36 WHITE, op. cit., p.11.

37 Idem, ibidem, pp.11-12.

41

sociedades antigas eram predominantemente agrrias. A agricultura, que foi a me da vida


civilizada, sem a qual seria impossvel a existncia de sociedades complexas e das prprias
cidades, por milnios foi o nico ou principal meio de vida dos homens e mulheres
trabalhadores. Mesmo as aristocracias retiravam a maior parte de sua riqueza e tambm de seu
prestgio de suas terras e de sua posio enquanto proprietrios de terras. O paradigma
escravista exerceu sua influncia no no desenvolvimento da maquinaria e de novos processos
de trabalho, alm da utilizao de outras fontes de energia que no as tradicionais energias
animal e humana. O uso da gua, como recurso energtico, ocorreu na Antiguidade, mas no
antes do sculo I a.C., sendo as fontes de energia mais largamente empregadas, realmente, a
fora de trabalho humana e a energia dos animais, como o boi, o asno e o cavalo. A energia
muscular humana era a principal fora produtiva numa sociedade escravista. Alm disso, o
seu uso era mais verstil, mais facilmente adaptvel a cada situao e necessidade. A
resistncia e a capacidade fsicas dos animais eram a vantagem bvia sobre os homens, sendo
mais empregados onde fosse preciso fora e um trabalho que se estendesse por mais tempo.
Um cavalo do tamanho que era usado no mundo clssico fazia o trabalho de nove homens e
uma mula podia realizar o trabalho de cinco homens ou de trs homens, carregando uma carga
de 140 kg por cerca de oito horas num dia 38. Essa comparao vlida na medida em que a
maior parte do trabalho era produto destas fontes de energia e porque o escravo era
equiparado aos animais, na ideologia como na teoria, e o seu trabalho o trabalho escravo
era equiparado, na prtica, ao trabalho dos animais. A diferena tanto na teoria quanto na
prtica residia justamente nesta versatilidade da fora de trabalho humana, advinda do
intelecto humano. Sendo assim, as capacidades fsicas e intelectuais humanas permitiam aos
escravos executar um variado nmero de tarefas. Dentre os animais, aquele que ocupava o
papel principal no trabalho nas fazendas era o boi. Os cavalos, que simbolizavam o orgulho
aristocrtico e demandavam um custo maior, necessitando de melhor alimentao, eram
utilizados, principalmente, na guerra e nas corridas.
A quantidade elevada de escravos que os romanos tinham sua disposio, a aquisio
do melhor da cincia helenstica, com a tradio de idias e experincias recolhida pela
atividade de inmeros pesquisadores, cientistas, filsofos e intelectuais em geral do Museu de
Alexandria e o aparato tcnico e de recursos naturais das demais conquistas romanas, desde as

38 WHITE, op. cit., p. 55.

42

tcnicas da metalurgia celta at o volume de terras disponveis para a produo, alm de


animais existentes e criados nestas mesmas fazendas, compunham o conjunto de foras
produtivas do Imprio Romano e exprimiam o grau mximo de desenvolvimento econmico
alcanado na Antiguidade. A circulao de mercadorias, ideias e tcnicas possibilitou que
algumas conquistas da cincia, antes restritas a um mbito local, viessem a assumir um carter
universal. Talvez muitas das descobertas da Antiguidade clssica sequer chegassem a ser
conhecidas por ns, se no fosse a sua difuso, fruto da integrao de realidades isoladas num
imprio universal. Isto no deve, no entanto, obscurecer os fatores que determinaram os
limites tecnolgicos do Mundo Antigo, como o pensamento aristocrtico e sua noo de
liberdade que se distanciava totalmente do trabalho manual e da aplicao da teoria s
tcnicas que estivessem ligadas produo, e o paradigma escravista, sendo a escravido,
seno quantitativamente absoluta, pois coexistia na realidade do mundo do trabalho com o
trabalho livre e outras formas de trabalho dependente, o paradigma predominante em toda a
representao do trabalho manual, no sistema social e mental dos grupos dominantes,
influenciando a sociedade como um todo, num desprezo de toda forma de trabalho
dependente e na inferiorizao do trabalho manual frente o trabalho intelectual e as atividades
cvicas da poltica e da guerra. Se por um lado errneo falar em uma ausncia de mquinas
na Antiguidade grecorromana tendo havido no s invenes, como tambm sua difuso
atravs de publicaes, migraes, do comrcio e da guerra , temos de encarar um
importante obstculo cultural ao progresso cientfico no campo da produo e na inovao
tecnolgica, que, muitas vezes, quando ocorria, era deixada de lado, sem que se utilizassem os
recursos necessrios para o empreendimento, at pela possibilidade de se contar com uma
grande quantidade de fora de trabalho humana, com a difuso da escravido, gerando, ao
mesmo tempo, uma recusa ao trabalho dos livres e sua rejeio tambm no plano mental. Este
crculo vicioso representou um srio entrave para o desenvolvimento das foras produtivas. A
isso, podemos acrescentar o fato de que a aristocracia, ao contrrio da moderna burguesia, no
se preocupava em reinvestir a riqueza acumulada, gastando os lucros advindos da produo e
do comrcio no luxo, nas obras (evergetismo) e nas festas das cidades. Arquimedes foi uma
das excees do Mundo Antigo. Ele utilizou suas invenes contra os romanos, durante as
Guerras Pnicas, na defesa da cidade de Siracusa. O poder aristocrtico permitiu
humanidade alcanar as mais magnficas produes de que o intelecto humano seria capaz
numa sociedade de baixo nvel tecnolgico, de tipo pr-industrial, mas tambm significou um
entrave para o progresso tcnico, na medida em que nutria uma mentalidade marcadamente
desinteressada na produo, salvo alguns poucos intelectuais que resolveram se debruar

43

sobre o problema da administrao dos negcios privados e referentes organizao do


trabalho numa unidade produtiva, como Cato, por exemplo. possvel relacionar, tambm
neste caso, a vitria da alternativa aristocrtica da monarquia militar com a tomada de uma
direo que conduzia inevitavelmente catstrofe, com a queda do Imprio Romano no fim
do caminho, mas que contou com a falta de estmulo para a inovao durante todo o processo.
Se o fim das guerras de conquista representou uma das causas da crise do escravismo antigo,
pois era atravs da guerra, principalmente, que os escravos eram adquiridos no volume
requerido pelo regime imperial romano, outra consequncia grave que pode ser por ns
sugerida, tomando por base o que discutimos anteriormente, o esgotamento desta forma de
avano econmico e tecnolgico por meio de sua difuso ao longo de um territrio que vai se
expandindo por meio da conquista. O fim das guerras de conquista representou tambm o fim
de um modelo de desenvolvimento tcnico, econmico e social, fundamentado na guerra. As
guerras de rapina sustentavam Roma em sua essncia, na dinmica mais profunda de seu
sistema poltico e econmico. O saque de riquezas, de terras, de escravos e de cincias
garantiu a Roma todo o seu esplendor. O trmino desta onda de saques determinou igualmente
o seu declnio. Isso e o pensamento aristocrtico, com sua averso ao trabalho manual,
verdadeira fonte das riquezas da Antiguidade, desfrutada pelos senadores, generais e filsofos.
Uma revoluo municipal que democratizasse a Itlia e restabelecesse o campesinato, poltica
e economicamente, que desse um espao na poltica para as camadas mdias italianas e que
restaurasse o papel poltico e militar da cidadania romana, talvez impedisse o
desenvolvimento conservador aristocrtico e exercesse uma forte influncia num
desenvolvimento vigoroso e ininterrupto das foras produtivas rumo modernidade, sem os
empecilhos mentais e sociais vigentes nos ltimos sculos da Antiguidade; mas tal opo foi
derrotada.

4 O ECO DAS FONTES

Por meio dos textos dos escritores antigos, podemos penetrar na sua viso de mundo.
As obras de Diodoro, Plutarco ou Apiano so marcadas pela ideologia da classe dominante
romana. A imagem dos escravos projetada por eles expressa o ponto de vista de sua classe.
Isso no invalida, de maneira alguma, o recurso interpretao e anlise destas fontes para a
compreenso do fenmeno em questo. Pretendemos exatamente extrair destes textos os

44

elementos que nos permitam construir uma imagem o mais prxima possvel da realidade
objetiva. Podemos aproveitar os relatos destes intelectuais orgnicos da aristocracia romana
com a finalidade de perceber o impacto que as lutas dos escravos tiveram na psicologia da
classe dominante. Este precisamente o caso do relato de Plutarco que deu origem nossa
hiptese.
A atualidade deste debate e a atrao exercida por estas fontes e tema ainda hoje so
impressionantes. Os textos bem escritos e que expressam com tanta clareza a histria romana
na perspectiva da nobilitas com certeza fazem ecoar ainda hoje as palavras que chegaram
desse modo at ns, oferecendo a oportunidade de se entender um captulo to decisivo e
extraordinrio da histria da humanidade. Junto do brado aristocrtico pode-se notar ressoar o
grito dos milhes de oprimidos, quase inaudvel, e, sem dvida, fragmentado. A imagem dos
vencidos aparece desbotada, borrada, mas ainda possvel ver as cores que a compunham e as
formas, mesmo desfiguradas, de um quadro permanentemente incompleto.
No que diz respeito aos escritores que produziram os relatos sobre as revoltas da
Siclia e de Esprtaco, temos que as suas obras foram escritas num momento posterior ao das
prprias revoltas. No caso da revolta de Esprtaco, os relatos foram produzidos j no perodo
do Principado. Conhecendo os referidos autores (Apiano, Plutarco e Diodoro) possvel
entender mais facilmente a forma como os textos foram escritos e o seu contedo. Apiano era
um grego de Alexandria e um cidado romano que escreveu seus textos no sculo II d.C.
Plutarco foi outro intelectual grego, de Queroneia, viveu entre a segunda metade do sculo I
d.C e a primeira metade do sculo II d.C. Ele foi sacerdote de Apolo em Delfos e era de
tendncia filosfica platonista. Diodoro da Siclia escreveu sobre a revolta de escravos
liderada por Euno no sculo I a.C, um sculo depois do acontecimento daquela revolta.
Mesmo que no tenha sido a nica perspectiva adotada pela classe dominante romana,
o paradigma da escravido natural de Aristteles tinha a sua fora, na medida em que este
filsofo produzira uma teoria mais acabada e sistematizada do que qualquer outra. Aristteles
foi um dos maiores filsofos da Grcia antiga, o aluno mais brilhante de Plato e o preceptor
de Alexandre, o Grande. Assim como Aristteles, Cato outro autor importante para
compreendermos uma das vises existentes e possveis acerca dos escravos e da escravido na
Antiguidade e, por isso, ser, mesmo que de forma sumria, exposta a sua viso sobre a
melhor maneira de se conduzir de modo lucrativo as fazendas e de como se comandar o
trabalho dos escravos, alm da percepo dos mesmos como simples mercadorias. Cato
(234-149 a.C.) passou sua juventude na fazenda de seu pai em Sabina e escreveu mais tarde

45

um importante tratado sobre como se conduzir uma fazenda e dirigir o trabalho dos escravos
na lavoura o De Agri Cultura e lutou na Segunda Guerra Pnica. Sem sombra de dvida,
podemos afirmar que a sua experincia de vida ajudou a moldar a sua concepo sobre os
escravos. Estes dois autores apresentam concepes mais rgidas sobre a relao homem livre
e escravo, produto de seu tempo a Grcia do sculo IV a.C. e a Repblica romana dos
sculos III e II a.C.
A nossa hiptese de trabalho, importante destacar, brotou da prpria anlise das
fontes, especialmente com a leitura do relato de Plutarco, que lanou luz sobre um problema
fundamental: os escravos eram desumanizados pela ideologia escravista. Mas em sua luta eles
enfrentaram homens livres romanos como iguais, com coragem, inteligncia e destreza,
qualidades tipicamente humanas. E manifestaram um valor moral elevado, demonstrando que
escravos, que eram inferiorizados no discurso oficial e na prtica sociais, podiam expressar o
melhor daquilo que eram consideradas como virtudes pelos romanos. Foi esta constatao que
norteou toda a nossa pesquisa.
Partimos de uma premissa: a de que a ideologia escravista, tal como havia sido
formulada por Aristteles, perdeu sua eficcia enquanto instrumento de dominao dos
proprietrios sobre os escravos e enquanto instrumento de coeso social. Com isso, as ideias
de Sneca sobre a humanidade dos escravos ganhariam relevo enquanto discurso integrante de
uma nova forma de dominao social, como parte do conjunto de novos instrumentos
poltico-ideolgicos desenvolvidos pela aristocracia romana, no regime do Principado, para
assegurar o seu domnio de classe. Na verdade, a classe dominante romana j expressava
anteriormente, em muitos casos, uma viso distinta daquela exposta de maneira rgida pelo
discurso aristotlico; e na outra ponta, talvez o discurso estico tenha sido um dos mais
radicais no reconhecimento da humanidade dos escravos mesmo que no propusesse o fim
da escravido, coisa que no estava colocada na Antiguidade contando com a adeso de
alguns importantes membros da aristocracia romana, mas no todos. De qualquer forma, a
ecloso de revoltas de escravos daquela magnitude, na proporo das revoltas de Esprtaco e
de Euno, no poderiam passar despercebidas. De fato, as rebelies servis foraram a classe
dominante romana a uma reformulao de sua prtica e de seu discurso. No havia como estes
acontecimentos no produzirem uma fissura no paradigma escravista republicano e realarem
ainda mais a ambiguidade do discurso escravista, manifestada de maneira muito clara nos
escritos de Plutarco e de Apiano. , portanto, da pena de Plutarco que nasce a possibilidade de

46

crtica ao discurso escravista, partindo do prprio discurso de sustentao dessa mesma


ideologia. Cito agora o fragmento que nos levou a essas concluses:

Esta foi a mais dura batalha de todas. Ele (Crasso) matou doze mil e trezentos, e
apenas dois deles foram encontrados com ferimentos nas costas: todos os outros ficaram
firmes em seus postos e morreram combatendo os romanos. (Plutarco, Crasso,

Ch.11.3)39

Aqui podemos localizar o impacto do levante de escravos no discurso da classe


dominante, a contradio entre o discurso ideolgico e a realidade e o quanto estas revoltas
colocaram em xeque a prpria ideologia escravista, cujo discurso oficial propagava a
inferioridade dos escravos frente aos homens livres, uma inferioridade natural. No entanto,
Plutarco deixa escapar nesta passagem um comentrio que s refora a nossa opinio sobre o
fato de que a classe dominante j percebia a humanidade dos escravos e os prprios homens
escravizados passavam a confiar mais em suas capacidades. A justificao ideolgica e
jurdica da escravido estava baseada no fato de ser considerado o escravo uma propriedade, o
que, sem dvida, continuou a acontecer ao longo de todo o regime imperial. Alm disso, a
alegao de uma suposta inferioridade natural daqueles que eram escravos em relao aos
homens juridicamente livres funcionava como um importante mecanismo de dominao
poltico-ideolgica, que atuava junto com a represso violenta e permanente sobre todos os
homens que eram propriedade de um senhor. Neste sentido, uma situao contraditria em
que o escravo era visto e de fato era ao mesmo tempo como ser humano e propriedade
permaneceu. Mas a manifestao de sua humanidade e de qualidades to elevadas para o
conjunto da sociedade, para alm do mbito individual, naturalmente produziria fissuras no
discurso oficial e sua consequente reformulao. O fato dos escravos rebeldes terem lutado
com uma incontestvel coragem e mesmo destemor nesta batalha, tendo apenas dois de mais
de doze mil tentado fugir, era uma prova de que a realidade objetiva e a ideologia da classe
dominante divergiam uma da outra de tal modo que at os senhores escravistas poderiam
duvidar de suas crenas mais firmemente aliceradas e profundamente enraizadas em seu
esprito. Tornava-se impossvel, do ponto de vista de um discurso racional, mesmo que

39 Apud WIEDEMANN, Greek and Roman Slavery, op. cit. p. 219.

47

parcial, mesmo que apresentando um ponto de vista de uma classe sendo este ponto de
vista, o da classe dominante e o seu discurso, aquele que coesiona toda a sociedade e tem por
objetivo dirigir a ao e o pensamento tambm das demais classes sociais, legitimando o seu
domnio sustentar a velha concepo aristotlica da escravido natural, por exemplo. O
discurso dominante sofrera uma fissura e era preciso reinvent-lo, recicl-lo e reafirmar os
princpios e pressupostos da nobilitas com base em outros instrumentos mentais e categorias
tericas mais eficazes e lgicas nesta nova situao aberta.
A luta de classes na Roma antiga foi, principalmente, a luta entre ricos e pobres,
patrcios e plebeus, nobreza versus massas urbanas e camponesas e a luta poltica entre
optimates e populares, setores divergentes da prpria classe dominante, e uma luta que era,
em suma, protagonizada pelos homens livres. Apesar disso, a luta de classes entre senhores e
escravos no foi inexistente e a Primeira Revolta de Escravos da Siclia inaugura uma nova
fase neste conflito social, abre uma nova etapa na luta de classes da Roma antiga. Esta
rebelio escrava, ao mesmo tempo, representava o ponto culminante de um processo de
resistncia e luta que vinha se intensificando, num contexto de cada vez mais instabilidade
poltica e social, sendo, portanto, um dos inmeros atos que compuseram o eplogo de uma
etapa da luta de classes na Roma antiga, durante a fase final do perodo republicano; e o
princpio de uma nova fase de grandes lutas, de grandes revoltas, que iria de 135 a.C. at 71
a.C., entre a primeira metade do sculo II a.C. e a primeira metade do sculo I a.C., isto ,
num espao de tempo de mais de sessenta anos. Foram dcadas de lutas dos escravos. Agora
era a vez dos escravos tambm obterem conquistas na sociedade romana. Este perodo das
grandes revoltas servis se encerra com a guerra de Esprtaco, mas suas consequncias iro
perdurar e influenciar a estrutura do prprio Imprio. Mais adiante, trataremos das reformas
do Principado, mas a principal vitria foi simblica. A adoo do discurso estico por um
setor importante da classe dominante nos primeiros sculos do regime imperial e a posio
mais moderada dos esticos frente escravido, mais compreensiva e humana em relao aos
escravos, bem como a sua pregao de uma relao harmoniosa entre amos e servos,
demonstram uma mudana significativa na forma de se encarar o escravo tambm na esfera
pblica, tanto por parte do Estado quanto no mbito da filosofia e, portanto, da ideologia e do
meio intelectual. A intelectualidade e a burocracia de Estado admitiam que os escravos
deveriam ser respeitados como seres humanos e tratados bem, ressalvando que os mesmos
deviam obedincia aos seus mestres e proprietrios e que qualquer tipo de rebelio seria
severamente condenada, assim como o seriam os maus tratos que os escravos viessem a

48

sofrer. Alm disso, mesmo entre aqueles que no eram adeptos do discurso estico, a distncia
dos senhores de escravos do perodo do Principado para o perodo republicano bastante
ntida. Alis, a crtica esboada pelos prprios autores, responsveis por produzir verdadeiras
crnicas daquelas revoltas, aos senhores do tempo das rebelies servis s seria possvel com
alguma mudana, nem que fosse uma sutil e mesmo pequena inflexo no sentido de uma outra
forma de ver e pensar, distinta da anterior. Mas o que foi realmente significativo foi a
mudana no mbito do Estado. Os proprietrios de escravos da Siclia quando da poca da
revolta de Euno no garantiam o alimento e o vesturio adequados de seus servos, sua
propriedade, e o governo nada fazia quanto a isso. Parece que, neste sentido, o prncipe
passou a cumprir um papel de rbitro destas relaes, no sentido de reconhecerr tambm
alguns direitos aos escravos e, deste modo, evitar novas insurreies.
Devemos agora analisar de forma mais minuciosa o significado histrico e social do
impacto das grandes revoltas servis de Roma e a maneira como posto em relevo no relato de
Plutarco. Ao entrarmos em contato com o trabalho de Gorender, pudemos perceber concluses
bastante semelhantes com aquelas esboadas nesta dissertao, no que se refere aos breves
comentrios feitos pelo historiador citado sobre a escravido e as revoltas dos escravos em
Roma. Ele comea discutindo a contradio inerente condio escrava, que ao mesmo
tempo coisa, por ser uma propriedade, e um ser humano. Os fragmentos a seguir ajudam a
esclarecer este problema:

Na sua condio de propriedade, o escravo uma coisa, um bem objetivo.


Lembrando Aristteles, consideramos nossa propriedade o que est fora de ns e nos pertence.
Nosso corpo, nossas aptides intelectuais, nossa subjetividade no entram no conceito de
nossa propriedade. Mas o escravo, sendo uma propriedade, tambm possui corpo, aptides
intelectuais, subjetividade , em suma, um ser humano. Perder ele o ser humano ao se
tornar propriedade, ao se coisificar?40

E foram os prprios escravos que expressaram essa contradio na realidade, antes


mesmo que isto surgisse na ideologia dominante. Foi a resistncia desses homens escravido
que conquistou para eles, perante os olhos de toda a sociedade, a sua humanidade. A reao
era permanente e no somente nos grandes levantes. A fuga, a destruio do equipamento e
todas as formas de atingir o nvel de produtividade no sentido de sua reduo ou de destruio
40 GORENDER, op. cit., p. 63.

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ou perda de foras produtivas para o senhor configuravam-se em formas de resistncia


escrava. Os assassinatos de senhores, embora mais raros, tambm podiam ocorrer e
colocavam para a aristocracia a necessidade de trat-los no s como coisas, mas tambm
como homens, ao submet-los, inescapavelmente, a uma legislao penal. O autor contesta a
eficcia da ideologia sobre a conscincia do escravo que at poderia ver-se tal como o seu
proprietrio o via, como coisa, como animal, mas no considerava isso o mais provvel nem o
mais corrente. Sobre isso, Gorender afirma:

Casos-limite semelhantes eram possveis, porm no foram o caracterstico do


comportamento dos escravos, em todas as pocas. Seu comportamento e sua conscincia
teriam de transcender a condio de coisa possuda no relacionamento com o senhor e com os
homens livres em geral. E transcendiam, antes de tudo, pelo ato criminoso. O primeiro ato
humano do escravo o crime, desde o atentado contra seu senhor fuga do cativeiro. Em
contrapartida, ao reconhecer a responsabilidade penal dos escravos, a sociedade escravista os
reconhecia como homens: alm de inclu-los no direito das coisas, submetia-os legislao
penal. Essa espcie de reconhecimento tinha, est claro, alto preo. Os escravos sempre
sofreram as penas mais pesadas e infamantes. As mutilaes no s foram previstas pelo
direito romano como tambm pelo Cdigo Filipino portugus e pelas vrias legislaes penais
das colnias americanas, num momento ou noutro, inclusive o Brasil. Mas a pena mais cruel,
justamente por ser uma pena, implicava o reconhecimento de que se punia um ser humano. 41

Desse modo, o reconhecimento da humanidade dos escravos j existia atravs das


suas punies pela legislao penal. Ao responderem por atos criminais, ao serem
reconhecidos pelo direito, mesmo que fosse pelo direito penal, respondendo pelos seus atos e
no apenas sujeitos quilo que outros lhe fizessem ou provocassem, ficava evidente a sua
humanidade. Futuramente, no regime do Principado, seriam reconhecidos tambm certos
direitos civis e sociais. Mas estes direitos foram conquistados e a admisso pblica do seu
carter humano tambm. O autor destaca este fato no seguinte trecho:

O escravo conseguiu o reconhecimento como sujeito de delito e tambm como


objeto de delito. Sua vida teve de ser protegida ao menos na letra da lei, julgada assim um
bem pessoal e no apenas a qualidade objetiva de coisa semovente. A evoluo do direito
romano , neste particular, tpica. Durante o perodo republicano, o senhor romano dispunha
da vida do escravo, podendo tortur-lo e mat-lo impunemente ao seu arbtrio (jus vitae et
necis). Sneca, na sua obra Da Ira, contestou o direito de vida e morte sobre o escravo, sendo
de supor que o estoicismo haja dado forma ideolgica, no seio da classe dominante romana,
repercusso das reaes dos prprios escravos, sobretudo os grandes levantes na Siclia e na
41 Idem, ibidem, p. 65.

50

Itlia continental, nos dois ltimos sculos da Repblica. Com Antonino Pio, a legislao do
Imprio considerou crime de homicdio a morte, sem justo motivo, do escravo prprio, como
j o era a do escravo alheio pela Lei Cornlia. O escravo tambm ganhou o direito de
reclamar a mudana de senhor no caso de sevcias. A legislao imperial proibiu o envio de
escravos arena do circo para combate contra feras.42

Neste ponto crucial, a opinio de Jacob Gorender conflui com as nossas constataes.
Pretendemos desenvolver esta hiptese junto com uma hiptese terica em que analisada a
razo essencial para que estas revoltas no tenham se tornado revolues, pelo menos no no
sentido de revolues sociais. O conceito de revoluo tem sido encarado quase somente do
ponto de vista da revoluo social, mas este no o nico tipo de revoluo possvel. Em que
medida uma ou outra dessas revoltas no se configura numa revoluo poltica, por exemplo?
Esmiuar o problema e desvelar todos os limites e possibilidades que estiveram colocadas
para estes homens e as histrias possveis e como o fato da possibilidade de vitria polticomilitar destes escravos, mesmo que de forma parcial, influenciou no curso dos
acontecimentos. Qual foi a relao dessas rebelies com o fenmeno do cesarismo e o
advento do Principado?
Snia Regina Rebel de Arajo trata do impacto concreto das revoltas da Siclia e de
Esprtaco sobre a organizao poltica e social de Roma e de sua influncia no surgimento do
regime cesarista:

(...) o Imprio foi uma ditadura militar organizada para trazer ordem e pacificao
sociais. Tratava-se, ento, de exigir moderao dos senhores relativamente aos subalternos,
de um lado, e obedincia destes aos superiores, inclusive no que concerne a esposas e filhos,
da a Lex Julia De Adulteris Coercendis,(...). Quanto aos escravos, os imperadores, inclusive
Augusto, deram-se conta do perigo representado por estes, tanto pelo seu nmero expressivo,
quanto no que tange s revoltas do perodo republicano. Tentou-se evitar, portanto, que
houvesse exacerbao do tratamento conferido aos servos, editando os imperadores, uma
srie de leis contendo e proibindo abusos e castigos excessivos dos escravos pelos senhores.43

Isto demonstra de forma patente a relao entre estes movimentos de rebelio armada
das classes subalternas e a criao de um Estado rbitro das relaes sociais e dos conflitos
42 GORENDER, op. cit., p. 66.

43ARAJO, op. cit., pp.160-161.

51

polticos e sociais. Enfim, um ltimo exemplo de uma leitura das fontes sobre as revoltas feita
a partir de uma perspectiva marxista e que enfatiza o papel desses movimentos na mudana
ocorrida na mentalidade da classe dominante e na reformulao de seu discurso social pode
ser encontrada ainda em Arajo, numa afirmao que se assemelha a de Gorender e corrobora
com a hiptese defendida nesta dissertao:

A dicotomia da viso dos romanos sobre eles seres humanos e coisas permeava
todas as relaes sociais que envolvessem escravos: uma contradio essencial a este modo
de produo, e tal contradio o fulcro da minha hiptese geral de trabalho.
E no entanto, os escravos resistiam como podiam, tentando mudar sua posio
individual de cativos. Os tipos de resistncia variaram muitssimo de acordo com as
circunstncias, mas quero deixar claro que acredito firmemente que sua resistncia atingiu
duramente os senhores, em sua crena na inferioridade do escravo e em seu patrimnio
tambm, por motivos diversos fugas, suicdio de escravos, sabotagem na ameaa pblica
que esta resistncia sempre representou, com maior ou menor intensidade ao Estado
Romano.44

Assim, o eco das fontes chega at ns e o que podemos ouvir de realmente relevante
que aquilo que era afirmado na teoria pelos representantes e intelectuais da nobreza no
correspondia exatamente realidade objetiva, com o reconhecimento da humanidade dos
escravos sendo declarado abertamente, mesmo quando os escritos tentavam neg-lo.
Ao contrrio dos escritores do perodo do Principado, durante o perodo republicano
tanto o tratamento conferido na prtica aos escravos quanto o discurso ideolgico partiam
mesmo havendo excees da premissa de que o escravo era semelhante a um animal e sua
nica funo, a nica razo de sua existncia era proporcionar lucro e bem-estar ao seu amo.
Cato era o porta-voz desta tendncia dominante na Repblica. O escravo, para ele, era, antes
de mais nada, uma propriedade; e um instrumento de produo destinado a retirar do solo a
riqueza do proprietrio rural. Mas, para isso, a fazenda deveria ter boas condies estruturais
de clima, bom solo e numa localizao favorvel para a comercializao daquilo que
produzido. Uma boa terra e bem trabalhada seria fonte de grande prosperidade ao senhor
sempre. O papel a ser cumprido pelo vilicus tambm era fundamental. O que era esperado do
capataz foi descrito por Cato para que servisse de modelo para o bom andamento do trabalho
na lavoura e para que se assegurasse o cumprimento das tarefas que cabiam aos escravos:

44 ARAJO, op. cit., p.196.

52

Os deveres do capataz so os seguintes: - Ele deve demonstrar uma boa


administrao. Os dias de festas (religiosas) devem ser guardados.(...) Ele deve resolver as
brigas entre os escravos; e se algum cometer uma infrao ele deve puni-lo apropriadamente
de acordo com a falta. Ele deve observar para que os servos estejam bem abastecidos, e para
que eles no sofram de frio ou fome. Deixo que os mantenha (aos escravos) ocupados com o
seu trabalho. (...)45

E a lista de obrigaes do uillicus seguem, sempre com o alerta de que deveria estar
absolutamente submetido s ordens do senhor, estando apenas a administrar em seu lugar o
andamento do trabalho. Na prtica, quem conduzia os trabalhadores plantao, os punia
diante das faltas e garantia o sucesso da produo era o capataz. A aristocracia romana era
absentesta e estava muito mais envolvida com os negcios e a vida na cidade, com a poltica
e a guerra do que com as questes puramente econmicas. Na sua ausncia, um escravo que
estava acima dos outros e que era o seu brao direito, o seu supervisor, cumpria o conjunto de
afazeres relativos terra e aos escravos. Este escravo, no entanto, tambm precisava ser
vigiado e mantido sob a mesma disciplina, sendo este um dever do proprietrio. A sade e
bem-estar dos demais servos e o arbitramento das querelas existentes entre eles tambm eram
responsabilidades do capataz.
Em Joly a viso do escravo para Cato destacada de forma bastante precisa,
evidenciando a preponderncia do carter do escravo enquanto propriedade sobre todos os
outros aspectos para o referido autor:

O senhor (pater familias)...quando for informado, deve fazer as contas dos


trabalhos e da dirias; se o trabalho no aparece, se o capataz diz que fez o melhor possvel,
mas os escravos estiveram doentes, fez mau tempo, que alguns escravos fugiram, que fez
trabalho obrigatrio para o Estado, quando tiver dito todas estas coisas, faa-o voltar s
contas dos trabalhos e das dirias... Quando tiver sabido, corretamente, o que deve ainda ser
feito, mande-as fazer, checar as contas de prata e trigo e do que foi preparado como forragem,
as contas do vinho e do azeite, o que se vendeu, do que se obteve, do que sobrou, do que h
ainda venda, que os emprstimos feitos sejam cobrados; o que sobrou deve ser mostrado; se
falta qualquer coisa, compre; se sobrou, venda; os trabalhos a serem arrendados devem ser
arrendados; deve deixar por escrito quais trabalhos devem ser feitos por locao e quais no.
Examine o gado, faa um leilo: venda o azeite, se o preo for bom, vinho, o trigo que sobrou,
os bois velhos, gado em mau estado, l, couro, carro velho, ferramentas velhas, os escravos
velhos ou doentes e tudo o que sobrar, venda; o senhor deve ser um vendedor e no um
comprador. (Cato, De Agri Cultura, 2, 1-7)46

45 CATO, De Agri Cultura, 5, 2, apud HOOPER, op. cit., p.13.

53

Em primeiro lugar, fica claro que para Cato, em ltima instncia, a responsabilidade
pela prosperidade dos negcios do prprio proprietrio. Cabe a ele verificar cada dado, cada
trabalho que foi executado ou que deixou de ser executado e porqu. O capataz deve
comandar os demais escravos, mas o senhor deve comandar o capataz, que deve a ele total
obedincia. O senhor deve fiscalizar o trabalho do capataz. O mesmo deve ser cobrado,
prestar contas quanto sua tarefa de superviso da fazenda e dos servos. Quanto aos escravos
que trabalham diretamente na produo, o proprietrio deve encar-los como simples
mercadorias. Os escravos velhos e doentes devem ser descartados e vendidos. O senhor deve
se livrar daqueles servos que no forem mais eficientes e, portanto, lucrativos. Os escravos
so comparados no texto s ferramentas e ao gado. Os escravos velhos vm logo depois das
ferramentas velhas e assim como os bois velhos e o gado em mau estado devem ser
descartados. assim que a aristocracia romana do perodo republicano, ou uma poro
importante dela, enxergava aqueles seres humanos escravizados. Eles eram comparados a
instrumentos e animais. No texto, eles aparecem ao lado de vrias outras mercadorias, ao lado
de tudo aquilo que pode ser comprado e vendido. Eles eram parte de um conjunto de coisas
que s existiam para dar lucro ao proprietrio, para lhe garantir riqueza, e o mesmo deveria
fazer de tudo para evitar prejuzos.
Desse modo, podemos perceber que Cato fornecia o modelo de proprietrio de terras
e intelectual da aristocracia romana de sua poca, sob a Repblica. Retomando aquilo que
afirmamos no incio: sero as grandes revoltas servis que foraro a classe dominante a rever
suas prticas e seu discurso. Como vimos acima, Sneca nos fornece o exemplo maior do
novo discurso social inaugurado no regime imperial, como parte constitutiva de um novo
conjunto de mecanismos de controle social, novos mecanismos poltico-ideolgicos de
dominao. Assim, a aristocracia refora o seu domnio de classe como tambm retoma em
sua plenitude a direo da sociedade atravs do seu ponto de vista de classe, tornando-se no
s classe dominante, mas classe dirigente. Entretanto, teve de abrir mo de conduzir
diretamente o Estado, que passou a ser dirigido pela figura do Csar, o imperador,
assegurando a paz social.

46 Apud

JOLY, op. cit., p.65.

54

5 A LANTERNA DA TEORIA

O empirismo lana a cincia histrica num beco sem sada. Somente por meio da
lanterna da teoria que podemos compreender inteiramente um fenmeno. De qualquer
modo, sempre olhamos para a realidade com uma lente que ajustada de acordo com um
determinado quadro terico. Sendo assim, mesmo que nos proclamemos avessos a qualquer
teoria ou elaborao a priori de uma hiptese, como condio necessria para a pesquisa,
ns sempre encaramos a vida a partir de uma perspectiva, de uma viso de mundo, que no ,
de modo algum, individual, determinada pelas fontes ou pelo mtodo simplesmente, mas que
social, de classe, ideolgica e embasada ou influenciada por uma teoria, qualquer que seja.
A referncia teoria ser permanente em todo este trabalho, permear cada discusso e
fundamentar os problemas levantados em cada captulo, fornecendo os instrumentos para a
sua soluo. Abordaremos o conceito de classes sociais e de conscincia de classe com a
profundidade possvel num texto como este, trataremos da conceituao das revoltas que so
nosso objeto dentro do paradigma marxista e investigaremos o conceito de revoluo. Mas
primeiro, devemos comear por definir se os escravos antigos eram ou no uma classe social.
Para isso, precisamos definir o que, do ponto de vista do marxismo, aqui adotado, uma classe
social.
Ciro Cardoso, Hctor Prez e Theotnio dos Santos so os autores que utilizaremos
para abrir este debate. Ciro Flamarion Cardoso e Hctor Prez apresentam, em seu livro El
concepto de clases sociales, a definio de classes sociais elaborada por Lnin, segundo a
qual as classes sociais so grupos reais, concretos sendo critrios fundamentais para distinguilas: o lugar ocupado num processo de produo dado; a relao entre os meios de produo e
o papel na organizao social do trabalho, que depende das relaes de produo, da diviso
social do trabalho e do nvel e das formas de desenvolvimento das foras produtivas,
podendo-se concluir a partir da que s tem sentido falar em classes sociais no contexto de
modos de produo historicamente determinados; outro critrio se refere distribuio,
como os meios de obteno e o volume da parte da riqueza social de que dispe cada classe;
por fim, o conceito de classes sociais aparece como inseparvel do conceito de explorao do
homem pelo homem.47

47 CARDOSO, Ciro Flamarion Santana; PREZ, Hctor. El Concepto de Classes Sociales, op. cit., pp. 14-15.

55

Assim, impossvel pensar classes sociais sem relacionar este conceito com o
conceito de explorao. A existncia de proprietrios e de no-proprietrios, de dominadores e
de dominados, de opressores e oprimidos, de exploradores e de explorados, revela-nos que as
classes sempre se constituem numa relao de antagonismo, sendo, por isso, o conceito de
classe social indissocivel do conceito de luta de classes. Isto significa, por fim, que no
podemos falar de classe social de forma isolada. Ao falarmos de classe social estamos sempre
falando de uma relao social e de uma relao social de explorao numa determinada
relao de produo. As contradies nem sempre se manifestam de forma aberta em grandes
lutas e revolues. No caso dessa pesquisa, trata-se de uma anlise das grandes rebelies de
escravos na Roma antiga, mas essa contradio tambm poderia muito bem ser encontrada
nas fugas dos escravos ou mesmo na baixa produtividade no trabalho ou destruio de
equipamentos ou o seu mau uso como forma de boicote ou de expresso qualquer de sua
rejeio sua condio de opresso.
Os autores ainda se opem queles estudiosos que, a exemplo de Max Weber, propem
a conceituao da sociedade no num sistema de classes, mas sim de estratificao social,
baseada em critrios como status, poder poltico, etc; ou queles que diferenciam as
sociedades pr-capitalistas da capitalista, afirmando que no havia classes nas sociedades prcapitalistas e sim castas, estados ou ordens. Os autores explicam que, no marxismo, estes no
so conceitos excludentes, por possurem um status terico diferenciado. No marxismo, a
sociedade de classes aparece como produto da desagregao das sociedades comunitrias
primitivas. Os diversos tipos de estratificao social que existiram nas sociedades prcapitalistas sejam castas, estamentos ou ordens, tinham um carter poltico, jurdico ou tnico,
no sendo de forma alguma alternativo a um sistema de classes baseado nas relaes de
produo, mas, sim, complementares e relacionados com ele.
O historiador Ciro Flamarion Cardoso, no que diz respeito ao tema da escravido,
defende que os escravos antigos formavam uma classe social48. Para Ciro Cardoso, no so

48 CARDOSO, Ciro Flamarion. Economia e Sociedade Antigas: Conceitos e debates. In: Sete Olhares sobre a
Antiguidade. Braslia: Editora UNB, 1994, pp. 186-190.

56

classes sociais apenas aquelas que alcanam a conscincia de classe, defendendo, ao


contrrio, assim como foi definido por Marx e Engels, a existncia de classes em si. Alm
disso, o autor contesta Finley, que argumentava que os escravos no conformavam uma classe
social porque havia uma heterogeneidade muito grande entre eles, sendo mais uma categoria
jurdica, uma ordem. Para Ciro Cardoso, o fato de um nmero significativo e mesmo
majoritrio dos escravos estarem localizados no centro da produo, nas atividades
econmicas fundamentais e na base da riqueza daquelas sociedades e da riqueza e da
reproduo social das suas classes dominantes, determinando a prpria forma e o nvel de
desenvolvimento tcnico daquelas sociedades, sendo a relao fundamental no jogo dialtico
entre as relaes de produo e o desenvolvimento das foras produtivas, um fator
determinante para sua classificao enquanto classe social; os escravos existiam numa relao
de antagonismo com os seus senhores, que se manifestou de forma bastante espordica na
forma de luta aberta, mas ainda assim importante nas revoltas que so objeto desta pesquisa, e
eram a mo-de-obra fixa permanente e que com sua explorao intensiva respondiam pela
maior parte da produo da riqueza social. Ainda em resposta ao argumento de Finley,
podemos acrescentar a utilizao da noo de fraes de classe, como forma de explicar a
heterogeneidade de situaes em que se encontravam os escravos.
Assim, apoiados nas categorias de classe em si e classe para si em Ciro Cardoso e
Theotnio dos Santos, podemos traar uma definio mais clara sobre o conceito de classe
social e porque este conceito aplicvel no caso dos escravos antigos. Vejamos o que Cardoso
diz a respeito:

Deve-se talvez, neste ponto, levantar uma questo importante: o recuo das
interpretaes das sociedades antigas como sociedades de classes no se liga unicamente ao
uso inadequado de tal conceito no passado; nem se deve s a razes polticas e ideolgicas.
Ter sido ainda mais influente nesse sentido a presena, no seio do pensamento marxista
desde o prprio Marx , de uma dicotomia terica no emprego do conceito, o que terminou
levando a uma ciso entre os que s aceitam falar de classes quando se puder detectar uma
clara conscincia de classe e lutas de carter poltico entre as classes (presena de classes
para si formando um sistema antagnico) e outros que seguem Marx e Engels num emprego
mais geral do conceito (constatao da existncia de classes em si ou determinadas
economicamente). Na primeira opo, no pr-capitalismo, unicamente as classes dominantes
chegaram a adquirir conscincia, o que faz com que s sob o capitalismo contemporneo
encontremos sistemas de classes antagnicas em que tambm as classes dominadas possam
desenvolver uma conscincia adequada a seus interesses classistas. Na segunda opo, no
haveria inconveniente em estender a anlise das classes a toda a histria humana ps-tribal,
embora admitindo-se considerveis especificidades aos sistemas pr-capitalistas de classes 49

57

De maneira ainda mais sistemtica e didtica, Theotnio dos Santos expe com
detalhe e exatido o contedo destes conceitos:

Uma classe se define primeiramente pelas relaes ou modos de relaes que


condicionam as possibilidades de ao recprocas entre os homens, dado um determinado
modo de produo. Neste sentido, o conceito de conscincia de classe um conceito puro,
quer dizer, abstrato, terico, no referencivel diretamente a uma ou a algumas conscincias
empricas. Neste nvel, como vimos, podemos definir a conscincia de uma classe como a
representao consciente possvel de seus interesses num dado modo de produo. Os
indivduos que compem ou personificam estas categorias abstratas, quer dizer, que
realizam na prtica estas relaes, no dispem em geral dos meios tericos para representlas em sua conscincia. Representam-nas de modo catico, assistemtico e fragmentrio,
misturado com as idias dominantes em sua sociedade ou naquela em que foram educados. A
sistematizao dessas impresses de um sistema de relaes reais na cabea dos indivduos
forma a psicologia da classe. Na medida em que esta psicologia de classe no expressa a
realidade destas relaes num setor significativo dos indivduos que compem uma classe,
pode-se conceituar estes agregados humanos como uma classe em si.
Contudo, sero uma classe para si numa situao social em que tomem conscincia
destas relaes sob a forma de uma ideologia poltica que defina claramente as condies
reais de sua existncia e a contradio entre elas e seus interesses como classe social, bem
como lhe proponha os meios de superar esta situao. Neste momento passa a se constituir
uma classe para si, quer dizer, uma classe capaz de elaborar um projeto de existncia social
adequado a seus interesses de classe.50

Cabe, uma vez mais, relacionar esta discusso conceitual com o caso concreto que o
objeto de nosso estudo. Os escravos antigos formavam uma classe na medida em que
compartilhavam das mesmas condies de existncia, tinham em sua maioria a mesma
localizao na produo e na pirmide social; ou seja, no seu caso, estavam na base da
produo da riqueza social e da reproduo social das classes dominantes, da manuteno e
ampliao de sua riqueza, poder e modo de vida. Neste sentido, eram uma classe em si, que
chegou a desenvolver um certo grau de conscincia, pois conseguiu se organizar de forma
independente, autnoma em relao classe dominante, enquanto classe, levando em
49 CARDOSO, Ciro Flamarion. Economia e Sociedade Antigas: Conceitos e debates. In: Sete Olhares sobre a
Antiguidade, op. cit., p. 187.

50 SANTOS, Theotnio. Conceito de Classes Sociais. Traduo de Orlando dos Reis. 2. ed. Petrpolis: Editora
Vozes S.A., 1983, pp.30-31.

58

considerao todos os elementos religiosos, culturais e polticos imbricados nessa relao,


mas, ainda assim, expressando o seu antagonismo em relao aos senhores e indo para a luta
aberta contra os mesmos, mesmo que raramente e de forma concentrada no tempo, em
especial nos momentos de crise entre as fraes de classe, as ordens e as faces da classe
dominante; no entanto, jamais conseguiram desenvolver uma genuna conscincia de classe,
com um projeto alternativo de sociedade, uma soluo para a crise do sistema escravista e sua
substituio por outro modo de produo e, nesse sentido, no conformavam uma classe, uma
classe para si.
Uma tarefa importante que est colocada para ns a de relacionar o nvel de
conscincia de classe alcanado pelos escravos antigos e a estrutura social na qual estavam
integrados, investigando a conscincia possvel das classes sociais subalternas na Antiguidade
e dos escravos em particular. Isto no significa deduzir inteiramente a conscincia de classe da
estrutura social. Na verdade, trataremos aqui precisamente da observao dos movimentos
reais das classes e do desenvolvimento da luta de classes e em que medida estes movimentos
reais confluem ou divergem da construo terica que a eles se referem. No caso destas
revoltas, podemos perceber que em determinados momentos, as classes exploradas
ultrapassam os limites estruturais existentes; seus movimentos transbordam as margens da
sociedade em questo. Mas no fim, logo desguam num destino que, se no podemos dizer
preestabelecido, pois a sua prpria luta demonstrou a inexistncia de resultados definidos a
priori quando se trata de luta de classes, podemos dizer que era o mais previsvel e lgico,
tendo em vista os mecanismos, possibilidades e limites delimitados pela sociedade escravista
antiga.
Numa tentativa de interpretao das lutas de classes na Antiguidade grecorromana,
torna-se til a utilizao dos conceitos de contradio fundamental e contradio principal. A
oposio entre senhores e escravos era a contradio fundamental da sociedade romana. No
entanto, as lutas polticas ocorridas na Repblica romana foram basicamente entre homens
livres. Na medida em que a contradio fundamental de uma sociedade correspondente ao
carter especfico de um determinado modo de produo e que a mesma manifesta-se no nvel
das foras produtivas, a resistncia dos escravos como grupo social a seus senhores coloca
limites ao progresso econmico e social e aos rendimentos da aristocracia. Isso porque,

conforme Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet 51 argumentam, os escravos


constituem as foras produtivas essenciais no contexto tcnico-econmico da Grcia
antiga por eles estudada, mas que podemos muito bem aplicar para o perodo de fins da
Repblica romana, pois, tal como o contexto que o foco dos respectivos autores, aqui
tambm temos uma sociedade em que o emprego da mo-de-obra servil generalizado
(muito mais, na verdade, do que na Grcia clssica) e o progresso tcnico, limitado,
sendo a escravido e a sua extenso permanente o principal meio de desenvolvimento das
foras produtivas. Assim, no difcil compreender a catstrofe romana, quando a
expanso do imprio chega ao seu limite e o afluxo de escravos reduz-se drasticamente.
Apesar disso, a contradio principal, ou seja, aquela existente entre os grupos sociais
que se confrontaram efetivamente num dado momento da histria, foi sempre entre os
homens livres e pobres e os grupos aristocrticos dominantes. Para Vernant e VidalNaquet, isto tem uma explicao marxista, mas correspondente ao momento histrico
analisado, anterior formulao da teoria marxista e que, portanto, opera com sua prpria
lgica, a de uma sociedade na qual a oposio propriamente de classes ainda no se
manifestava de modo puramente econmico. Se pensarmos no papel que a poltica e a
guerra cumpriam no desenvolvimento econmico e no processo social e tcnico na Roma
antiga, veremos que perfeitamente possvel uma separao entre as contradies
principal e fundamental, no sendo capaz aquela sociedade de apresentar uma sada, uma
via alternativa de desenvolvimento, exceto em raros momentos histricos, sem dvida
extraordinrios:

(...)A oposio entre escravos e seus proprietrios jamais aparece como a


contradio principal. Nas lutas sociais e polticas durante as quais se enfrentam com
tamanha violncia os homens daquela poca, os escravos jamais aparecem enquanto
grupo social homogneo, jamais agem como uma classe desempenhando um papel
prprio na srie de conflitos que formam a trama da histria das cidades. Esse fato no
surpreendente porque as lutas de classe se travam e desenvolvem num contexto
sociopoltico do qual, por definio, os escravos esto excludos.(...) 52

51 VERNANT, Jean-Pierre; VIDAL-NAQUET, Pierre. Trabalho e Escravido na Grcia Antiga.Traduo:


Marina Appenzeller. Campinas, SP: Papirus, 1989, pp. 84-85.

Considerando-se que as contradies de um sistema social podem se situar num


mesmo nvel ou num nvel diferente em uma determinada formao econmico-social,
fica bastante claro que, no caso da Antiguidade clssica, trata-se da segunda opo. A
estrutura social vigente delimitava as possibilidades da luta dos escravos antigos, sendo
impossvel uma interpretao marxista nos marcos daquela que feita acerca das
sociedades capitalistas contemporneas e do papel verdadeiramente revolucionrio que o
proletariado capaz de cumprir, no sentido de construir uma nova sociedade, alternativa
velha ordem social:

(...) Para se convencer de que a situao no mundo antigo diferente e de que


esse esquema terico, em sua simplicidade, no se aplica tal como s sociedades
antigas, basta observar que a classe dos escravos no traz nela qualquer nova
sociedade. A vitria poltica dos escravos, se tal hiptese tiver algum sentido, no teria
colocado em questo as relaes de produo, nem modificado as formas de
propriedade. Todos os historiadores concordam em reconhecer que, justamente nos
locais onde as revoltas dos escravos assumiram um carter de luta poltica ou militar
organizada (algo que jamais ocorreu na Grcia), elas continuavam sem perspectivas e
no poderiam resultar numa transformao do sistema social de produo. Mas, se no
podiam resultar numa mudana da sociedade, porque as contradies que,
desenvolvendo-se em profundidade, opunham as foras produtivas s relaes de
produo e colocariam em questo sua correspondncia necessria, no estavam
totalmente expressas no antagonismo dos escravos e de seus proprietrios ao nvel das
lutas sociais e polticas. 53

6 A ARMA DO MTODO

No caso das sociedades antigas, no dispomos de estatsticas suficientes, as cifras


disponveis so quase sempre, alm de poucas, pouco confiveis, necessitando-se quase
sempre de outros mtodos e mesmo do apoio de cincias, como a arqueologia, para que
52 VERNANT e VIDAL-NAQUET, op. cit., p.83.

53 Idem, ibidem, p. 69.

possamos ter uma viso mais correta dos fenmenos. Neste trabalho, especificamente,
trata-se de um fenmeno que ser analisado num perodo pr-estatstico. Ainda preciso
considerar que na histria no dispomos da possibilidade de realizar experincias como
nas cincias naturais. A maneira que temos de compensar e possibilitar uma aproximao
com o modelo lgico da experincia atravs do mtodo comparativo. No estudo das
sociedades escravistas, isto se torna ainda mais necessrio e til.
O maior perigo, neste mtodo, o de cometer anacronismos, principalmente
quando se comparam sociedades distintas no tempo e no espao e estruturalmente
diferentes. Existe outro problema, que se refere prpria verificao. Na presente
pesquisa, o risco de extrapolao daquilo que podemos realmente inferir a respeito dos
processos estudados real, diante da falta de dados, da escassez de fontes. A aferio
adequada das fontes disponveis condio bsica para a realizao de um trabalho
verdadeiramente cientfico sobre o tema. Desse modo, ser o carter dos testemunhos
conservados e que nos foram legados que determinaro a verificao possvel, no se
devendo preencher arbitrariamente as lacunas existentes, mas sendo preciso utilizar, no
entanto, todos os instrumentos disponveis para superar os obstculos impostos por uma
documentao insuficiente.
Outro mtodo que dever ser empregado nesta dissertao uma contribuio de
Lucien Goldmann. Com o seu mtodo estruturalista gentico, poderemos manejar de
maneira mais eficiente os textos dos escritores da classe dominante romana, produtos de
uma poca, de uma sociedade e da viso de mundo de uma classe, tudo isso na pena de
um escritor individual.
A relao dialtica entre foras produtivas e relaes de produo fundamental
enquanto fator explicativo das transformaes sociais, das mudanas e permanncias, das
possibilidades e limites estruturais. O desenvolvimento das foras produtivas determina a
configurao possvel das relaes de produo. As relaes de produo baseadas num
determinado regime de propriedade social estabelecem a forma e os limites das foras
produtivas de uma sociedade dada. O desenvolvimento das foras produtivas se choca
com os limites engendrados pelas relaes de propriedade e de explorao. Mas isso no
tudo para o marxismo. A contradio entre o desenvolvimento das foras produtivas e

as relaes de produo determina a luta de classes em sua forma, extenso e intensidade.


A luta de classes deve ser entendida como outro fator explicativo fundamental das
mudanas sociais, de acordo com a teoria marxista. Pretendemos centrar nossa anlise
no nas aes e sentimentos individuais, mas nas aes e sentimentos coletivos. Portanto,
mesmo quando nossa anlise se basear no texto de um escritor individual, no sero as
suas opinies, impresses e sentimentos pessoais o foco, mas sim, as opinies,
impresses e sentimentos da classe a que pertence; nesse sentido que o mtodo
estruturalista gentico de Lucien Goldmann essencial para a nossa pesquisa. Tambm
no queremos realizar uma biografia de Esprtaco ou de Euno, mas perceber estas
lideranas no contexto histrico e social do qual brotaram e enquanto os elementos de
vanguarda e representantes de uma coletividade, de uma classe social. O que importa
aqui no traar o perfil psicolgico de Esprtaco ou Crasso, mas dos escravos
sublevados e da classe dominante romana, no campo da psicologia social e no estudo das
mentalidades coletivas. Sendo assim, vejamos como Goldmann define o mtodo
estruturalista gentico e sua aplicao:

Neste ponto, o estruturalismo gentico representou uma total mudana de


orientao, sendo precisamente a sua hiptese fundamental a de que o carter coletivo
da criao literria provm do fato de as estruturas do universo da obra serem
homlogas das estruturas mentais de certos grupos sociais, ou estarem em relao
inteligvel com elas, ao passo que no plano dos contedos, isto , da criao de universos
imaginrios regidos por essas estruturas, o escritor possui uma liberdade total. A
utilizao do aspecto imediato de sua experincia individual para criar esses universos
imaginrios , sem dvida, frequente e possvel, mas de maneira alguma essencial, e sua
elucidao constitui uma tarefa til mas secundria da anlise literria. 54

Analisando atentamente as recomendaes metodolgicas de Lucien Goldmann e


suas hipteses, podemos perceber o quo promissor mostra-se o seu mtodo para o estudo
das obras literrias produzidas pelos membros da elite romana. Para Goldmann, as obras
literrias so uma produo coletiva, uma expresso viva da conscincia de classe de uma
classe social determinada. A pena pode ser de um indivduo, mas as palavras, conceitos e
54 GOLDMANN, op. cit., p. 208.

idias so originadas no seu grupo social. Isto no quer dizer que o indivduo reflita
simplesmente a ideologia de sua classe. Por isso mesmo, preciso analisar o texto
propriamente dito, em todos os seus detalhes, e perceber as particularidades do autor e do
conjunto de influncias, ou melhor dizendo, tentar ouvir a infinidade de vozes que ecoam
em unssono da boca e da pena do autor individual. Entretanto, deve-se localizar a voz
mais forte deste coro. O que prevalece e d coerncia ao texto, possibilitando o
entendimento da obra e sua relao com a realidade social em que se insere, a
conscincia de classe. Nesse sentido, uma obra literria, cientfica, poltica e filosfica
sempre obra de uma classe social.
A obra de Plutarco, da qual extramos nossa hiptese, emblemtica. Ela reflete
toda a ambiguidade da relao da classe de senhores de escravos com seus servos, ao
reconhecerem neles homens ou atitudes humanas, ao mesmo tempo em que os tratavam
como animais na teoria e na prtica. O medo e o desprezo aristocrticos pelos escravos
rebeldes tambm bastante visvel em sua obra. As influncias das mudanas polticas,
sociais e filosficas dos primeiros sculos do regime imperial tambm se fazem
presentes. Comparando sua obra com a de Apiano, por exemplo, abordaremos diferenas
sensveis de opinio, enfoque e mesmo divergncia ou omisso quanto a fatos mais ou
menos relevantes. Mas, no essencial, ambos formam uma unidade, possibilitando-nos
uma noo mais ou menos exata dos sentimentos e ideologia da classe dominante
romana.
Podemos destacar ainda a sntese apresentada por Snia Rebel acerca da
metodologia de Lucien Goldmann e de sua aplicao no caso concreto dos estudos da
escravido romana, no sendo esta, de modo algum, uma inovao metodolgica nossa,
mas que cumpre um papel fundamental na comprovao de uma hiptese de trabalho que
est inserida numa pesquisa original, que visa a uma hiptese geral sobre o impacto das
lutas dos escravos sobre a classe dominante e a sociedade romana de conjunto:

Os mtodos que este enfoque pressupe consistem, em primeiro lugar, em


buscar, atravs de um recorte do objeto, a apreenso do significado total da obra. Outro
procedimento recomendado por Goldmann, perfeitamente til para o estudo da vida das
elites romanas, o de explicar a gnese do texto, verificando como e em que medida a
estrutura descoberta na obra tem um carter funcional e constitui um comportamento

significativo. Por ltimo, o pressuposto de que compreenso e explicao no so


categorias opostas, mas diversas quanto ao corte do objeto, e que cumprem diferentes e
importantes funes: a compreenso atuaria no nvel imanente da obra, enquanto a
explicao preocupar-se-ia em inserir a obra numa estrutura englobante, a da
conscincia de classe. Assim, a pesquisa deveria situar-se em dois nveis, o do objeto de
estudo e o da estrutura englobante, oscilando entre eles.(...) 55

Desse modo, situamos este estudo no campo da Histria Social. uma histria
social nos seus dois sentidos: tanto no sentido de uma histria total, ou seja, que articula
os diversos nveis que para efeitos de anlise decompomos e abstramos da realidade,
quanto enquanto uma especialidade centrada no estudo dos grupos sociais, neste caso
especfico, das classes scias e seus conflitos. A seguir, apresentaremos uma citao de
Ciro Cardoso sobre o problema da escassez e dos tipos de fontes (quase sempre da classe
dominante) no caso dos estudos sobre as classes sociais subalternas e suas lutas e a
prpria nfase na investigao dos movimentos sociais e numa histria das massas, dos
grandes agrupamentos humanos, das coletividades:

Outro campo principal da histria social constitudo pelo estudo dos


movimentos sociais. Defrontamo-nos, aqui, com uma histria de massas: camponeses,
operrios, escravos, ndios, bandoleiros sociais, etc. Histria que conhecemos atravs
das exploses de violncia. Se a falta de fontes torna, frequentemente, impossvel a
reconstituio de um movimento de massas dia-a-dia, e se o carter iletrado de seus
membros nos condena a conhec-los quase s por intermdio de terceiros, h um fato
essencial de que dispomos: seus atos. E eles so, no curso da histria, uma srie de
exploses de violncia, expresso nevrlgica da luta cotidiana contra a opresso e o
domnio social. Apreciemos cuidadosamente o problema das fontes. At o
desenvolvimento do movimento operrio e do sindicalismo quase total a inexistncia de
documentao de primeira mo. J mencionamos o carter iletrado das massas. Embora
muitas vezes seus chefes lessem e escrevessem, quase todas as fontes provm,
invariavelmente dos setores dominantes que comandaram a represso, isto , do bando
contrrio.56

55 ARAJO, op. cit., pp. 42-43.

56 CARDOSO, Ciro Flamarion Santana; PREZ, Hctor. Os Mtodos da Histria. Traduo: Joo Maia. 6. ed.
Rio de Janeiro: Edies Graal, 2002, p. 383.

CONCLUSO

A concluso deste captulo no pode ir muito alm daquilo que j foi exposto
acima. No temos muito a acrescentar a no ser que a apresentao minuciosa de todos os
pressupostos, teorias, conceitos e mtodos tornar infinitamente mais compreensvel o
texto nos seus prximos captulos.
Trataremos, no captulo seguinte, de situar as grandes revoltas servis de Roma no
contexto que as produziu. Por mais que parea algo desnecessrio para aqueles que j
conhecem mais a fundo a histria de Roma, temos a opinio de que muitas das polmicas
existentes no debate de cada histria singular tm sua origem nos mtodos, conceitos,
paradigmas e mesmo na interpretao das sociedades como um todo e que estas
diferenas mais profundas se refletem de forma mais aguda na discusso do objeto de
estudo de cada caso, sem que a polmica se restrinja ao caso em si.
Este captulo introdutrio cumpre o papel de iniciar um dilogo com as fontes e de
traar um caminho para a sua interpretao. Alm disso, busca orientar toda a discusso,
definindo os conceitos-chave e estabelecendo as linhas gerais da dissertao com uma
exposio resumida de cada um dos principais debates e elementos que constituem a
realidade estudada e suas interpretaes. Os limites e possibilidades daquelas revoltas, a
composio social daqueles movimentos, o impacto deles sobre a classe dominante e a
sociedade como um todo e a conjuntura histrica em que se desenvolveram as principais
rebelies servis da Roma antiga e de toda a Antiguidade clssica.

CAPTULO II

ROMA: O IMPRIO DO MEDITERRNEO

Assim, tudo o que Roma tinha de ilustre vivia nos campos e cultivava as terras,
tornando-se costume s a procurar os esteios da repblica. Sendo esse o estado
dos mais dignos patrcios, acabou respeitado por todos; a vida simples e
trabalhosa dos camponeses foi preferida vida ociosa e corrupta dos burgueses
de Roma, e no houve quem, infeliz proletrio na cidade, no se tornasse, como
trabalhador dos campos, cidado respeitvel. No foi sem motivo, dizia Varro,
que nossos magnnimos ancestrais estabeleceram na aldeia o viveiro desses
homens fortes e bravos que os defendiam em tempo de guerra e os nutriam em
tempo de paz. (Rousseau)

INTRODUO

Neste captulo, pretendemos analisar o contexto poltico e social no qual se deram


as revoltas de escravos da Siclia e de Esprtaco. importante destacar que, neste caso,
uma anlise de conjuntura imprescindvel para que possamos compreender
efetivamente os acontecimentos em questo. A Primeira Guerra Servil ser analisada
nesses marcos, bem como o conjunto de rebelies servis que se sucederam antes, durante
e depois da mesma, encerrando o captulo com algumas linhas sobre a Segunda Guerra
Servil e, novamente, o contexto em que se insere.
As guerras romanas cumpriram um papel no s na formao do imprio, como
tambm na desagregao da antiga ordem poltica e social. O perodo imediatamente
posterior s Guerras Pnicas foi marcado por uma intensificao das lutas sociais. A luta
poltica assumiu novos contornos, com o estabelecimento da uilla escravista como padro
agrrio dominante, com a predominncia da mo-de-obra escrava e sua centralidade na
determinao do status social, do poder poltico e econmico entre os cidados romanos e
na produo da riqueza social e reproduo do modo de vida da classe dominante
romana. Alm disso, a transformao do exrcito romano de uma milcia de camponesescidados em um verdadeiro exrcito profissional, agora leal no Repblica, mas aos
generais, num contexto de intensos conflitos sociais envolvendo na maioria dos casos as
classes sociais subalternas, seja como massa de manobra dos aristocratas na luta pelo

poder, seja com suas prprias reivindicaes, conformando-se movimentos autnomos da


massa escrava.
O mundo romano era o mundo mediterrneo. O mar interior do Mediterrneo era
o palco das lutas e o prmio dos vitoriosos era usufruir das riquezas existentes nos
territrios banhados por este mar. As civilizaes mais avanadas da Antiguidade uniramse no Imprio Romano o Imprio do Mediterrneo. Da Grcia ao Egito, tudo Roma.
Um relevo modificado ao longo dos tempos tanto pelas tempestades e erupes
vulcnicas quanto pelos passos firmes dos maiores homens do Mundo Antigo, desde Jlio
Csar e Alexandre que por l cavalgaram at Aristteles, Demcrito, Scrates e
Arquimedes que caminharam em busca do entendimento das coisas, inovando,
renovando, criando. As pirmides do Egito e as embarcaes fencias e cartaginesas
fizeram parte desse mundo. A arquitetura e o comrcio floresciam por sobre estas guas e
as terras por elas banhadas. Era um mar que representava o prprio temperamento
intempestivo dos deuses gregos, com uma beleza que seduz e uma violncia que, de
tempos em tempos, parecia a fria do prprio Poseidon. Fernand Braudel 57 quem
descreve a geografia e o clima da regio. No vero, os mares so azuis e calmos e o clima
seco, bem seco. Faz sol. O Mediterrneo espelha o cu e a luz que enche de alegria os
coraes humanos. No perodo de outono-inverno, as chuvas so torrenciais e
intermitentes. a poca das constantes tempestades, dos mares de guas escuras e
violentas, e de ventos devastadores. A regio mediterrnica engloba, por terra, zonas
montanhosas e desertos, alm de muitas outras variadas paisagens. No espao lquido, os
diversos estreitos, os recortes, dividem o mar Mediterrneo em regies autnomas: o mar
Egeu, o mar Adritico, o mar Tirreno. O Mediterrneo sempre foi uma regio de intensas
trocas comerciais e culturais, navegaes, colonizaes e guerras de conquista. E tudo
isso passou a ser o legado do imprio que tinha como seu centro aquela que entrou para a
Histria como a Cidade Eterna. Mas se por um lado as massas annimas que viveram,
57 BRAUDEL, Fernand. O Espao e a Histria no Mediterrneo. Traduo de Marina Appenzeller. So Paulo:
Livraria Martins Fontes Editora Ltda, 1988.

trabalharam, amaram e lutaram nesta regio no tiveram os seus nomes inscritos nos
anais da Histria, foram elas que moldaram a geografia poltica e econmica da regio; e
seus sonhos e suas lutas so os que sero lembrados nestas pginas.
Por ltimo, daremos nfase luta dos irmos Graco contra a nobreza senatorial,
que precipitou uma guerra civil que levaria ao fim da Repblica e abriu um perodo de
grandes possibilidades para os escravos, que souberam aproveitar a dissenso no interior
da classe dominante para lutar pela conquista da sua liberdade; e prpria revolta de
escravos da Siclia, liderada por Euno. Neste captulo, percorreremos os passos dos
homens que estiveram diante de uma alternativa histrica, de um momento em que aquilo
que poderia ser improvvel tornar-se-ia possvel se a luta do campo democrtico liderado
pelos Graco fosse vitoriosa e se seus sucessores seguissem o caminho de uma luta
conseqente por reformas, que terminaria quase que inevitavelmente na j mencionada
por ns revoluo municipal. Mas a luta pelo poder poltico pessoal e, mais que isso,
restrito s altas esferas de uma elite quase que exclusivamente romana, jogou por terra
uma oportunidade histrica. Os escravos rebeldes tambm se elevaram para muito alm
de sua condio, sonharam o seu sonho coletivamente e manifestaram de forma aberta e
violenta o seu humano desejo de libertao do jugo da escravido. Este o panorama de
uma poca em que um futuro alternativo era possvel, um tempo em que outros sonhos
eram possveis, outros modelos de sociedade e um curso alternativo no desenvolvimento
histrico do Ocidente, em especial. Trata-se do momento decisivo que abriu uma vaga de
lutas quase ininterruptas que eram ao mesmo tempo produto e produtoras de uma crise
estrutural sem precedentes e a partir de um determinado ponto do desenvolvimento
histrico sem retorno. O ponto alto da luta de classes na Antiguidade.

1 LUTA DE CLASSES NA ANTIGUIDADE

Partimos da premissa de que as sociedades divididas em classes surgem da


dissoluo das antigas sociedades comunitrias e no somente com o advento do
capitalismo. No entanto, a luta de classes na Antiguidade no se dava da mesma maneira que
no capitalismo moderno. Em primeiro lugar, a forma da explorao era extra-econmica,

condicionando a conscincia possvel das classes sociais em luta. Em segundo lugar, as


relaes de classes revestiam-se de outros elementos ideolgicos, jurdicos e religiosos.
Lukcs foi o intelectual marxista que melhor abordou este tema e suas anlises foram
fundamentais para o desenvolvimento deste trabalho. No fragmento a seguir Lukcs faz uma
sntese clara acerca do tema:

Resulta do que precede, para as pocas pr-capitalistas e para o


comportamento no capitalismo de numerosas camadas sociais cuja vida tem
fundamentos econmicos pr-capitalistas, que, pela sua prpria natureza, a sua
conscincia de classe no capaz, nem de tomar uma forma completamente clara, nem
de influenciar conscientemente os acontecimentos histricos.
Isto, antes de mais, porque prprio da essncia de toda a sociedade prcapitalista nunca poder revelar com plena clareza (econmica) os interesses de classe; a
organizao da sociedade dividida em castas, em estados, etc., tal que, na estrutura
econmica objetiva da sociedade, os elementos econmicos se unem inextricavelmente
aos elementos polticos, religiosos, etc. S com a dominao burguesa, cuja vitria
significa a supresso da organizao em estados, se torna possvel uma ordem social em
que a estratificao da sociedade tende pura e exclusiva estratificao em classes.
(...)58

Ainda no texto de Lukcs, podemos encontrar uma observao pertinente acerca


do papel que os elementos extra-econmicos cumprem nas sociedades pr-capitalistas,
tendo as formas jurdicas que intervir de forma constitutiva nas conexes econmicas. As
categorias jurdicas e econmicas so inseparveis umas das outras nas formaes sociais
que antecederam o capitalismo. Isto se evidencia ainda no peso da coero extraeconmica nas sociedades pr-capitalistas, sendo essencial para o exerccio da prpria
dominao e funcionamento do sistema econmico. Nas palavras do prprio autor:

(...) O Estado e o aparelho do poder de Estado no so para ela, um meio de


impor, se necessrio pela violncia, os princpios da dominao econmica como
acontece com as classes dominantes na sociedade capitalista (como o caso da
colonizao moderna); no se trata de uma mediao da dominao econmica da
sociedade, imediatamente a prpria dominao. E isto no ocorre apenas quando se

58 LUKCS, Georg. A Conscincia de Classe. In: Histria e Conscincia de Classe. Traduo de Telma
Costa. Porto: Publicao Escorpio, 1974, p. 69.

trata pura e simplesmente de se apoderar de terras, escravos, etc, mas tambm nas
relaes econmicas ditas pacficas.59

Desse modo, os interesses econmicos no s se mantm ocultos pela ideologia


dominante, como outros fatores que no o econmico entram em campo na luta, sendo
parte integrante do prprio conflito real; no se processam de forma clara lutas entre as
classes, manifestando-se como embates entre castas, estados ou ordens dessas sociedades;
esses elementos jurdicos que intervm na estratificao e na hierarquizao dessas
sociedades e que desempenham um papel de grande relevncia na explorao, aparecem
igualmente nos momentos da luta de classes nas sociedades antigas. No entanto, o fato
desses homens no terem se visto enquanto classe no quer dizer que de fato no o
fossem. A explorao estava ali presente, era uma explorao econmica, mas exercida
atravs de mecanismos extra-econmicos. E esta explorao era sentida e por isso
combatida, sempre que foi possvel, pelos explorados.
Roma foi o maior exemplo da Antiguidade em termos de luta de classes. A
sociedade romana, de todas as sociedades antigas, foi a que vivenciou e experimentou as
contradies de classe na sua forma mais aguda. As lutas entre patrcios e plebeus,
escravos e livres, optimates e populares, a luta pela reforma agrria, as rebelies de
escravos, as guerras civis, isso que ocupa maior destaque na histria da Repblica
romana. E ser o exemplo de conflito mais agudo da poca da Roma republicana, uma
luta entre homens livres, entre ricos e pobres, e faces divergentes da classe dominante,
que demandar a nossa anlise na presente dissertao. Isto se justifica pelo fato de que
foi precisamente este embate violento entre faces polticas distintas dos grandes
proprietrios que gerou o ambiente propcio para a rebelio escrava, tema deste trabalho.

2 GUERRAS CIVIS EM ROMA

59 Idem, ibidem, p. 70.

Diversos autores denominaram o perodo que compreende os sculos II e I a.C.


como a poca da revoluo poltica e social em Roma. A disputa entre os irmos Graco,
os grandes reformadores e tribunos da plebe, que viram fracassar o projeto de um regime
mais prximo da democracia ateniense do que de uma Repblica fundamentalmente
oligrquica, e a aristocracia senatorial um marco do incio deste processo de crise
poltica e social.
O ano de 133 a.C. o princpio de um longo e complexo processo que termina
com a soluo monrquica. Foi este o ano da eleio de Tibrio Graco para o cargo de
tribuno da plebe. Ele era de uma famlia plebeia inserida na nobilitas. O seu projeto de lei
agrria visava garantir os direitos daqueles que fizeram de Roma um grande imprio e
afastar o perigo de revoltas servis diante da multiplicao de escravos nos campos
italianos. Ao mesmo tempo em que a sua poltica era, naquele momento, a proposta mais
coerente de estabilizao social, contendo o aumento do nmero de escravos de primeira
gerao, naturalmente inimigos do governo romano, na produo, e restituindo a
dignidade dos camponeses italianos, ao detonar um processo de guerra civil quase
ininterrupto at o fim da Repblica, abriu caminho para as mesmas rebelies de escravos
que pretendia evitar com sua poltica. O perodo das guerras civis coincide nas datas com
as maiores revoltas de escravos ocorridas na Repblica romana. A Primeira Revolta de
Escravos da Siclia se deu em 135 a.C. A revolta ainda estava em curso (durou de 135 a
132 a.C.) quando estourou o conflito entre Tibrio Graco, o tribuno da plebe, e a
oligarquia senatorial, em 133 a.C. Talvez tenha at influenciado a proposio urgente de
uma reforma agrria no imprio. De 133 a 129 a.C. estoura a revolta de Aristnico, na
sia Menor, outra revolta escrava de grandes dimenses. Seu incio se d paralelamente
ao conflito envolvendo Tibrio Graco. Desse modo, este que foi um dos momentos de
luta mais intensa e feroz entre as fraes da classe dominante foi acompanhado de duas
grandes rebelies servis. O tribunato de Caio Graco deu-se em 123-122 a.C., quando
ocorreu uma luta acirrada por reforma agrria e outras mudanas no regime republicano.
Novos confrontos polticos, agora entre as faces que dividiam a nobreza por grupos de
interesses e base social, os optimates e os populares, aconteceram no perodo de 103 a
100 a.C. A Segunda Revolta de Escravos da Siclia ocorreu no perodo de 104 a 101 a.C.
Podemos notar que coincidem os levantes de escravos com o perodo de dissidncias no

seio da classe dominante. A ditadura de Sila foi no perodo de 82 a 79.a.C. De 73 a 71


a.C. estoura a revolta de Esprtaco. A dissoluo do sistema constitucional de Sila data de
70 a.C., um ano aps o esmagamento do exrcito espartacano. O movimento dos Graco
cobriu um perodo de 133 a 121 a.C. Este perodo engloba, pelo menos, duas importantes
revoltas de escravos, conforme dissemos, perpassando a primeira batalha dos reformistas
contra a nobreza senatorial e antecedendo a segunda tentativa de reformas. Ao trmino
destas primeiras batalhas das guerras civis, Roma j passava a contar com um exrcito
profissional no lugar de um exrcito de cidados e afastava qualquer possibilidade de
uma reforma agrria ampla, assentando as bases do poder aristocrtico de forma segura e
estvel nas grandes e mdias propriedades rurais e no emprego de uma massa de escravos
na produo em detrimento do pequeno campons, levado assim proletarizao (nos
termos romanos) do campesinato. A prxima onda de guerras civis romanas terminaria no
Principado.
O processo que se iniciara em Roma com o fim das Guerras Pnicas era
irrevogvel e inaltervel; a partir daquele momento, tudo levava a uma concentrao cada
vez maior de terras, escravos, riqueza e poder nas mos de uns poucos. No era possvel
fazer retroceder a histria romana ao ponto em que o exrcito de cidados-camponesessoldados defendiam a sua cidade-Estado. claro que as reformas dos Graco poderiam
atenuar a situao social e eram, de fato, a melhor forma de salvaguardar a Repblica por
mais tempo, por mais que seus contemporneos no tivessem compreendido desta
maneira suas propostas. A derrota de Tibrio e Caio Graco condenou, de uma vez por
todas, a Repblica romana. O seu destino estava agora selado. Estes reformadores
radicais foram os que melhor entenderam o esprito da Constituio republicana romana,
em que bases ela se assentava, e, por isso, com a vitria de seus inimigos, que os
esmagaram em nome da Repblica, o caminho para uma constituio monrquica estava
aberto. Com as reformas de Mrio, isto se tornou certo e era s uma questo de tempo at
que fosse adotada esta que passava a ser a nica opo.
A apropriao do ager publicus por possessores ricos em detrimento dos romanos,
latinos e italianos mais pobres j vinha sendo combatida desde antes de Tibrio Graco.
Uma lei agrria proibia a ocupao de mais de 125 hectares de ager publicus e o seu uso

para o pasto do gado de particulares tambm estava limitado, sendo uma lei que estava
plenamente em vigor at 167 a.C., quando passa a ser mais sistematicamente
desrespeitada pelos grandes proprietrios, que tratavam o ager publicus como sua
propriedade privada, aprofundando o problema e apontando uma dinmica que tendia a
se enraizar na prtica e na conscincia da classe dominante, trazendo efeitos sociais, com
o aumento progressivo do nmero de escravos na Itlia e o empobrecimento e
proletarizao acelerada dos camponeses nas dcadas que antecederam a agitao poltica
de Tibrio Graco, tornando esses trinta anos de no aplicao efetiva da lei determinantes
para cristalizar a posio aristocrtica contra qualquer tipo de reforma que diminusse
seus ganhos imediatos e afetasse de alguma maneira seus interesses privados e
individuais. Esta conjuntura de vitrias militares que consolidaram Roma como a grande
potncia imperial do Mediterrneo e o processo de enriquecimento de uma nobreza antes
guerreira, que se colocava frente de um exrcito campons, de uma infantaria composta
de soldados romanos imbudos da esperana de melhorar de vida, mas tambm de valores
guerreiros e patriticos, atiou sua ambio e a fez cada vez mais parasitria, distante do
prprio local de produo, de onde vinha sua riqueza, absentesta, utilizando o Senado da
Repblica para salvaguardar as posies conquistadas nas relaes internacionais, mas
tambm no mbito interno, reforando todos os meios de obter ganhos, desrespeitando as
leis que no convinham e que no fundo marcavam um outro momento na conjuntura
poltica, econmica e social. Pelo menos por um tempo, Roma no precisaria se
preocupar com a invaso de inimigos externos ou mesmo com a possibilidade de algum
pas, de alguma potncia estrangeira ameaar a sua posio na regio mediterrnica.
Desde 168 a.C., a Macednia no era mais uma ameaa. Em 146 a.C., Cartago fora
completamente destruda, no representando mais uma sria ameaa desde a Segunda
Guerra Pnica. Neste mesmo ano tambm foi destruda Corinto; a Grcia e a Pennsula
Ibrica, na sua maior parte, j estavam ocupadas. Em 148 a.C. a Macednia tornou-se
provncia romana e a frica em 146 a.C., alm de territrios da sia em 133 a.C. E era
desta posio mais segura no plano externo e dos interesses internos em desenvolver a
produo escravista em grandes e mdias propriedades rurais, altamente lucrativa para a
nobilitas, que partia a resistncia obstinada a qualquer tipo de reforma favorvel aos
cidados populares e aos italianos. Os cidados romanos que viviam de seu trabalho, mas

que no tinham laos de dependncia pessoal com os nobres, no eram de seu interesse.
As contradies sociais aguaram-se, uma vez mais, s que no era mais uma luta entre
uma nobreza de sangue e uma ordem formada pelos cidados comuns, ricos ou pobres. A
luta entre ricos e pobres em Roma nunca fora to aberta e declarada. Uma oligarquia
composta pelos ricos e proprietrios das duas antigas ordens explorava agora todos os
recursos do imprio em seu benefcio e relegavam para segundo plano as necessidades
dos homens livres e pobres da nova Roma. Este era o pano de fundo dos primeiros
embates entre reformistas e conservadores no final do regime republicano.
somente analisando este novo contexto histrico e social que podemos
compreender em toda profundidade o carter revolucionrio da proposta de reforma
agrria de Tibrio Graco. Se observarmos atentamente, no era uma proposta de
expropriao dos ricos, mas de limitao legal de sua ao usurpadora do solo italiano,
restaurando ao povo romano o direito social, e tambm poltico tendo em vista o carter
da cidadania romana ainda nessa poca, de posse da terra. De acordo com Ciro Cardoso,
o projeto de lei de Tibrio Graco estabelecia o seguinte:

A rogatio Sempronia estabelecia que o ager publicus ocupado acima dos


limites que definia seria confiscado e distribudo em lotes inalienveis de pequeno ou
mdio porte (talvez 7,5 hectares). O limite tradicional de 125 hectares seria acrescido de
uma poro adicional por cada filho (at dois, ao que parece), o que o levaria a 250
hectares no mximo: esta quantidade se transformaria em propriedade privada dos
ocupantes atuais.60

O Senado, diante do processo de organizao da faco popular, resolveu agir. A


nobilitas usou o seu poder para pressionar Marco Otvio, outro tribuno da plebe, a
utilizar o seu direito de veto para barrar o projeto de reforma agrria de Tibrio Graco. O
Senado, consultado tardiamente, rejeitou o projeto de Graco. Sendo assim, Tibrio apelou

60 CARDOSO, Ciro F.Sociedade, Crise Poltica e Discurso Histrico-Literrio na Roma Antiga. In: Phonix/
UFRJ. Laboratrio de Histria Antiga. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998, p. 76.

diretamente para a soberania popular, propondo comitia tributa (a assemblia popular


das 35 tribos romanas 4 urbanas e 31 rurais) a deposio de Marco Otvio. Graco
defendeu o direito do povo de revogar os mandatos daqueles magistrados que, eleitos,
poderiam ser cassados se agissem contra a coletividade que os elegeu. A argumentao de
Tibrio baseava-se nas tradies romanas, pois era natural, e mesmo um princpio, que
um tribuno da plebe no mantivesse um veto que fosse de encontro com a vontade
expressada pela assemblia popular, e que era mesmo obrigao para um tribuno da plebe
agir de acordo com o que o povo quisesse. No entanto, a ao de Tibrio Graco violava o
carter sacrossanto do tribunato. E no havia exemplos recentes da deposio de um
tribuno. Em princpio, a ao de Tibrio poderia ser algo que se voltasse contra a prpria
organizao popular, mas, na verdade, o que estava em jogo eram os interesses da
oligarquia senatorial frente ao passo acelerado e radical das medidas de Graco. Uma coisa
era salvaguardar a integridade da representao popular diante das ameaas e medidas
arbitrrias dos rgos estatais, controlados pela oligarquia; outra coisa completamente
diferente era exigir que um representante agisse como tal e levasse adiante forosamente
as proposies discutidas e votadas pela maioria do povo, como um delegado do povo
perante o Senado, por ser um porta-voz dos interesses populares. O que Graco fez, em
suma, foi radicalizar os aspectos democrticos da organizao republicana, no sentido de
instituir um critrio que tornasse o tribuno um legtimo representante da vontade popular,
instrumento importantssimo num quadro de luta poltica acirrada em que se encontravam
a plebe e a oligarquia. Somente dessa maneira, garantindo, inclusive, a revogabilidade
dos mandatos dos magistrados que agissem contra o povo, seria possvel barrar a poltica
de interveno da nobilitas na assemblia popular e no tribunato da plebe, ou seja, nas
instituies de defesa das reivindicaes dos pobres. A longo prazo, porm, tratava-ses de
uma estratgia duvidosa, j que, h muito, o tribunato da plebe se tornara um degrau
possvel na carreira poltica (no caso de ser o candidato patrcio, isto era contornado por
sua adoo formal por um plebeu). Diante de sua vitria poltica, Tibrio Graco fez
aprovar sua lei agrria e foi constituda uma comisso triunviral para a sua aplicao,
integrada por ele mesmo, Tibrio, pelo seu irmo, Caio Graco e pelo seu sogro, pio
Cludio.

Ciro Cardoso61 relata que o Senado, no podendo barrar a lei como tal (j que os
plebiscita uma vez aprovados eram vlidos mesmo sem aprovao senatorial), tentou
boicotar a atuao da comisso votando uma verba insuficiente para a realizao dos seus
trabalhos; e que, diante da morte de talo III, monarca do reino helenstico de Prgamo
que deixara em testamento o seu reino para Roma, Tibrio teria feito aprovar uma lei que
destinava s rendimentos derivados da nova provncia, o antigo reino de Prgamo, para o
financiamento da reforma agrria estabelecida pela lei Semprnia. Deste modo, Tibrio
Graco entrou num terreno que antes era exclusivo do Senado. Os costumes romanos
reconheciam o Senado como o rgo responsvel pelas finanas, pela poltica externa e
pela diplomacia. A conformao do Imprio Romano e o estabelecimento de uma
economia baseada nas uillae e nos latifndios e na escravido-mercadoria, numa escala
inimaginvel at ento, vedaram permanentemente o caminho para uma democratizao
do Estado romano. A via ateniense no se repetiria em solo itlico. A Itlia era governada
por uma oligarquia solidamente estabelecida, com mecanismos de controle sobre o
processo poltico, de represso e de controle social infinitamente superiores aos que
existiram na Grcia. Nesse sentido, as aes radicalizadas do imperioso tribuno da plebe
assustaram a aristocracia, que tratou de se organizar e de se mobilizar contra um inimigo
to perigoso. A tentativa de reeleio de Tibrio Graco confirmava os seus temores, no
porque pudesse se tornar um rei ao perpetuar-se no poder, coisa que no entanto foi
alegada. O que realmente causava temor que ele pudesse se tornar um Pricles e
governar por vrios anos, apoiado na assemblia popular e contra os interesses mais
imediatos da oligarquia, limitando o seu domnio pleno na economia e na poltica.
Sendo assim, o pontfice mximo Cipio Nasica invadiu com seus fiis a
assembleia popular, que se reunia naquele momento no Capitlio, mesmo diante da
recusa do cnsul que, presente na reunio senatorial que ocorrera nessa ocasio, negarase a agir ilegalmente; Nasica, com sua atuao ilegal, ceifou a vida de seu primo Tibrio
Graco. Atacado primeiro por outro tribuno da plebe, ele e mais de trezentos de seus
61 CARDOSO, Ciro F.Sociedade, Crise Poltica e Discurso Histrico-Literrio na Roma Antiga, op. cit.,
p. 77.

correligionrios foram mortos o que, naturalmente, gerou a ira popular. Por isso,
mesmo dando prosseguimento perseguio da faco de reformistas radicais que se
constitua a partir da polarizao das lutas sociais entre ricos e pobres, mediante um
tribunal especial organizado para condenar morte por conspirao vrios outros
partidrios de Graco, tendo frente deste processo os cnsules de 132 a.C. e o prprio
Cipio Nasica, o Senado foi obrigado a afastar este ltimo da Itlia usando um pretexto e
buscou salvaguardar-se nos processos de enfrentamento futuros, aprovando, em 121 a.C.,
o Senatus consultum ultimum, agora no contexto do embate com o seu irmo, Caio
Graco.
Apiano (Guerras Civis, I, 17) deu bastante destaque a este evento, concluindo ter
sido ele uma espcie de pecado original das guerras civis romanas, onde o uso da
violncia como arma poltica foi empregado pela prpria aristocracia e legitimado por
uma parcela da sociedade:
Desta forma, Graco, o filho daquele Graco que foi duas vezes cnsul, e de
Cornlia, a filha daquele Cipio que abateu a hegemonia cartaginesa, pereceu, enquanto
ainda era tribuno, no Capitlio, por causa de um projeto excelente porm perseguido de
forma violenta. E este crime odioso, o primeiro que teve lugar na assemblia pblica,
no ficou isolado, e de quando em quando foi seguido de outros similares. A cidade, ante
a morte de Graco, se mostrou dividida entre a dor, de um lado, daqueles que se
compadeciam de si mesmos e daqueles, assim como da situao presente, na crena de
que j no existia um governo e sim o imprio da fora e da violncia, e, de outro lado, a
alegria dos que pensavam que tudo havia sado conforme seus desejos. E estas coisas
tinham lugar enquanto Aristnico combatia contra os romanos pelo domnio da sia. 62

Esta passagem de Apiano reveladora. Aqui ele primeiro traa a ascendncia de


Tibrio Graco, filho de Tibrio Semprnio Graco, cnsul dos anos 177 e 163 a.C., e de
Cornlia, filha de Cipio, o Africano, o general que conduziu Roma vitria contra
Cartago. Ou seja, ele era membro de uma famlia que gozava de grande prestgio entre o
povo romano, enquanto seus representantes frente s injustias e seus lderes militares
mais valorosos contra os inimigos externos, estando entre os seus maiores defensores. A
ilegalidade e a falta de legitimidade do assassinato praticado contra Tibrio Graco so
62 Apiano, Guerras Civis, I, 17, apud ROYO, op. cit., p. 38.

ressaltadas por Apiano, que considera este um crime odioso. O crime ainda mais
grave se considerado enquanto o primeiro de muitos, tendo inaugurado uma prtica
poltica que levaria degenerao das disputas polticas em luta fratricida. O projeto de
Tibrio ainda considerado pelo autor como um projeto excelente; se observarmos
atentamente a frase final do pargrafo e a razo que levou Apiano a mencionar o fato,
compreenderemos melhor o porqu. A revolta de Aristnico ocorria exatamente no
momento em que Tibrio Graco era assassinato, justamente aquele que queria restaurar a
classe camponesa romana e ocupar as terras da Itlia com trabalhadores livres, cidados e
membros naturais da milcia camponesa que era o exrcito romano da poca, o mesmo
exrcito que conquistou com o seu valor o mundo mediterrnico. O perigo das revoltas de
escravos ficava evidente para rodos aqueles que viviam naqueles dias e presenciavam os
acontecimentos daqueles tempos de crise. A diviso no seio da sociedade romana tambm
fica aqui evidente com um setor apoiando a medida extrema, ilegal e violenta, contra um
inimigo do poder aristocrtico, e um setor que chorava a morte de um de seus lderes e a
agonia da prpria repblica. O ataque violento ao programa de reformas que favoreceria a
parcela mais desfavorecida da populao tambm foi sentido com tristeza pela maioria do
povo.
A respeito da relao entre as revoltas servis e a necessidade da realizao de uma
reforma agrria pode ser percebida no prprio discurso de Tibrio Graco, quando o
mesmo lanou o seu projeto, sendo este momento descrito novamente por Apiano:

(...) At que Tibrio Semprnio Graco, homem ilustre e notvel por sua
ambio, de grande capacidade oratria e muito conhecido por todos, por todas estas
razes, certa vez, pronunciou um discurso solene, enquanto era tribuno da plebe, com
relao raa itlica em tom de reprovao porque um povo muito valente na guerra e
unido por laos de sangue se estava esgotando pouco a pouco devido a indigncia e a
falta de populao sem ter sequer a esperana de um remdio. Mostrou seu
descontentamento com a horda de escravos por consider-la intil para a milcia e
jamais digna de confiana para seus donos (...)63

63 Apiano, Guerras Civis, I, 9, apud ROYO, op. cit., pp. 25-26.

O autor exalta a classe camponesa e aborda o problema da escravido e a


substituio dos camponeses nos campos itlicos por estes pouco confiveis, em sua
opinio, elementos sociais:

(...) o recente descalabro sofrido na Siclia por estes nas mos de seus escravos
por ter aumentado o nmero de servos pelas exigncias da agricultura (...) a guerra
sustentada pelos romanos contra eles (os escravos), que no era fcil, mas sim muito
prolongada em sua durao e envolvendo diversos tipos de perigos.(...) 64

A revolta da Siclia apresentada como um exemplo negativo e uma das


consequncias da poltica econmica aristocrtica que privilegiava o emprego de
escravos em suas terras. Desse modo, a sua proposta de reforma agrria estava em estreita
relao com o movimento de rebelies servis dos dois ltimos sculos da repblica. O
incio do movimento dos Graco era um momento particularmente especial, pois marcava
o princpio desta vaga de lutas dos escravos contra os seus senhores, em revoltas de
grandes propores, que colocava na ordem do dia o problema da escravido e a questo
da terra, e que medidas deveriam ser tomadas para que o Estado romano pudesse se
ajustar s transformaes econmicas e sociais que acompanharam a constituio do
imprio romano.
Caio foi o continuador da luta de Tibrio Graco e, assim como ele, foi eleito para
o cargo de tribuno da plebe. Ele exerceu o tribunato por dois anos sucessivos (123 e 122
a.C.) e desenvolveu um programa de reformas mais amplo, buscando apoio poltico em
diversas camadas sociais. Caio Graco procurou atender aos interesses do proletariado
romano e fez aprovar uma lei que garantia a distribuio regular de cereais por metade
do preo a que eram cotados no mercado 65. Leon Bloch afirma ainda que, antes da lei

64 Idem, ibidem, p. 26.

65 BLOCH, Leon. Lutas Sociais na Roma Antiga. Lisboa: Publicaes Europa-Amrica, 1956, p. 160.

de Caio Graco, esta era uma medida excepcional aplicada nas pocas de maior carestia e
que, ao aprov-la em carter ordinrio, concedia-se ao proletariado parte da riqueza social
de Roma, alcanando este proletariado urbano as vantagens que o governo romano
obtinha com a explorao das provncias. J na tentativa de reeleio de Tibrio o povo
urbano havia cumprido um papel de ponto de apoio de sua poltica e foi este fato que
levou uma faco aristocrtica a mat-lo, pois estava obtendo sustentao daquela que era
tradicionalmente a reserva eleitoral da nobilitas. Caio desde o incio procurou ganhar o
apoio deste setor, mesmo que suas medidas fortalecessem o xodo rural de um
campesinato empobrecido que, percebendo as facilidades da vida na capital do imprio,
aflua em ritmo crescente e ainda mais acelerado para a cidade.
Alm disso, Caio Graco procurou dividir a classe dominante romana. Tentou obter
o apoio dos equestres concedendo-lhes alguns dos direitos e privilgios antes exclusivos
ordem dos senadores. Uma dessas medidas foi a de transferir para os cavaleiros os
postos de jurados, at ento reservados aos membros do Senado 66. Caio Graco
continuou, como fizera seu irmo, a apresentar projetos de lei para serem votados
diretamente pela assemblia popular, sem consultar o Senado da Repblica, apoiando-se
nas conquistas histricas do povo romano, como a que foi estabelecida pela lei Hortnsia,
de 287 a.C., fazendo valer por si a deciso tomada pelo povo em plebiscitum. Apesar
disso, era usual consultar o Senado e as medidas dos irmos Graco apontavam para uma
radicalizao da democracia e da soberania da vontade popular, para um reforo do poder
e da legitimidade da assembleia popular em detrimento do Senado. Mas este era um
regime essencialmente oligrquico. A nobilitas no toleraria ver seu glorioso Senado,
fonte de todo o poder e dignidade da Repblica romana, transformar-se num conselho
como a Bul de Atenas ou mesmo em algo prximo disso. Na verdade, a oligarquia
senatorial era incapaz de tolerar a mnima diminuio do seu controle sobre a poltica de
Estado. A assembleia popular romana no seria a Eclsia dos gregos atenienses. O tempo
de fazer concesses ao povo havia terminado. E mesmo quando, no regime imperial,
importantes concesses referentes aos direitos sociais dos cidados do imprio so feitas,
66 BLOCH, op. cit., p. 162.

elas so acompanhadas da progressiva usurpao do poder por uma monarquia


aristocrtica e burocrtica e da diminuio do significado poltico da cidadania romana.
Caio Graco foi reconhecido como o chefe do colgio de tribunos nos dois anos em
que exerceu o cargo e teve sua ao um carter decisivo nas disputas polticas futuras.
Caio tentou conceder aos latinos, que eram os confederados mais prximos de Roma, a
cidadania romana em sua plenitude, com todos os direitos garantidos e estabelecidos para
os cidados romanos, e aos demais itlicos ele pretendia conceder os privilgios at ento
reservados unicamente aos aliados latinos. As massas romanas rejeitaram tal projeto de
Caio Graco, o que lhe custou a perda de parte de sua popularidade. Aproveitando-se desta
brecha, a aristocracia tentou, uma vez mais, influenciar diretamente as instituies
exclusivas da plebe, utilizando-se do tribuno Marco Lvio Druso para suplantar Graco e
minar de vez sua influncia sobre as massas populares. Caio tentara resolver o problema
da reforma agrria e do acesso terra para os cidados romanos por meio de uma poltica
de colonizao de outros territrios. O lugar escolhido por Caio Graco foi o territrio da
velha Cartago, no Norte da frica, onde pretendia organizar sua colnia Junnia. Assim,
para enterrar a proposta de colonizar a regio do Norte da frica, Druso props que se
fundassem doze colnias itlicas, ao invs das colnias fora da Itlia propostas por Caio,
mesmo que isto trouxesse prejuzos aos confederados. A poltica de manipulao das
massas engendrada pela aristocracia senatorial havia funcionado e, sem se aperceber do
ardil, e na ausncia de uma comunidade de interesses real entre romanos e confederados,
o proletariado preferiu apoiar o projeto de Marco Lvio Druso, pois permaneceria em seu
prprio pas e no teria de emigrar para terras estranhas de onde se ouviam histrias de
tempestades terrveis e animais ferozes, exercendo, assim, os senadores, o controle das
massas atravs do medo difundido deliberadamente para este fim.
Diferentemente da estratgia da aristocracia empregada com Marco Otvio de
vetar as medidas populares, agora se tentava ganhar o apoio popular para demagogos
escolhidos pela classe dominante para manter as massas sob controle. Ao invs de
simplesmente matar o inimigo, a classe dominante romana primeiro o desmoralizava,
retirava-lhe o apoio do povo, para que ento o pudesse eliminar sem grandes

inconvenientes. O resultado da nova poltica arquitetada pela aristocracia senatorial


apresentado por Lon Bloch:

Ao regressar de frica, Caio Graco verificou que o seu colega Lvio Druso
gozava da confiana do povo. Ao apresentar pela terceira vez a sua candidatura para
tribuno, Graco foi derrotado. O Senado, vendo que o seu poderoso inimigo tinha perdido
a sua anterior influncia sobre as multides, julgou chegado o momento de iniciar a sua
obra de reao. De resto, o momento era extraordinariamente propcio, pois tinha sido
eleito o cnsul Lcio Opmio, o vencedor de Fregella, encarniado inimigo da poltica
dos irmos Gracos. A luta estalou ao propor-se a supresso da colnia Junnia. As
sangrentas cenas que se desenrolaram quando Tibrio foi assassinado voltaram a
reproduzir-se, mas com muito maior fria e violncia. Morreram muitas centenas de
partidrios dos Gracos com os dois representantes mais ilustres do partido reformador:
Caio Graco e Flvio Flaco (121 a.C.).67

Desta vez, a nobreza senatorial cercou-se de artifcios legais para tentar legitimar
a sua poltica violenta de eliminao fsica de seus inimigos polticos. Parece estar correta
a opinio de Apiano: este conflito marcou uma mudana profunda na poltica romana,
sendo um divisor de guas, inclusive na forma que tomaram a partir de ento as lutas
sociais. Na batalha travada entre a nobilitas e o povo, que alcanou um nvel de grande
radicalidade, enquanto no passado a luta entre patrcios e plebeus levara quase
constituio de um Estado paralelo dos plebeus e em momento algum degenerara de fato
para a luta armada durante toda a disputa entre patrcios e plebeus o que se viu foi uma
constante luta poltica , agora a nova aristocracia romana, nova no s por no ser mais
a velha aristocracia patrcia, tendo nascido das lutas entre as duas ordens do incio da
repblica, mas porque era agora uma aristocracia senhora de todo o mundo mediterrnico
e no apenas de uma cidade-Estado, no estava disposta a fazer quaisquer concesses.
Era uma classe dominante que passara a se sustentar do sangue e suor dos milhares de
escravos trazidos de outros pases como prisioneiros de guerra e da explorao das
provncias, nascida das guerras contra Cartago; principalmente, uma aristocracia ainda
mais belicista e imperialista. E era o imperialismo romano que matinha o Estado e a
aristocracia. Os privilgios sociais conquistados por estes nobres distanciam-nos
67 BLOCH, op. cit., p. 166.

enormemente daquela nobreza da sociedade romana arcaica, governante de uma cidadeEstado, como outras tantas cidades-Estado da Itlia e do Mediterrneo. A nobilitas
patrcio-plebeia, em fins do sculo II a.C., governava um imprio de estrutura bastante
complexa e que contava com uma intensa circulao de mercadorias e uma administrao
crescentemente sofisticada. No momento da queda do regime republicano, a realidade
poltica e social j estava transformada e o regime imperial foi uma forma de ajustar o
aparato de Estado a estas novas estruturas:

O mundo mediterrnico unificado por Roma, desde o II e I sculos, no se


constituiu numa sociedade global. Podemos falar de unificao poltica e administrativa
de um conjunto de cidades e monarquias de etnias diversas repartidas em vrias formas
lingsticas ou culturais, com estruturas scio-econmicas prprias. Roma permitiu a
existncia de diversas formas econmicas e sociais adaptadas a realidades regionais,
sem transformar a estrutura de produo, como por exemplo no Egito. No entanto, a
unidade poltica levou formao de um sistema de mercados interlocais e
interdependentes generalizando as formas de trabalho e agilizando as atividades
mercantis e financeiras. O Imprio constituiu-se num importante mercado para o
escoamento da produo agrcola e inverso de riqueza da aristocracia italiana. A
criao dos mecanismos de explorao sistemtica atravs do sistema fiscal canalizou
para a Itlia os recursos provinciais.68

E ser justamente esta aristocracia italiana, exploradora do restante o imprio, que


ir num futuro ainda relativamente distante derrotar o Oriente na batalha entre Otvio e
Marco Antnio, que marcar o fim da Repblica romana. Esta batalha, inclusive, foi o
ponto culminante de uma escalada de violncia na cena pblica romana e na vida poltica
republicana. Mas importante ressaltar que esta violncia era muito mais consequncia
do que causa. Pode parecer, leitura de Apiano, que se tratou de pura intransigncia da
aristocracia. O problema que, no momento em que os Graco apresentam o seu programa
de reformas, difcil dizer se a nobreza senatorial poderia realmente escolher outro
caminho. A vitria dos Graco poderia representar tanto uma democratizao do Estado,
que iria contra os seus privilgios polticos, econmicos e sociais, quanto um
68 MENDES, Norma Musco. Roma Republicana. So Paulo: Editora tica S.A., 1988, p. 51.

fortalecimento do poder unipessoal na figura dos tribunos; ou ainda, dos generais, ainda
mais cedo do que realmente aconteceu na histria romana. Portanto, a nobilitas nada mais
fez do que se agarrar s posies conquistadas e tentar mant-las a todo custo. Por outro
lado, verdade que a proposta dos Graco tambm tinha elementos extremamente
positivos, no sentido de evitar o desastre da Repblica, fortalecendo o exrcito de
cidados, com um programa que atendesse aos camponeses, aqueles que constituam as
fileiras do exrcito que conquistou o Mediterrneo, e impediria ou atrasaria, pelo menos,
o seu processo de profissionalizao e portanto a criao de laos de lealdade entre os
soldados e os generais que se tornaram mais fortes do que aqueles entre os cidados e o
Estado, talvez porque mais diretos e reais. De qualquer modo, tanto uma proposta quanto
a outra eram essencialmente reacionrias. A proposta dos Graco, apesar de atender s
reivindicaes das massas e aprofundar a democracia, pretendia fazer a histria
retroceder e isto no era possvel. Talvez as suas propostas fossem, talvez, viveis num
momento anterior, mas no patamar a que havia chegado o desenvolvimento econmico e
social de Roma era, no mnimo, improvvel que fosse possvel restaurar o antigo Estado
campons. J a poltica da nobilitas era essencialmente conservadora. A nobreza
senatorial pretendia congelar o tempo histrico num eterno presente, mantendo
indefinidamente sua Repblica, sua economia e seus privilgios e isto tambm no era
possvel. Na verdade, a nica maneira de manter a economia escravista-mercantil e os
seus privilgios de classe era abrir mo de sua Repblica. Somente o poder unipessoal,
to combatido pelos senadores, desde Tibrio Graco at Jlio Csar, seria capaz de fazer
as concesses necessrias e instaurar um regime de represso permanente que mantivesse
a paz social. Neste sentido, o primeiro passo no caminho da monarquia foi o prprio
senatus consultum ultimum:

Procurando conter e anular a atuao de Tibrio e Caio Graco, o nico


recurso do Senado foi declarar a Repblica em perigo e autorizar os cnsules a
utilizarem o exrcito para restabelecer a ordem na cidade. O Senado criava, ento, uma
nova arma: o senatus consultum ultimum, ressurreio da antiga ditadura, ou melhor, um
golpe de Estado que legalizava o assassinato de cidados romanos. Da em diante, a
violncia no se desligou mais da vida poltica de Roma. 69

69 MENDES, op. cit., p. 63.

A definio de Norma Musco Mendes do senatus consultum ultimum como um


verdadeiro golpe de Estado de grande utilidade, por ajudar-nos a perceber os sucessivos
golpes de Estado que levaram a que a Repblica no conservasse, no fim, mais nada de
seu contedo original, restando apenas uma ditadura militar que mantinha, por tradio,
as instituies republicanas. A marcha dos exrcitos de Sila sobre Roma, as matanas
promovidas por Mrio e Sila, a reforma do exrcito promovida por Caio Mrio, com a
sua conseqente profissionalizao, os governos de Pompeu, Jlio Csar e Otvio, foram,
todos, passos de ferrenhos adversrios polticos que rumavam num mesmo sentido: a
constituio de uma monarquia militar. No entanto, a origem disso tudo estava na
represso empreendida pela aristocracia senatorial contra os irmos Graco.
A partir do desfecho daquela que pode ser considerada a primeira fase das guerras
civis, o curso dos acontecimentos parecia apontar para o fim dramtico das liberdades
republicanas e a impossibilidade de se realizar verdadeiras reformas em prol dos mais
pobres. Mesmo as reformas do Principado no se comparam s conquistas da plebe at a
lei Hortnsia. A morte de Caio Graco foi um fato emblemtico e inaugurou um perodo de
perseguies polticas. Podemos notar a intensificao e a radicalizao das lutas
polticas e sociais no final do regime republicano. O uso da violncia como arma poltica
tornou-se corriqueiro. O recurso ao apoio das massas pelas distintas faces aristocrticas
tambm. A rejeio de Caio Graco para o seu terceiro mandato como tribuno da plebe era
o momento que a nobilitas estava esperando para executar o seu plano de extermnio dos
seus adversrios. Bloch informa-nos ainda que cerca de trs mil dos partidrios de Graco
foram estrangulados nos crceres e que os processos contra os reformistas multiplicavamse, numa nova onda de perseguies polticas que procurava restabelecer a ordem social e
poltica na Repblica.70 A reao brutal da classe dominante era mais um produto da
conjuntura de crise social. A represso do Estado era um mecanismo que tinha por

70 BLOCH, op. cit., p. 166.

finalidade conter outras sublevaes e tentativas de subverso da ordem. Mas a classe


dominante parece ter perdido a oportunidade de manter viva a Repblica romana ao
rejeitar as reformas dos Graco, pelo menos por um tempo relativamente maior. Como
dissemos acima, eles compreenderam em toda a profundidade o que significava a
cidadania romana, qual era a sua essncia. Marx tratar deste tema nos Grundrisse:

(...) parte da terra permanece em poder da comunidade, como tal, separada da


dos membros, sob a forma de ager publicus, (terra comum) em suas vrias formas. O
remanescente distribudo e cada gleba romana em virtude de ser propriedade privada,
domnio, de um cidado romano, parcela do laboratrio que lhe pertence; reciprocamente,
o indivduo romano s na medida em que possui este direito soberano sobre parte do solo
romano.71

A cidadania romana estava ligada de maneira intrnseca posse da terra. Os


soldados romanos eram camponeses-soldados. O exrcito da gloriosa Roma era um
exrcito de cidados dispostos a defender a sua ptria, a sua terra. O processo de
proletarizao dos camponeses empobrecidos, a sua substituio por milhares de escravos
que passavam agora a trabalhar nos campos itlicos, os ataques aos seus direitos sociais,
conquistados por uma dura luta desenvolvida pela plebe corroam a Roma republicana,
destruam-na por dentro. A reforma agrria dos irmos Graco era a nica alternativa para
talvez reverter a tendncia que se confirmou mais tarde com a reforma de Mrio, que
transformou o exrcito romano num exrcito profissional e abriu caminho para a afirmao
do poder unipessoal, da lealdade ao general, ao chefe, ao invs da lealdade Repblica. Os
plebeus perdiam assim as posies conquistadas na luta contra os patrcios e ficava aberto
o caminho para a deteriorao do significado da cidadania romana, conforme Marx
afirmara:

Essncia da Plebe Romana, como totalidade de agricultores, como descrita na


sua propriedade quiritria (de cidados). Os antigos, unanimemente, consideravam o

71 MARX, Karl. Formaes Econmicas pr-capitalistas. Introduo de E. Hobsbawn. Traduo de Joo


Maia. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra S.A., 1975, p.72.

trabalho da terra como atividade prpria de homens livres, uma escola de soldados. Com
ela se preserva a antiga estirpe da tribo, que se transforma nas cidades, onde se
estabelecem mercadores e artesos estrangeiros medida que os nativos emigram atrados
pela esperana de maiores riquezas. De qualquer modo, onde h escravido, os libertos
buscam sua subsistncia em tais atividades, muitas vezes acumulando riqueza: por isto, na
antiguidade, estas atividades estavam, geralmente, nas mos deles e, portanto, eram
consideradas imprprias para os cidados; da a opinio de que a admisso dos artesos
cidadania plena seria procedimento arriscado (os gregos, em regra, os excluam dela).
A nenhum romano era permitido levar a vida de um pequeno comerciante ou arteso 72

O resultado disso ser sentido sculos mais tarde, quando a cidadania romana
perderia definitivamente toda a sua importncia poltica. A distino entre cidados e nocidados determinava na Repblica os direitos e privilgios exclusivos da cidadania
romana. Mas com o advento do regime monrquico, j no Alto Imprio, o poder da
assembleia popular foi se perdendo progressivamente e, com isso, era retirado o poder do
povo romano sobre o governo. Segundo Ciro Cardoso 73 foi isso que permitiu que a
cidadania fosse sendo estendida sem maiores problemas aos provinciais at que, em 212
d.C., o imperador Caracala concedesse a cidadania a todos os habitantes livres do Imprio
Romano, com muito poucas excees. No reinado do imperador Adriano, no incio do
sculo II d.C., surge a distino formal e depois tambm legal entre os honestiores, a elite
rica e privilegiada, e os humiliores, a grande massa da populao livre, sendo a
consequncia mais drstica desta nova diviso social sancionada pela lei a possibilidade de
se tratar os humiliores da maneira que era antes reservada aos escravos, podendo agora os
homens livres e pobres do imprio sofrer penas humilhantes como a flagelao, a tortura
nos interrogatrios e o uso arbitrrio da fora pelas autoridades. A proteo e as garantias
de que os cidados romanos antes gozavam frente s autoridades governamentais foram
perdidas no ponto culminante de um processo que teve incio com o empobrecimento e a
proletarizao dos camponeses e o retrocesso nos direitos polticos dos plebeus diante da

72 Idem, ibidem, p. 73.

73 CARDOSO, op. cit., p. 71.

reconfigurao da sociedade e do Estado romanos com a nova relao de foras surgida a


partir das Guerras Pnicas e da conquista de todo o Mediterrneo.
Novamente, importante dizer que muito improvvel que, independentemente do
lado que vencesse, o antigo Estado romano pudesse ser reconstrudo, tal como era proposto
pelos reformadores. Na verdade, a prpria vitria aristocrtica e a forma como ela se deu
so evidncias disso:

A violenta reao senatorial, os assassinatos de Tibrio e Caio e o fracasso dos


objetivos que nortearam as Leis Semprnias demonstraram a impossibilidade de
reconstruo das bases do Estado campons romano, destrudas pela nova posio
cosmopolita de Roma. A atuao dos Gracos transformou o problema agrrio numa
questo poltico-jurdica de interesse dos aristocratas romanos, desviando-se das reais
necessidades scio-econmicas do campesinato.74

As aes dos irmos Graco tiveram consequncias polticas que iam para muito
alm da conjuntura em que se desenrolaram aqueles eventos. As suas idias e o seu
exemplo no podiam ser destrudos com a mesma facilidade com que se destruram os seus
corpos. Um grupo de adeptos tornou-se o continuador do seu trabalho, tendo tomado o
nome de populares ou defensores do povo e as medidas propostas por Caio Graco serviram
de base para o programa da recm-surgida faco popular. Reagindo a este novo
movimento organizado dos reformistas, a faco senatorial passou a autodenominar-se os
optimates, os melhores. No entanto, a luta no era mais entre aqueles que queriam
radicalizar a democracia e fazer valer a vontade popular e os defensores de um regime
puramente oligrquico; o que estava em jogo, agora, era a disputa pelo controle do poder
de Estado. As guerras civis entre populares e optimates giravam em torno da disputa dos
cargos no governo, mas tambm configuravam um confronto de diferentes concepes
sobre qual era a melhor forma de conduzir o Imprio Romano.
Segundo Norma Mendes, os Populares eram aqueles que atravs de programas de
reformas buscavam o apoio do povo e os timos (Optimates) eram os que tinham como

74 MENDES, op. cit., p. 63.

objetivo central manter ou restaurar o poder do Senado, associando a existncia de um


Senado poderoso manuteno da liberdade republicana 75. Apesar dos programas serem
diametralmente opostos, podemos concluir que, no final, chegou-se a um compromisso
poltico: os ideais originais dos reformadores no foram realizados, mas estes mesmos
ideais j haviam se perdido muito antes no caminho, no decorrer da prpria disputa poltica
durante o regime republicano; entretanto, a distribuio gratuita de cereais plebe urbana,
os benefcios concedidos aos veteranos de guerra e todas aquelas medidas que eram
prticas e propostas dos populares foram incorporadas pelo Estado imperial; e, por outro
lado, a principal instituio republicana o Senado se manteve como uma das principais
instituies do Estado romano, agora ao lado do prncipe ou imperador, mas pelo menos de
incio e, em especial, no reinado de Augusto, mantendo ainda o seu prestgio, mesmo que
tenha perdido muito de seu poder poltico efetivo. Instituiu-se, ento, uma monarquia
militar-burocrtica, profundamente aristocrtica no cume, mas com uma importante base
popular. Um resultado to complexo s poderia ser fruto de um processo igualmente
complexo. O primeiro a dar os passos decisivos para a conformao deste novo Estado foi
Mrio.
Caio Mrio foi o grande representante da faco dos populares. Nascido em
Arpino, filho de uma modesta famlia de clientes e servindo desde cedo no exrcito
romano, destacou-se na campanha da Numdia na guerra contra Jugurta, sendo eleito
cnsul em 107 a.C., e depois reeleito trs vezes consecutivas, de 104 a 102 a.C., mesmo
contrariando as tradies romanas, sendo tolerado pelo Senado este que era um de seus
maiores inimigos, o lder da faco popular. Em 100 a.C., Mrio seria eleito cnsul pela
sexta vez. E quem mais poderia ocupar a magistratura mxima romana do que o heri da
Guerra Jugurtina, o defensor de Roma contra a invaso dos cimbros e dos teutes, o cnsul
do perodo da Segunda Revolta de Escravos da Siclia? A corrupo e a incapacidade dos
generais que provinham da nobreza, tanto na guerra que Roma travou contra Jugurta (111105 a.C.) quanto nas guerras contra os cimbros e teutes (113-101 a.C.), bem como as
dificuldades de Roma nestes tempos, agravada pela rebelio de escravos sicilianos (10475 MENDES, op. cit., pp. 63-64.

101 a.C.), diminuram o prestgio do Senado perante a opinio pblica e fortaleceram os


lderes populares. Mrio contrariou o destino que a ele estava reservado por seu
nascimento e alcanou a mais alta magistratura romana durante a Repblica, exercendo-a
de forma plena, com o apoio popular, e por um perodo de tempo relativamente mais longo
do que estava estabelecido pelas tradies e pelo que era o funcionamento normal das
instituies republicanas romanas, abrindo um precedente para os seus sucessores, num
contexto de crescente uso da violncia como arma poltica.
Mrio teve um enorme reconhecimento popular pelos seus feitos. Foi-lhe conferido o
cognome de terceiro fundador de Roma. Os outros dois eram o lendrio Rmulo, fundador
de Roma, e Marco Flio Camilo, o destruidor de Veios (396 a.C.), que reconstruiu Roma
depois da invaso dos gauleses (387-386 a.C.). Caio Mrio seria o terceiro por ter salvado a
capital do novo imprio dos cimbros e dos teutes 76. O perigo de uma invaso de tribos celtas
e germnicas Itlia e a memria do trgico episdio da tomada de Roma pelos gauleses, que
incendiaram a cidade em cerca de 390 a.C. foram o fator decisivo para que Mrio
consolidasse o seu poder e realizasse a reforma que mudaria para sempre o curso da histria
romana:

(...) A primeira tarefa de Mrio era reformar o exrcito. Pela fora das
circunstncias, o exrcito deixara de ser, na prtica, a milcia dos cidados, proprietrios de
terra, que atendiam a uma convocao anual. A milcia se transformou, gradualmente, num
exrcito permanente, porque as provncias exigiam a presena de tal fora. A tradio
segundo a qual o exrcito era recrutado exclusivamente entre cidados romanos que possuam
terra tornava quase impossvel alistar com a necessria rapidez o nmero de homens
necessrios.(...) os convocados no desejavam prestar servio durante anos no exrcito,
sabendo durante todo esse tempo que sua propriedade, na ptria, necessitava de cuidados. Ao
mesmo tempo, o nmero de proprietrios decrescia, e a convocao de recrutas recaa
repetidas vezes sobre as mesmas famlias, ao passo que a populao das cidades e aldeias,
que aumentava constantemente, escapava ao servio militar. Mrio realizou suas reformas nos
dias sombrios da guerra com os cimbros e deu fim, para sempre, concepo de um exrcito
de donos de terras. Convocou o proletariado s armas, atraindo-o com salrios e a promessa
de uma recompensa em terras, quando o perodo de servio expirasse. A antiga milcia
transformou-se assim num exrcito profissional, com voluntrios que prestavam longo tempo
de servio.(...)77

76 BLOCH, op. cit., p. 171.

O autor continua o texto em que diz que, com esta nova fora, Mrio defendeu a Itlia
contra a invaso dos cimbros e teutes, no ano de 102 a.C., dizimando-os parcialmente no Sul
da Glia e no Norte da Itlia. Esta era a prova da eficincia do novo exrcito e de sua
necessidade nestes novos tempos, tanto pela ameaa externa, mas, principalmente, pelas
mudanas na ordem social da Repblica romana, com o enfraquecimento poltico do
campesinato e dos plebeus como um todo. As medidas dos populares, na verdade, no
apontavam no sentido da restaurao da antiga fora do povo romano, mas no sentido do
poder unipessoal.
A transformao do exrcito, da antiga milcia de cidados num exrcito de
proletrios, na prtica clientes de um general, foi o saldo final da luta entre Mrio e o Senado.
Quando Caio Mrio foi eleito pela sexta vez cnsul em 100 a.C., fez aprovar com o tribuno
Apuleio Saturnino uma lei agrria que concedia terras da recm-conquistada parte do Sul da
Glia. Mas j no era mais um projeto como o de Caio ou Tibrio Graco. As terras foram
concedidas aos veteranos do exrcito de Mrio. Havia, ainda, uma proposta mais ampla de
criar colnias nas provncias ocidentais formadas de cidados romanos e aliados,
romanizando o Ocidente. A oposio aristocrtica a este projeto provocou uma nova luta
armada entre o Senado e o partido popular. Mrio, ento, foi, segundo Rostovtzeff, obrigado
a ajudar o Senado a esmagar a rebelio e a luta de ruas iniciada por Apuleu (Apuleio) e seus
partidrios.78
Dez anos depois do esmagamento da rebelio liderada pelos populares teve incio a
chamada Guerra Social (91-89 a.C.). A tentativa de Lvio Druso de aprovar a lei que estendia
a cidadania romana a todos os italianos instigou os lderes italianos a travar uma luta sem

77 ROSTOVTZEFF, M. Histria de Roma. Traduo de Waltensir Dutra. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1977, p. 109.

78 ROSTOVTZEFF, M. Histria de Roma, op. cit., p. 110.

trgua em nome deste direito. Druso foi assassinado e os italianos recorreram luta armada
para conquistar o direito de cidadania. Este foi um conflito de grande impacto na sociedade
romana, pois o nmero de mortes s era comparvel ao das Guerras Pnicas. Roma decidiu
negociar e os italianos terminaram por conseguir o seu objetivo, que era a cidadania romana.
Logo em seguida comeava, em 88 a.C., a disputa entre Mrio e Sila. E foi o ltimo que, pela
primeira vez, marchou com seu exrcito contra Roma. Iniciava-se a primeira revoluo militar
da histria romana e a cidade era tomada de assalto, culminando no assassinato de lderes da
faco democrtica e na revogao das novas leis aprovadas por eles. As tropas leais a Sila,
reunidas na Campnia, e que de l partiram e ocuparam a capital, agora seguiam o seu general
rumo ao Oriente para saquear o mximo que pudessem. Com sua partida, os democratas
reassumiram o controle do governo e iniciaram o primeiro longo reinado de terror, esmagando
a resistncia do Senado, eliminando seus inimigos s centenas ao serem delatados, ou por
suspeita, sem julgamento ou investigao. No regime de terror institudo pelos populares, as
vtimas foram todas senadores e cavaleiros, membros da aristocracia. O perodo de massacres
durou dois anos (88-87 a.C.) e no ano seguinte, em 86 a.C., Mrio e Cina, os lderes da faco
popular que estavam frente do processo foram eleitos cnsules, tendo Caio Mrio falecido
logo em seguida. Cina comandou o massacre aos aristocratas, utilizando-se, inclusive, de
bandos de escravos por ele libertados e que depois foram mortos por um destacamento de
soldados gauleses. Foi ele o homem que liderou os carrascos da classe dominante romana. Os
democratas no sairiam impunes pela ofensa e agresso promovida contra a aristocracia e o
seu vingador foi Sila. Ele voltou do Oriente vitorioso e com um rico esplio de guerra. Os
italianos estavam do lado dos democratas, mas muitos desertaram no curso da guerra.
Milhares de cidados romanos e aliados, a maioria samnitas, foram mortos sob as muralhas de
Roma. Sila repetiu o exemplo de Mrio e marchou sobre a cidade, que foi tomada por suas
tropas em 82 a.C. Ele exterminou de modo cruel seus adversrios polticos e introduziu outra
inovao criada no curso das guerras civis: a medida da proscrio. Durante seu governo,
listas de vtimas eram divulgadas, sem qualquer julgamento, inqurito e prova de culpa e era
oferecida uma recompensa aos seus assassinos, mesmo que fossem escravos ou libertos.
Depois da batalha entre Mrio e Sila, Roma nunca mais seria a mesma. Os exrcitos se
transformaram num instrumento poltico nas mos dos generais de que dependia a sua
remunerao e que os usavam de acordo com os seus interesses pessoais. As tropas que antes

no podiam entrar em Roma, no s penetraram em suas muralhas como marcharam sobre ela
e a ocuparam como se fosse a cidade de um inimigo estrangeiro. Os generais comportavam-se
como conquistadores de Roma, que passava a ser de quem a tomasse. A ttica do terror, a
prtica da matana em alta escala e da perseguio poltica, alcanando o mais alto grau ao
instituir-se a proscrio, tornaram-se armas corriqueiras na luta poltica e militar entre os
campos opostos.
Sila agiu no sentido de restaurar a antiga ordem republicana e, ao mesmo tempo,
impugnar as importantes conquistas sociais obtidas ao longo dos anos. Ele ps em prtica
suas reformas sob o ttulo de ditador, escolhido pelo povo por um perodo ilimitado, o que
criou mais um precedente, instituindo-se, assim, o primeiro governo verdadeiramente
autocrtico desde o fim da monarquia etrusca. A autoridade e o poder do Senado foram
restaurados e aumentados. Os senadores voltavam a ter privilgios na administrao da
justia, com a absoluta excluso dos equestres do jri dos mais altos tribunais. Os proletarii
perderam o direito ao cereal barato e os tribunos da plebe passaram a ser severamente
censurados, vigiados e controlados, devendo seus projetos ser apresentados ao Senado e por
este sancionados antes que fossem submetidos discusso e aprovao da assembleia
popular; os ex-tribunos no podiam mais concorrer s mais altas magistraturas, sendo vedado
aos representantes da plebe participar do Senado, governar uma provncia ou comandar um
exrcito. Cnsules, pretores e todos os demais magistrados estavam absolutamente
submetidos ao Senado. Alm disso, como forma de evitar que o Senado da Repblica romana
fosse ameaado em seu poder por uma fora armada, Sila determinou que todos os soldados
que voltassem das provncias para a Itlia deveriam depor suas armas e se transformar em
civis. A Constituio de Sila era essencialmente aristocrtica e recuperava o poder para as
mos da oligarquia senatorial. Foram Pompeu e Crasso, dois antigos partidrios de Sila, que
enterraram sua Constituio em 70 a.C., pelo direito de serem eleitos cnsules sem
permanecerem na cidade, mantendo o seu poder e suas conquistas. Em nome de seus
interesses pessoais, eles se aliaram aos democratas para obter um ganho poltico imediato.
Enquanto isso, destacava-se como liderana da faco popular, Jlio Csar, futuro aliado e
depois rival dos dois novos senhores de Roma.

A conspirao de Catilina, em 63 a.C., contra o Estado romano, foi outra crise de


importncia nesse perodo de guerras civis. Ele era um membro segregado da antiga
nobreza e aglutinava em seu movimento diversas camadas sociais e, mesmo, bandoleiros
armados.79 Era, pois, um movimento bastante heterogneo que capitaneava o
descontentamento com o regime. Supe-se que tivesse relativo peso poltico entre as
massas proletrias, enquanto outros autores o apresentam como um movimento que, em
outra poca, seria denominado lumpen. Ccero foi eleito cnsul, como representante do
cartel da ordem, que consistia no bloco poltico e social unificado de senadores e
cavaleiros, para fazer frente a Catilina e seus correligionrios. Quando Catilina parte para
a ao, depara-se com o estado de stio em Roma e seu exrcito de insurretos derrotado
em Fisole, perto de Florena, em 62 a.C. Desse movimento participaram de cavaleiros a
escravos e bandidos, o que demonstra o grau de descontentamento dos diversos setores
sociais com o regime vigente. A insurreio liderada por Catilina aconteceu dez anos
depois da revolta de Esprtaco. As convulses sociais e as lutas polticas ocorriam de
maneira incessante, como ondas que sucessivamente quebram na praia, de maneira
ininterrupta. Todas as tentativas de compromisso falhavam. Todas as tentativas de
soluo para a crise pela via do combate a um determinado campo e projeto poltico
tambm. Mesmo a luta poltica empreendida pelos Gracos, que poderia criar a
oportunidade de uma revoluo municipal e a constituio de um imprio itlico no
vingou, pois o seu projeto resumia-se a tentar restabelecer o antigo Estado campons,
incorporando, no entanto, os italianos, mas muito mais como parte de uma ttica poltica,
diante da necessidade de buscar uma base de apoio contra o Senado romano. Nunca
houve um claro projeto verdadeiramente revolucionrio. Nem os escravos rebeldes
queriam o fim da escravido enquanto instituio; nem a plebe queria romper com os
limites de um Estado centrado na capital Roma e no na Itlia, nem os setores que
reivindicavam a cidadania romana elaboraram de uma forma mais acabada um projeto de
renovao do sistema poltico e social. Tudo que estava em perspectiva eram os
problemas concretos e imediatos e os direitos que podiam ser conquistados nos marcos
79 Note-se que, sobretudo na fase final da Repblica, em diversas ocasies, tanto optimates quanto
populares apelaram para bandos de rua armados, por exemplo quando de processos eleitorais renhidos.

daquele Estado ou o retorno a uma suposta poca de ouro de Roma. De qualquer modo, a
repblica j estava agonizante e o Senado no podia cumprir mais qualquer papel
dirigente na sociedade romana do sculo I a.C. Sendo assim, em 60 a.C., Jlio Csar,
Pompeu e Crasso constituram informalmente, isto , sem embasamento legislativo,
como um acordo privado entre generais o Primeiro Triunvirato. Csar foi, ento, eleito
cnsul para o ano 59 a.C. e ficou com o governo das Glias Cisalpina e Transalpina por
cinco anos. Ele agia como rbitro das disputas entre Crasso e Pompeu e manteve o quanto
pde o triunvirato, pois de todos era o que menos tinha a ganhar com a retomada do
controle poltico pelo Senado, o que menos tinha influncia naquela instncia, estando
todo o seu poder no exrcito e no povo e no acordo poltico que havia estabelecido por
cima com os lderes mais proeminentes da repblica, agindo quase que totalmente por
fora do Senado. Com a morte de Crasso, foi s uma questo de tempo at que Pompeu e
Csar se enfrentassem. Pompeu foi eleito como cnsul nico, com poderes de ditador, em
52 a.C., para restaurar a ordem social estremecida pelas agitaes polticas na cidade. Em
49 a.C., Pompeu rompeu com Jlio Csar. Csar, ento, atravessou o Rubico, limite da
provncia sob sua administrao com a Itlia, e marchou sobre Roma. Pompeu fugiu da
Itlia e terminou morto na frica, assassinado em nome de Ptolomeu XIV, rei do Egito.
O fim do Primeiro Triunvirato teve como consequncia final a ditadura de Csar. Ele
foi o chefe supremo do Estado romano de 46 a.C. at 44 a.C. Ao contrrio de Mrio e Sila,
no estabeleceu um regime de terror. Pelo contrrio, Jlio Csar procurou trabalhar com seus
adversrios, convocando-os a cooperar com o novo governo. Ele no representou um chefe
democrata no poder, nem tampouco um representante da velha aristocracia. Caio Mrio foi o
representante da plebe e do exrcito de proletrios no governo romano, inimigo mortal da
aristocracia. Sila restaurou o poder do Senado e era o representante da oligarquia senatorial,
sendo no s o lder da classe dominante e de seu domnio, mas da ordem dos senadores em
especial. J Ccero foi o representante da classe dominante em seu conjunto senadores e
equestres , do cartel da ordem, da nobilitas patrcio-plebia e das demais classes
proprietrias, do imprio nascido das Guerras Pnicas. Mas Jlio Csar no pretendia, nem
restaurar o poder do Senado, nem reconhecer a soberania da plebe romana. Ele no era mais
um lder democrata, mas se apoiava nas massas para administrar o Estado. Csar acumulou
vrios cargos, funes e atribuies simultaneamente, foi eleito ditador por um perodo de dez

nos em 46 a.C. e ditador vitalcio em 45 a.C. O Senado passava a se constituir pelos seus
partidrios e, na prtica, funcionava como um conselho. Ele controlava a mquina estatal e
todos os seus funcionrios, nomeava magistrados e promulgava editos sem discusso pelo
Senado. O assassinato de Jlio Csar no foi capaz de reverter o processo por ele iniciado. O
Segundo Triunvirato, formado (desta vez com uma base legal) por Antnio, Otvio e Lpido,
deu continuidade ao trabalho de Csar, dividindo entre seus membros as provncias ocidentais
e encarregando-os da reorganizao do Estado com poderes ilimitados pelo prazo de cinco
anos. Segundo Rostovtzeff80, os itens do acordo firmado entre os trinviros receberam a forma
de lei em 27 de novembro de 43 a.C., com a apresentao e a aprovao de um estatuto pelo
tribuno Tcio. Os trs lderes cesarianos retiraram do Senado os frutos que tanto esperavam de
sua conspirao bem-sucedida. Mas o seu poder estava para sempre solapado e quando os
ltimos defensores do sistema oligrquico foram derrotados em 42 a.C., tratava-se apenas de
uma questo de tempo at que a disputa entre Marco Antnio, senhor do Oriente e aliado de
Clepatra, e Otvio, o escolhido do Senado, representante do Ocidente, da Itlia e de Roma,
se definisse para sempre em favor da monarquia. A questo fundamental era quem seria o
monarca e quem iria comandar o novo imprio, Ocidente ou Oriente. Na batalha do cio, em
31 a.C., a situao estava decidida em favor da Itlia e de Otvio; com a morte de Antnio e
Clepatra, em 30 a.C., e a tomada de Alexandria, capital do Egito, Otvio transformava-se no
nico senhor do Imprio Romano, exercendo o seu poder como o Augusto (de 27 a.C. a 14
d.C.). Formava-se uma monarquia militar que no desprezava o Senado, mas tornava-o
novamente a instituio na qual estava representada a mais alta nobreza romana, sem, no
entanto, o antigo poder que exercera no regime republicano, tendo restaurado unicamente o
seu prestgio. O poder efetivo era do princeps, do Csar.
O nascimento do regime dos Csares pode ser datado tanto a partir do governo de
Jlio Csar, de Otvio, futuro imperador Augusto, e at mesmo de Pompeu, havendo em seu
governo diversos empreendimentos que poderiam ser considerados precursores do
evergetismo dos projetos imperiais, como a construo de teatros e templos. Se observarmos o
processo de conjunto, teremos que vrios personagens, em vrias situaes diferentes,
80 ROSTOVTZEFF, op. cit., p. 143.

contriburam para a crise do sistema republicano e construo do sistema imperial de governo.


Porm, Beard e Crawford81 alertam para a mudana fundamental ocorrida com Jlio Csar:
aqui o modelo de regime cesarista aparecia de forma plena e acabada, mas no havia ainda
condies de exercer um poder autocrtico que dispensasse as tradies republicanas. Csar
avanou rpido demais no projeto monrquico: Ele era como um rei; e foi por isso que ele
foi assassinado82. Otvio foi capaz de enxergar isso e chegar a um compromisso poltico
com a nobreza senatorial para ser aceito como seu prncipe:

Otvio Augusto fundou a monarquia que seu pai adotivo quis fundar. Seguiu, no
entanto, mtodos diferentes. Aps vencer Marco Antnio na Batalha de cio em 31, Otvio
percebeu que em sua ao poltica no poderia menosprezar os sentimentos enraizados no
cidado pela tradio republicana e deveria considerar que aqueles que combateram ao seu
lado desejavam, juntamente com a paz, a manuteno de suas prerrogativas e privilgios
scio-econmicos. Da, a interpretao marxista que vincula o regime poltico do Principado
com a consolidao do modo de produo escravista.83

Fbio Duarte Joly84 corrobora com anlise da estratgia empreendida por Otvio e vai
mais longe ao afirmar que o Senado chegava a ser um parceiro importante do imperador no
regime do principado. Para este autor, o principado comeou sob a gide das armas, mas no
se manteve exclusivamente. O Principado estava amparado no s no exrcito, mas tambm

81 BEARD, Mary; CRAWFORD, Michael. Rome in the Late Republic. Londres: Gerald Duckworth e Co. Ltd,
1985, p. 84.

82 BEARD e CRAWFORD, op. cit., p. 86.

83 MENDES, op. cit., pp.75-76.

84 JOLY, op. cit., pp. 45-46.

numa parcela significativa da aristocracia romana e da emergente aristocracia das provncias,


selando um amplo acordo entre as classes proprietrias e construindo o consenso poltico em
torno do novo governo. Uma combinao de consenso e coero, de represso e concesses
aos diversos segmentos da sociedade caracterizava o regime institudo por Augusto.
Gramsci foi quem, no campo do marxismo, conceituou o fenmeno do cesarismo de
maneira detalhada e precisa:

(...) Pode-se afirmar que o cesarismo expressa uma situao na qual as foras em
luta se equilibram de modo catastrfico, isto , equilibram-se de tal forma que a continuao
da luta s pode terminar com a destruio recproca. Quando a fora progressista A luta
contra a fora regressiva B, no s pode ocorrer que A vena B ou B vena A, mas tambm
pode suceder que nem A nem B venam, porm se debilitem mutuamente, e uma terceira fora,
C, intervenha de fora, submetendo o que resta de A e de B. Na Itlia, depois da morte do
Magnfico, sucedeu precisamente isto, como sucedera no mundo antigo com as invases
brbaras.
Mas o cesarismo, embora expresse sempre a soluo arbitral, confiada a uma
grande personalidade, de uma situao histrico-poltica caracterizada por um equilbrio de
foras de perspectiva catastrfica, no tem sempre o mesmo significado histrico. Pode haver
um cesarismo progressista e um cesarismo regressivo; e, em ltima anlise, o significado
exato de cada forma de cesarismo s pode ser reconstrudo a partir da histria concreta e no
de um esquema sociolgico. O cesarismo progressista quando sua interveno ajuda a fora
progressista a triunfar, tambm neste caso com certos compromissos e limitaes, os quais, no
entanto, tm um valor, um alcance e um significado diversos daqueles do caso anterior. Csar
e Napoleo I so exemplos de cesarismo progressista. Napoleo III e Bismarck, de cesarismo
regressivo. Trata-se de ver se, na dialtica revoluo-restaurao, o elemento revoluo ou o
elemento restaurao que predomina, j que certo que, no movimento histrico, jamais se
volta atrs e no existem restauraes in toto. De resto, o cesarismo uma frmula polmicoideolgica e no um cnone de interpretao histrica. Pode ocorrer uma soluo cesarista
mesmo sem um Csar, sem uma grande personalidade herica e representativa. Tambm o
sistema parlamentar criou um mecanismo para tais solues de compromisso. Os governos
trabalhistas de Mac Donald eram, num certo grau, solues dessa natureza; o grau de
cesarismo elevou-se quando foi formado o governo com Mac Donald primeiro-ministro e a
maioria conservadora.(...)85

As definies gerais de cesarismo presentes em Gramsci so importantes para


compreendermos o processo que se deu na crise republicana romana. Jlio Csar era um
poltico democrata, de carter popular, que governou apoiado nas massas e no exrcito.

85 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do crcere. Volume 3. Traduo de Luiz Srgio Henriques, Marco Aurlio
Nogueira e Carlos Nelson Coutinho. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Civilizao Brasileira, 2007, pp.76-77.

Augusto apoiava-se nos cidados italianos, no exrcito e no Senado e, apesar de ser um


representante aristocrtico no governo do Principado, agia como rbitro dos conflitos polticos
e sociais e fez importantes concesses de direitos sociais s diversas classes que compunham
a sociedade romana. O Csar no o simples rbitro das classes sociais fundamentais. Ele
produto de um processo histrico especfico, de uma relao de foras determinada. Nesse
caso, ele tambm se apia na burocracia do Estado romano. O corpo de funcionrios do
imprio, muitos deles libertos, tambm era fonte do poder do imperador. Augusto conseguiu
pr fim s lutas intestinas e s guerras civis que dilaceravam o Estado, que destruam foras
produtivas, que exterminavam os melhores membros do exrcito e da aristocracia, que
levavam Roma para o abismo e colocavam em perigo a posio alcanada no Mediterrneo a
duras penas. Uma coisa se mantm de Jlio Csar a Otvio Augusto: esta era uma monarquia
militar, ou uma ditadura militar chefiada por um monarca e isto tem implicaes. O controle
das foras armadas era fundamental para o exerccio efetivo do poder. Esta era a pea
fundamental no jogo poltico. Desde a reforma de Caio Mrio, o exrcito assumira o papel
decisivo no domnio poltico de Roma. Todos os ditadores de Roma no perodo de crise da
repblica ocuparam a cidade com suas tropas: Mrio, Sila, Pompeu e Jlio Csar. A
reorganizao do Estado que levou monarquia teve sua origem no princpio da soberania
popular. As primeiras reformas que minaram o poder oligrquico vieram da Assembleia
Popular e, embora os cidados romanos tenham perdido o seu papel de protagonistas na vida
poltica de Roma, direitos sociais importantes foram conquistados sob a monarquia,
concesses que eram impossveis sob o domnio direto da oligarquia senatorial.

3 A PRIMEIRA REVOLTA DE ESCRAVOS NA SICLIA

As rebelies escravas precipitaram-se no perodo de diviso nas classes dominantes da


Repblica Romana e de grandes tumultos polticos e sociais. Um elevado nmero de
escravos, muitos deles de primeira gerao, capturados durante as vitrias romanas no
Mediterrneo, eram explorados de maneira brutal, sendo tratados de modo cruel e violento.
Alegou-se que os senhores de escravos sicilianos sequer garantiam a alimentao dos seus

servos, forando-os a roubar para assegurar sua sobrevivncia. A situao de insuportveis


sofrimentos pelos quais passavam os escravos, quando combinada com uma ciso no interior
das elites republicanas, fez explodir a revolta na ilha.
A partir da Primeira Guerra Pnica, a Siclia tornou-se a primeira provncia romana.
Com a Segunda Guerra Pnica, deu-se um novo impulso para a economia da ilha, que
constitua um celeiro para Roma. A produo escravista nos latifndios agrcolas e nas
fazendas de gado gerava lucros para os senhores romanos, sicilianos e italianos. Mas essa
riqueza produzida devia-se a um exacerbado grau de explorao dos escravos sicilianos, o que
gerava descontentamento e criava um ambiente propcio para a rebelio. As Guerras Servis da
Siclia so marcadas por esta organizao do trabalho baseada na superexplorao e nos
abusos por parte dos proprietrios. A Primeira Guerra Servil durou de 135 a.C. a 131 a.C. e a
Segunda Guerra Servil, de 104 a.C. a 101 a.C., tendo mobilizado milhares de escravos que
organizaram exrcitos e formaram quilombos na sua resistncia represso do exrcito
republicano. Embora a classe dominante no admitisse de forma categrica no seu discurso
que estas eram guerras verdadeiras, expressando sempre uma ambiguidade entre guerra
verdadeira e falsa guerra por ocorrer contra exrcitos de escravos, seres inferiores segundo a
ideologia escravista, foram batalhas dramticas, um embate entre tropas de exrcitos
inimigos, resultando em alguns momentos em derrotas para a nobreza senatorial e as classes
proprietrias, mesmo que o resultado final tenha sido a aniquilao dos rebeldes.
Diversas pequenas revoltas ocorreram no mundo romano antes da Primeira Guerra
Servil da Siclia, evidenciando as fragilidades do regime poltico e social naquele momento, o
que exigiria mudanas radicais na organizao do aparato poltico-administrativo para a
manuteno da ordem. Somente com o Principado foi possvel a estabilizao poltica e social
do imprio romano, sendo a poltica da nobilitas para a questo escrava no perodo de fins da
Repblica basicamente repressiva; uma poltica de conteno apenas momentaneamente
eficaz. A expanso acelerada de um modo de produo escravista preexistente atravs das
contnuas guerras de conquista romanas na regio mediterrnica cobrou seu preo. Se por um
lado permitiu um enriquecimento das famlias de grandes proprietrias num grau nunca antes
visto na histria de Roma, por outro lado essa mesma classe dominante no teve tempo
suficiente de elaborar, ou melhor dizendo, de reelaborar os mecanismos de dominao

poltica, ideolgica, administrativa e militar necessrias para um funcionamento adequado das


instituies e das relaes de produo, de modo a evitar conflitos ou de atenuar o seu alcance
e conseqncias danosas para o sistema vigente. Um novo quadro jurdico tambm seria
necessrio para as novas exigncias sociais e econmicas. A velha administrao republicana
no era capaz de assegurar a paz social. As revoltas de escravos eram apenas um dos vrios
sintomas de uma ordem social decadente. As pequenas conspiraes que antecederam as
grandes insurreies eram o seu preldio e j alertavam para os perigos que cercavam uma
produo organizada com base num regime de extrema opresso sem uma regulao destas
relaes por parte do Estado e sem a concesso de certos direitos e benefcios aos escravos
explorados, alm de uma ateno maior para a vigilncia de uma verdadeira massa de
escravos hostil aos proprietrios romanos, sicilianos e italianos.
A reao da classe dos escravos, em geral escravos de primeira gerao que foram
reduzidos condio de mercadoria dentro dos limites do imprio, sendo, no entanto, livres
em seus pases de origem, aos tratamentos humilhantes e brutais manifestou-se de forma
violenta nos sculos II e I a.C. A classe senhorial respondeu de maneira enrgica,
restabelecendo a disciplina no trabalho, mesmo que tivesse que empregar a mais dura
represso, massacrando os escravos rebeldes em banhos de sangue que, em termos
econmicos, tambm eram uma destruio de foras produtivas; entretanto, estas medidas
eram necessrias para incutir o medo naqueles escravos que quisessem seguir o exemplo dos
revoltosos. O medo o principal mecanismo de controle social. Atravs do medo, a classe
dominante pode garantir a estabilidade, na verdade, uma certa inrcia social, s at certa
medida efetiva, mas quase sempre apenas aparente, mas que impe limites para uma luta
aberta por parte dos subalternos, sem sombra de dvida. Os senhores lanariam mo de toda
sorte de atrocidades, torturas e das penas mais severas para que os seus servos fossem
reconduzidos ao trabalho para o exerccio de suas funes, executando-as docilmente,
tentando, inclusive, coibir outras formas de resistncia dos escravos como as fugas e os danos
aos animais e equipamentos das fazendas.
As terras frteis da Siclia no produziam apenas uma parte importante do alimento da
cidade de Roma; elas tambm temperavam os homens que amedrontariam a classe dominante,
por se levantarem do mais profundo da estrutura social, estando em sua base, em seus

alicerces e sendo, por isso mesmo, to ameaadores. Ali estavam os braos que aravam as
terras do imprio, o suor que regava esse solo em cada dia de trabalho na lavoura, homens
que, como tantos outros, sangravam por Roma. Os escravos gladiadores que sangravam na
arena para o divertimento do povo romano rebelaram-se no sculo seguinte. Nesse sentido, os
ventos que sopravam do Sul anunciavam os distrbios futuros. Seria tambm do Sul da Itlia
que viria a revolta de Esprtaco, s que do continente e do que era realmente a Itlia nos
tempos antigos, no de uma provncia, mesmo que to prxima quanto a Siclia. Os autores
antigos no deixaram de relacionar as duas rebelies servis vendo a tentativa de fuga de
Esprtaco para a ilha da Siclia tambm como uma tentativa de reacender a chama da rebelio
escrava naquelas terras.
A revolta dos sabinos em Roma no sculo III a.C. iniciou uma srie de pequenas
revoltas escravas que colocaram o governo romano em alerta para o clima de subverso e a
possibilidade de sublevao daqueles que eram propriedade da classe senhorial:

Os prisioneiros sabinos empreendem a fuga, liderados por pio Herdnio,


invadem casas, conclamam a populao pobre a segui-los. Cercam o Capitlio e,
enquanto os senadores reunidos discutem se aquele movimento era uma verdadeira
revolta, ou um simples motim questo ideolgica tpica que a classe dominante
elaborou, ao longo da Repblica, acerca das rebelies de escravos (verdadeira ou falsa
guerra?) pio Herdnio conclamava os amotinados revolta. Este lder acaba
aceitando uma negociao com os senadores nos seguintes termos: os sabinos no
seriam punidos e poderiam voltar para sua terra, usando para pression-los o argumento
de que eles, sabinos, eram apoiados pelos volscos e quos, povos itlicos igualmente
ameaados pelos romanos. Sitiados pelo povo romano que, aparentemente, se sentira
inseguro pela ameaa representada por estes estrangeiros revoltados, Herdnio e seus
mais de quatro mil seguidores so massacrados: alguns foram passados pelo fio da
espada, outros crucificados.(...)86

Algumas questes importantes depreendem-se deste trecho, que expe os principais


eventos em torno da revolta dos sabinos. Em primeiro lugar, os escravos rebeldes tentam
86 A passagem destacada da Tese de Arajo, op. cit., p. 175, fundamentada na anlise de J. Schmidt sobre o
tema e a fonte Tito Lvio, em sua Histria, 3,15. A sua citao importante por colocar em relevo elementos
que se repetiro nas outras revoltas.

construir uma aliana com o povo pobre da cidade. Em segundo lugar, o objetivo da rebelio
era conseguir o retorno destes escravos para sua terra natal. Para isso, os rebeldes alternam o
enfrentamento direto, o confronto, com a negociao. Um suposto apoio externo tambm
funcionaria como um elemento a mais na negociao pela libertao coletiva daqueles
escravos. Em terceiro lugar, o fato de ser aquela uma revolta de escravos dificulta uma
negociao deste tipo, pois como poderia o Senado romano estabelecer qualquer espcie de
acordo com homens que eram inferiores, servos estrangeiros? A prpria discusso ocorrida
entre os senadores sobre a natureza daquele conflito, no momento em que o Capitlio estava
cercado e o governo romano ameaado, pe em evidncia esta questo ideolgica
fundamental da sociedade escravista romana. importante observar que o povo romano no
s no se aliou aos escravos como esmagou os rebeldes, entregando-os ao governo que
empreendeu a sua crucificao, pena de morte romana. Alguns conflitos entre cidados
romanos contavam com a participao de escravos. Algumas revoltas de escravos contavam
com a participao de homens livres e pobres da Itlia, como foi o caso da revolta de
Esprtaco. Mas no raras vezes esta aliana no era possvel ou era quebrada. Na verdade, no
havia uma comunidade de interesses entre os servos de Roma e os cidados pobres romanos.
Os objetivos limitados dessas insurreies, que expressavam a conscincia possvel dos
escravos antigos, determinavam os limites destas alianas. Questes tnicas e de classe
entrelaavam-se gerando possibilidades e limites para um movimento mais amplo. Os pobres
queriam trigo mais barato, no mximo terras dentro da prpria Itlia. Os escravos queriam
voltar para os seus pases, isto , eles queiram sair da Itlia. Nunca esteve na ordem do dia a
derrubada do governo ou o fim da escravido. Neste caso, o risco de uma invaso estrangeira
ou o simples fato de uma revolta de estrangeiros pr em perigo as instituies romanas e seu
governo foi interpretado pelo povo como uma ameaa para ele mesmo; afinal, os povos que
eram derrotados e conquistados tornavam-se escravos dos vencedores, essa era a regra. Desse
modo, a rebelio servil parecia ameaar muito mais do que somente os proprietrios e o
Senado. Assim, podemos perceber que alianas entre as classes sociais subalternas na
Antiguidade eram extremamente difceis.
O sculo II a.C. pode ser considerado o sculo da rebelio escrava na histria romana.
Muitas e importantes revoltas ocorreram precisamente neste perodo. A primeira deste ciclo
de rebelies servis do sculo II foi a revolta escrava no Lcio, no ano de 198 a.C., em Stia.

Esta conspirao de prisioneiros cartagineses foi trada por dois escravos. Este um exemplo
claro da influncia da ideologia da classe dominante no sentido de desagregar e de
desarticular um movimento dos subalternos. O pretor de Roma, L. Cornlio Merula, reprimiu
e perseguiu os rebelados escondidos nos arredores de Stia, submetendo-os ao suplcio.
Tambm neste caso o nico objetivo era o retorno para a ptria. A fuga era a estratgia
principal de todos os levantes de escravos.
Em 196 a.C., escravos rurais da Etrria organizaram-se num exrcito e ameaaram
Roma. O pretor M. ulio combateu os escravos rebeldes em campo aberto e os derrotou. Os
lderes da rebelio foram crucificados para que servissem de exemplo, sem falar de que eram
elementos perigosos, justamente pela sua capacidade de liderana, de mobilizao e de
organizao. Quanto aos seus seguidores, foram devolvidos aos seus amos para que voltassem
ao trabalho e continuassem a ser explorados, preservando assim foras produtivas de grande
valor como os escravos, num momento em que isto ainda era possvel, no necessitando o
governo recorrer a uma represso mais generalizada. Outra revolta de pastores da Aplia
contou com uma represso muito maior com o massacre de cerca de sete mil escravos
rebeldes, sob as ordens do pretor L. Postmio.87
Estes foram os principais antecedentes da Primeira Guerra Servil. Como podemos ver,
a insurreio escrava na Siclia ocorreu sob um clima de rebelio geral, como nunca antes na
histria de Roma e como nunca mais haveria. O contexto de disputa acirrada no interior da
classe dominante foi um elemento decisivo para que se pudesse criar a oportunidade de
tomada do poder pelos rebeldes, que passaram a controlar a ilha constituindo um novo
governo.
As causas da revolta so expostas por um vis moralista nos escritos de Diodoro. No
entanto, a sua interpretao no deixa de ter valor na medida em que destaca o regime
excessivamente opressivo ao qual estavam submetidos os escravos sicilianos, ao mesmo
tempo em que prevalecia uma certa ausncia de controle sobre os movimentos e aes dos
escravos, sendo, de certa forma, as ms aes at mesmo incentivadas, delitos e atos violentos
87 ARAJO, op. cit., pp. 175-177; Fonte: Tito Lvio, op. cit., XXXII, 29, XXXIII, 36, XXXIX, 29, 8.

pela sobrevivncia, juntamente com o descaso das autoridades que ainda no cumpriam as
funes reguladoras das relaes sociais conforme exerceriam no perodo imperial:

Devido extrema prosperidade das pessoas que desfrutavam dos produtos


naturais dessa imensa ilha, quase todos quando ficavam mais ricos se adotavam um
padro de comportamento primeiro luxuoso, depois arrogante e provocador. Em virtude
desse comportamento os escravos passavam a ser tratados cada vez pior, e eram
correspondentemente cada vez mais alienados de seus proprietrios. (...) Os sicilianos
que controlavam toda essa riqueza competiam em arrogncia, cobia e injustia com os
italianos. Aqueles italianos que possuam um lote de escravos tinham acostumado seus
pastores a um comportamento irresponsvel a tal ponto que, em vez de prov-los com
suprimentos, encorajavam-nos a roubar.88

No texto fica bem clara a associao entre os vcios dos escravos com os de seus
senhores e como a falta de virtude dos senhores e o descumprimento de seus deveres
enquanto proprietrios e amos eram fatores geradores de instabilidade na ilha, sendo
mesmo a fonte daquele clima de insegurana e de subverso. O fato dos proprietrios de
escravos da Siclia incentivarem e estimularem os seus servos, inclusive, ao roubo para a
garantia mnima de algum alimento e roupas para vestir, contribua para semear o medo
entre os homens livres, principalmente entre as famlias mais abastadas, detentoras de
posses que poderiam ser objeto do crime praticado pelos escravos; alm disso, foi um dos
fatores que desencadearam o levante de homens brutalmente explorados e maltratados,
que sob o comando de Euno, ameaaram a ordem republicana. Diodoro d um destaque
para os pastores que, pelo seu modo de vida, mostraram-se ainda mais propensos ao
enfrentamento.
Deram essa liberdade (de roubar) a homens que devido a seu poder fsico
eram capazes de pr em prtica qualquer coisa que planejassem fazer, (...) homens que
devido falta de comida eram forados a empreitadas arriscadas, e isso logo levou a um
aumento da taxa de crime. Comearam matando pessoas que estavam viajando s ou em
pares, em lugares especialmente afastados. Depois reuniram-se em grupos e atacaram as
fazendas (...) noite, pilhando seus domnios e matando quem resistisse. Eles tornavamse cada vez mais ousados e a Siclia deixou de ser passagem noite para os viajantes.
(...) Todos os lugares foram atingidos pela violncia e roubo e assassinato. Mas pelo fato

88 Diodoro, 24 apud ARAJO, op. cit., pp.179-180.

de os pastores estarem acostumados a dormir ao ar livre e estarem equipados como


soldados, estavam (no surpreendentemente) cheios de coragem e arrogncia. 89

Neste fragmento aparece outra razo para a ecloso da Primeira Guerra Servil. Na
penltima frase, Diodoro afirma que os pastores estavam equipados como soldados,
assim como os escravos gladiadores da revolta de Esprtaco. Este parece ser um elemento
relevante para o incio destas insurreies, isto , a existncia de um grupo de escravos
que tivessem sua disposio armas para comear um conflito que depois estender-se-ia
para os demais, em especial os mais explorados os escravos rurais dos ergstulos.
Vale a pena destacar ainda o fator demogrfico como um dos mais importantes
para o acontecimento da rebelio escrava da Siclia, havendo muitos escravos de primeira
gerao na ilha, nutrindo um dio mortal por aqueles que lhes arrancaram de seus lares
para que vivessem sob um regime de extrema opresso e de explorao. Isto criou as
condies para uma guerra prolongada e at mesmo a vitria, mesmo que parcial e
temporria, dos rebeldes.

Os escravos que havia na Siclia eram to numerosos que quem ouvia falar
disto no acreditava, pensando que devia se tratar de um exagero. (Diodoro,
fragmentos dos livros XXXIV e XXXV)90

Com base nestes fragmentos, podemos traar, em linhas gerais, os elementos


objetivos que contriburam para uma revolta da magnitude que foi a Primeira Guerra
Servil da Siclia. Mesmo para rebelies e revolues modernas a questo demogrfica
parece ser uma varivel relevante, principalmente se combinada com a superexplorao e
89 Diodoro, 28, 29 apud ARAJO, op. cit., pp. 180-181.

90 Apud KOVALIOV, S.I. Histria de Roma. Tomo II. Traduo de Marcelo Ravoni. Buenos Aires: Editorial
Futuro, 1959, p. 194.

a misria extrema das camadas sociais mais baixas. Na Siclia, os poucos camponeses
viviam tambm numa situao de muita pobreza, o que influenciou na derrubada do
governo da ilha, que no contava com uma base social mais ampla e slida entre a
populao livre para resistir rebelio servil. Alm disso, somava-se grande
concentrao de escravos um fator agravante desta situao: uma parte considervel dos
escravos sicilianos eram provenientes da Sria. 91 Assim, muitos dos servos dos senhores
sicilianos compartilhavam uma mesma lngua, religio e cultura, facilitando a
organizao de uma revolta, havendo, desse modo, menos dificuldades na comunicao
entre os escravos. O nmero elevado de homens escravizados trabalhando na ilha
permitiu a formao de um verdadeiro exrcito rebelde e fez explodir uma insurreio, ao
contrrio das pequenas conspiraes que antecederam as Guerras Servis da Siclia.
Todos esses elementos forjaram uma identidade cultural, social e poltica entre os
escravos rebeldes. A grande quantidade de cativos de origem sria, sem dvida, foi um
fator determinante, mas no absoluto. Se por um lado foi possvel construir a unidade
necessria para empreender o combate, por outro lado no impediu traies no seio dos
prprios revoltosos, o que enfraqueceu a resistncia frente o exrcito romano.

(...) Euno, o chefe da rebelio, era um srio de Apamia. Sria da mesma


cidade era tambm sua esposa. Os romanos conseguiram apoderar-se de Tauromenio
pela traio de um escravo srio. Euno chamava aos escravos rebeldes pelo nome de
srios, etc. 92

A inexistncia de uma conscincia de classe entre os escravos antigos foi um dos


principais fatores que determinaram a sua derrota. A influncia da ideologia dominante
sobre os escravos tambm se provou bastante forte e eficaz. Podemos concluir, assim,

91 KOVALIOV, S.I. Histria de Roma. Tomo II, op. cit., p. 195.

92 Idem, Ibidem, p. 195.

que no era somente atravs da coero que os senhores exerciam o seu controle sobre os
seus servos. A ideologia cumpria uma funo desarticuladora das revoltas fundamental. O
terico marxista que melhor desenvolveu o tema foi Antonio Gramsci:

A histria dos grupos sociais subalternos necessariamente desagregada e


episdica. No h dvida de que na atividade histrica desses grupos h uma tendncia
unificao, ainda que seja a nveis provisrios; porm esta tendncia se rompe
constantemente pela iniciativa dos grupos dirigentes e, portanto, s possvel mostrar
sua existncia quando se haja consumado o ciclo histrico e sempre que essa concluso
haja sido um xito. Os grupos subalternos sofrem sempre a iniciativa dos grupos
dominantes, inclusive quando se rebelam e se levantam. Na realidade, inclusive quando
parecem vitoriosos, os grupos subalternos se encontram em uma situao de alarma
defensivo (...). Por isso, todo indcio de iniciativa autnoma dos grupos subalternos tem
que ser de inestimvel valor para o historiador integral; disto se desprende que uma
histria assim no se pode tratar mais que monograficamente, e que cada monografia
exige um acmulo enorme de materiais a mido difceis de encontrar. (C.XXIII; R. 191193) 93

Conforme prosseguimos em nosso estudo, vamos descortinando a dinmica da


luta de classes na Antiguidade. As classes sociais subalternas lutavam em condies
deveras desfavorveis. Mas a luta que empreendiam era significativa e impunha classe
dominante o seu reconhecimento enquanto fora beligerante respeitvel nos momentos de
conflitos de grande envergadura e ameaa real ordem social vigente. As batalhas
empreendidas pelos servos do imprio ainda implicavam em outra questo, no menos
importante para a classe de senhores proprietrios de terras e de escravos: o
reconhecimento da humanidade daqueles escravos. Infelizmente, para os rebeldes
sicilianos, as condies histricas ainda no permitiam o tipo de fugas-rompimento que
ocorreram na Amrica colonial, isto , um movimento amplo de fugas para dentro onde
encontram a dimenso poltica para a transformao social, em outras palavras, a luta
pela mudana do sistema, pela abolio da escravido. 94 As fugas-rompimento ocorridas
93GRAMSCI, Antonio. Antologia II, 1926-1937., p. 493.

94 REIS, Joo Jos; SILVA, Eduardo. Negociao e Conflito: A Resistncia Negra no Brasil Escravista. So
Paulo: Companhia das Letras, 1989.

na Antiguidade foram significativas e insurreies escravas podem ser verificadas, assim


como fugas individuais e coletivas de todos os tipos. Mas no existia um movimento
poltico no interior da sociedade escravista romana, que partisse de homens livres ou dos
prprios escravos, unindo-os, preferencialmente, sob a bandeira da libertao geral dos
escravos e o fim desta forma de trabalho compulsrio no Mundo Antigo. Este fator
limitador destas revoltas de escravos antigos as colocava num beco sem sada, numa
situao em que o fracasso delas tornava-se quase inevitvel. claro que isso acabava
gerando situaes absolutamente desesperadoras, que, somadas com a falta de confiana
nas prprias foras e a falta de uma identidade de classe suficientemente forte, na verdade
bastante incipiente, tornavam-se terreno frtil para a influncia poltica e ideolgica da
classe dirigente e dominante a tal ponto que levava a recorrentes traies e dissenses. As
rupturas no interior dos subalternos foram freqentes e expressavam, sem dvida, o
carter irresoluto dos combatentes diante de um cenrio em que suas alternativas eram
pouco promissoras. Isto no quer dizer que no houvesse espao para escolhas e
possibilidades de vitria; escolhas foram feitas, mas os condicionamentos histricos
faziam com que os atores polticos quase sempre errassem e nesta conduo errtica de
sua organizao e de todo o processo de luta favoreciam o campo adversrio em igual ou
maior medida que qualquer outra varivel de uma guerra, desde o conhecimento da
geografia at a vantagem militar.
O principal lder da revolta, Euno, chegou Siclia no ano de 139 a.C. e seu
proprietrio era Antgenes que morava na cidade de Enna. A funo de Euno era entreter
os convidados dos banquetes em que seu senhor participava, ou que promovia. Ele fazia
diversas mgicas e truques para divertir os convidados. Assim, a liderana da rebelio
partia de um escravo domstico, que trabalhava como uma espcie de bobo da corte. O
fato de ser um escravo urbano fazia com que ele tivesse um acesso maior s informaes
e aos conhecimentos e bens culturais disponveis e que circulavam naquela sociedade,
mesmo com as limitaes impostas pela sua posio social. Alm disso, por ser um
escravo domstico, gozava de maior liberdade de movimentos, pelo menos se

compararmos com os escravos rurais dos ergstulos, o que lhe permitiu conduzir a
agitao que gerou a revolta armada dos servos sicilianos contra os seus amos. Euno era
ainda um lder religioso; dizia ele ter contato com a Deusa Sria, Atargatis. Em seus
relatos para os escravos, mas tambm para os convidados dos banquetes, sem que os
mesmos encarassem com muita seriedade, ao contrrio daqueles da mesma classe de
Euno, o futuro lder da rebelio servil dizia que havia se tornado consorte da Deusa Sria
em npcias rituais, identificando-se com o deus solar Haddad, e lanava chamas pela
boca, utilizando uma noz e algum combustvel, e com estes truques tentava impressionar,
principalmente a seus pares, afirmando trazer mensagens da divindade sria. O escravo
ainda falava que ia ser rei da ilha e que aqueles que eram agora escravos formariam um
reino na Siclia (Diodoro, XXXIV-XXXV). Arajo 95 reproduz este relato de Diodoro e
apresenta os primeiros passos da agitao poltica dos escravos sicilianos e os motivos
que determinaram a escolha de Euno como sua liderana. O aspecto religioso tambm
cumpriu um papel fundamental na escolha de Esprtaco como principal liderana da
revolta de escravos iniciada no Sul da Itlia no sculo I a.C.
A revolta de escravos da Siclia comeou na propriedade de um senhor de
escravos chamado Damfilo. Ele era um criador de gado e tratava de forma cruel a seus
escravos pastores, os iniciadores da rebelio na ilha. Diodoro, historiador e filsofo grego
do sculo I a.C., de uma poca de grandes transformaes e de um ambiente marcado por
novas teorias e doutrinas, como a dos esticos. No novo contexto do regime imperial aos
escravos eram garantidos certos direitos, juntamente com suas obrigaes perante o seu
senhor. A partir do reinado de Augusto, os maus tratos, a crueldade excessiva com os
servos j era condenada, sendo vista como fonte de tumultos e revoltas. Se dos escravos
era exigida a obedincia e o trabalho diligente, era exigido dos amos um tratamento justo
em relao queles que estavam sob suas ordens. partindo deste ponto de vista que
Diodoro condena as aes de Damfilo como perniciosas e o torna responsvel pelos
acontecimentos que culminaram no levante generalizado dos escravos, bem como eram

95 ARAJO, op. cit., p. 182.

igualmente responsveis todos os senhores de escravos como ele e as autoridades


governamentais que nada faziam diante de situao to anrquica:

Devido ao seu carter obstinado e selvagem, no havia um s dia em que esse


mesmo Damfilo no torturasse algum de seus escravos sem uma causa justa. Sua
esposa Matallis tinha igual prazer nesses castigos insolentes e tratava suas empregadas
e aqueles escravos que estavam sob sua jurisdio com grande brutalidade. Em
conseqncia desses castigos humilhantes, desenvolveu-se nos escravos um sentimento
de bestas selvagens em relao aos seus amos, e achavam que nada do que pudesse lhes
acontecer seria pior do que o mau estado em que se encontravam. (Diodoro, 37) 96

A sublevao dos escravos de Damfilo eram, assim, antes de mais nada,


responsabilidade dele. Isso no quer dizer que Diodoro considerasse perdovel a ao
desses escravos, mas apontava a origem dos males como a brutalidade dos prprios
senhores. O dio que os seus servos acabavam nutrindo por eles manifestava-se nessas
terrveis revoltas e criava uma situao de instabilidade social e poltica indesejvel para
a classe dominante. Desse modo, os interesses individuais e as aes irresponsveis de
determinados indivduos da classe senhorial comprometia os interesses coletivos desta
mesma classe e tornava frgil o seu domnio. A exploso de rebeldia servil teve incio na
propriedade de Damfilo e o seu centro de resistncia e irradiao na cidade de Enna:

Pois a Sorte tinha decretado que Enna, a cidadela de toda a ilha, deveria ser
seu Estado. Quando ouviram isso, presumiram que o mundo espiritual lhes daria
cobertura em sua empreitada e suas emoes estavam to decididas rebelio que nada
podia retardar seus planos. Ento imediatamente libertaram aqueles escravos que
estavam acorrentados e reuniram aqueles dos outros que viviam por perto. Em torno de
quatrocentos deles reuniram-se em um campo perto de Enna. Fizeram um pacto solene
entre si e trocaram um juramento com a fora de sacrifcios noturnos, e ento armaramse to bem quanto a ocasio permitia. Todos apoderaram-se da arma mais efetiva de
todas, a fria, dirigida destruio do amo e da ama que os tinham humilhado. Euno os
comandava. Gritando, encorajando uns aos outros, irromperam na cidade mais ou
menos no meio da noite e mataram muitas pessoas. (Diodoro, 24b) 97

96 Apud ARAJO, op. cit., pp.183-184.

97 Idem, ibidem, pp. 184-185.

Antes de se lanarem batalha, os rebeldes consultaram Euno sobre o que os


deuses lhe diziam e ele afirmou para seus comandados que a deusa sria lhe falava que o
sucesso dependia de uma ao rpida. Alm disso, os escravos rebeldes fizeram rituais
religiosos de sacrifcio para que fossem bem-sucedidos em sua empreitada. Podemos,
assim, ver o entrelaamento entre a religio, a poltica e a guerra. A religio funcionava
para os escravos como um programa e como um elemento fundamental de sua estratgia,
na medida em que determinava o momento do combate, influenciava na escolha do lder,
ao mesmo tempo lder religioso, poltico e militar, e apontava o caminho, dando-lhe
perspectivas.
Euno foi eleito rei, intitulando-se rei Antoco, e organizou um conselho formado
pelos melhores dentre o exrcito rebelde, tendo sido um deles um certo escravo grego
chamado Aqueu. Mais tarde, tendo o eco da rebelio ressoado em outros cantos da
Siclia, alastrando-se para outras cidades a revolta servil, um ex-pirata da Cilcia, Clo,
liderou um movimento nas cercanias de Agrigento, ocupou a cidade e, ao contrrio do
que esperavam os romanos que era uma disputa de poder entre os dois, colocou-se sob as
ordens de Euno, unindo-se a ele. Alm destes dois generais, Euno contava ainda com dois
pastores como seus lugares-tenentes, Hrmias e Zuxis; com isso, o exrcito rebelde
siciliano mostrava-se bastante organizado e com comandantes de grande capacidade sua
frente. Completando a sua corte, a esposa de Euno foi feita rainha e seus sditos foram
todos chamados srios, fossem eles desta nacionalidade ou no, sendo o mais importante
neste caso o fato de haver uma tentativa de se construir um reino com uma corte inspirada
nas cortes srias e de uma monarquia de tipo helenstica, forjando no s uma unidade
militar, mas minimamente uma unidade poltica e cultural tambm. O historiador
Kovaliov tece um comentrio sobre a formao do novo governo encabeado pelos
escravos rebeldes:

significativo o fato de que os escravos rebeldes no criaram nenhuma nova


forma de autoridade estatal, limitando-se a adotar o sistema da monarquia helnica

oriental que j lhes era conhecido. O nome mesmo de Antoco, dado a Euno, estava
muito difundido na dinastia dos Selucidas. 98

Este fato de extrema importncia, pois mostra at onde os escravos antigos eram
capazes de ir em sua luta; no estava colocado nenhum processo de transformao social,
no havendo sido sequer a escravido abolida por completo pelos rebeldes, que
mantiveram vivos os senhores que sabiam fazer armas para abastecer o novo exrcito. A
reproduo pura e simples de uma forma de governo j existente buscava ao mesmo
tempo legitimidade para o novo governo perante os seus sditos, como tambm era a
nica opo vislumbrada pela direo do movimento naquelas circunstncias e como
produto do seu tempo.
Desse modo, podemos concluir que os escravos antigos no eram capazes de
realizar uma revoluo social. Isto no quer dizer que, mesmo sendo raras, no tenham se
insurgido contra os seus senhores numa luta aberta, em verdadeiras guerras, com
exrcitos e generais. As insurreies escravas, se no ameaaram o sistema, pelo menos
marcaram um avano de conscincia da classe dos escravos e demonstraram a sua
capacidade de organizao e de mobilizao coletivas. No caso da Primeira Guerra
Servil, estamos diante de uma insurreio que culminou na tomada do poder na ilha, com
a instaurao de um novo governo, chefiado pelos ex-escravos. Eles demonstraram
grande inteligncia, tentando preservar ao mximo as foras produtivas existentes, como
a mo-de-obra especializada e as plantaes, e evitaram criar um ambiente em que os
romanos pudessem obter algum apoio popular, no mexendo com os trabalhadores,
agredindo e matando os senhores ricos e proprietrios, mas no os homens livres e pobres
que habitavam a Siclia:

O mais notvel de tudo isso que os escravos rebeldes, preocupando-se


sabiamente com o futuro, no incendiaram as pequenas vilas e no destruram nem as
coisas nem as provises conservadas nelas e no molestaram aqueles que continuavam

98 KOVALIOV, op. cit., p.197.

se ocupando do trabalho dos campos, enquanto que o populacho impulsionado pela


inveja, que se confundiu com os escravos, lanou-se sobre as aldeias e no somente
saqueou as propriedades, como tambm queimou as vilas. (Diodoro, fragmentos dos
livros XXXIV e XXXV)99

Estas ltimas passagens colocaram para ns alguns problemas de primeira


grandeza. Antes de mais nada, temos que definir o processo poltico e social que
representou essa guerra servil com exatido. Uma definio incompleta, insuficiente,
pode comprometer o conjunto da anlise. Assim, partimos da compreenso desta revolta
como uma insurreio popular. Entretanto, os escravos no se rebelaram simplesmente;
eles derrubaram o antigo poder e assumiram o controle poltico-administrativo da ilha da
Siclia. Este elemento de qualidade superior no foi suficiente, no entanto, para produzir
uma nova sociedade. Permaneceram como realidades sociais a escravido e a monarquia
como modelo de regime poltico, sendo implantado pelos rebeldes aps a tomada do
poder. Neste momento torna-se incontornvel realizar uma anlise de cada conceito que
se refere a esse problema social e selecionar aqueles que forem aplicveis e teis para um
melhor entendimento do processo histrico em questo. No campo do marxismo, alguns
historiadores e tericos dedicaram-se a diferenciar insurreies de revolues e
revolues polticas de revolues sociais:

Comecemos dividindo o tema nas suas partes constitutivas. Em primeiro lugar,


necessrio recordar que uma revoluo no se deve confundir com o triunfo de um
levante militar, nem ser reduzida a um dos seus momentos decisivos, a insurreio. A
conquista do poder pela fora no define uma revoluo. A Histria est repleta de
exemplos de putchs e quarteladas que triunfaram, apesar da indiferena e apatia
popular, assim como, inversamente, de autnticas revolues populares que foram
derrotadas antes que a hora da insurreio chegasse a acontecer. Estamos diante de
fenmenos histricos de natureza diversa. 100

99 Apud KOVALIOV, op. cit., p.198.

100 ARCARY, Valrio. As Esquinas Perigosas da Histria. So Paulo:Editora Xam, 2004, p. 32.

A simples derrubada de um governo no configura um processo revolucionrio


autntico; nem mesmo a tomada do poder quando produto da ao de uma minoria. O
terico marxista Leon Trotsky j esboava as diferenas entre uma insurreio das massas
e uma conspirao e uma das questes fundamentais para caracterizar uma revoluo
poltica, pelo menos, que a conquista do poder poltico de Estado:

Derrubar o antigo poder uma coisa, tomar o poder outra coisa. 101

Os traos que distinguem o evento extraordinrio que representa uma insurreio


do processo extraordinrio que representa uma revoluo tambm so abordados por
estes dois autores:

Tampouco se deve confundir o ltimo ato do drama revolucionrio com a


revoluo. Quando uma insurreio se precipita como a hora decisiva da luta pela
derrubada do governo, porque uma revoluo j estava em marcha desafiando o poder
e provocando bruscas mudanas nas relaes polticas de fora entre as classes sociais
e, portanto, entre os partidos que pretendem representar seus interesses. 102
O mecanismo poltico da revoluo consiste na transferncia do poder de uma
classe para outra. A insurreio, violenta por si mesma, realiza-se habitualmente em
curto espao de tempo. (...)103

Sendo assim, nenhuma classe social sai de uma situao subalterna da noite para o
dia. E isso tanto mais difcil no caso das classes sociais subalternas. A insurreio ,
101 TROTSKY, Leon. A Histria da Revoluo Russa.Volume III. Traduo de E. Huggins. 3. ed. Rio de
Janeiro: Editora Paz e Terra S.A., 1978, p. 843.

102 ARCARY, op. cit., p. 32.

103 TROTSKY, A Histria da Revoluo Russa. Volume I, op. cit., p.184.

assim, somente o ponto culminante de um processo mais amplo e mais profundo.


verdade que podem existir insurreies que no sejam revolues, mas parece que
estamos diante de um caso especfico de revoluo e por isso no fcil a sua anlise. O
sistema poltico e social no foi modificado em nada; porm, no podemos ignorar o fato
de que uma classe social substituiu outra classe social no poder, no se tratando apenas de
um golpe com a mudana dos homens que governam, mas tambm da categoria de
homens que passavam, ento, a governar o pas. Este tipo especfico de revoluo o que
chamamos de revoluo poltica:

(...) revolues polticas so uma irrupo da mobilizao popular, sejam


quais forem os seus mtodos de luta, que colocam o poder em questo. Entendemos por
revoluo a acelerao dos ritmos histricos da mudana, pela agudizao da luta dos
sujeitos sociais. Sem as massas, no se fazem revolues. Sem a luta pelo poder, no se
fazem mudanas. (...)
Revolues polticas so, contudo, diferentes de revolues sociais, embora
todas as revolues sociais tenham comeado como revolues polticas. Neste nvel de
anlise, irrelevante o desenlace final dos processos, se vitoriosos ou derrotados, j que
estamos focando o nvel de tenso social que se traduziu na forma de colapso, pelo
menos parcial, da governabilidade do Estado, e em alguma forma at atomizada, ou
mesmo inorgncia de dualidade de poderes. (...) 104

A partir da anlise das fontes e com base no auxlio da teoria marxista e seus
conceitos aqueles que consideramos mais adequados para esta situao histrica
determinada, tendo-se, porm, todo o cuidado necessrio na sua aplicao, por serem
originalmente voltados para o entendimento das sociedades modernas e sua dinmica, o
que no invalida o seu uso naquilo que o essencial e possvel de ser utilizado para as
sociedades antigas, como a maioria das elaboraes de tericos marxistas; considerando
tudo o que foi dito, podemos concluir que o caso da Primeira Revolta de Escravos da
Siclia enquadra-se perfeitamente no conceito de revoluo poltica, conforme fora
formulado pelos marxistas que se opunham s teses stalinistas e sua forma de enxergar a
Histria, as sociedades e sua dinmica.
104 ARCARY, op. cit., pp. 36-37.

Devemos, antes de encerrar essa discusso, apresentar e comentar, mesmo que de


maneira breve, o que os antigos entendiam por revoluo. Em Aristteles o conceito
aparece de forma coerente e acabada:
Tais so as causas gerais das revolues; tais as suas origens. Vejamos agora
por que elas surgem de duas maneiras. s vezes os cidados se revoltam contra o
governo, com o fim de mudar em outra forma a constituio estabelecida: por exemplo, a
democracia
em oligarquia ou a oligarquia em democracia, ou estas em repblica
ou aristocracia, ou reciprocamente. Outras vezes, no contra a forma estabelecida que
se revoltam, mas, consentindo em deix-la subsistir, os descontentes querem eles prprios
governar, como acontece na oligarquia ou na monarquia. 105

Nesta passagem, Aristteles escreve que se trata da uma revoluo quando existe
uma mudana de regime poltico, como a passagem de um regime oligrquico para um
regime democrtico; mas h tambm uma revoluo, para o filsofo, nos casos em que
grupos de homens derrubam do poder outros homens que antes governavam dentro de um
mesmo regime, sem realizar reformas polticas; h ainda os casos de mudanas em partes
da constituio de um Estado. De qualquer modo, so processos turbulentos, tumultos
polticos, revoltas e golpes de Estado. Estas foram as revolues, revolues polticas
todas elas, do tempo de Aristteles. Ele ainda aborda apenas os conflitos polticos entre
homens livres, sejam eles entre os membros das prprias classes dominantes, sejam entre
ricos e pobres, mas sempre entre homens livres, nunca entre livres e escravos. No
entanto, Aristteles no viu grandes rebelies servis, que s existiram no perodo de fins
da repblica romana, com a consolidao do modo de produo escravista e sua
transformao para um sistema qualitativamente superior quele que existiu em Atenas
ou mesmo em Roma no incio da repblica. As condies objetivas, com a concentrao
de milhares de escravos trabalhando numa mesma regio, centenas numa mesma
propriedade, muitos deles escravos de primeira gerao devido dinmica acelerada de
crescimento do imprio, alm dos elementos subjetivos, sendo um dos principais a

105 ARISTTELES. A Poltica. 15.ed. Traduo: Nestor Silveira Chaves. Introduo: Ivan Lins. Rio de
Janeiro: Ediouro Publicaes S.A., 1988, p. 148.

prpria diviso no interior da classe dominante, que levava a conflitos polticos srios e
que, juntamente com as guerras externas, diminuam a capacidade dos proprietrios de
controlarem seus servos, envolvidos que estavam em lutas intestinas. importante
ressaltar, entretanto, que mesmo nesse perodo a regra foram as pequenas conspiraes,
tentativas de fuga e algumas insurreies, sendo o controle de um grupo de escravos
sobre toda uma provncia romana um fato absolutamente excepcional em toda a sua
histria. Mas o seu acontecimento mais do que suficiente para que o encaremos da
maneira que devida, como uma revoluo poltica genuna, apesar de sua derrota ao
trmino do confronto militar com o exrcito romano.
Esta revoluo escrava teve um impacto sobre outras comunidades, provncias e
propriedades com trabalhadores escravos; somente a destruio do exrcito rebelde da
provncia da Siclia poria fim onda de insubordinao desencadeada por esse conflito.
Novamente, devemos destacar que a rebelio estourara num momento de grande
fragilidade do sistema republicano diante da ameaa que surgia no horizonte hegemonia
poltica da ordem dos senadores sobre a sociedade romana. A revolta ocorreu no
momento em que o pretor nomeado para administrar a ilha ainda no havia chegado para
assumir seu cargo:

(...) Pouco depois o pretor Lucius Hypsaeus chegou de Roma e encontrou-os


numa batalha frente de 8.000 soldados mobilizados na Siclia. Os rebeldes, agora
somando 20.000, venceram, e dentro de pouco tempo seu exrcito cresceu para 200.000
homens. E eles ganharam renome em muitas batalhas com os romanos e cometeram
poucos erros. Quando a notcia disto chegou ao exterior, explodiram revoltas de escravos
em Roma (onde 150 conspiraram contra o governo), em Atenas (acima de 1.000
envolvidos), em Delos e em muitos outros lugares. Mas os funcionrios governamentais
logo as suprimiram nos diversos lugares com pronta ao e terrveis torturas como
punio, de modo que outros que estavam a ponto de revoltar-se caram em si. Mas na
Siclia o mal continuava aumentando cidades foram tomadas pelos rebeldes e seus
habitantes escravizados, e muitos exrcitos foram despedaados pelos rebeldes - , at que
o general romano Rupilius recuperou Tauromenium para os romanos depois de pr-lhe
estreito stio... (...) (Diodoro, 18, 19)106

106 Apud CARDOSO, Trabalho Compulsrio na Antiguidade, op. cit., p.143.

Neste trecho, podemos sublinhar algumas passagens interessantes. Em primeiro


lugar, a revolta da Siclia irradiou-se para outros lugares; o seu exemplo foi seguido por
outros escravos que tentaram se rebelar e se libertar. Em segundo lugar, a represso que
se seguiu serviu para incutir o medo nos demais escravos do imprio, impedindo que
ocorressem outras revoltas. Este fato foi de fundamental importncia, pois o insucesso
das revoltas que eclodiram na esteira da rebelio siciliana e o retrocesso do movimento,
marcando um recuo da reao servil contra a opresso romana levaram ao isolamento dos
rebeldes da ilha da Siclia e sua conseqente derrota. Alm disso, ao no conseguir
construir uma aliana com outras classes exploradas e oprimidas no interior da prpria
provncia, os escravos sicilianos estavam fadados ao fracasso. Somente com a adeso dos
homens livres e pobres ao exrcito rebelde ou com o seu apoio, pelo menos, somado a
uma onda de revoltas vitoriosas ou, no mnimo, de magnitude igual quela que tomava a
ilha ao Sul da Itlia, que enfraquecessem o exrcito romano poderiam garantir o sucesso
do movimento liderado por Euno. Talvez os escravos pudessem sonhar com um governo
autnomo relativamente estvel e livre do domnio romano, se este cenrio alternativo
tivesse se dado. No entanto, os escravos antigos no queriam transformar a sociedade;
no tinham um projeto de reformas polticas e sociais conseqente e, com isso,
colocavam os outros grupos sociais subalternos desde o princpio de fora de sua luta, pois
em nada melhoraria as suas vidas um movimento vitorioso que fosse encabeado por
escravos. Como os escravos no eram uma classe para si e no possuam uma
organizao que ultrapassasse o nvel local (as revoltas tinham um carter local, restritas
a um espao fsico, limitadas a uma regio qualquer, no havendo unidade entre os vrios
processos), no foi possvel articular um amplo movimento pela libertao dos escravos
ou uma frente de resistncia contra a opresso romana; a lgica que regia cada revolta de
escravos era do cada um por si, sendo lutas fragmentadas por natureza. Assim, mesmo
sendo possvel forjar a unidade entre os escravos de um mesmo senhor, numa mesma
propriedade, ou de uma mesma regio ou provncia, esse carter local mostrava-se uma
barreira intransponvel no processo de enfrentamento com a classe senhorial romana,
itlica e siciliana. Esta diviso existente entre os prprios escravos, que, no s no
tinham uma conscincia de classe, como tambm os meios de comunicao e transporte
que possibilitassem materialmente esta articulao maior entre os servos das distintas

provncias, facilitou a represso. Desse modo, os romanos puderam enfrentar cada


movimento separadamente. Outro elemento importante presente no texto a nfase posta
pelo autor no controle de diversas cidades da Siclia pelos escravos rebeldes e na
escravizao de seus habitantes; ou seja, os ex-escravos, uma vez no poder, passavam,
ento, a escravizar. O paradigma escravista no era contestado, sendo, muito pelo
contrrio, incorporado pelos revoltosos, quando confrontados com a realidade da
administrao pblica e da gesto econmica da ilha. A reproduo dos pressupostos da
sociedade escravista romana pelos rebeldes um sintoma do beco sem sada das
sociedades antigas. Diante da inexistncia de uma alternativa societria, da
impossibilidade de uma soluo revolucionria para o escravismo antigo, os movimentos
de resistncia tendiam a operar com as mesmas idias, reformulando-as, talvez, com base
em outras tradies, locais ou estrangeiras, mas, de qualquer modo, conservadora e sem
uma perspectiva transformadora. Cada um queria se libertar da sua opresso e no acabar
com a opresso geral. Cada escravo queria a sua liberdade, o que no implicava,
necessariamente, no fim da escravido. claro que, mesmo assim, a demonstrao de
fora dos escravos sicilianos que, segundo Diodoro, tomaram cidades e despedaaram
exrcitos, servia para pr em xeque a justificao terica do escravismo; buscar a
justificativa para a escravido numa suposta inferioridade dos escravos tornava-se mais
difcil, diante do exemplo fornecido pelas rebelies servis. No havia contra-argumento
mais forte s teses do escravo como ser inferior ou da guerra servil como falsa guerra do
que a capacidade de iniciativa, organizao, mobilizao e coragem dos servos do
imprio.
A fase final da guerra foi marcada pela contra-ofensiva romana:

Cidades e suas populaes inteiras foram capturadas e muitos exrcitos foram


destrudos pelos insurgentes, at que o governador romano Rupilius recapturou
Taormina (Tauromnio) para os romanos. Ele tinha sitiado a cidade to efetivamente que
condies de terrvel e extrema fome tinham sido impostas aos insurgentes tanto que
eles comearam a comer suas crianas, depois suas mulheres, e no fim eles nem mesmo
hesitaram em comer uns aos outros.107

107 Diodoro, 20 apud WIEDEMANN, op. cit., pp. 206-207.

O cerco cidade de Tauromnio, diz-se, levou os escravos, no desespero e diante


de uma fome extrema, prtica do canibalismo. A reduo destes escravos a um estado
to bestial pode ser interpretada como um produto da guerra, como apresentado no
incio do fragmento, sendo o resultado da arte romana da guerra e da eficincia de um
grande general em sufocar uma rebelio e forar o inimigo rendio; mas tambm pode
ser encarada como uma forma de manchar a imagem dos escravos rebeldes que, frente s
dificuldades da guerra, rendem-se aos instintos animais, aos instintos mais primitivos da
pura sobrevivncia e isso transparece quando o autor retrata os revoltosos devorando
primeiro suas prprias crianas, seguidas pelas mulheres, ou seja, os mais frgeis e depois
uns aos outros sem nem mesmo hesitar.
O contra-ataque das tropas republicanas ofensiva rebelde sobre as cidades
sicilianas e o exrcito romano mostrou a fora da organizao militar de Roma. O
isolamento do reino dos escravos sicilianos impediu que o mesmo fosse capaz de resistir
por muito tempo fora de um imprio inteiro mais bem estruturado, slido e de
dimenses superiores, tanto em termos de extenso territorial quanto populacionais, tendo
mais homens recrutveis sua disposio para uma guerra mais longa, se fosse o caso,
generais mais bem treinados e experimentados em campanhas militares para ganhar uma
guerra mais rapidamente, conforme demonstrara Ruplio.
O reinado de Euno teve seu fim com a ao brutal e eficaz da mquina de guerra
romana. A ausncia de um programa mais consistente permitiu que os escravos cedessem
mais facilmente ao desespero, sendo, em alguns casos, levados a trair seus companheiros
na esperana de obter o perdo de seus senhores e de acabar com aquele suplcio. A
explicao de Gramsci para a desagregao dos movimentos dos subalternos como um
produto da ao da ideologia dominante nas cabeas de cada membro da classe explorada
aplica-se aqui em sua inteireza e fornece um modelo explicativo para os processos de
traio e de diviso de todas as revoltas de escravos da Roma antiga. Isso no impediu
que muitos lutassem bravamente e tivessem uma morte herica em batalha. As duas
situaes aparecem no fragmento a seguir:

Foi nesta ocasio que o irmo de Clo, Comano, foi capturado, tentando
escapar da cidade sitiada. No fim o srio Serapio traiu a cidadela e o governador foi
capaz de trazer sob seu controle todos os fugitivos na cidade. Ele os torturou e depois os
atirou de um penhasco. De l ele foi para Enna, a qual ele sitiou da mesma maneira; ele
forou os rebeldes a ver que suas esperanas tinham chegado a um beco sem sada. Seu
comandante Clo veio para fora da cidade e lutou heroicamente com uns poucos
homens at que os romanos foram capazes de mostrar o seu cadver coberto de feridas.
Esta cidade tambm foi capturada atravs da traio, at porque ela no poderia ter sido
tomada nem pelo mais poderoso exrcito. Euno levou sua escolta de uns mil homens e
fugiu de uma forma covarde para uma regio onde havia muitos penhascos. Mas os
homens com ele perceberam que eles no poderiam evitar seu destino, pois que o
governador (cnsul) Rupilius j estava indo na direo deles, e eles decapitaram uns aos
outros com suas espadas. O fazedor de milagres Euno, o rei que tinha fugido por sua
covardia, foi arrastado para fora das cavernas onde ele estava se escondendo com
quatro serviais um cozinheiro, um padeiro, um homem que o massageava no banho e
um quarto que costumava entret-lo quando ele estava bebendo. Ele foi posto sob
custdia; seu corpo foi comido por uma multido de piolhos, e ele terminou os seus dias
em Morgantina na maneira apropriada por sua vilania. Em seguida, Rupilius marchou
atravs de toda Siclia com uns poucos soldados selecionados e libertou-a de todo
vestgio de bandos de bandidos mais cedo que o esperado. 108

Nesta passagem que retrata o desfecho da rebelio, Diodoro apresenta Euno, o


lder da revolta escrava, como um covarde. A mesma condenao que o autor despeja
sobre os senhores que maltratavam os seus servos dirigida a Euno por incitar os demais
escravos revolta. Senhores cruis e escravos insubordinados eram igualmente
repreendidos pelo discurso histrico, poltico e moral dos historiadores e filsofos do
regime imperial. Com o intuito de reforar o carter vil de Euno, Diodoro ressaltou o fato
do lder dos escravos ter fugido e se escondido, levando-se consigo serviais que
representavam o status e o luxo da posio de rei que ocupava; mas, como diz o autor,
seria ele um rei de segunda categoria, um rei covarde, o nico tipo de monarca que um
escravo poderia ser. A situao deplorvel em que ele se encontrava quando foi capturado
e a maneira como morreu, maltrapilho, na priso, colocavam ainda mais em relevo aquilo
que seria, para Diodoro, o nico destino possvel e justo para algum que inflasse os
servos contra os seus amos.

108 Diodoro, 20-23 apud WIEDEMANN, op. cit., p. 207.

A ilha havia sido tomada por bandidos, segundo o que consta do texto, mas pode
ser que muitos destes bandidos fossem os prprios escravos rebeldes, sendo equiparada a
insurreio escrava ao banditismo. evidente que os tumultos que ocorriam na Siclia
iam para alm da rebelio servil, pois os homens livres e pobres da provncia tambm se
aproveitaram da situao para saquear, sendo, portanto, possvel que nem todos os ditos
bandidos propriamente escravos; no entanto, isto no anula o fato de que era inteno do
autor equiparar os rebeldes a bandidos e que a revolta em si criou uma conjuntura
favorvel para atos de banditismo, na medida em que provocou a desordem na ilha da
Siclia.
No incio do fragmento, Diodoro aponta tanto os atos de bravura quanto os atos de
traio. Comano e Clo lutaram e morreram bravamente. Serapio traiu os seus
companheiros, cedendo ao desespero, e permitiu que as tropas romanas entrassem na
cidade de Tauromnio. O mesmo ocorreu na cidade de Enna, quando outro escravo traiu
o movimento tambm. Os rebeldes foram torturados. O desespero levou os habitantes de
Tauromnio ao canibalismo, devido fome, conforme fora apresentado na passagem
anterior, e os escravos da escolta de Euno que fugiram de Enna, suicidaram-se,
decapitando uns aos outros, com medo dos suplcios que teriam de suportar caso fossem
feitos prisioneiros. A contradio da natureza do escravo e da escravido e as
ambigidades do discurso da classe dominante transparecem neste texto. Coragem e
covardia caminham juntas. Exemplos de grandes homens e de grandes lderes lado a lado
dos exemplos de vilania e de imoralidade. De qualquer modo, o mesmo projetado sobre
os senhores, sendo Damfilo o maior exemplo de um mau senhor. Tanto o levante dos
escravos quanto a crueldade dos amos sicilianos so considerados nefastos. O discurso
ideolgico que norteia a pena de Diodoro e que configura o contedo poltico e moral de
seus escritos o que aponta na direo da harmonia entre senhores e escravos e na
responsabilidade das autoridades na regulao destas relaes, bem como na virtude
necessria classe dominante para bem administrar a propriedade e seus servos. Em
relao aos escravos, reivindica-se para eles um tratamento justo e humano, exigindo-se
apenas o seu trabalho disciplinado e sua obedincia aos seus amos e s leis. Este discurso,
naturalmente, refletia a nova situao social vigente no regime do Principado. O Estado

passaria agora a arbitrar as relaes sociais entre amos e servos, evitando novos conflitos
dessa dimenso.
Quando a revolta da Siclia chegou ao fim, depois que Ruplio liquidou com os
ltimos focos de resistncia, os escravos rebeldes foram reintegrados produo. As
execues em massa foram canceladas, porque havia uma necessidade de braos na ilha e
como boa parte dos trabalhadores eram escravos, devido concentrao enorme de mode-obra servil na provncia, os ex-rebeldes tornavam imprescindveis para economia
siciliana naquele momento. Os proprietrios tiveram que admitir os escravos capturados
por Ruplio durante a represso revolta e a tranqilidade foi novamente devolvida
regio, pelo menos por ora.
importante salientar o fato monumental que representou o levante de escravos
da Siclia. A Primeira Guerra Servil foi antecedida por vrias pequenas conspiraes e
rebelies, marcada por outras revoltas que ocorreram enquanto transcorria o conflito na
ilha, e num espao de tempo relativamente curto, outras rebelies servis expressivas se
sucederam a ela. Um exemplo a revolta de Aristnico. Esta rebelio servil aconteceu
nos anos de 132 a 130 a.C. na sia Menor. Com a morte do rei talo III, rei do reino de
Prgamo, em 133 a.C., o reino foi entregue por ele em testamento ao povo romano. A
agitao dos escravos e o descontentamento dos pobres do campo e da cidade do reino de
Prgamo transformavam-no num barril de plvora prestes a explodir a qualquer
momento. Aproveitando-se deste momento conturbado, Aristnico, filho de Eumenes II tambm pai de talo - com uma cortes de feso reclamou para si o trono de Prgamo.
Mas para conquistar o reino ele teria que se apoiar nos elementos descontentes,
chamando os escravos a se libertarem, diante da difcil empreitada, aumentado assim os
seus exrcitos. Quanto ao programa dos rebeldes, Kovaliov aponta, como sendo bastante
provvel, o culto da divindade solar, de importncia na sia e na Sria, como base
religiosa e ideolgica dos seguidores de Aristnico. Kovaliov escreve que os revoltosos
tinham um programa social utopista de criao do Estado do Sol, o reino da liberdade e
da igualdade, no qual no existiriam nem ricos nem pobres, nem escravos nem
senhores.109 O que h de mais relevante na breve exposio e anlise deste historiador o
109 KOVALIOV, op. cit., p. 201.

peso mais expressivo da populao livre na revolta, participando ativamente dela, mais
do que nos outros casos; no pretendemos aqui esmiuar esta rebelio, na tentativa de nos
atermos ao nosso recorte, que o estudo da Primeira Revolta de Escravos da Siclia e a
Revolta de Esprtaco, mas uma exposio, mesmo que sumria, assim como aquela que
fizemos em relao s rebelies servis que antecederam a da Siclia, faz-se necessria
para a compreenso do conjunto e um entendimento mais preciso do problema. Portanto,
sem que aprofundemos a discusso com a anlise das fontes, basta-nos apenas aquilo que
j vem sendo tratado pela historiografia. Ainda em Kovaliov, encontramos o destaque
dado participao mais significativa de homens livres e pobres nesta revolta servil:

No movimento de Aristnico nota-se ainda um fato caracterstico: a


participao de estratos da populao livre foi, segundo parece, muito maior que em
outros casos anlogos. Isto se explica no s pelo carter social, como tambm
nacional anti-romano do movimento, o que trouxe para o seu lado no s os escravos
e os pobres, mas tambm os estratos mdios. 110

O exrcito romano tambm teve aqui importantes derrotas militares. O cnsul de


131 a.C., Publio Licnio Crasso, caiu prisioneiro e foi morto pelos rebeldes. Somente em
130 a.C., tendo o cnsul Marco Perpena frente das legies romanas, Aristnico foi
vencido numa grande batalha. Os ltimos focos de rebelio foram debelados pelo
sucessor de Perpena, Manio Aquilio, em 129 a.C. O reino de Prgamo foi, ento,
transformado na provncia romana da sia.

4 SICLIA REBELDE

110 Idem, ibidem, p. 202.

A ilha da Siclia foi o palco das grandes guerras servis do sculo II a.C. Depois da
represso primeira rebelio servil, liderada por Euno, a situao permaneceu
relativamente calma por algumas dcadas, cerca de trinta anos, mas passado esse tempo,
estava a provncia novamente em ebulio e o fantasma da insurreio escrava pairava,
uma vez mais, sobre as cabeas dos ricos proprietrios.
As revoltas servis da Siclia continuariam a assombrar a classe dominante romana
por muitos anos aps seu fim, aparecendo durante a revolta de Esprtaco o medo de que
sua fuga para o Sul, em direo ilha, pudesse reacender a chama da rebelio naquele
que se mostrou o solo mais frtil para a luta contra os senhores e o Estado escravista.
Alm da revolta de Aristnico, uma srie de levantes de escravos ocorreu na Itlia
entre a primeira e a segunda guerra servil, sendo a primeira delas em Nucria; a segunda
prxima a Cpua, com dezenas de escravos rebelados; e a terceira, envolvendo um jovem
eqestre, Ttio Vtio, que se endividou para comprar uma escrava por quem se
apaixonara e matou os credores. 111 Assim, podemos concluir que a situao de
instabilidade no havia desaparecido, sendo apenas uma questo de tempo para que,
numa conjuntura favorvel, um novo levante de grandes propores ameaasse a ordem e
a propriedade romanas.
A oportunidade surgiu durante a guerra entre os romanos e os cimbros. Um
momento excepcional, uma conjuntura extraordinria, marcada por uma guerra externa,
foi necessria para que uma nova insurreio eclodisse; por mais que j despontasse no
horizonte a possibilidade de uma guerra servil no contexto de insubordinao dos
escravos da Itlia, o fato da aristocracia romana estar envolvida numa guerra difcil com
outro povo, demandando todas as suas energias, homens e esforos, com suas atenes
voltadas para fora, enquanto dentro das fronteiras do imprio fervilhava o
descontentamento e a revolta, foi decisivo. Era o consulado de Caio Mrio, que lutou na
guerra contra Jugurta e venceu os cimbros e teutes, sendo o grande lder romano, uma
liderana popular e um hbil general, que empreendeu a reforma militar que transformou
111ARAJO, op. cit., p. 191.

a antiga milcia de cidados num verdadeiro exrcito profissional, alterando para sempre
o jogo poltico em Roma, tornando o comando do exrcito fundamental para o comando
poltico da Repblica. O poder unipessoal materializava-se na figura do general, com
suas tropas leais, o embrio do futuro imperador, o prncipe, que extrairia o seu poder do
exrcito, do apoio das massas e do acordo com o Senado. A Repblica passava por um
momento de grandes mudanas precisamente quando explodiu a Segunda Guerra Servil
da Siclia. Diante da falta de soldados para enfrentar os inimigos cimbros, os romanos
tiveram de libertar escravos para lutar como soldados de Roma, situao somente
possvel devido a uma necessidade extrema e mesmo desesperadora. O governador da
Siclia, L. Nerva ordenou, ento, que os cativos bitnios de origem fossem libertados para
que pudessem servir na guerra. Os demais escravos da ilha solicitaram ao governador que
fossem tambm alforriados, mas Nerva voltou atrs em seu decreto diante da presso
poltica exercida pelos proprietrios de terras e de escravos da Siclia e foi isto que
instaurou o clima de revolta na provncia. A indeciso das classes proprietrias, sua
diviso quanto ao que fazer perante uma circunstncia perigosa, indicava uma fragilidade
que podia ser percebida e explorada pelos subalternos.
Em 104 a.C. comea a rebelio escrava. Uma primeira revolta ocorreu prxima a
Helicia e foi liderada por um escravo chamado Vrio, que tinha sob seu comando cerca
de trinta escravos rurais. Eles mataram seus amos noite, enquanto eles dormiam e
fugindo, conseguindo reunir, nesse momento, cerca de cento e vinte escravos. Licinius
Nerva recorreu a um escravo bandido chamado Gaio Titnio para que ele se infiltrasse no
movimento e os trasse; reaparece nesta passagem a traio de um escravo como sendo
determinante para a derrota da revolta servil. Na revolta de Euno, a cidade de Enna s
pde ser conquistada por que um escravo entregou os seus companheiros, pois do
contrrio bem provvel que o stio tivesse se estendido por muito mais tempo, no
mnimo. Sendo assim, a maioria das rebelies no foi derrotada pela fora, tendo cado
cidades e quilombos por causa do desespero de indivduos no interior da coletividade, o
que evidenciava no um fenmeno individual, at por ser recorrente, mas um sintoma,
uma expresso da ausncia de uma ideologia organicamente constituda, de uma
conscincia de classe. Mas o clima de insurreio estava instaurado e se espalhara por
vrios lugares, Herclea, Enna, e alguns escravos refugiaram-se no monte Capriano. Aps

infligir uma amarga derrota guarnio de Enna, os rebeldes j somavam mais de seis
mil e representavam o pesadelo vivo dos proprietrios sicilianos, o retorno do reinado dos
servos sobre seus amos, um reino de terror para qualquer aristocrata da poca, uma
completa inverso da ordem das coisas, e num contexto em que Roma travava uma dura
batalha contra uma ameaa estrangeira. No entanto, desta vez os escravos rebeldes no
chegaram to longe. Eles no conseguiram tomar o controle de toda a ilha, como na
primeira guerra servil.
Os rebeldes vitoriosos escolheram o seu rei, tal como se dera na rebelio liderada
por Euno, que se intitulou rei Antoco. Na Segunda Guerra Servil, o escravo eleito para
chefiar a rebelio foi Slvio, tambm um adivinho, sendo um lder poltico e religioso,
alm de militar. Segundo Diodoro (4.1-8), Slvio ordenou que as cidades fossem evitadas
e dividiu o exrcito em trs sees, com seus respectivos comandantes, avanando sobre
Morgantina, libertando escravos e aumentando os seus efetivos, ao mesmo tempo em que
desmoralizava e, portanto, enfraquecia poltica e militarmente o governador da provncia.
No entanto, a orientao geral era para que a rebelio permanecesse no meio rural, na
opinio de Arajo112 por serem as cidades centros de poder das autoridades locais. As
dificuldades que estavam colocadas para a conquista das reas urbanas impunham ao
agora Rei Trifo uma poltica mais prudente. Devemos lembrar ainda que partiram das
cidades as traies ao movimento comandado por Antoco e Clo, estando os escravos
urbanos mais suscetveis ao controle ideolgico da classe senhorial. A fase vitoriosa da
guerra para os escravos repetiu o ocorrido na primeira fase da primeira revolta de
escravos: outro escravo cilcio liderou um movimento paralelo em outra parte da ilha e se
uniu posteriormente ao exrcito rebelde mais bem organizado, pondo-se sob o comando
do lder do maior movimento de resistncia escrava da Siclia. No caso da segunda
revolta, Atnio uniu-se a Slvio. O novo general do escravo intitulado Rei Trifo tambm
era um homem dotado de poderes sobrenaturais, sendo um astrlogo e, assim, algum
que predizia o futuro. Slvio/Trifo montou, assim como Euno/Antoco, uma corte de

112 ARAJO, op. cit., p. 193.

tipo helenstico.113 Um dos fatos mais importantes desta revolta talvez tenha sido a
tomada de Triocala, que marcou o tipo de rebelio que estamos caracterizando. Triocala
era uma fortaleza natural, e l os escravos rebeldes formaram uma espcie de quilombo.
Como era uma regio de terras frteis e gua abundante, os revoltosos no passariam
pelas mesmas dificuldades de seus antecessores, os seguidores de Euno, que sofreram
pela fome durante o stio s cidades promovido pelo exrcito romano na represso ao
levante. Arajo114 resume o relato de Diodoro (7.1-4) e aponta para a formao de um
conselho de homens destacados pela inteligncia, numa organizao poltica tipicamente
aristocrtica, e de um rei ex-escravo que vivia num palcio fortificado, dando audincias
coroado e usando trajes luxuosos romanos, um signo de ostentao, tpico da realeza e da
nobreza, mas que no condizia com a situao desesperadora que enfrentavam. Por mais
que sua fortaleza parecesse inexpugnvel, Roma no descansaria at debelar o
movimento rebelde. Se por um lado os seguidores de Slvio aprenderam com a derrota de
Euno e no despenderam energias e recursos para tomar cidades, nem ficaram
encurralados em lugares que no poderiam fornecer vveres por perodos longos de stio,
talvez tenham menosprezado os romanos ao considerarem-se to seguros aquilombados
em Triocala. Nesse sentido, Esprtaco parece ter sido o lder mais consciente ao apontar
para a fuga para a fora da Itlia, como a nica maneira de escapar da escravido ou da
morte. De qualquer modo, o estabelecimento de um tipo de quilombo caracteriza esta
revolta como uma fuga para fora; no s os escravos rebeldes no queriam abolir a
escravido, como sequer era de seu interesse assumir o controle de toda Siclia. A fuga ,
para Joo Jos Reis, a principal forma de resistncia escrava e, no presente caso que
estamos examinando, dos conceitos utilizados por este historiador, o que podemos tomar

113 Idem, ibidem, p. 193.

114 Idem, ibidem, p. 194.

de emprstimo o de fugas para fora, pois nunca esteve colocada a abolio da


escravatura para as sociedades antigas, isto , fugas para dentro.115
Entretanto, o carter quase inexpugnvel da fortaleza de Triocala no impediu o
trgico fim de mais essa rebelio servil. As dissenses entre os escravos, como as
discordncias entre Atnio e Trifo que levaram a que a posio do primeiro fosse
vitoriosa, quando defendeu a luta aberta contra as tropas romanas que foram enviadas
contra eles em 103 a.C., comandadas por Lcio Licnio Lculo, que matou Trifo e
milhares de outros rebeldes em batalha campal. Mesmo com as vitrias obtidas por
Atnio no ano de 102 a.C. sobre o comandante romano Caio Servlio sua sorte estava
para mudar. A reeleio de Mrio para o consulado pela quinta vez serviu para
reorganizar o exrcito e a elite poltica romana, que nomeou Mnio Aqulio como
comandante em chefe para a Siclia. Aqulio matou Atnio e acabou com os ltimos focos
de resistncia no interior da ilha, estando estes remanescentes sob o comando de um
escravo chamado Stiro116. Segundo Diodoro, h duas verses para o fim deste conflito:

(...) Ele (Aqulio) no puniu os escravos imediatamente, mas enviou-os a Roma


e eles foram forados l a combater feras selvagens (na arena). Alguns escritores afirmam
que eles terminaram suas vidas de uma maneira particularmente gloriosa; ao invs de
combater as bestas, eles mataram uns aos outros num altar pblico, e Stiro matou ele
mesmo o ltimo homem e depois heroicamente cometeu suicdio depois de todos os
outros. A guerra servil na Siclia durou por volta de quatro anos e teve este desfecho
dramtico.117

115 REIS, op. cit., pp.71-72.

116ARAJO, op. cit., p. 194.

117 Diodoro, 10.2-3 apud WIEDEMANN, op. cit., p. 215.

Sendo assim, o destino dos ltimos rebeldes pode ter sido parecido com aquele
dos escravos da escolta de Euno que se suicidaram ou uma morte indigna pelas mos dos
romanos como a punio que recaiu sobre os espartacanos, que foram crucificados. Seja
pela crucificao, seja pela morte na arena com as feras, a punio era extremamente
severa. No fragmento transparece uma viso positiva da hiptese de suicdio coletivo,
sendo vista at mesmo como honrosa e herica a postura de Stiro, que se suicidou por
ltimo, sem fraquejar. Esta uma viso muito comum entre os esticos que consideravam
que o suicdio poderia ser uma morte digna, se a alternativa a ele era uma morte indigna
pelas mos de outro ou uma vida indigna, imposta pelas circunstncias, pelos outros ou
por si mesmo. Nesse sentido, tanto Diodoro quanto os outros escritores aos quais ele se
refere refletem esta concepo comum nos crculos aristocrticos do regime do
Principado.
A Siclia rebelde foi silenciada. A represso violenta que se abateu sobre as duas
revoltas servis serviu para aplacar a insubordinao dos escravos da ilha, impondo-lhes a
obedincia atravs do medo. Seriam necessrias mais trs dcadas para que estourasse
outra grande revolta de escravos, agora no corao do imprio, bem na Pennsula Itlica,
sob a liderana de um escravo gladiador chamado Esprtaco. A revolta comeara em
Cpua, no Sul da Itlia. Do Sul partiram os grandes movimentos de resistncia escrava
opresso romana; por isso, a tentativa de fuga para o sul, para a Siclia, pretendida pelo
comandante do exrcito de escravos da Itlia, aterrorizou os membros da classe
dominante romana. O fantasma da rebelio servil da Siclia era o pesadelo da aristocracia
italiana, romana e siciliana. Euno foi o primeiro Prometeu dos escravos do imprio;
aprisionado, como o heri mtico que fora acorrentado, terminou seus dias. Esprtaco,
assim como Trifo e Atnio, morreria em batalha e seria mais uma assombrao do
passado que os escritores do regime imperial tentariam exorcizar, mostrando a tragdia de
suas vidas, sem deixar de reconhecer, no entanto, que em seus atos de coragem e nos seus
planos engenhosos manifestava-se a sua humanidade.

CONCLUSO

As lutas entre patrcios e plebeus deram origem a uma nova aristocracia, formada por
patrcios e plebeus ricos, na verdade, uma oligarquia que se tornaria cada vez mais insensvel
s necessidades dos pobres de Roma. As vitrias dos plebeus lhes renderam instituies que
serviram como base de apoio para a luta contra os oligarcas. O tribunato da plebe e a
Assemblia Popular foram, bastante mais tarde, os instrumentos dos lderes democrticos
durante as guerras civis.
O grau de radicalizao atingido pela luta dos plebeus levou quase dualidade de
poderes na Repblica romana, com a constituio de um quase governo paralelo ao governo
da Roma Patrcia. O nvel de organizao e de mobilizao alcanado pela plebe fez com que
a antiga nobreza de sangue cedesse e buscasse o acordo com os seus membros privilegiados.
As leis aprovadas durante este perodo de agitao dos plebeus apontou no sentido da
democratizao do Estado at o ponto estabelecido pelos prprios plebeus ricos. O
compromisso firmado entre as classes proprietrias consolidou o regime republicano em sua
forma oligrquica.
As Guerras Pnicas transformaram Roma de uma cidade-Estado num verdadeiro
imprio; no entanto, as instituies da civitas no foram abandonadas. O recm-criado
Imprio Romano tinha sua frente uma classe de grandes proprietrios de terras e de
escravos, donos de latifndios e de milhares de escravos que empregavam como mo-de-obra
em suas fazendas. Este processo levou expropriao dos camponeses, diante do seu
empobrecimento, das guerras constantes, culminando na sua proletarizao. A Lei Petlia
Papria aboliu a escravizao por dvidas dos cidados romanos, mas abriu tambm o caminho
para o surgimento do modo de produo escravista baseado na escravido-mercadoria,
destruindo a antiga escravatura primitiva, empregando-se agora milhares de escravos de
primeira gerao, capturados em sua terra natal, feitos prisioneiros de guerra e submetidos a
um tratamento brutal. A classe dominante do novo Imprio Romano e da nova Repblica,
nova em sua configurao social, no podia mais fazer certas concesses sem abrir mo de
seus privilgios e isto precipitou as guerras civis que geraram a crise da Repblica e o seu fim
com o advento do Principado.

A luta iniciada por Tibrio Graco foi continuada por seu irmo, Caio Graco, e apesar
da derrota do seu projeto de reforma agrria, o que encerrou qualquer possibilidade, mesmo
que remota, de restaurar a antiga cidadania romana e o exrcito de cidados de Roma, teve
srias consequncias para o desenvolvimento das lutas polticas e sociais posteriores. A
derrota dos irmos Gracos deixou como nica alternativa para o exrcito romano seguir forte
o suficiente para enfrentar seus inimigos externos, tornar-se um exrcito profissional. Esta
reforma realizada por Caio Mrio detonou um processo que, com a intensificao das lutas
entre populares e optimates, culminaria no cesarismo. O desrespeito s leis e tradies no
curso da luta entre as fraes da classe dominante corroeu o Estado republicano at o ponto
em que suas instituies no atendiam mais aos imperativos da nova conjuntura poltica e
social.
As grandes revoltas de escravos da Roma republicana se deram num momento em que
a classe dominante estava envolvida em guerras civis e guerras externas, criando um ambiente
de convulso social permanente por quase dois sculos e gerando a oportunidade de revolta e
fuga para massas imensas de homens e mulheres escravizados.
Na Primeira Guerra Servil, Euno liderou, junto com Clo, um verdadeiro exrcito de
escravos, motivados inicialmente revolta pelos maus tratos de seus senhores. Neste primeiro
movimento de resistncia escrava, os rebeldes conseguiram assumir o controle de toda a ilha,
organizando um governo semelhante s monarquias helnicas, sendo Euno eleito rei e tendo
sido formada uma corte. Neste, assim como em nenhum outro movimento, foi empreendida
uma mudana radical da estrutura social. Os ex-escravos escravizaram seus antigos senhores,
reproduzindo as mesmas prticas econmicas do imprio. Mas a derrubada de um governo do
poder, com a subida de outro, com uma reorganizao do Estado, com a substituio de uma
classe por outra na gesto desse mesmo Estado configura, no mnimo, este movimento
revolucionrio, mesmo que se trate de uma revoluo poltica apenas. de vital importncia
destacar ainda as traies ocorridas no curso da revolta. As cidades que caram nas mos do
exrcito romano foram por meio da traio de escravos do interior das prprias cidades. Desse
modo, podemos dizer que no havia uma conscincia de classe, sendo a influncia ideolgica
da classe dominante poderosa ao ponto de desagregar os rebeldes e enfraquecer suas fileiras,
levando a rupturas e deseres. Alm disso, a falta de um programa coerente, que

apresentasse uma alternativa societria levava, inevitavelmente, a que escravos, motivados


pelo desespero de uma situao sem perspectiva, se rendessem e entregassem os seus
companheiros. interessante analisar no discurso de Diodoro a sua condenao tanto aos
senhores cruis como Damfilo quanto aos escravos que incitassem os outros desobedincia
como Euno. A grande concentrao de escravos de primeira gerao e de um mesmo grupo
tnico possibilitou que a revolta fosse mais facilmente organizada e assumisse a dimenso que
teve. As divises no interior da classe dominante, em especial a disputa entre Tibrio Graco e
a oligarquia senatorial, dificultaram a represso ao movimento rebelde, que obteve algumas
vitrias sobre o exrcito romano.
Algumas revoltas de escravos antecederam a revolta da Siclia. Durante a mesma
ocorreram vrios pequenos levantes e conspiraes de escravos, que seguiam o exemplo dos
escravos sicilianos. Entre a primeira e a segunda guerra servis, outras pequenas rebelies de
escravos tambm eclodiram. Logo depois da revolta liderada por Euno, na sia Menor,
eclodira uma revolta de escravos liderada por um homem chamado Aristnico. Todas essas
revoltas de escravos num curto espao de tempo evidenciavam uma situao extremamente
complexa, de grandes transformaes, pela qual passava a repblica romana. As crises
polticas e as guerras externas, que criavam uma conjuntura favorvel, somavam-se ao
processo de consolidao do modo de produo escravista, com a sua expanso, no modelo da
escravido-mercadoria, de uma maneira nunca antes vista, com milhares de escravos sendo
integrados produo, cativos trazidos de vrias partes do mundo mediterrnico, uma
realidade econmica e social que se confrontava com um sistema poltico que no atendia
mais s exigncias de seu tempo.
A Segunda Guerra Servil, ento, ocorre na Siclia e marcada pelos mesmos
elementos da primeira insurreio, sendo que, neste caso, no h tomada do poder poltico de
Estado na ilha, tendo sido da preferncia dos escravos a constituio de uma espcie de
quilombo em Triocala, uma fortaleza natural, que representava a sua fuga para fora, a
organizao de uma comunidade parte, garantindo a liberdade para os rebeldes e corrigindo
alguns erros da insurreio liderada por Euno, na qual os escravos rebeldes tiveram o seu
movimento sufocado pela fome nas cidades sitiadas. Em Triocala havia abundncia de
suprimentos, terras e gua e a ttica do stio dificilmente daria certo com eles, assim como a

tentativa de retir-los de l fora. Para a derrota desta segunda rebelio foram fundamentais
os erros tticos no curso da luta, sendo muitos motivados pelas dissenses no interior do
movimento.
O resultado destas insurreies foi a morte de milhares de escravos, tendo sido todas
elas, invariavelmente, esmagadas. Porm, o que elas puseram em relevo foi a capacidade de
organizao e luta de homens que em teoria eram considerados inferiores e que eram
mantidos sob a mais rgida vigilncia para que no pudessem se levantar, mas que mesmo
assim o fizeram. A maioria deles eram escravos rurais e aqueles que tinham acesso a armas, a
informaes e maior liberdade de movimentos foram suas lideranas. Os lderes eram ao
mesmo tempo chefes polticos, militares e religiosos e a religio funcionava como um
programa para esses movimentos. Sem dvida, o perodo de crise da repblica foi marcado
pelas disputas entre os grandes generais romanos pelo esplio de guerra que era Roma. Mas
est gravado para sempre na histria o papel que estas revoltas tiveram na vida social e no
imaginrio das classes dominantes que passaram a temer os servos e aquilo que eles eram
capazes de realizar, conforme podemos ver nos escritos que perduram at os dias de hoje.
O enfoque dado para as revoltas servis do sculo II a.C. concedeu preferncia sua
ligao com o contexto mais geral da crise republicana. No que se refere revolta de
Esprtaco, pretendemos inseri-la no universo da resistncia escrava, enumerando as formas de
resistncia possveis e relacionando-a com as duas guerras servis que a antecederam. A mais
ameaadora de todas as rebelies de escravos para a aristocracia romana foi tambm o ltimo
suspiro de uma etapa marcada por grandes insurreies, o ltimo captulo de uma jornada, o
encerramento de uma vaga de lutas que inaugurava tambm um novo perodo mais marcado
pela conciliao e pelas concesses feitas aos escravos, como forma de evitar conflitos dessa
monta. Euno mostrou que era possvel que um bando de escravos governasse uma provncia
inteira. Esprtaco ensinou que a fuga para a liberdade era realmente possvel e quase a
realizou, sendo vencido pelas amarras de seu tempo, que levaram o seu exrcito a se
fragmentar e a hesitar quando deveria se mostrar resoluto. Mas importante frisar que, a cada
revolta, os novos rebeldes que surgiam aprendiam com os erros do passado e davam um passo
adiante. No podemos exigir dos homens aquilo que eles jamais poderiam ter sido. Tudo que
podemos e devemos fazer investigar e expor aquilo que eles fizeram e o que poderiam ter

feito realmente, os caminhos possveis, as alternativas e escolhas que existiram na realidade


concreta.

CAPTULO III

A REBELIO ESCRAVA E O SONHO POSSVEL DE LIBERDADE

O combate de todas coisas pai, de todas rei, a uns manifestou como deuses, a outros como
homens; de uns fez escravos, de outros livres. (Herclito)

INTRODUO

A partir da anlise dos dois primeiros captulos, podemos concluir que as grandes
rebelies servis aconteceram numa conjuntura excepcional e de grandes transformaes; era
tambm uma conjuntura de intensos conflitos entre as fraes da classe dominante, o que
criou as condies necessrias para que ocorressem revoltas bem-sucedidas. Na medida em
que os de cima no entravam em acordo sobre que alternativa adotar para solucionar a crise
da Repblica e do sistema escravista, agora modificado, baseado na escravido-mercadoria
em larga escala e de uso extensivo em grandes propriedades de terras, a possibilidade de lutar
pela liberdade colocou-se na ordem do dia para os escravos de Roma.
Euno e Esprtaco foram as principais lideranas das mais importantes revoltas de
escravos que desafiaram Roma. Os escravos eram submetidos a jornadas de trabalho
extenuantes e tratados frequentemente de forma cruel por seus senhores. Os escravos
sicilianos tinham que roubar se quisessem vestir-se e alimentar-se. Alm disso, sofriam
violncias fsicas de seus senhores de maneira recorrente. Tanto na revolta de escravos da
Siclia quanto na revolta de Esprtaco os escravos rurais foram a maioria dos exrcitos. A
vanguarda dos exrcitos rebeldes era formada pelos escravos que tinham acesso a armas, que
gozavam de uma liberdade maior de movimentos ou que tinham algum tipo de treinamento

militar, como os pastores e os gladiadores. Euno e Esprtaco foram lderes polticos, militares
e religiosos, sendo escolhidos por este conjunto de qualidades.
Na revolta de Esprtaco, mais do que em qualquer outra, a possibilidade de se obter a
liberdade esteve no horizonte. As fragilidades na organizao dos escravos, as dissidncias
levando por vezes ao fracionamento das tropas, os limites de sua conscincia, a influncia da
ideologia dominante e os erros tticos do exrcito rebelde foram determinantes para que os
escravos espartacanos no tenham sido bem-sucedidos em sua fuga. Mas ela era de realizao
possvel, tanto pelo norte quanto pelo sul da Itlia, em direo ilha da Siclia. Fatores
estruturais, sem dvida, mas elementos conjunturais e da ordem dos eventos impediram a
concretizao dos planos de Esprtaco. Isto levanta a questo das possibilidades existentes
nos marcos de uma dada estrutura social e de uma determinada poca histrica. Uma
revoluo social e a construo de uma sociedade alternativa, livre da escravido, com a
abolio da escravatura ainda na Antiguidade eram impossveis. No o era, oorm, uma fuga
coletiva de um exrcito de escravos rebeldes. O sonho de Esprtaco foi o plano mais sbrio e
consequente de todos os lderes de revoltas servis da Roma antiga.
A resistncia escrava sempre existiu nas mais variadas formas, mas assumiu uma outra
feio na medida em que a repblica entrou em crise, uma crise poltica de grandes
propores, que acabou gerando uma verdadeira crise institucional, em vrios momentos, mas
de modo permanente, estrutural e irreversvel, justamente no perodo mais prximo da revolta
de Esprtaco, assumindo o seu carter mais dramtico no momento posterior, marcado pela
conjurao de Catilina, a luta entre Pompeu e Jlio Csar, a ditadura de Csar, a luta entre
Marco Antnio e Otvio e a vitria do ltimo, enterrando de uma vez por todas a Repblica
romana. Com isso, grandes insurreies escravas ocorreram nos perodos de crise
institucional, havendo sempre uma curta trgua entre as faces da classe dominante para
reprimir os levantes dos subalternos, e diante da vitria de um agrupamento poltico sobre o
outro. Durante a vigncia desses movimentos insurrecionais e momentos de crise social e
poltica, com a combinao de guerras civis e guerras servis, o paradigma escravista
republicano esteve tambm em crise e a fissura provocada no arcabouo terico da classe
dominante, colocando em descrdito o seu discurso oficial, tal como ele se apresentava, no
podendo os senhores, nas fazendas ou no Senado, tratar aquelas rebelies como atos de

banditismo, nem verdadeiras guerras como casos de polcia. Tal foi o resultado destas aes e
acontecimentos extraordinrios.
A insurreio iniciada pelos gladiadores de Cpua gerou terror entre as altas esferas da
sociedade romana e os homens livres e ricos da Repblica temiam por suas propriedades e por
suas vidas e tambm pelo mau exemplo que um exrcito de escravos fugidos, que saqueavam
a Itlia e rumavam triunfantes para fora da pennsula, poderia representar. Os ricos
proprietrios romanos agiram enquanto classe na represso ao movimento espartacano. Este
ser o centro de nossa discusso neste ltimo captulo sobre as revoltas servis do perodo
republicano.

1 AS FORMAS DE RESISTNCIA ESCRAVA

Partimos, nesta pesquisa, da premissa de que a resistncia dos escravos sua condio
de servido, em todas as sociedades escravistas, seja no mundo greco-romano, seja no Novo
Mundo, foi permanente. um fato indissocivel da escravido a rebelio contra a mesma.
Esta afirmao pode parecer absurda se virmos que estatisticamente foram poucas as grandes
revoltas de escravos em todas as pocas e lugares, salvo algumas excees. No entanto, no se
trata aqui de limitar o conceito de resistncia somente aos grandes eventos. Muito pelo
contrrio. Devemos encarar a realidade tal como ela se apresentava para os homens concretos
e reais de um determinado contexto social e histrico. Hoje em dia, quando os trabalhadores
organizam uma greve, eles tm que fazer reunies, assemblias, organizar comandos de greve,
discutir entre si qual a melhor estratgia, contar com as dissidncias no interior de seus
movimentos, enquanto enfrentam a represso policial, dos patres e do Estado das mais
variadas maneiras. Resumindo de modo muito sumrio j podemos perceber as imensas
dificuldades com as quais se deparam todos os movimentos de trabalhadores, todos os
movimentos dos subalternos, ainda em nosso tempo. Agora, imaginemos as possibilidades de
organizao de uma rebelio ou mesmo de um movimento reivindicatrio numa sociedade
escravista, na qual os escravos no tinham direitos polticos e de cidadania, sofriam violncias

de forma sistemtica e permanente, podiam ser torturados por seus senhores e pelo Estado e
mortos tambm; um regime no qual eram introduzidas divises pela prpria classe dominante
que iam para alm da ideologia, como a cultura diversificada de vrios povos e,
principalmente, o aspecto da lngua, fundamental para a comunicao e consequente
organizao das pessoas por uma questo em comum, sendo parte da estratgia dos senhores
misturar escravos dos mais variados povos numa mesma unidade de produo. Uma parcela
importante dos escravos, como os escravos que trabalhavam nas lavouras, ficavam
trancafiados e eram acorrentados; os gladiadores lutavam na arena uns com os outros pela
prpria vida; os escravos domsticos eram monitorados e controlados diretamente pelos seus
amos. fcil compreender porque foram to raras as revoltas na maioria das vezes. Porm,
isso no o mais importante. O que h de mais significativo que, apesar de todos esses
limites, impedimentos e dificuldades, mesmo assim, quando a oportunidade se deu, rebelies
servis eclodiram e aterrorizaram os proprietrios de escravos. O extraordinrio no que
tenham sido to poucas, mas o seu contrrio, o fato de que elas expressaram em diversos
casos uma superao dos limites estruturais para uma mobilizao dos escravos enquanto
classe. E tambm puderam expressar que um descontentamento, uma reao, um rechao
condio servil j eram esboados antes mesmo das grandes insurreies e que muitas outras
formas de resistncia cotidiana ocorriam justamente por essa negao a uma situao de
privao da liberdade e de explorao desmedida e violncia institucionalizada contra aqueles
que eram encarados como propriedade.
Keith Bradley118 elabora os argumentos em que se baseiam essas afirmaes e traa
um paralelo interessante entre a escravido na Roma antiga e a escravido no Novo Mundo,
bem como entre as formas de resistncia e o seu alcance em ambos os casos. Desse modo, o
referido autor apresenta a forma adequada de se trabalhar comparativamente no caso dos
estudos sobre sociedades escravistas. Analisando, em primeiro lugar, as principais revoltas
ocorridas na Amrica colonial e na Roma republicana, podemos perceber as semelhanas e
diferenas mais marcantes que, naturalmente, expressam-se de maneira mais ntida nas
118

BRADLEY, Keith. Esclavitud y Sociedad em Roma. Traduo: Fina Marf. Barcelona: Ediciones

Pennsula S.A., 1998.

situaes mais extremas. Bradley advoga a ideia de que a resistncia dos escravos era
permanente, no sendo de maneira nenhuma harmoniosa a relao entre senhores e escravos,
mesmo quando da conquista de certos direitos:

A possibilidade de que os escravos romanos tentaram de vez em quando


reduzir os rigores da escravido ou escapar de sua condio se entende simplesmente em
termos de natureza humana, especialmente se considerarmos o fato suficientemente
documentado de que os prisioneiros de guerra da antiguidade romana preferiam
suicidar-se que se submeter aos horrores da captura. Os dados sobre as sublevaes so
decisivos. Assim, no ano 73 a.C., para dar o exemplo mais conhecido, o gladiador
Esprtaco liderou uma revolta de uns setenta escravos de uma escola de gladiadores de
Cpua e durante pelo menos dois anos vagaram pela Itlia com um grande exrcito,
derrotando a uma srie de legies romanas e pondo em perigo a cidade de Roma. Depois
de um tempo, Esprtaco foi vencido, porm a insurreio que liderou demonstra a
vontade dos escravos para empreender uma ao positiva contra a escravido e tambm
uma prova do medo ancestral e a desconfiana perptua dos proprietrios para com
seus escravos.119

A questo fundamental que sempre que os escravos tiveram a oportunidade de


se rebelar o fizeram. Partir do exemplo mais extremado da insurreio de modo algum
invalida o que dissemos logo acima, apenas ilustra at onde os servos estavam dispostos a
ir para recuperar sua liberdade. No caso da revolta de Esprtaco, que ser o tema central
deste captulo, o medo que ela provoca na classe dominante romana pe em relevo o
sentimento de desconfiana e profundo temor que senhores nutrem em relao aos seus
escravos e o dio que os mesmos tm para com os seus amos. O pargrafo de Bradley
acima reproduzido comea com uma forma de resistncia que no de mesmo tipo da
insurreio, expondo o fato de que em muitos casos os prisioneiros de guerra preferiam
suicidar-se a serem reduzidos condio servil. O suicdio, assim, aparece como uma
dentre as vrias formas de resistncia existentes e uma forma no menos importante e
eficaz, se considerarmos que um escravo era comprado e, portanto, o seu senhor
despendia dinheiro para obt-lo; e que, pelo simples fato de ser uma importante fora
produtiva, a sua destruio pela morte era uma perda de um recurso importantssimo para

119 BRADLEY, op. cit., p. 137.

a economia, a perda de um fator de produo essencial para o prprio funcionamento


desse tipo de sociedade.
O reduzido nmero de rebelies de grande amplitude pode criar uma falsa
impresso de que reinou a calma nas sociedades escravistas, em especial na Antiguidade,
ou mesmo a aceitao pelos escravos de sua condio, seja pelo convencimento seja pelo
medo. Um erro, sem dvida. Na verdade, os escravos enfrentaram os seus proprietrios
da maneira que puderam, levando-se em considerao os imensos desafios a superar em
sociedades marcadas pela represso permanente e por um controle quase absoluto desses
mesmos escravos. Bradley alerta para um possvel equvoco diante da ausncia de
grandes revoltas depois daquela liderada por Esprtaco, fazendo-se necessrio encarar o
conjunto de aes cotidianas dos escravos como parte do enfrentamento aos excessos dos
senhores e da rejeio a uma situao de extrema opresso como essa. A confuso
aumenta quando so exageradas as prprias possibilidades de luta aberta contra a
escravido na Amrica colonial e se compara com Roma ou Grcia. A Revoluo
Haitiana foi um caso excepcional que no se repetiu nem mesmo nas dcadas posteriores
a esse evento. A regra geral a realizao de pequenas conspiraes, fugas individuais e
sabotagens. Aes que visavam expressar o protesto do escravo frente quela situao em
que se encontrava, no se tratando na maioria dos casos de atos revolucionrios, nem
mesmo nos casos de grandes insurreies, exceto a revoluo escrava de SaintDomingue. O trecho em que o autor enfatiza esses elementos a parte central que embasa
toda a sua tese:

No entanto, seja numa grande escala ou num nvel mais reduzido, como a
conspirao do ano 24 d.C. organizada no sul da Itlia por um antigo membro da guarda
pretoriana, as revoltas de escravos foram muito escassas depois de Esprtaco, pelo que
muitos estudiosos tem considerado que no havia nenhum motivo para se sublevar. A
principal falha desta tese supor falsamente que a revolta era a nica via de que
dispunham os escravos e que, em sua ausncia, reinava a calma. No Novo Mundo, as
revoltas de escravos foram particularmente virulentas no Caribe, porm no Brasil ou nos
Estados Unidos, como em Roma, foram pouco freqentes. Na realidade, no se presencia
uma revolta parecida com a de Esprtaco at princpios do sculo XIX, quando o

movimento de escravos liderado em Santo Domingo por Toussaint LOuverture cria o


moderno Estado do Haiti. (...)120

A relevncia do trabalho de Bradley reside no fato de que ele nos ajuda a dissipar
a iluso de que a ocorrncia de insurreies escravas na Amrica tenha sido to
infinitamente superior como se poderia supor. A realidade que revoltas como a de
Esprtaco e do Haiti so eventos extraordinrios e que ultrapassam os limites estruturais
vigentes impulsionados por conjunturas igualmente excepcionais, tornando-os nicos,
num contexto em que as dificuldades de organizao de levantes desse tipo, diante dos
riscos de traio e do medo dos castigos que certamente recaem sobre os escravos
rebeldes que, porventura, sejam derrotados em sua luta, fazem da revolta aberta a menos
adotada pelos escravos, o que no significa que o sentimento de rebelio no seja
permanente. Mesmo que no fossem to espetaculares, as demais formas de luta
empreendidas pelos escravos causavam srios prejuzos ao sistema social que dependia
desta fora de trabalho, sendo um fator de crise importante para o regime escravista:

Estas formas iam desde atos violentos, como ataques suicidas ou mortais sobre
os proprietrios de escravos (muitas vezes provocados por um tratamento
excessivamente brutal), a aes como mentir, fraudar e roubar, fingir estar doente,
trabalhar a um ritmo deliberadamente lento ou recorrer a pequenas sabotagens para
indicar que no cooperariam com seu proprietrio no trabalho dirio, que lhe causariam
desconfortos constantes e que fariam o que estivesse ao seu alcance para mitigar a
opresso. A mdio prazo, existia a fuga, prtica frequente para tomar uma pausa
temporria ou com a esperana de escapar da escravido para sempre. (...) 121

120 BRADLEY, op. cit., pp.137-138. Ver o relato sobre a Revoluo Haitiana, na perspectiva de uma

revoluo escrava associada s revolues burguesas europias, no excelente livro de C.L.R. James, Os
Jacobinos Negros.

121 Idem, ibidem, p.138.

Os escravos fugidos muitas vezes dirigiam-se ou formavam comunidades rebeldes


independentes em localidades geograficamente remotas que aqui no Brasil ficaram
conhecidas como quilombos, tambm comuns na Jamaica e no Suriname. Como vimos
no segundo captulo, o mesmo tambm ocorria na Roma antiga, como na Segunda
Revolta da Siclia, em que os escravos rebeldes formaram uma espcie de quilombo, em
uma localidade isolada, mas com provises, fontes de gua e alimento, e uma
organizao poltica e social completamente independente do Estado escravista romano.
A fuga era a principal forma de resistncia dos escravos, sendo em geral individual, mas
muitas vezes tambm coletiva e com a formao de comunidades. As outras formas de
luta tambm so retratadas no trecho acima de Bradley. Uma passagem interessante
aquela que se refere reduo do ritmo de trabalho. Muitas vezes o sistema escravista foi
apresentado como sendo menos produtivo do que o seu substituto nos tempos modernos
o capitalismo, baseado no que os liberais denominaram trabalho livre. Uma das causas da
baixa produtividade do trabalho escravo talvez resida na resistncia cotidiana dos
prprios escravos escravido. Este um elemento importantssimo, pois, ao longo dos
anos, contribua para jogar mais gua no moinho da crise do regime escravista em todas
as sociedades nele baseadas, apontando um protagonismo dos prprios escravos no
colapso do modo de produo escravista, antigo e colonial, junto com outros fatores de
ordem poltica, econmica e social, mas evidenciando que no foram somente fatores
externos os que levaram o escravismo em todas as sociedades sua crise final. 122
Com relao produtividade do trabalho, Genovese argumenta ser baixa a
produtividade do trabalho escravo. Devemos lembrar, no entanto, que o autor aborda uma
formao econmico-social especfica. Na opinio do autor, a escravido e o sistema de
plantation levaram a mtodos agrcolas que esgotaram o solo. Em sua anlise, Genovese

122 As formas de resistncia dos escravos, numa anlise comparativa entre escravido antiga e escravido
moderna, podem ser encontradas em REIS, J. J., op. cit., e BRADLEY, K., op. cit. Sobre a hiptese de uma baixa
produtividade da produo escravista ver GENOVESE, Eugene. A Economia poltica da escravido. In:
Coleo Amrica: Economia e Sociedade. Traduo de Fanny Wrobel e Maria Cristina Cavalcanti. Rio de
Janeiro: Editora Pallas S.A., 1976.

est comparando o progresso econmico e tecnolgico do Norte capitalista com o Sul


escravista num contexto diferente daquele que o objeto de nosso estudo, estando esta
sociedade escravista especfica inserida num mercado mundial e se relacionando com um
mercado capitalista, numa relao assimtrica, de clara desvantagem para a sociedade do
Sul dos Estados Unidos.123
A anlise do Sul escravista nos permite perceber com detalhe e segurana os
limites para o desenvolvimento das foras produtivas num modo de produo escravo
pela comparao com o Norte capitalista e seu desenvolvimento. Os escravos estavam
sujeitos a uma opresso brutal, no tinham em geral muitos incentivos e estavam
inseridos num contexto de explorao extra-econmica do trabalho, em que a apropriao
do excedente se dava atravs da coero. A monocultura era outro fator limitador do
progresso tcnico e do aumento da produtividade, com o conseqente esgotamento do
solo. A explorao brutal e a dieta pobre a que os escravos estavam submetidos
deixavam-lhes exauridos, limitando sua produtividade e sua capacidade de reproduo da
mo-de-obra de forma natural. Diante das limitaes existentes para a reproduo natural
da fora de trabalho, a mesma era garantida pela compra, atravs do trfico de escravos e,
no caso romano principalmente, por meio da guerra com o aprisionamento dos vencidos e
sua posterior escravizao. As relaes de produo e as foras produtivas em cada
estrutura social articulam-se de uma maneira especfica determinando assim os limites e
possibilidades de cada sociedade.
Sendo assim, considerando que a produtividade do trabalho em sociedades
escravistas fosse realmente baixa, pelo menos em comparao com os padres atuais, e
retomando o nosso argumento acerca da resistncia escrava, pode ser que somente em
parte isto se devesse a limitaes concernentes ao desenvolvimento das foras produtivas,
encarando-as do ponto de vista da tcnica e da organizao da produo propriamente
dita, sendo a outra parte referente a uma expresso do no quero dos escravos, de uma
forma de diminuir os lucros de seus senhores e o ritmo de sua explorao.
123 GENOVESE, op. cit., pp. 30-31.

O assassinato dos senhores pelos seus escravos tambm aparece na passagem do


texto de Bradley e expe um medo dos proprietrios de perderem as vidas nas mos de
seus servos. isto que explica que as sociedades escravistas e que as relaes escravistas
sejam marcadas pela violncia. A violncia generalizada e sistemtica serve para garantir
a obedincia pelo medo e por isso que os escravos que assassinavam seus amos
recebiam uma punio exemplar, bem como aqueles que no socorressem seus senhores,
sendo, assim, executados juntamente com aqueles que praticaram o grave delito.
Um caso emblemtico ocorreu durante o governo de Nero (54-68 d.C.), no ano 61
d.C., quando um escravo, por uma disputa amorosa com o seu senhor ou por ter sua liberdade
negada aps um preo j combinado, matou o prefeito da cidade de Roma, Pednio Secundo,
em sua casa, sendo, portanto, um exemplo clssico de descumprimento de um acordo, de uma
falha no trato, na negociao entre senhor e escravo, culminando, ento, no conflito.
Negociao e conflito caminhavam juntos nas relaes escravistas e na medida em que o
senhor desconsiderava as demandas de seus escravos, excedia-se nos castigos ou no cumpria
com o que havia sido estabelecido anteriormente, os escravos tendiam a se rebelar. Uma
questo legal e social importante que na casa havia quatrocentos escravos e, de acordo com
um decreto senatorial da poca de Augusto, todos os escravos da casa deviam ser executados
pelo crime cometido unicamente por um deles, pois os demais servos tinham por dever
proteger o seu amo. No entanto, o elevado nmero de escravos a serem executados sem que
sequer tenham tido participao no crime gerou uma comoo social e a plebe romana
revoltou-se contra essa possibilidade, que estava sendo discutida no Senado. A plebe teve de
ser contida pela fora das armas. Tcito narra este acontecimento e sua opinio bastante
severa no que tange aos escravos, defendendo a resoluo final do Senado e do imperador
pela execuo de todos, e alertando para a crise que este fato representou, inclusive por se
tratar de um representante do governo e membro da elite romana:

O Prefeito da Cidade, Lucius Pedanius Secundus, foi morto por um dos seus
prprios escravos,... Seja como for, de acordo com um costume antigo, todos os escravos
que vivessem sob o mesmo teto deveriam ser executados. Mas uma multido de
manifestantes logo se reuniu nesta ocasio, numa tentativa de salvar tantas vidas
inocentes. A coisa quase se transformou numa revolta, e a casa do Senado foi cercada.
No prprio Senado, alguns tinham um forte sentimento contra uma severidade excessiva,
mas a maioria se manifestou contra qualquer mudana. Tal foi o caso de Gaius Cassius

Longinus, que quando chegou a sua vez falou assim: ... Um ex-cnsul foi morto em sua
prpria casa pela traio de um escravo, que ningum denunciou... Ento, deixem-nos
impunes, mas se o Prefeito da Cidade no tem segurana, quem a tem? Pedanius
Secundus tinha quatrocentos escravos e estes no foram suficientes para salv-lo; quem
pode, ento, sentir-se em segurana? ... (...) Prevaleceu a opinio favorvel a que se
decretasse a execuo. Mas a deciso no podia ser aplicada, pois uma grande multido
se reuniu carregando tochas e armando-se com pedras, e conseguiu interromper a
execuo. Ento o imperador publicou um dito censurando o povo, e quando os
condenados estavam sendo conduzidos para a morte, fez com que todo o caminho
estivesse guardado por um destacamento de soldados. 124

No relato de Tcito transparece o medo da rebelio escrava pela classe senhorial.


Alm disso, a solidariedade da plebe para com os escravos inocentes que seriam
injustamente executados, gerando uma revolta popular, tornou necessrio o uso do
aparato repressivo tambm sobre os homens livres e pobres de Roma. Os senadores e o
imperador no poderiam ser benevolentes nesse caso, pois temiam que isto servisse de
exemplo para que em outras casas, de outras autoridades romanas e proprietrios, os
assassinatos dos mesmos se sucedessem, havendo a cumplicidade dos demais servos com
aquele responsvel pelo crime, na medida em que foram afrouxadas as punies para os
escravos que no defendessem com a vida os seus donos e no denunciassem os seus
pares nas situaes de subverso, em especial naqueles atos de rebeldia que resultassem
na morte dos seus amos. A desconfiana dos proprietrios em relao aos seus escravos
tambm aparece em Tcito, que previne ser melhor punir injustamente inocentes do que
deixar os maus impunes, sendo a coero essencial para o respeito hierarquia, tal como
no exrcito a prtica da dizimao era utilizada para disciplinar as tropas diante de atos
de covardia e desrespeito s ordens. No que se refere aos escravos isto ainda mais
importante, pois somente atravs do medo populaes de estrangeiros arrancados de suas
terras para serem explorados da maneira mais brutal poderiam ser controladas. Nesse
sentido, a ao do Senado e do imperador Nero visou, acima de tudo, reafirmar a ordem
social e poltica da Roma aristocrtica e escravista, servindo os quatrocentos escravos

124 Tcito, Anais, XIV, 42-45 apud CARDOSO, op. cit., p. 144-145.

executados de aviso para que todos os escravos do imprio entendessem qual era o seu
lugar e que as leis seriam aplicadas em todo o seu rigor para a manuteno da ordem:

Um varo consular morto em sua casa por um escravo: no houve quem


denunciasse ou impedisse a perpetrao do crime, sabido, como , que por um senatus
consultum cominado o suplcio a toda a famlia. Se decretardes a impunidade, quem se
julgar defendido por sua prpria dignidade, quando esta no valeu ao prefeito de
Roma? Que nmero de escravos ser suficiente se quatrocentos no bastaram para
proteger a vida de Pednio Secundo?... Muitos indcios antecedem aos crimes. Caso os
escravos denunciem, podemos ser poucos dentre muitos, todos eles estando inquietos;
enfim, se tivermos que perder a vida, os culpados no ficaro impunes. Nossos
antepassados no confiavam na lealdade dos escravos, ainda mesmo dos nascidos em
suas propriedades e em suas casas, criados no afeto de seus senhores. Hoje que temos em
nossas famlias servis pessoas de naes diversas, de vrios ritos, de religies diferentes
ou de nenhuma, s o medo pode ser coero para esse entulho. Objetar-se- que muitos
morrero inocentes. Sim, mas quando se dizima um exrcito e cada dcimo soldado
castigado, a sorte cai tambm sobre os valorosos. Todos os grandes exemplos trazem
consigo alguma iniqidade contra indivduos, porm esta redunda em utilidade pblica.
125

Analisando em maior detalhe o discurso atribudo a Cssio, que tambm reflete as


preocupaes do historiador Tcito, podemos perceber que era fundamental para a classe
senhorial romana no s incutir o medo nos escravos, como tambm transformar a todos
em traidores de seus pares e em servos leais, obrigando-os a denunciar outros escravos
que praticassem algum crime contra o proprietrio, a propriedade do mesmo ou o Estado.
Desse modo, os escravos cmplices dos seus deviam ser punidos e os que delatassem
escravos rebeldes recompensados. Talvez isto tenha motivado os escravos que traram o
exrcito rebelde de Euno na Primeira Guerra Servil ocorrida na Siclia. A forma como os
escravos so descritos no texto tambm impressiona e demonstra a razo pela qual a
coero era o elemento preponderante na relao senhor e escravo. O medo funcionava
como o principal mecanismo de controle social neste contexto, pois, de acordo com o
texto: s o medo pode ser coero para esse entulho (os escravos). A heterogeneidade
dos escravos criava dificuldades para a construo de laos de solidariedade mtuas,

125 Tcito, Anais, 14, 44 apud JOLY, op. cit., p. 50.

muitas das vezes, e para a sua organizao e mobilizao poltica, mas tambm
dificultava as possibilidades de controle ideolgico, pois se no havia uma comunidade
de interesses no interior da classe dos escravos, com uma diversidade tnica e religiosa
bastante grande, muito menos, deles com os senhores. Mesmo com os escravos mais
ntimos era impossvel a construo de qualquer tipo de identificao e os laos de afeto
no eram suficientes para a construo de laos de confiana, pois mesmo os servos mais
prximos e que cresceram na casa do senhor, diante de uma ofensa ou da oportunidade da
fuga no hesitariam em matar o seu amo. Ainda sobre esse trecho, ele apresenta um
problema que a necessidade do Estado e o interesse pblico dever sobrepor-se aos
interesses individuais, sendo, portanto, lcito matar inocentes se for para preservar a
ordem pblica. Quanto a isto nenhuma concesso deveria ser feita, nem para a plebe, nem
para os escravos, nem para aqueles que no Senado tentavam um consenso com as classes
no-proprietrias, como forma de garantir a estabilidade. Na opinio do historiador e do
senador que teria proferido o discurso relatado, 126 a manuteno da estabilidade poltica e
da ordem social vigentes s poderia ser conquistada por meio da represso queles que
demonstraram desprezo para com as leis e instituies romanas diante do assassnio de
um homem da posio de Pednio, pondo em risco a segurana de todos os donos de
escravos, criando uma situao de instabilidade nas relaes escravistas, at que a
autoridade do senhor sobre o escravo fosse realmente restabelecida, com a demonstrao
pblica das consequncias desastrosas de um crime dessa magnitude para aquele que o
pratica e alertando a todos os servos de Roma que a cumplicidade com atos desse tipo
no seria tolerada e seria severamente punida. Somente assim os membros da classe
senhorial romana poderiam dormir tranquilos em suas casas, livres do temor de perderem
a vida a qualquer momento na segurana ou suposta segurana de seus lares. E somente
desse modo poderia ser contida a insubordinao escrava que poderia se alastrar para a
126Convm lembrar que os discursos atribudos a personagens histricos, desde os primeiros historiadores
gregos, eram um recurso retrico dos autores, que tratavam de imaginar o que, pela lgica da situao,
poderia ter sido dito na ocasio descrita; no havia, na Antiguidade, arquivos pblicos que preservassem
discursos polticos, se bem que alguns autores, como Cicero, tratassem de torn-los conhecidos tambm por
escrito. Em alguns casos, uma memria oral poderia ter sido preservada e passada adiante, de parte dos que,
presentes, ouviram o discurso de fato proferido e dele se lembravam em linhas gerais; ignoramos, porm,
na maioria dos casos, o alcance real deste fato.

produo e quem sabe que consequncias graves teria. Vale a pena salientar que a revolta
de Esprtaco tinha ocorrido no fazia nem um sculo e que a classe dominante romana
teve de promover uma crucificao em massa dos escravos rebeldes sobreviventes para
que o clima de revolta entre os escravos desaparecesse diante do terror sentido perante
uma punio que implicava um sofrimento terrvel, uma cena horrenda que fez da estrada
que vai de Cpua a Roma um aviso bem claro para que os escravos que por ela passassem
pensassem duas vezes antes de se rebelarem. E esta foi a ltima grande insurreio de
escravos da Roma antiga. Quem sabe que resultados poderiam ter a complacncia do
Senado com o crime perpetrado contra o prefeito de Roma? Na verdade, a classe
dominante agiu com um profundo realismo poltico, fazendo logo todo o mal de uma vez
e impedindo que os escravos se tornassem confiantes e encarassem a preservao das
vidas dos inocentes como sinal de fraqueza dos seus senhores, ainda mais depois da
presso popular contra a execuo, e se generalizasse a resistncia escrava nas suas
formas mais agudas e violentas.
Por fim, vale destacar novamente a importncia das revoltas de escravos e de sua
ocorrncia. Trabulsi127, ao tratar da raridade dessas revoltas aponta para algumas de suas
causas: as grandes concentraes de escravos eram evitadas, os escravos de origens
diferentes eram misturados em dosagens prprias, para que desse modo se retardasse a
comunicao e organizao da resistncia por causa da diversidade de lnguas, costumes
e religies; no entanto, este autor ressalta a importncia das grandes revoltas de escravos
por terem questionado, mesmo que provisoriamente, o mundo elitista e hierrquico, tal
como ele se apresentava na realidade objetiva e na ideologia dominante; apontando, ao
mesmo tempo, as suas limitaes, como o fato de nunca terem proposto uma abolio da
escravido e uma alternativa de sociedade ao escravismo. O autor apresenta em seu
estudo a concluso de que a tomada de conscincia era difcil e as revoltas raras; raras,
127

TRABULSI, Jos Antnio Dabdab. Quando os Excludos Contam: Escravos, Cidados e a

Mobilizao Poltica na Grcia. In: Ensaio sobre a Mobilizao Poltica na Grcia Antiga. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2001.

mas concentradas no tempo. Esta ltima parte de extrema importncia para o nosso
estudo. O fato de que todas as grandes insurreies de escravos tenham ocorrido num
curto espao de tempo, num perodo de cerca de um sculo, e que vrias outras pequenas
revoltas e conspiraes tenham se dado nos sculos II e I a.C., mais do que em qualquer
outro perodo da histria romana, demonstra que o momento histrico que o nosso
objeto de estudo foi parte de uma poca de grandes transformaes e possibilidades.

2 O TRATAMENTO CONFERIDO AOS ESCRAVOS NO MUNDO ROMANO

Os escravos foram trazidos para Roma de todas as partes do mundo mediterrneo.


Eles eram o resultado de suas vitrias militares, parte de suas conquistas. O predomnio
romano no Mediterrneo garantia o seu esplendor com a escravizao de homens de
todos os povos, a obteno pela rapina das melhores terras e o direcionamento da maior
parte dos recursos financeiros, das reservas alimentares e das riquezas produzidas para o
centro do imprio, mediante impostos. A escravido e a guerra estavam intrinsecamente
ligadas, de forma indissocivel, no processo de construo do Imprio Romano. A
maioria dos escravos estava constituda, no auge republicano, justamente, pelos
prisioneiros de guerra feitos durante as sucessivas guerras pelas quais Roma adicionou
gradualmente outros pases mediterrnicos ao seu imprio. 128
Um nmero considervel de prisioneiros de guerra foram tornados escravos no
perodo republicano. Michael Massey e Paul Moreland apontam uma estimativa
aproximada de prisioneiros feitos nas principais guerras travadas por Roma no perodo da
Repblica que marcou a sua ascenso ao patamar de superpotncia do Mediterrneo, sem
128 MASSEY, Michael e MORELAND, Paul. Slavery in Ancient Rome. Londres: MacMillan Education
Ltd, 1978.

rival no mundo antigo a partir de ento. Na Macednia, em 197 a.C., foram cerca de 5000
prisioneiros; na Ilria, em 177 a.C., cinco mil ou mais; na Sardenha, em 177 a.C., 80000
foram mortos ou capturados; no Epiro, em 167 a.C., 150000; em Cartago, no ano 146
a.C., 50-60000; na guerra contra os teutes e os cimbros, em 102-101 a.C., foram feitos
cerca de 140000 prisioneiros; e nos nove anos de campanha de Jlio Csar na Glia (5849 a.C.) cerca de um milho de prisioneiros de guerra, podendo ser bem menos, no
entanto, algo em torno de 150000, um nmero ainda assim bastante expressivo. 129 Estes
homens capturados seriam os braos a arar as terras itlicas, a principal fora produtiva
do novo imprio, e seres humanos transformados em propriedade dos romanos. O
Mediterrneo foi, assim, uma regio que produzia novos escravos para os mercados de
Roma a cada nova batalha que era travada entre a cidade mais importante da Itlia e os
demais pases do Ocidente e do Oriente, da Europa, da frica e da sia, trazendo homens
e mulheres de vrios povos, de vrios costumes, de vrias culturas e religies. Desse
modo, o escravismo antigo alcanou o seu pleno desenvolvimento sob a gide do Imprio
Romano, durante o domnio romano sobre as terras que tinham os seus litorais banhados
pelo mar Mediterrneo.
O tratamento dado aos escravos era brutal e desumanizador. Eles eram tratados
como coisas, como propriedades. Os escravos no tinham direitos nem cidadania, sendo
aos mesmos vedados o exerccio do voto e o servio militar. Eles estavam sujeitos a
punies severas como o aprisionamento nos ergstulos e a execuo por um delito
qualquer, de acordo com a vontade e o julgamento de seu senhor. De acordo com os
autores acima citados, os romanos no acreditavam que a escravido fosse errada, pois
era prtica universal da poca. 130 Os povos escravizados tambm no consideravam a
escravido errada em si mesma, e, por isso, em todas as rebelies servis, os rebeldes
tentaram acabar somente com a sua prpria servido e no com o trabalho escravo em
129 Idem, ibidem, p.10

130 MASSEY; MORELAND, op. cit., p. 26.

geral; no foram lutas para abolir um sistema econmico-social ou para substitu-lo por
outro, mas fugas para fora, fosse com o objetivo de retornar terra natal, fosse para
formar comunidades independentes ou Estados paralelos, reproduzindo, porm, as
relaes escravistas na sua prpria organizao social.
Os escravos eram muito explorados e tinham uma vida durssima, mas uma coisa
era certa: os escravos rurais tinham uma vida ainda mais dura e muito mais horas de
trabalho.

A vida na fazenda era, em geral, muito mais dura para um escravo que a vida
na cidade. Ele tinha um longo dia nove a quinze horas com um intervalo no meio. (...)
Dias de folga na fazenda eram menos frequentes que na cidade; e no podemos ter
certeza de quantos dias de folga um escravo recebia.131

Desse modo, podemos entender porque a maioria dos soldados dos exrcitos de
escravos rebeldes, tanto de Euno quanto de Esprtaco, eram escravos rurais. A vida no
campo era mais difcil, os escravos trabalhavam mais e sofriam mais castigos e torturas.
Apesar disso, os seus senhores tinham por obrigao garantir-lhes roupas e alimentos,
minimamente, e quando isso no ocorria de maneira adequada revoltas como a da Siclia
podiam eclodir, tendo como estopim o mais bsico que a subsistncia. De qualquer
modo, em geral, os escravos rurais foram menos alimentados e vestidos menos
adequadamente. O modo de vida dos escravos dos ergstulos era um dos piores possveis
para um ser humano escravizado e forado a trabalhar para os senhores de terras
romanos, itlicos e sicilianos no perodo da Repblica. Os escravos que desagradavam ao
seu senhor ou ao capataz da fazenda eram mantidos acorrentados durante a noite no
ergastulum, priso comum maior parte das fazendas romanas de certa importncia
durante muito tempo. Uma outra diferena existente entre os escravos urbanos e os
escravos rurais, alm do regime de trabalho mais flexvel dos primeiros e relaes mais
amenas, se possvel dizer tal coisa de uma relao escravista, era a premiao dada aos
escravos urbanos que caam na graa de seu senhor na forma de dinheiro, o chamado
131 Idem, ibidem, pp. 27-28.

peculium, com o qual eles podiam comprar sua liberdade a partir de um valor estipulado
pelo amo e acordado entre as partes, aps um certo perodo de servido, sendo algo mais
raro nas relaes no campo, aparecendo neste caso, como o mais habitual a promoo dos
melhores escravos a cargos de trabalho mais leve e prestigioso, implicando tambm mais
responsabilidade e ao mesmo tempo mais privilgios, como a funo de uillicus ou
capataz. Os capatazes administravam as propriedades rurais na ausncia dos senhores e
deviam-lhes total obedincia e lealdade, exercendo a funo de dirigir e controlar os
demais escravos, coordenando a produo, resolvendo os possveis problemas e,
principalmente, garantindo o lucro dos proprietrios.
O trabalho nas minas tambm era dos mais sofridos para aqueles que acabavam
escravizados, sendo forados ao trabalho extenuante. Diodoro da Siclia descreve o
trabalho nas minas e o sofrimento dos escravos que tinham por sorte cumprir esta tarefa
at o fim dos seus dias:

Os escravos que trabalhavam nas minas produziam aos seus senhores vastos e
incrveis lucros, mas ao mesmo tempo eles desgastavam os seus corpos nas escavaes
subterrneas tanto de dia quanto de noite. Muitos deles morrem por causa das pssimas
condies que eles tem de enfrentar. No h pausa ou intervalo de descanso em seu
trabalho. Eles so forados pelos golpes dos capatazes a suportar o seu terrvel destino e
suas vidas se esvaem deste modo miservel. Ainda alguns deles, por conta de sua fora
fsica e mental, conseguem suportar seu tormento por um longo tempo. A morte
prefervel para eles que prolongar o seu sofrimento. (Diodoro da Siclia, 5, 38,1) 132

Assim, podemos ver que os supervisores aoitavam os escravos que trabalhavam


na minerao para que eles mantivessem o ritmo de trabalho e consequentemente a
produtividade, possibilitando que os seus senhores auferissem os mais altos lucros com as
escavaes nas minas. A taxa de lucro do senhor era a taxa de mortalidade dos escravos.
Eles morriam devido s pssimas condies de trabalho e de vida e os que sobreviviam
mais tempo, por sua constituio fsica, sade e resistncia desejavam a morte e os que

132 Apud MASSEY; MORELAND, op. cit., p. 33.

preferiam a vida, mesmo naquelas condies, na perspectiva de um estico, tal como


Diodoro da Siclia, talvez devessem preferir a morte, pois seria uma libertao de uma
vida to indigna e de to elevado sofrimento, mais do que um ser humano deve suportar.
O discurso de Diodoro no apenas descreve a situao de um escravo das minas, e uma
boa e bastante til descrio para o perfeito entendimento do modo de vida e trabalho
desses homens, como tambm se compadece de sua condio, evidenciando o carter
humano desses escravos, que, por mais que fossem encarados como animais, a vida real
colocava a nu o que a ideologia tentava camuflar e mesmo inverter, uma realidade
palpvel e concreta de homens que sofriam castigos to duros ou at mais que os animais,
mas que tinham rostos humanos, vozes humanas, corpos humanos, por mais que de to
surrados, marcados com ferro em brasa, pintados de sangue pela fora do chicote, tanto
quanto um asno ou um cavalo, ainda assim eram demasiadamente humanos para que
nenhuma compaixo fosse demonstrada para com esses homens, pelo menos aos olhos de
um estico. Vimos que Diodoro no condenava a escravido enquanto instituio e
censurava os escravos rebeldes, defendendo que os mesmo fossem obedientes aos seus
amos, mas tambm vimos que o autor via com maus olhos a ganncia e a crueldade dos
senhores, sendo contrrio a qualquer excesso e desumanidade desmedida, ainda que se
tratasse de homens teoricamente reificados.
Arajo enfatiza em seu trabalho a necessidade que os romanos tinham de
controlar os escravos pelo medo. Este temor advinha dos castigos fsicos que os escravos
porventura pudessem sofrer, mas tambm do controle absoluto que os amos tinham sobre
os corpos dos servos, sobre o seu trabalho e o produto do seu trabalho. Pudemos ver
acima como era na produo, em especial na lavoura e na minerao, mas a interferncia
dos proprietrios na vida sexual dos escravos e as torturas sofridas tanto para disciplinlos quanto um fator de distino dos mesmos em relao aos homens livres marcavam de
forma traumtica a vida do escravo.
A tortura de escravos nos tribunais era um fato rotineiro da vida social romana e
estava estabelecido em lei a partir do regime do Principado. Uma lei de Augusto
estabelecia o princpio da tortura dos escravos no tribunal, como forma de arrancar uma

confisso daquilo que se supunha que ele soubesse acerca de um crime que ocorresse na
residncia do seu amo:

J que no era possvel ordenar que um escravo fosse torturado para


testemunhar contra seu prprio senhor, Augusto ordenou que cada vez que surgisse a
necessidade de algo assim, o escravo fosse vendido ao tesouro pblico ou a ele mesmo
(ou seja, ao imperador pessoalmente), de modo que pudesse ser interrogado, no sendo
j propriedade do acusado. Algumas pessoas manifestaram oposio a isso, pois a
mudana de proprietrio estaria tornando a lei sem sentido, enquanto outras
argumentaram que era essencial, pois muita gente estava organizando conspiraes
contra o imperador e contra as autoridades devido quela proviso legal. (Dio Cssio
Coceiano, LV, 5)133

Os escravos eram vendidos em leiles nos mercados e sofriam todos os tipos de


abusos, inclusive de abusos sexuais antes mesmo que um senhor romano os comprassem.
A violncia fsica e sexual era uma realidade do cotidiano da vida de um escravo e ia
desde a venda como prostitutos ou prostitutas para bordis at a castrao. De qualquer
modo, o seu terror comeava ainda nas mos do traficante:

No por acaso, a figura do traficante temido e desprezado era


muito mal vista na Antiguidade, particularmente entre os romanos, embora os
proprietrios precisassem muitssimo da mercadoria humana por eles fornecida. Como
seu objetivo imediato era obter um lucro mximo, os negociantes infundiam o medo
porque abusavam dos cativos em seu poder: estes eram vendidos nus; tinham seus
defeitos maquiados para enganar os compradores, por exemplo, embranqueciam os ps
dos cativos para mascarar sua origem; obrigavam-nos a portar placas no pescoo
anunciando suas qualidades. Os traficantes de eunucos eram especialmente temidos,
pela violncia que cometiam, mas a demanda por eunucos fez com que a prtica da
castrao dos escravos continuasse mesmo depois do perodo Adrianino. 134

133 CARDOSO, op. cit., p. 131.

134 ARAJO, op. cit., p.154.

No governo do imperador Adriano a castrao dos escravos havia sido proibida


dentro dos limites do imprio, mas eunucos continuaram a ser vendidos e os sofrimentos
dos escravos continuaram a existir de todas as formas, toda sorte de abusos e violncias.
As punies aos escravos eram severas, sendo o trabalho nas minas um dos castigos
aplicados aos que cometiam alguma falta ou delito. A maneira como os escravos eram
tratados no mundo romano assemelhava-se ao modo como se trata um animal de carga e,
de fato, a classe senhorial enxergava os seus servos como propriedades suas cuja
existncia tinha apenas um sentido e objetivo: produzir mais e mais lucros para os
romanos.

3 A REVOLTA DE ESPRTACO

A revolta de Esprtaco a rebelio servil mais famosa de toda a Antiguidade e


que mais influenciou a cultura ocidental contempornea na releitura feita sobre aquele
movimento e na tentativa de torn-lo parte da cadeia que une as lutas de todos os
explorados e oprimidos na Histria. Entre o mito e a realidade existe um abismo imenso e
o processo real que buscamos investigar chega aos nossos dias pela pluma dos
intelectuais da elite romana. O levante dos gladiadores da escola de Cpua gerou uma
revolta popular muito mais ampla e desafiou os poderes constitudos numa jornada
desesperada pela realizao do sonho de liberdade. A maior fuga coletiva de escravos da
Histria merece um lugar especial na investigao histrica e uma interpretao que parta
do ponto de vista das classes subalternas. Partindo da historiografia marxista mais
consistente, pretendemos redesenhar a insurreio escrava que teve incio no Sul da Itlia
e que percorreu toda a pennsula, aterrorizando a classe dominante romana, forjando uma
aliana com camponeses pobres e escravos de etnias diversas.
As grandes revoltas de escravos da Antiguidade principiaram por motivos locais,
mas, devido conjuntura extremamente favorvel, rapidamente se generalizaram em
verdadeiras guerras contra o governo de Roma. A guerra civil que colocava em polos

opostos optimates e populares e agora mais ainda os principais generais na disputa pelo
poder, somada s guerras externas, como a que se deu contra Sertrio na Espanha e
Mitrdates na sia Menor, eram os elementos mais explosivos de um contexto poltico e
social que impulsionava os escravos revolta aberta, alm das razes econmicas
subjacentes e constitutivas deste processo, com um elevado grau de explorao dos
escravos e o desenvolvimento acelerado do modo de produo escravista, bem como a
sua consolidao nos moldes de uma grande produo escravista voltada para o mercado.
A vida de um escravo gladiador era a de uma existncia miservel, de um ser
humano que vivia para a morte e que esperava a sua morte todos os dias; matar para
sobreviver e sobreviver para continuar matando. Um cartaz publicitrio pintado em uma
parede em Pompia, cidade destruda por uma erupo do Vesvio em 79 d.C.,
conservando assim vrios vestgios daquela poca, hoje vestgios arqueolgicos
fundamentais para o nosso conhecimento acerca do passado romano, anuncia combates
de gladiadores durante cinco dias do ms de maro, contando o referido espetculo com
feras. O divertimento romano de assistir gladiadores lutando entre si para preservar a
prpria vida e, ao mesmo tempo, tentando escapar de serem estraalhados pelas bestas
selvagens reduzia estes escravos a um patamar dos mais inferiores daquela sociedade e
semeava em seus coraes o dio contra Roma:

Vinte pares de gladiadores pertencentes a Decimus Lucretius Satrius Valens,


flmine perptuo de Nero Csar filho de Augusto e dez pares de gladiadores pertencentes
a Decimus Lucretius Valens filho combatero em Pompia nos dias seis, cinco, quatro,
trs e na vspera dos idos de abril. Haver uma caa conforme s regras, e toldos.
Aemilius Celer escreveu isto sozinho luz da lua. 135

O modo de vida de um escravo gladiador retratado em maior detalhe em Massey


e Moreland:

135 CARDOSO, op. cit., p.135.

Estes escravos eram mantidos e treinados em escolas de gladiadores que


pertenciam quer por particulares ou pelo imperador. (Spartacus pertencia escola de
Lentulus Batiatus em Cpua.) (...). Enquanto estivessem nas escolas eles estavam sob a
superviso de um instrutor (lanista), que normalmente era um ex-gladiador mesmo. Eles
foram obrigados a treinar duro na preparao de suas aparies pblicas em que havia
sempre a perspectiva de ter de matar o seu adversrio ou serem mortos eles mesmos. No
entanto, eles recebiam nutrio alimentar com uma dieta bsica de cevada e feijo. A
ateno sade tambm foi fornecido.(..) Gladiadores eram alojados em quartis e
mantidos sob rigorosa vigilncia. Havia penas severas por desero, e flagelaes e as
cadeias foram punies regulares. Os corpos de seis presos foram encontrados
acorrentados no quartel em Pompia.136

No entanto, assim como acontecia com todos os demais escravos, entre os


gladiadores tambm existiam aqueles que poderiam gozar de alguns privilgios e apesar
de ser uma funo que se situava entre as mais baixas na sociedade romana, alguns
escravos gladiadores tornaram-se at mesmo famosos por serem bons combatentes na
arena, conquistando, assim, a admirao do povo. Eles tambm eram objeto de desejo
para muitas mulheres da aristocracia romana, que podiam dispor, naturalmente, dos
mesmos, enquanto escravos que eram, para relaes sexuais:
O destino da maioria dos gladiadores no era algo bonito, mas alguns que
tiveram xito e agradaram a multido ganhando grande popularidade - tanto para si
quanto para seus proprietrios. Eles poderiam ganhar a sua "espada de madeira" e
liberdade - e talvez se tornar instrutores. Alguns at lutaram voluntariamente, como um
Publius Ostorius em Pompia, que venceu 51 vitrias. (...) Uma inscrio em Pompia
registrou que Celadus, um gladiador que lutou como um trcio, era conhecido como "o
gal das meninas", e durante a erupo do Vesvio, uma mulher rica morreu enquanto
visitava o quartel dos gladiadores. 137

Podemos constatar que era possvel tornar-se um liberto, mesmo sendo gladiador,
mas uma vida to incerta e quase sempre to curta, no devia fazer com que os escravos
julgassem a melhor atitude a espera, preferindo talvez a fuga ou o suicdio. De qualquer
modo, mesmo uma fuga, para que fosse bem-sucedida, era tarefe rdua e difcil,
impelindo os escravos espera, mais pela falta de alternativa do que por um
conformismo ou aceitao de sua condio. O certo que quando a oportunidade surgiu,
136 MASSEY;MORELAND, op. Cit., pp. 36-37.

137 Idem, ibidem, p. 37.

um levante de gladiadores ocorreu em Cpua, com consequncias desastrosas para os


romanos. O comeo da revolta descrito por Apiano e j levanta, no primeiro pargrafo,
importantes discusses:

Ao mesmo tempo, na Itlia, entre os gladiadores que treinavam para o


espetculo em Cpua, Esprtaco, um homem da Trcia que havia servido certa vez como
soldado com os romanos e que, por ter sido feito prisioneiro e vendido, encontrava-se
entre os gladiadores, persuadiu a uns setenta de seus companheiros a lutar por sua
liberdade ao invs de divertir os espectadores. Eles dominaram os guardas e fugiram,
armando-se com clavas e adagas de algumas pessoas nas estradas e refugiaram-se no
Monte Vesvio. Ali deu acolhida a muitos escravos fugitivos e a alguns camponeses livres
e saqueou os arredores, tendo como lugares-tenentes aos gladiadores Enomau e Crixo.
Por repartir o botim em partes iguais, teve logo uma grande quantidade de homens.
(Apiano, As Guerras Civis, XIV, 116)138

A partir do fragmento do texto de Apiano, podemos perceber, primeiramente, que


ele justifica o talento e capacidade de Esprtaco pelo fato do mesmo ter lutado no
exrcito romano. Isto explicaria porque um escravo seria capaz de liderar uma rebelio
que derrotaria generais romanos ao longo das batalhas. A sua posio de liderana
apresentada desde o primeiro momento. A revolta comeou como algo isolado e os
escravos rebeldes se armaram e se refugiaram no Monte Vesvio, ou seja, numa posio
geograficamente favorvel e organizando-se de maneira a escapar ao controle das
autoridades romanas, iniciando a sua luta como uma fuga com a formao de um tipo de
quilombo, estratgia comum aos movimentos de escravos rebeldes. Esprtaco dividia o
resultado dos saques de forma igualitria entre todos os membros da comunidade e isto
serviu para atrair cada vez mais recrutas para o seu movimento, dentre eles escravos
fugidos e camponeses livres e pobres, formando um exrcito que contava no s com
escravos, mas tambm com homens livres, que buscavam a alternativa de uma vida
melhor. Assim como na revolta da Siclia que comeou com os escravos que tinham
acesso a armas, como os pastores, aqui tambm o acesso a armas e um treinamento no
seu uso possibilitaram os seus primeiros sucessos e colocaram este segmento, nesse caso
138 Apud ROYO, op. cit., pp. 148-149.

os gladiadores, no comando de um exrcito formado, em sua maioria, por trabalhadores


dos campos, principalmente pelos escravos rurais.
A regio na qual os escravos tinham se aquilombado o Monte Vesvio
avizinhava-se de Pompeia, a mesma cidade que teve conservado o cartaz sobre um
espetculo de gladiadores, apresentado acima, e esta regio do Sul da Itlia, que
englobava Cpua, onde teve incio a rebelio e tambm a cidade que foi ocupada por
Roma pela sua aliana com Anbal durante a Segunda Guerra Pnica, era rica e prspera,
com terras frteis utilizadas na produo de vinho, azeite e de trigo para exportao,
sendo, portanto, estratgica do ponto de vista econmico, por um lado, e uma grande
reserva de soldados em potencial para o exrcito rebelde, tendo como agravante um
imenso nmero de escravos de primeira gerao. Alm disso, os espartacanos fugiram
para o Vesvio, que era uma fortaleza natural inacessvel e inexpugnvel, tal como
fizeram os escravos sicilianos na Segunda Guerra Servil em Triocala, constituindo uma
importante base de operaes para os revoltosos e um refgio relativamente seguro para
os fugitivos dos ergstulos e da morte na arena, alm dos pobres da Pennsula Itlica.
O relato de Plutarco sobre o princpio do levante dos gladiadores no difere muito
do relato de Apiano, mas demonstra uma sensibilidade distinta, no mnimo, uma nfase
maior em outros aspectos. Por exemplo, nos escritos de Plutarco aparece a observao
importante de que os escravos no tinham sido detidos e condenados ao combate na arena
por suas ms aes, tal como passou a acontecer no perodo em que o autor escreve, isto
, o incio do regime do Principado, como forma de punio, havendo aqui uma
concepo de escravido justa e injusta, colocando parte da responsabilidade pela revolta,
assim como Diodoro fez em relao revolta da Siclia, como sendo dos prprios
senhores de escravos. A injustia e a crueldade excessiva para com os servos eram
igualmente condenadas por ambos os autores:

A guerra de Esprtaco, sua ecloso foi assim. Um certo Lntulo Vtia,


mantinha gladiadores em Cpua, em sua maior parte gauleses ou trcios; a causa de sua
deteno no eram suas ms aes, e sim, a injustia de seu comprador, que os forava a
combater na arena. Duzentos deles resolveram fugir, mas foram denunciados. Os
primeiros a saber da delao se adiantaram e, em nmero de setenta e oito, armados

com facas de cozinha e espetos roubados de um restaurante, deixaram Cpua.


(Plutarco, Crasso, 8)139

Algumas coisas chamam a ateno no relato de Plutarco. Em primeiro lugar, havia


uma variedade de grupos tnicos entre os rebeldes, o que, em tese, serviria para impedir a
organizao e a ecloso de revoltas. Mas tambm podemos notar que havia, ao mesmo
tempo, um predomnio de determinados grupos, no texto acima, dos gauleses e dos
trcios. Em segundo lugar, o fato do autor ter destacado a injustia da deteno dos
escravos, que eram obrigados a lutar na arena, apresenta uma explicao para o
acontecimento do levante, dessa maneira, seno justificvel, pelo menos no de todo
condenvel e com uma parcela de culpa bastante grande dos prprios amos. Em terceiro
lugar, houve uma delao, como em tantos outros processos de rebelies servis, sendo
uma constante as denncias e as traies. Por ltimo, os rebeldes espartacanos
conseguiram escapar, mesmo que precariamente armados, mas num nmero menor do
que o do comeo da conspirao, precisamente pelas dificuldades de organizao das
revoltas escravas.
Em Apiano, desde o primeiro momento, Esprtaco havia assumido a liderana
daquele movimento, persuadindo os seus companheiros a lutar. Plutarco enxerga o
processo por um prisma diferente, enfatizando o papel que os aspectos religiosos e
culturais tiveram na escolha de Esprtaco como lder, assim como os demais chefes do
exrcito de escravos, Crixo e Enomau, e o papel de sua companheira, exercendo
importante influncia, na medida em que tinha dons sobrenaturais, sendo sacerdotisa de
Dionsio, um deus subversivo, que libertava os escravos e as mulheres de todo tipo de
priso, fossem as correntes e os ergstulos, fosse o gineceu. Aqui os aspectos poltico e
militar relacionam-se com os aspectos tnicos e religiosos de maneira complexa,
permitindo-nos compreender com maior clareza como se organizavam as classes
subalternas nas sociedades pr-capitalistas em sua luta. No relato de Apiano, o fato de
Esprtaco ter sido um soldado romano e conhecer o que havia de mais avanado em

139 Apud ARAJO, op. cit., p. 214.

estratgia militar no mundo antigo a estratgia de guerra romana , bem como a sua
capacidade oratria, foram os elementos decisivos para que ele assumisse a dianteira das
tropas rebeldes e conquistasse a posio de chefe, consolidando-a mais tarde com sua
generosidade e justia na distribuio do saque. Em Plutarco, alm dos dons mgicos,
elemento tambm presente nas lideranas das duas revoltas de escravos da Siclia,
Esprtaco aparece como um lder inteligente, forte e sbio e algum que valia mais do
que a sua sorte e que era mais grego do que a sua origem, ou seja, Esprtaco era
escravo e gladiador por um mero acaso, pois, pelo seu talento e capacidades, ele deveria
ocupar, ainda que fosse como escravo, uma posio de escravo domstico ou qualquer
outra funo mais suave e mais prestigiosa, dentro daquilo que eram as possibilidades e
perspectivas de melhores condies e de status na vida de um escravo no mundo romano.
Assim, para Plutarco, havia destinos mais adequados para cada tipo de escravo de acordo
com as suas habilidades:

Depois de ocupar uma posio naturalmente forte, elegeram trs chefes, o


primeiro dos quais foi Esprtaco, um trcio de raa nmade. Ele no era s inteligente e
forte: pela sabedoria e pela moderao, ele valia mais do que a sua sorte e era mais
grego do que a sua origem. Diz-se que, da primeira vez que o conduziram a Roma para
vend-lo, viu em sonho uma serpente enrolada em torno de seu rosto. A mulher de
Esprtaco, sua compatriota, que era advinha e sujeita a transportes inspirados por
Dionisos, explicou-lhe que se tratava de um pressgio importante: o de um poder grande
e terrvel que lhe traria um fim infeliz.(Plutarco, Crasso, 8) 140

Nesta, assim como nas demais revoltas servis, a precedncia de um determinado


elemento da revolta enquanto chefe de todo o exrcito se deu pelo aspecto religioso,
configurando-se como um fator comum s trs grandes guerras servis da Roma antiga. O
casal mstico dava maior confiana aos rebeldes pela relao com os deuses e com o
sobrenatural e a possibilidade de prever os eventos e de invocar os deuses para o sucesso,
sendo capazes, na viso dos escravos e dos homens livres e pobres que aderiram
revolta, de conduzi-los vitria, com o apoio dos deuses salvadores Dionsio e Sabzio
140 Apud ARAJO, op. cit., p. 215.

(deus filho de Jpiter e pai de Dionsio, sendo a viso da serpente ligada ao culto
sabazista, oriundo da Trcia). A liderana simblica e efetiva do gladiador trcio, casado
com uma sacerdotisa de Dionsio, provinha da sua capacidade, mas tambm das crenas
populares da poca, que o habilitavam, mais do que a qualquer outro, a ser o chefe
principal do exrcito rebelde.
No texto de Plutarco aparece o nome do lanista, o dono da escola de gladiadores,
como Lntulo Vtia, mas a maioria dos historiadores concorda que o seu nome Cn.
Lntulo Baciato. O dio que os escravos nutriam em relao a amos desse tipo
evidente. Na escola de gladiadores os escravos eram treinados para combater at a morte
na arena; esta era a vida desgraada que o lanista oferecia queles homens que eram sua
propriedade. A rebelio, que comeou como uma revolta local contra um determinado
senhor, assim como ocorrera com Damfilo, na Siclia, transformou-se numa fugarompimento ou numa fuga para fora, com os escravos fugitivos aquilombando-se no
Vesvio. O crescimento do exrcito rebelde generalizou a insurreio de escravos por
toda Itlia, levando diversos escravos rurais a apostarem numa fuga coletiva para fora da
pennsula. Apesar do impacto desta revolta, no podemos classific-la como uma
revoluo. Os espartacanos no pretendiam abolir a escravido, ento, no se tratava de
uma revoluo social. Eles tambm no derrubaram o governo de Roma, nem formaram
um novo governo, mesmo que com um regime poltico-social idntico, tomando o poder
poltico de Estado, como fizeram os sicilianos na rebelio liderada por Euno, e, sendo
assim, no podemos classificar esta insurreio como uma revoluo poltica. Assim, de
acordo com o paradigma marxista, que o que norteia esta pesquisa, no possvel
afirmar que se tratou de um verdadeiro processo revolucionrio, mas foi realmente uma
revolta popular e uma luta de classes que colocou senhores e escravos em campos
opostos numa verdadeira guerra. Tratou-se de uma luta social e poltica que representou
um marco na Antiguidade clssica e uma das maiores insurreies de escravos da
Histria, e em verdade a maior delas at a Revoluo Haitiana.
Tratamos nesta dissertao do tema das classes sociais e do porqu de
considerarmos os escravos antigos uma classe. importante aqui elucidarmos o
importante aspecto da luta de classes, tema que j foi parcialmente abordado no segundo

captulo, pelo menos no plano mais terico. Interessa-nos salientar que a luta dos
espartacanos foi efetivamente uma luta poltica (se bem que no fosse, como j
afirmamos, uma revoluo poltica); e que seus objetivos, embora os possamos
considerar limitados de uma perspectiva moderna, representavam a poltica possvel
naquele momento histrico e eles chegaram mais longe do que nenhum outro naquela
estrutura social e contexto poltico e cultural. Parece-nos tambm exagerado
considerarmos que somente os homens livres empreenderam uma luta efetiva e
significativa na Antiguidade. Na verdade, as classes subalternas, em geral, nas formaes
sociais pr-capitalistas, sempre que puderam, levantaram-se contra a sua situao de
explorao e de opresso, impactando a sociedade e, principalmente, ameaando o status
quo, o domnio de classe vigente e seu nvel de riqueza social e prestgio poltico. Joo
Jos Reis fornece-nos uma interpretao poltica das lutas sociais das camadas
socialmente exploradas do perodo anterior ao capitalismo:

A poltica tem sido considerada o universo dos homens livres das sociedades
modernas. Os rebeldes que fizeram seus movimentos em contextos pr-industriais ou prcapitalistas ganharam a denominao de rebeldes primitivos e seus movimentos foram
chamados de pr-polticos. Essa merminologia de inspirao evolucionista, elaborada
com certo cuidado por Eric Hobsbawn, j foi habilmente criticada por nossos
antroplogos e historiadores. Eles colocaram as peas no lugar certo: no se trata de
uma questo de pr ou ps, trata-se do diferente. Os rebeldes primitivos faziam a
poltica que podiam fazer face aos recursos com que contavam, a sociedade em que
viviam e as limitaes estruturais e conjunturais que enfrentavam. 141

Ainda segundo Joo Jos Reis, as fugas-rompimento representaram o no quero


dos escravos, a sua inconformidade com o cativeiro, o seu protesto poltico frente
ordem social vigente, rompendo ou no com a lgica escravista, no sentido da
constituio de um projeto abolicionista ou coisa do tipo, mas pelo simples fato de se
rebelarem, o que, por si s, j evidenciava uma ruptura com o paradigma ideolgico
existente, mesmo que parcial, mas sempre forando a uma reelaborao terica ou a um
aumento da represso como mecanismo de controle social; neste caso, tal como Reis

141 REIS, op. cit., p. 99.

chamou de paradigma ideolgico colonial aos valores da sociedade escravista brasileira


que funcionavam como o principal mecanismo dificultador das fugas, cuja crtica
permitiu a fuga para dentro dos escravos da colnia e, enfim, a abolio, os escravos
antigos romperam em sua ao com o que chamaremos de paradigma ideolgico
republicano ou paradigma escravista republicano, gerando mudanas significativas na
organizao jurdica, poltica e ideolgico no perodo posterior. Com isso, mesmo que
no se trate de uma revoluo ou que no tenha exercido uma influncia direta nas
principais transformaes que marcaram a passagem da Repblica para o Principado, a
revolta de Esprtaco assume lugar de destaque, dentre todas as revoltas servis, por ter
provocado uma fissura no discurso ideolgico vigente e influenciado decididamente na
mudana de paradigma em relao escravido, bem como cumprindo um papel talvez
mais que secundrio, na verdade, exercendo uma influncia indireta no surgimento do
Principado, na medida em que levantes desta magnitude colocavam em risco todo o
sistema, mesmo que no fosse sua inteno destru-lo. Em Arajo, temos uma discusso
sobre o impacto material desta revolta:

Note-se que a fuga de escravos, principalmente em grande escala como foi o


caso, trazia grandes prejuzos para os senhores, no s pela perda do capital investido
no escravo fugitivo, mas pelo decrscimo na produo que isto significava. 142

Sendo assim, os prejuzos econmicos eram bastante significativos, representando


uma severa perda de foras produtivas e uma diminuio do nvel de produtividade e,
consequentemente, de lucratividade tambm. A perda de capital investido, a diminuio
da taxa de lucro e a destruio de foras produtivas que se manifestava na necessria
represso ao levante abalavam profundamente os alicerces das relaes de produo no
imprio e, por conseguinte, do prprio sistema poltico de Roma. O exemplo dado pelos
espartacanos no era bom, pois estimulava outros escravos a fazerem o mesmo. Durante a
142 ARAJO, Religio, Poltica e Revolta de Escravos: o caso de Esprtaco. Niteri:
CEIA/Depto.Histria da UFF, 2006. p. 25.

revolta liderada por Euno na ilha da Siclia, vrias outras rebelies servis eclodiram.
Imaginem s se o exrcito espartacano tivesse alcanado o seu objetivo e realizado a
incrvel fuga para fora da Itlia? Quantas outras fugas em massa de escravos no teriam
havido em sequncia? isso que explica a dura represso ao movimento com a
crucificao de seis mil prisioneiros, ainda que isso significasse destruir foras
produtivas, pois preservava o futuro.
Plutarco segue o relato, comeando pelo sentido de tudo aquilo que tinha relao
com os escravos e do quanto era visto como indigno tanto para os senhores quanto para
os prprios escravos, ao mesmo tempo em que expe as vitrias espetaculares do exrcito
de Esprtaco, nas primeiras batalhas da guerra servil:

De incio, os fugitivos repeliram os soldados enviados de Cpua contra eles e,


apoderando-se de uma certa quantidade de armas de guerra, substituram por elas suas
armas de gladiadores, rejeitadas com desprezo como desonrosas e brbaras. Em
seguida, o Pretor Cldio foi enviado de Roma contra eles com trs mil homens, vindo
assedi-los. Eles ocupavam ento uma montanha [o Vesvio] da qual os romanos
controlavam a nica passagem, um desfiladeiro; o resto no passava de rochedos lisos e
a pique. Mas, no cume, crescia em abundncia uma vinha selvagem. Os homens de
Esprtaco cortaram, pois, os sarmentos que pudessem servir-lhe; e, entrelaando-os,
fizeram com eles escadas to longas e fortes que, presas no alto, iam ao longo do
rochedo at o cho. Desceram todos assim em completa segurana, com exceo de um:
esse velava sobre as armas, e as jogou para os outros l embaixo, descendo em seguida
por ltimo. Os romanos no sabiam disto. Os gladiadores cercando-os, aterrorizaramnos pelo carter sbito do movimento e os puseram em fuga, apossando-se do
acampamento. Muitos dentre os boiadeiros e pastores do pas se juntaram a eles. Eram
homens trabalhadores e geis. Alguns foram armados; outros foram empregados como
exploradores ou como infantaria leve. (Plutarco, Crasso, 9)143

O autor afirma que, logo que puderam, os escravos rebeldes trocaram suas armas
de gladiadores pelas armas do exrcito romano, por considerarem as primeiras indignas,
desonrosas e brbaras. Com certeza, isto deve ter ocorrido; evidencia unicamente que a
ideologia dominante tambm exercia influncia sobre os escravos que, assim como seus
amos, enxergavam tudo que se relacionava com a escravido como inferior e brbaro;
143 Apud ARAJO, op. cit., p. 11.

mas talvez as armas apreendidas fossem vistas tambm como armas melhores e mais
eficientes para os combates numa guerra. Alm disso, a cada vitria do exrcito
espartacano, os rebeldes pegavam as armas das tropas derrotadas para se abastecer de
armamentos de forma contnua. No texto fica claro que os romanos subestimaram os
escravos rebeldes e que os espartacanos utilizaram tticas de guerrilha, como
escaramuas, para vencer os seus inimigos em combate, obtendo sempre uma vantagem
numa luta assimtrica entre um exrcito profissional de uma grande potncia e uma tropa
rebelde com poucos recursos. Outro fato interessante que, neste trecho, Plutarco chama
a todos os escravos que atacaram os soldados romanos de gladiadores, que era o
segmento que detinha a liderana das tropas rebeldes. O autor escreve que os romanos
foram pegos desprevenidos, estavam despreparados, e ficaram aterrorizados com o ataque
surpresa engendrado por Esprtaco e seus comandantes. Diante do sucesso dos
revoltosos, homens livres se uniram a eles e assumiram diversas funes, dentre elas
tambm a de combater. Plutarco descreve um exrcito extremamente organizado.
Trabalhadores rurais, como boiadeiros e pastores, foram os livres que se juntaram a
Esprtaco. Dentre os pastores possvel que existissem escravos pastores tambm e,
assim como se deu com os livres, entre os escravos os rurais tambm foram a maioria a
afluir para a revolta. Neste trecho tambm fica ntida a engenhosidade de Esprtaco frente
s adversidades.
Apiano aborda como os senadores romanos encaravam aquela revolta e que foi o
menosprezo das principais autoridades republicanas quele movimento que levou os
primeiros exrcitos mandados derrota:

Varnio Glaber foi mandado contra ele primeiro, e depois Pblio Valrio, no
com exrcitos regulares, mas sim com foras arregimentadas s pressas e ao acaso, pois
os romanos no a consideravam ainda uma guerra, mas sim uma razzia, algo como um
surto de roubos. Eles atacaram Esprtaco e foram vencidos. Esprtaco capturou at o
cavalo de Varnio; o prprio general romano escapou por pouco de ser capturado por
um gladiador. Depois disto, um nmero ainda maior de pessoas agregou-se a Esprtaco,
at que seu exrcito contasse com cerca de 70000 homens. Para estes, ele fabricou armas
e reuniu armamentos, enquanto Roma mandara os cnsules com duas legies.(Apiano,
XIV, 116)144

144 Apud ARAJO, op. cit., p. 32.

O governo romano considerou, no incio, a revolta de Esprtaco como mais uma


fuga de escravos e seus atos como atos de banditismo, mas encontrou nos espartacanos
um verdadeiro exrcito e em Esprtaco um verdadeiro general; e, aps as sucessivas
derrotas, constatou tratar-se de uma verdadeira guerra. Roma foi humilhada quando o seu
pretor Varnio foi vencido e teve seu cavalo tomado por Esprtaco lder da rebelio
servil. O exrcito rebelde cresceu at o nmero impressionante de setenta mil homens e
se organizou para o fabrico e pilhagem de armamentos para abastecer as tropas. Ao
desprezarem o perigo real que a guerra servil representava, tratando-a como um simples
motim, os romanos semearam o seu fracasso e deram aos escravos tempo para se
fortalecerem e consolidarem uma posio mais slida, tornando-se um polo de atrao
para todos os descontentes das camadas sociais mais desfavorecidas.
Neste ponto da revolta, no relato de Plutarco, aparecem os objetivos de Esprtaco
na conduo do movimento e que na opinio do referido autor parece ser o mais sensato,
que era a fuga para fora da Itlia, inicialmente pelo norte, surgindo no processo um
importante obstculo que era, segundo a interpretao de Plutarco, a indisciplina de seus
soldados:

Ele era, agora, importante e temvel, mas no se deixava enganar: no


acreditando poder vencer o poderio de Roma, tratou de conduzir seu exrcito em direo
aos Alpes, que em sua opinio todos deveriam atravessar para em seguida cada um
voltar para sua casa, uns na Trcia, outros na Glia. Mas seus soldados, encorajados
por seu nmero, e temerrios, no o escutavam; devastavam a Itlia, onde se
espalharam. Por conseguinte, j no eram mais a indignidade e a vergonha de ter de
combater a sedio que contrariavam o Senado; doravante, o medo e o sentimento do
perigo o decidiram a enviar ao mesmo tempo os dois cnsules, como se se tratasse de
uma das guerras mais difceis e mais graves da Histria. Um dos cnsules, Glio, caiu de
surpresa sobre os germanos, que, com presuno e orgulho, formavam um grupo
separado, e os destruiu completamente; o outro, Lntulo, frente de grandes
contingentes, cercou Esprtaco. Mas este marchou diretamente ao encontro do inimigo,
dando combate no qual venceu os suboficiais de Lntulo e capturou todo o material.
Quando, a seguir, se dirigia em marchas foradas para os Alpes, Cssio, o pretor da
Glia Cisalpina, frente de dez mil soldados, barrou-lhe a passagem. Ocorreu a
batalha: Cssio foi derrotado, perdeu muitos dos seus e teve pessoalmente dificuldades
de escapar. (Plutarco, Crasso, 9)145

Esprtaco no pensava em tomar a cidade de Roma. Ele queria conduzir seus


comandados para fora da pennsula, mas havia outras lideranas e homens livres e pobres
que lucravam com os saques, e no pretendiam abandonar sua terra natal, alm de
escravos que talvez tenham se entusiasmado com as pilhagens e a garantia de
sobrevivncia numa comunidade auto-suficiente. As divises no interior do exrcito
rebelde, apontadas como motivadas pelo orgulho e arrogncia, mas estando de fato
ligadas s diferenas tnicas, que tornavam cada bloco tnico leal e organicamente unido
em torno de uma liderana do seu grupo, o que se somava s eventuais divergncias
quanto melhor estratgia no curso da luta dificultavam o avano do exrcito com um
objetivo nico. De qualquer modo, foi um fator decisivo no enfraquecimento dos
escravos rebeldes, facilitando as coisas para o exrcito romano, que podia lutar
separadamente com cada grupo dissidente. A classe dominante romana tambm passou a
sentir temor diante das vitrias do exrcito espartacano e de uma das guerras mais difceis
e graves da Histria de Roma, segundo as palavras do prprio Plutarco, que reconhecia,
nesse momento, tratar-se de uma guerra verdadeira e que exerceu influncia sobre o
modo de pensar e agir da classe senhorial frente os escravos rebelados. A indeciso no
exrcito rebelde e suas discordncias levaram a que o momento de uma fuga segura pelo
norte fosse perdido, permitindo que os romanos se reorganizassem e bloqueassem o seu
caminho. No entanto, a onda de vitrias de Esprtaco ainda no havia cessado e, uma vez
mais, os generais romanos foram vencidos pelos insurretos.
Apiano retrata a relao do movimento liderado por Esprtaco com as cidades e
os escravos urbanos, que no afluram para a revolta, mostrando um controle (inclusive
ideolgico) maior sobre este segmento dos escravos de Roma, alm do fato do prprio
Esprtaco ter procurado evitar as cidades, ao que parece, tendo em vista os exemplos
anteriores, sendo o maior deles a Primeira Revolta de Escravos da Siclia, que teve as
cidades ocupadas tomadas pelos romanos devido traio de escravos urbanos. Ele
tambm escreve sobre o crescimento do movimento e uma suposta mudana de planos de
Esprtaco que teria pretendido marchar sobre Roma, deixando de faz-lo na medida em
145 Idem, ibidem, pp. 11-12

que suas tropas no eram capazes de ser bem-sucedidas na empreitada, na opinio do


autor por serem formadas pela ral. Rituais de sacrifcio foram realizados em honra a
Crixo morto pelos romanos, mostrando a considerao que tinha para com o seu
companheiro, mesmo depois do mesmo ter rompido com o exrcito principal comandado
pelo prprio Esprtaco. O sacrifcio de soldados romanos aparecia como uma forma de
encorajar os seus, honrar os mortos e talvez amedrontar os inimigos. O relato de Apiano
bastante direto e focado nos aspectos militares do conflito. Nesta primeira fase da revolta,
a sorte estava do lado dos espartacanos que impuseram amargas derrotas a Roma:

Uma delas, [das legies] derrotou Crixo com 30000 homens prximo ao Monte
Gargano, dois teros dos quais sucumbiram junto com ele. Esprtaco tentou abrir
caminho atravs dos Apeninos em direo aos Alpes e regio da Glia, mas um dos
cnsules antecipou-se e impediu sua fuga, enquanto o outro mantinha sua retaguarda sob
controle. Ele voltou-se contra eles um aps o outro e derrotou-os um por um. Eles
bateram em retirada, de modo confuso, em vrias direes. Esprtaco sacrificou
trezentos prisioneiros romanos ao esprito de Crixo, e marchou sobre Roma com 120000
homens da infantaria; tendo queimado todo o material sem utilidade, matou todos os
prisioneiros e abateu seus animais de carga, a fim de executar prontamente seu
movimento. Muitos desertores ofereceram-se a ele, embora ele no os aceitasse. Os
cnsules novamente encontraram-no na regio do Piceno. Aqui havia sido travada outra
grande batalha e houve, tambm uma outra grande derrota dos romanos. Esprtaco
mudou sua inteno de marchar sobre Roma. Ele ainda no se considerava pronto para
este tipo de luta, j que sua fora total no estava armada adequadamente, pois nenhuma
cidade juntou-se a ele, mas somente os escravos, desertores e a ral. No entanto, ele
ocupou as montanhas ao redor de Trio e tomou a prpria cidade. Ele proibiu que os
mercadores trouxessem ouro e prata, e no permitiu que seus prprios homens os
adquirissem, mas comprou grande quantidade de ferro e bronze e no interferiu com
aqueles que negociassem com tais artigos. Abastecido em abundncia com material
dessa procedncia, seus homens proveram-se de muitas armas e fizeram pilhagens
freqentes por um tempo. Quando eles, em seguida, travaram combate com os romanos,
novamente foram vitoriosos, e voltaram carregados com esplios.(Apiano, As Guerras
civis, XIV, 117)146

Apiano apresenta um Esprtaco extremamente pragmtico. Ele executava os


prisioneiros porque no tinha como tomar conta deles em sua fuga, como vigi-los, e no
poderia libert-los, pois eles se juntariam novamente ao exrcito romano. Destrua e

146 Apud ARAJO, op. cit., p. 32.

deixava para trs tudo que no fosse essencial. Ele abatia os animais de carga e queimava
o material que no podia levar, provavelmente, para no deix-los para as tropas
inimigas. Os saques eram uma forma de garantir o abastecimento de seu exrcito. Ele
permitia o comrcio que era de seu interesse para equipar as suas tropas. Esprtaco
rejeitava tudo que fosse suprfluo, mesmo as riquezas como prata e ouro, preferindo, ao
invs disso, adquirir bronze e ferro para a fabricao de armas para fazer a guerra. Os
esplios de guerra conquistados nas batalhas ou nos saques s regies que ocupavam
eram a forma principal de fornecimento de suprimentos para os revoltosos. Esta
sobriedade de Esprtaco garantiu por algum tempo a sua vitria, mas a sorte da guerra
comeou a mudar com a entrada em cena de um importante personagem desta histria
trgica, que cumpriu um papel decisivo para que os romanos retomassem posies
perdidas e avanassem sobre o exrcito de escravos. Este homem era Crasso.

Esta guerra, to terrvel para os romanos (embora ridicularizada e desprezada


de incio, como sendo meramente obra de gladiadores), j durava trs anos. Quando
chegou a poca de eleger novos pretores, todos estavam temerosos, e ningum ofereceuse como candidato, at que Licnio Crasso, um homem reconhecido entre os romanos por
nascimento e riqueza, assumiu a pretoria e marchou contra Esprtaco com seis novas
legies. Quando chegou a seu destino, recebeu tambm as duas legies dos cnsules, que
ele dizimou por sorte, devido m conduta deles em vrias batalhas. Alguns dizem que
Crasso, tambm, tendo comprometido na batalha todo seu exrcito, e tendo sido
derrotado, dizimou todo o exrcito e no se desencorajou pelo seu nmero, mas destruiu
aproximadamente 4000 deles. De qualquer modo que fosse, quando ele demonstrou, uma
vez, que ele era mais perigoso para eles [soldados] do que o inimigo, dominou dez mil
espartacanos, que estavam acampados em algum lugar em uma posio isolada, e matou
dois teros deles. Ele, ento, marchou ousadamente contra o prprio Esprtaco,
vencendo-o em uma batalha brilhante, e perseguiu suas foras em fuga at o mar, onde
eles tentaram atravessar para a Siclia. Ele alcanou-os e cercou-os com fosso, um muro
e paliada. (Apiano, As Guerras civis, XIV, 118)147

A grande virada no conflito para um cenrio mais favorvel aos romanos deu-se
efetivamente quando Licnio Crasso assumiu o comando das legies que marchariam
contra Esprtaco. Os soldados romanos que se mostraram indignos e covardes foram
severamente punidos com o castigo da dizimao, em desuso na poca, mas que foi

147 Apud ARAJO, op. cit., pp. 32-33.

considerado pelo general romano como necessrio para restabelecer a disciplina em suas
fileiras. Segundo Apiano, os soldados passaram a temer mais a Crasso do que aos
espartacanos, o que serviu para encoraj-los a lutar com todas as foras, sem recuar,
impondo, assim, aos rebeldes importantes e sucessivas derrotas. Quatro mil soldados
romanos foram sorteados para serem executados de forma exemplar para que servissem
de aviso aos demais. Plutarco tambm escreve sobre a aplicao deste castigo, e informanos que o sorteio se deu entre aqueles que haviam manifestado mais medo e que esta
forma de punio era marcada pela humilhao, por ser uma morte desonrosa. Tanto em
Apiano quanto em Plutarco este o momento em que Esprtaco muda seus planos e tenta
escapar da pennsula pelo sul, rumo Siclia:

Quanto aos quinhentos que haviam manifestado mais medo, ele os repartiu em
cinquenta grupos de dez, em cada um dos quais fez morrer um homem designado por
sorteio. Castigo tradicional h muitas geraes. E, com efeito, a vergonha se liga a esse
gnero de morte, muitos detalhes do qual, apavorantes e sinistros, agravam a execuo,
efetuada vista de todos. Assim corrigindo seus homens, Ele os comandou na direo do
inimigo. Esprtaco, porm, se retirara em direo ao mar pela Lucnia. Achando no
estreito barcos de piratas cilcios, ele decidiu tentar um golpe na Siclia, lanando dois
mil homens ilha para ali reacender a guerra servil, que, extinta havia pouco tempo, s
tinha necessidade de umas fagulhas para voltar a arder. Mas os cilcios, aps fazer
acordo com ele e receber gratificaes, o enganaram, partindo sozinhos. (Plutarco,
Crasso, 10)148

Neste fragmento, podemos notar que para os romanos estes eventos no estavam
desconectados. Eles viam total relao entre as guerras servis e a memria das revoltas da
Siclia e de seu impacto ainda estava presente no momento em que eclodiu a revolta de
Esprtaco. Plutarco afirma que apenas algumas fagulhas bastariam para reacender a
guerra servil na ilha da Siclia. Isto quer dizer que a situao ainda era delicada e que o
controle sobre os trabalhadores escravos, mesmo depois da represso Segunda Guerra
Servil, era muito dbil e que as condies que geraram as duas revoltas anteriores no
haviam se alterado substancialmente. O autor afirma que Esprtaco pretendia dar um
148 Idem, ibidem, p.12.

golpe de Estado na Siclia, remetendo ao que ocorrera na primeira rebelio servil, quando
Euno deu um golpe e assumiu o controle do governo da ilha. Assim, para os dois autores,
as condies na provncia ao sul seriam mais favorveis e permitiriam aos espartacanos
resistir mais tempo. A traio dos piratas cilcios foi decisiva para que o plano de
Esprtaco malograsse. Os rebeldes estavam, agora, encurralados. As tropas de Crasso
avanavam sobre eles, tendo atrs de si o seu general com a espada e o chicote para
for-los a lutar, retirando-lhes o medo do exrcito de escravos, atravs do medo que lhes
incutia pelos castigos severos que os aguardavam em caso de desero. Antes de Licnio
Crasso passar ao comando dos exrcitos romanos, vimos nos relatos sobre vrias
deseres e de como estes desertores tentaram, inclusive, passar para o outro lado, sendo,
no entanto, recusados pelos escravos. O novo general era ao mesmo tempo estrategista e
carrasco, um comandante com amplos poderes para uma situao de extremo perigo. O
aumento no efetivo de soldados, com um nmero de legies muito superior ao que fora
designado pelo Senado no princpio, tambm demonstrou o medo crescente dos
senadores diante daquela guerra que acontecia na prpria Itlia.
O general dos escravos tambm tentava maneiras de incentivar os seus soldados a
lutarem com todas as foras, conscientizando-os do terrvel destino que teriam caso
fossem vencidos:

Ele tambm crucificou um prisioneiro romano no espao entre os dois


exrcitos para mostrar a seus prprios homens o destino que os aguardava, caso no
vencessem. (Apiano, As Guerras Civis, XIV, 119)149

A morte pela cruz no viria das mos de Esprtaco, naturalmente, como a punio
aos romanos que partiu das mos de Crasso, mas sim de Roma; demonstrando de maneira
bastante pedaggica, o lder escravo expunha de forma quase proftica o futuro que
teriam e porque deveriam travar uma luta desesperada pela sua liberdade e por suas vidas.

149 Apud ARAJO, op. cit., p. 33.

Ele j havia sacrificado prisioneiros romanos antes em ritual e honra a Crixo e agora
executava de modo exemplar um soldado romano. Diferentemente da rebelio conduzida
por Euno, Esprtaco no parece ter feito escravos, executando de diversas formas os seus
prisioneiros. O seu exrcito tambm no se firmou numa posio geogrfica fixa por
muito tempo, como acontecera nas revoltas anteriores. Este era um exrcito em marcha
permanente e quase ininterrupta e uma comunidade mvel de homens e mulheres pobres
e ex-escravos. Uma nao errante de desvalidos. Em circunstncias assim no era
interessante ou prudente ter cativos. A ao educativa para os soldados rebeldes foi uma
tentativa desesperada de abrir-lhes os olhos para a gravidade da situao. Tanto as aes
de um general quanto de outro revelavam que circunstncias desesperadas pediam
medidas desesperadas e os dois apostaram todas as fichas em vencer o conflito ou, no
caso de Esprtaco, fugir da Pennsula Itlica o mais rpido possvel. Mas nem todos os
esforos do lder gladiador foram suficientes para evitar as constantes dissidncias entre
os escravos. Uma das batalhas mais sangrentas, retratadas em cores vivas por Plutarco,
foi justamente o enfrentamento e consequente massacre de uma dessas tropas dissidentes
do exrcito espartacano pelas tropas de Crasso:

Decidiu, pois, atacar logo os dissidentes, que formavam bandos separados e


eram comandados por C. Gancio e por Casto. Para tanto, enviou seis mil homens para
que ocupassem um posto alto, com ordem de dissimular o seu avano. Eles, de fato, se
esforaram por passar desapercebidos cobrindo os seus elmos [para que no refletisse o
sol, traindo seus movimentos]; mas, vistos por duas mulheres que simpatizavam com os
inimigos, estariam perdidos sem o pronto aparecimento de Crasso, que deu incio ao
mais violento de todos os combates, no qual matou doze mil e trezentos homens, dos
quais s dois, verificou-se, foram feridos por trs; todos os outros ficaram firmes em seus
postos e morreram combatendo os romanos.( Plutarco, Crasso, 11) 150

Os romanos aproveitaram-se todas as vezes das divises existentes entre os


rebeldes e souberam enfraquec-los, eliminando fisicamente cada grupo em separado.
Um certo espontanesmo presente nesse movimento tambm serviu para imprimir-lhe um
150 Apud ARAJO, op. cit., pp.12-13.

carter vacilante, oscilando o tempo todo em sua estratgia. Um fator positivo, entretanto,
era o seu dinamismo. Na medida em que o exrcito romano eliminava seus lderes, outras
lideranas surgiam do prprio processo de luta, como se deu com a morte de Crixo e
Enomau, assumindo Gancio e Casto posies de comando. Novos generais eram
forjados no calor das batalhas para chefiar o movimento rebelde. Esprtaco seguia como
sua liderana principal, mas tinha de enfrentar constantes rupturas e, s vezes, era
vencido pela opinio da maioria na hora de decidir a melhor estratgia. Mas o que era
apontado como um elemento negativo pelos autores romanos evidenciava, ao mesmo
tempo, ser aquele um movimento dinmico e democrtico, diferente da concepo
romana da guerra, onde o general determinava, ou parecia ser assim nos relatos relativos
a esse processo poltico e militar em especial, de forma irrevogvel as tticas e estratgias
de batalha. Assim como o produto dos saques era distribudo de maneira igualitria entre
todos, as decises tambm pareciam ter um carter coletivo nessa revolta popular,
havendo algo como assemblias, sendo necessrio ao lder do movimento convencer os
seus liderados, no pela coero, mas pela oratria. significativo que apenas dois
escravos tenham tentado fugir do campo de batalha e que a maioria absoluta tenha
permanecido defendendo os seus postos na luta contra as tropas de Crasso, o que foi
reconhecido pelo autor, demonstrando que valores como a coragem no eram exceo,
algo que poderia se manifestar em alguns elementos apenas, que por mero acaso teriam
se tornado escravos e sido designados para funes mais rebaixadas como a de gladiador,
tal como ocorrera com Esprtaco; este fragmento deixa claro que esta coragem
excepcional podia se manifestar nas massas de escravos rebeldes tambm. Alm disso,
aqui aparecem mulheres, que participavam da revolta tambm, que apoiavam o
movimento.
Pouco antes da batalha final, Esprtaco derrotou Quinto, que era um dos generais
de Crasso, e o questor Escrofa, tornando os rebeldes confiantes novamente, o que influiu
decisivamente nos passos seguintes do exrcito espartacano:

Este sucesso foi a perdio de Esprtaco, por tornar arrogantes os escravos


fugitivos, j que no procuravam oferecer o combate frontal e deixaram de obedecer aos
chefes. Pior ainda: j tendo encetado a marcha, eles cercaram tais chefes, em armas, e

foraram-nos a dar marcha-a-r, a conduzi-los, atravs da Lucnia, ao encontro dos


romanos.( Plutarco, Crasso, 11)151

Assim, na passagem seguinte, Plutarco reconcilia-se com a ideologia escravista e


apresenta no s os soldados rebeldes como arrogantes e indisciplinados, realizando um
motim contra o seu general, mas Esprtaco tambm aparece nesse trecho como um
comandante que no consegue disciplinar suas tropas, ter autoridade sobre elas, tal como
Crasso tivera com as suas. Um falso exrcito chefiado por um falso general numa falsa
guerra. Isto o que sintetiza o que representa este fragmento, o seu sentido mais
profundo. A ambiguidade da classe dominante romana frente escravido permeia todo o
texto e depois de expor as vitrias dos escravos, sua capacidade de organizao e de
mobilizao e as qualidades pessoais de seu maior lder Esprtaco no fim, retoma a
noo tradicional de inferioridade dos escravos em relao aos homens livres e ao
exrcito e aristocracia romana. De qualquer modo, uma confisso pblica de que esta
havia sido uma das maiores guerras da histria romana significativo, bem como a
passagem em que relata o esprito de luta dos escravos rebeldes na batalha mais sangrenta
de todo o conflito. Novamente, no se trata aqui de uma reviso completa de toda a teoria
escravista, mas de assimilar mais contradies ao interior do discurso, dando-lhe novos
contornos, e expondo a diferena fundamental entre a construo ideolgica da classe
dominante, a sua viso de mundo, imposta ao conjunto da sociedade, e a realidade
objetiva em toda a sua complexidade.
O conflito chega ao fim com um desfecho trgico para os espartacanos:

... Crasso tentou de todas as maneiras dar combate a Esprtaco para que
Pompeu no pudesse colher a glria da guerra. O prprio Esprtaco, pensando
antecipar-se a Pompeu, convidou Crasso a entender-se com ele. Quando suas propostas
foram rejeitadas com desprezo, ele resolveu arriscar uma batalha, e como sua cavalaria
havia chegado, avanou com todo o seu exrcito atravs das linhas do exrcito que lhe
fazia cerco, e avanou para Brundusium com Crasso perseguindo. Quando Esprtaco
soube que Lculo acabara de chegar a Brundusium da sua vitria contra Mitrdates,

151 Apud ARAJO, op. cit., p.13.

perdeu toda esperana e trouxe suas foras, que eram ento muito numerosas ainda,
para perto das de Crasso. A batalha foi longa e sangrenta, como era de se esperar de
tantos milhares de homens desesperados. Esprtaco foi ferido na coxa por uma lana e
ajoelhou-se, segurando seu escudo sua frente e lutando assim contra seus atacantes at
que ele e a grande massa dos que com ele estavam foram cercados e mortos. O resto de
seu exrcito entrou em pnico e foi massacrado maciamente. To grande foi a matana
que se tornou impossvel contar os mortos. Os romanos perderam mais ou menos mil
homens. O corpo de Esprtaco no foi achado. Muitos dos seus homens fugiram do
campo de batalha para as montanhas, onde os seguiu Crasso. Eles se dividiram em
quatro grupos, e continuaram a lutar at que todos pereceram, com exceo de seis mil
que foram capturados e crucificados ao longo de toda a estrada de Cpua a Roma.
(Apiano, As Guerras Civis, XIV, 120)152

Apiano fala de uma batalha difcil, na qual muitos romanos morreram, e que o
prprio Esprtaco lutou at a morte, assim como aqueles que com ele estavam. O corpo
do lder do exrcito espartacano nunca foi encontrado. Antes do confronto direto, ele
tentou todos os tipos de escaramuas e subterfgios, buscando at mesmo um
entendimento com Crasso, propondo um acordo, que foi pelo general romano rejeitado
com desprezo, por se tratar das propostas de um escravo e no de um verdadeiro general,
de um exrcito de escravos fugitivos e no do exrcito de outra nao, no sendo possvel
nem digno firmar tratados com tropas como as de Esprtaco. Os rebeldes foram cercados
por trs generais Crasso, Pompeu e Lculo e suas respectivas legies. Os escravos
sobreviventes, ao serem capturados, sofreram o destino para o qual Esprtaco os havia
alertado: foram crucificados. A crucificao em massa se deu ao longo da estrada que ia
de Cpua, cidade onde se iniciou a revolta, a Roma, a capital do imprio, para servir de
exemplo para todos os escravos da Itlia e de todo o Imprio Romano, para mostrar o que
acontece com aqueles que desafiam a ordem estabelecida, com os escravos fugitivos e
rebeldes, com aqueles que ameaam a segurana dos cidados romanos e suas
propriedades. O relato de Apiano teve como centro as operaes militares ocorridas
durante toda a guerra servil. E no final de seu texto, ao contrrio do que buscou Plutarco,
ele apresenta uma batalha sangrenta, na qual os dois lados lutaram bravamente, apesar de
mencionar o fato dos rebeldes terem entrado em pnico depois da morte de seu lder. J
Plutarco tenta reafirmar o discurso escravista, enfatizando a covardia dos escravos nesse
152 Apud CARDOSO, op. cit., pp. 143-144.

combate, mesmo que em muitas passagens tenha exaltado de alguma forma a


combatividade dos espartacanos. No geral, os dois autores manifestaram a ambiguidade
presente na relao escravista, por ser o escravo ao mesmo tempo um ser humano e uma
propriedade. Porm, por ter sido a expresso mais elevada da rebelio servil na
Antiguidade, pelo efeito que exerceu sobre a psicologia das classes dominantes, pela
gravidade da mesma durante todo o perodo em que transcorreu e pelo que representaria o
seu eventual sucesso, algo muito mais extraordinrio do que qualquer outra revolta, pois
poderia ter sido a maior fuga em massa de escravos da Histria, e quase foi, e por ter
tomado conscincia disso h tempo, a aristocracia romana colocou a servio da
aniquilao dos espartacanos tudo o que tinham a seu dispor, com vrias legies e seus
melhores generais. Por todos esses fatores, Apiano e Plutarco no puderam ignorar a
capacidade daquilo que para eles era a ral. Os espartacanos mostraram esprito de luta,
coragem e organizao e seu lder, Esprtaco, um excepcional talento militar, alm de
caractersticas pessoais incomuns para um escravo, pelo menos segundo a ideologia. Ao
serem encurralados em Brundusium, os escravos rebeldes lutaram com a coragem do
desespero e conseguiram abater mil soldados romanos. Um feito incrvel, quando tudo j
estava perdido, e a possibilidade de vitria j havia desvanecido e s o que restava era a
morte no campo de batalha, os revoltosos levaram muitos inimigos com eles.
A grandiosidade deste acontecimento, sem dvida, acabou por influenciar tambm
os historiadores modernos, principalmente os de orientao marxista, mas foi da
historiografia stalinista que partiu a tese da revoluo escrava contra os senhores,
enxergando na insurreio liderada por Esprtaco, parte de uma histria construda a
priori, na qual todas as pocas e eventos se encaixavam num esquema geral e os que no
se encaixavam, deviam ser revistos para que pudessem se enquadrar nessa frmula. Aqui
interessa-nos perceber as semelhanas e diferenas entre as duas principais revoltas de
Euno e de Esprtaco e a comparao entre a escravido antiga e a escravido moderna,
de modo que a segunda cumpra a funo de iluminar a primeira naquilo que for possvel
e relevante. Diferentemente do que foi realizado pela historiografia stalinista que
pretendeu atrelar totalmente e diretamente este, como outros estudos, aos objetivos
polticos da URSS, o que se quer buscar uma interpretao que simplesmente permita
que a voz dos escravos e uma verso que parta do seu ponto de vista possam aparecer

diante do fato de que todos os textos foram produzidos pela classe dominante. Para isso,
tendo em vista a sua importncia e alcance, no podemos ignorar o tratamento dado pela
historiografia sovitica ao tema, nem deixar de formular uma crtica consistente mesma.

4 A REVOLTA DE ESPRTACO NA HISTORIOGRAFIA SOVITICA

O caso de Esprtaco esteve bastante em voga na Unio Sovitica, diferentemente


dos outros lderes de revoltas de escravos ou de todas as outras personalidades da
Antiguidade. Esprtaco, ao contrrio de Euno ou Slvio-Trifo, tornou-se parte de uma
mitologia revolucionria e da histria de mrtires da Unio Sovitica. Apesar dessa
vantagem, ele sofreu das abruptas mudanas de curso na escrita e no pensamento
histrico sovitico.153 Entre o incio da Revoluo Russa de 1917 e os anos de 1930
houve uma coexistncia pacfica entre os historiadores marxistas e no marxistas na
Rssia e a literatura ocidental sobre o assunto era de livre acesso para os leitores; porm,
na medida em que a luta poltica se acentuava no interior da jovem repblica socialista e
crescia o autoritarismo governamental, especialmente a partir da ascenso de Stlin nos
anos 20 como principal chefe poltico de um Estado que se burocratizava mais a cada dia,
a interveno estatal sobre a produo intelectual aumentava e as cincias e as artes
passavam a obedecer aos critrios e servir aos propsitos do governo. A teoria dos cinco
estgios da histria humana desenvolvida por Stlin foi responsvel por fazer surgir nos
estudos soviticos acerca da revolta de Esprtaco a teoria da revoluo em duas fases,
sendo o levante de Esprtaco uma primeira revoluo contra o sistema escravista, que foi
completada por uma revoluo de escravos, camponeses e invasores germanos, que
terminaria por destruir o Imprio Romano e implantar o feudalismo na Europa Ocidental

153 RUBINSOHN, W. Z. SpartacusUprising and Soviet Historical Writing. Oxford: Oxford University Press,
1987, p. 1.

a partir do sculo V d.C. Desse modo, Roma teve sua derrocada pela via revolucionria,
tendo os escravos antigos como protagonistas dessa revoluo. 154
O contexto poltico dos expurgos stalinistas na Unio Sovitica dos anos 30
produziu uma historiografia totalmente alinhada com o dogmatismo que marcou o que foi
denominado de marxismo-leninismo por Stlin. Misulin foi um dos intelectuais que
representou esta tendncia. Ele era membro do PCUS desde 1927, co-editor do nico
peridico especializado em Histria Antiga da Unio Sovitica, o V. D. I., e se tornou
Diretor da Seo de Histria Antiga do Instituto Histrico da Academia de Cincias, em
1938, obtendo o seu Doutorado em 1943. Ele publicou trs artigos e dois livros sobre a
revolta de Esprtaco e ganhou notoriedade por estes trabalhos na URSS. 155
O mais importante que Misulin escreveu uma histria das rebelies de escravos
da Roma antiga que estava em consonncia com os dogmas do Estado sovitico:

(...) durante a revolta de Esprtaco, a auto-conscincia dos escravos tornou-se


slida o bastante para uma tentativa de auto-libertao.(...) A consequncia da revoluo
de Esprtaco era que a classe dos proprietrios de escravos, cujo domnio foi minado
pela revoluo, foi agora forada a aceitar uma ditadura militar sem disfarces. Isto
intensificou a luta de classes e levou a uma nova revoluo de escravos e camponeses,
que nos quarto e quinto sculos finalmente liquidou a economia baseada no domnio dos
donos de escravos. 156

154 ARAJO, A Viso dos Letrados sobre Rebelies de Escravos no Mundo Romano: Uma Abordagem
Semitica de Fontes Literrias, op. cit., pp. 234-235.

155 RUBINSOHN, op. cit., p.7.

156 Misulin, 1936, p.98 , apud RUBINSOHN, op. cit., pp.7-8.

A interpretao histrica de Misulin estava impregnada de contedo polticoideolgico e traava um paralelo com questes modernas e caras ao Partido, no sentido
de construir uma anlise que dava justificao terica ao combate empreendido pela
maioria da sua direo aos seus opositores. Assim, Esprtaco teria sido o verdadeiro
lder do proletariado e o Grande Lder, que teve seus planos derrotados pela
indisciplina da pequena burguesia, representada pelos homens livres e pobres e pelos
extremistas de esquerda Crixo, Enomau, Gancio e Casto, que poderiam ser
identificados com os trotskistas da oposio de esquerda. 157
A crtica s posies de Misulin partiu de Kovalev (Kovaliov), uma das mais
surpreendentes, por ser este autor um dos representantes da revoluo em duas etapas.
Neste historiador, a frente nica entre escravos, colonos e brbaros para derrubar o
imprio aparece como parte de seu esquema, que exclua a revolta de Esprtaco como
parte dessa revoluo que efetuou a passagem da sociedade escravista para o feudalismo.
Em Kovalev, o levante de Esprtaco foi uma insurreio revolucionria, mas no uma
verdadeira revoluo, pois no teria alterado o modo de produo, com a passagem do
poder poltico das mos de uma classe social para outra. 158 Ainda se pode dizer de
Kovalev que ele datou corretamente a revolta de Esprtaco (73-71 a.C.) e tambm a
situou mais realisticamente em relao futura transio ao feudalismo.

159

No texto de Rubinsohn, citado ainda outro autor Utchenko. Ele formula a


crtica historiografia sovitica do perodo stalinista. Para o historiador seria possvel at

157 RUBINSOHN, op. cit., p. 8.

158 ARAJO, op. cit., pp. 237-239.

159 RUBINSOHN, op. cit., p. 12.

mesmo falar de uma transio revolucionria da Repblica para o Principado, mas tendo
como centro o conflito entre os homens livres:

O conceito de revoluo pode ser aplicado ao movimento dos Graco at a


Guerra Social. Para Utchenko isso, e no a revolta de Spartacus, foi a "fase mais
elevada" da Revoluo Romana. Desta forma os camponeses italianos, no os escravos,
tornaram-se a vanguarda da revoluo, que chegou ao fim antes da revolta de Spartacus
(...)160

Assim, Utchenko faz um balano historiogrfico e suas teses suplantam as do


perodo do governo de Stlin.
A historiografia sovitica, devido interveno estatal na produo artstica e
cientfica, foi marcada por equvocos imensos. No entanto, importante destacar o fato
de que, pelo menos nesse caso, os historiadores soviticos cumpriram o papel de realar a
grandeza do acontecimento que foi a revolta de Esprtaco, assim como os autores antigos
Plutarco e Apiano a enxergavam, tendo errado, entretanto, ao tentar enquadrar as
rebelies servis nas polmicas do presente de forma arbitrria, ao invs de perceber o que
estava realmente nela contido, que j era bastante significativo do ponto de vista histrico
e da luta de classes na Histria.

5 O IMPACTO DAS REBELIES SERVIS NA VISO DE MUNDO E NA


POLTICA DA CLASSE DOMINANTE ROMANA

Uma noo mais rgida em relao aos escravos presente em Cato ou na teoria da
escravido natural de Aristteles, que foi o grande paradigma escravista da Antiguidade,
foi posta em xeque pela ecloso das revoltas servis dos sculos II e I a.C. e a forma com
que as mesmas se desenvolveram, ameaando o modo de vida e as propriedades romanas.
160 Idem, ibidem, p.13.

O fim da Repblica no representou apenas o fim de um regime poltico, mas


tambm de uma forma especfica de fazer poltica, necessitando-se de novos mecanismos
poltico-ideolgicos e de um novo aparato jurdico-repressivo, numa combinao de
concesses e punies.
Analisando os textos de Plutarco e de Apiano, percebemos o impacto das revoltas
de Euno e de Esprtaco na conscincia e na psicologia das classes dominantes. O
reconhecimento das qualidades mais elevadas em exrcitos de escravos mostrava que
algo havia mudado, que eventos to grandiosos no poderiam deixar de imprimir nos
espritos dos homens dos anos subsequentes uma nova viso de mundo. Em plos opostos
na interpretao sobre a escravido na Antiguidade, Aristteles e Sneca, este ltimo o
principal conselheiro de Nero, fazendo parte da corte no regime do Principado,
influenciando, sem dvida, importantes autoridades e membros da aristocracia com sua
filosofia estica. Entre estes dois extremos esto as elaboraes de Cato, de Diodoro, de
Plutarco e de Apiano. Mas abordar primeiro estas duas posies quase antagnicas
(talvez s concordem com o fato de que nem Aristteles nem Sneca propunham a
abolio da escravido), permite-nos vislumbrar as principais formas de enxergar o
problema que existiram no mundo greco-romano e as realidades histricas que elas
refletem:

Qualquer ser humano que, por natureza, pertena no a si mesmo mas a outro
, por natureza, escravo; e um ser humano pertence a outro sempre que fizer parte da
propriedade, ou seja, uma parte da propriedade que um instrumento para a ao de seu
senhor. (Aristteles, Poltica 1254 a 4-18 )161

Aqui a apresentada a coisificao absoluta dos escravos e a justificativa natural


da escravido. E Aristteles segue em sua Poltica explicando as diferenas entre os que
por natureza so senhores e os que por natureza so escravos:

161Apud GARNSEY, Peter. Ideas of Slavery from Aristotle to Augustine. (Coletnea de documentos). Nova
Iorque. Cambridge University. Press, 1996, p.108.

A natureza distinguiu os corpos do escravo e do seu senhor, fazendo o primeiro


forte para o trabalho servil e o segundo esguio e, se bem que no til para o trabalho
fsico, til para as ocupaes de cidado. Contudo, o contrrio muitas vezes acontece
isto , escravos que tenham corpos de homens livres e homens livres que tenham as
almas apenas. (Aristteles, Poltica 1254 b 28-34)162

Por ltimo, o filsofo justifica a escravido como instituio e considera justa a


escravizao de homens que sejam por natureza escravos:

A arte da guerra uma forma natural de aquisio de propriedade, na qual


est includa a caada; e que esse modo deve ser usado contra as bestas selvagens e
contra os homens que, por natureza, devem ser governados, mas se recusam a isso;
porque esse o tipo de guerra que justo por natureza. (Aristteles, Poltica 1254 b 205)163

Em oposio teoria da escravido natural de Aristteles, os esticos pregavam


que cada bom homem livre, e cada mau homem um escravo, tendo se popularizado
bastante essa tese no sculo I d.C, durante o Alto Imprio. O reconhecimento da
humanidade dos escravos era parte integrante desse discurso:

Eles so escravos, as pessoas declaram. No, eles so homens. Escravos.


No, eles so despretensiosos amigos. Escravos. No, eles so seus camaradasescravos, se refletir que a fortuna tem direitos iguais tanto sobre escravos como sobre
homens livres. (Sneca, Epistulae 47.I, IO (cf.17) 164

162 Idem, ibidem, p.108.

163 Idem, ibidem, p.112.

164 Sneca, Epistulae 47.I, IO (cf.17), idem, ibidem, p. 67.

Os esticos reconheciam a humanidade dos escravos e pregavam uma relao


harmnica entre eles e seus senhores. Isso no quer dizer que os esticos fossem
antiescravistas. Eles defendiam a escravido, no propunham a abolio desta instituio.
Mas entendiam, e isso fica evidente nos escritos de Sneca, que deveriam ser coibidos os
excessos, devendo-se tratar os escravos de forma humana, mas exigir que cumprissem o
seu papel. Na verdade, seria uma relao harmnica, de companheirismo, mas onde cada
um cumpriria a sua funo, ocuparia o seu lugar na sociedade, assumindo uma postura
humilde, no entanto, pois para os esticos o fato de algum se encontrar na condio de
escravo no queria dizer que no fosse um homem livre em sua alma. As noes de
liberdade e escravido obedeciam aqui muito mais a um carter moralista, tinha a ver
com virtude e com ser ou no ser escravo de suas paixes, como apontado no fragmento
a seguir:

um erro de quem acredita que a condio do escravo penetra em todo o ser


do homem. A melhor parte dele isenta disso. Apenas o corpo est disposio do
senhor. A mente, no entanto, seu prprio senhor. (Sneca, De beneficiis 3.20.I )165

Nesse caso, fica claro que o desenvolvimento histrico, com a manifestao


violenta das contradies sociais e com a progressiva expanso e consolidao do modo
de produo escravista, havendo escravos de todos os tipos e relacionando-se no meio
pblico e privado de forma cada vez mais intensa, em especial, na vida romana, pice do
desenvolvimento da sociedade escravista no mundo antigo; desconsiderar o papel que
estas revoltas podem ter jogado na constituio de um novo paradigma sobre a
escravido.
Alm das mudanas no campo simblico, uma legislao a favor dos escravos
tambm foi conquistada como produto de suas lutas, dentro da nova concepo de Estado
gerida com a constituio do Principado, buscando-se evitar novas rebelies 166:

165 Apud GARNSEY, op. cit., p. 66.

1 O imperador Domiciano fez aprovar a proibio da castrao e o preo dos eunucos


continuavam nas mos de escravos concessionrios controlados oficialmente;
2 O imperador Adriano restringiu o uso da tortura para extrair informaes de escravos;
com Adriano, quando um dono de escravos era assassinado somente os escravos que
estivessem no local no momento do crime eram interrogados; foi proibida a venda de um
escravo sem razo para uma escola de gladiadores ou para um bordel; as prises dos
escravos os ergstulos foram abolidos.
Estas foram algumas leis aprovadas no regime imperial, que significaram
concesses aos escravos e que, como podemos ver, esto ligadas a demandas importantes,
ligadas ao controle da vida sexual, pelo menos nos seus aspectos mais brutais como a
venda para bordis e a castrao, a vida de gladiador passou a ser uma forma de punio
exclusivamente, os ergstulos foram proibidos, a tortura nos interrogatrios e a punio e
interrogatrio a escravos de um determinado senhor que fosse assassinado passaram a ser
limitadas tambm, representando um ganho para os escravos em geral, mas tambm a
determinados segmentos que foram pivs das mais importantes revoltas, como os
gladiadores e os escravos rurais, e tambm refletiram os graves acontecimentos ocorridos
j no Principado como o assassinato do prefeito de Roma sob o governo de Nero, que
resultou num massacre de diversos escravos, gerando uma comoo social.

6 EUNO E ESPRTACO: O PROMETEU ESCRAVO

Nos relatos de Diodoro, Plutarco e Apiano dado, no geral, um tratamento


diferenciado na anlise de Euno e de Esprtaco, tanto enquanto lderes das revoltas
quanto como seres humanos, sendo enfatizadas as qualidades morais do ltimo e a
covardia do primeiro.
166 MASSEY; MORELAND, op. cit., p. 56.

No caso de Euno, ele praticamente difamado por Diodoro, que o apresenta como
um homem covarde e enganador. Como lder de uma revolta de escravos, para a ideologia
dominante, Euno s poderia ser um homem do tipo mais vil, um bandido. O exemplo de
escravo bom era aquele que obedecia disciplinadamente o seu amo. Ele foge para uma
caverna junto com os seus servos pessoais. Ele contava histrias fantsticas para os
senhores que faziam parte do grupo de relaes de seu amo e depois para os seus
comandados, durante a rebelio, sendo visto como um farsante. As qualidades de Euno
no so destacadas no texto de Diodoro. Ele um dos alvos principais de sua condenao
moral.
No caso de Esprtaco parece ter sido diferente. Ele no s tem seu valor
reconhecido, como exaltado em relao aos demais escravos. Talvez isso tenha se dado
desse modo, porque os dados disponveis eram claros demais em favor de Esprtaco.
Porm, ele era reconhecido como um grande homem e um grande general, mas de um
exrcito de homens sem valor, de seres da pior espcie, vis, escravos. Ele no podia ser
considerado diretamente inferior. Trs homens, principalmente, aterrorizaram Roma em
toda a sua histria, graas s suas qualidades pessoais de lderes, e impuseram amargas
derrotas aos romanos, amedrontando-os: Anbal, Esprtaco e Esprtaco. Os romanos no
tinham como considerar Esprtaco inferior sem inferiorizarem a si mesmos; alm disso,
ele poderia sempre ser apresentado como uma exceo. A ideologia escravista
incorporava a ideia de que certos homens que no fossem escravos poderiam cair na
servido por algum acaso da vida, tal como se deu com o grande filsofo Plato, e, ao que
parece, como era apresentado o prprio Esprtaco, algum que valia mais do que a sua
sorte. Criar um abismo moral entre o comandante e suas tropas era o nico recurso que
os idelogos da nobreza senatorial tinham para diminuir sua importncia. E o fizeram em
vrios momentos, ao retratarem o exrcito de escravos como indisciplinado, o oposto do
exrcito romano de homens livres e cidados. claro que, com isso, Esprtaco, em certa
medida, apesar de sua coragem e inteligncia, tambm aparecia como um mau general,
que no sabia disciplinar e conduzir as suas tropas.
Plutarco, ao relatar a batalha final entre Crasso e Esprtaco, homens que deixam a
impresso, a partir desta leitura, de terem sido vtimas do destino. Esprtaco abandonado

por seus soldados e Crasso injustiado por Roma, que no soube reconhecer toda a sua
grandeza:

(...) Esprtaco, vendo que no havia outro jeito, alinhou todo o seu
exrcito. Logo de incio, quando lhe levaram o seu cavalo, puxou a sua espada, dizendo:
Se eu vencer, terei muitos bons cavalos, os dos inimigos; se for vencido, j no
precisarei de cavalos. Degolou, ento o cavalo. Tentou, a seguir, abrir caminho at
Crasso, desafiando armas e feridas. No o atingiu, mas matou dois centuries que o
haviam atacado. Por fim, enquanto seus soldados fugiam, ficando sozinho e cercado por
grande nmero de romanos, foi trespassado de golpes enquanto continuava a defenderse. Crasso havia feito mudar a fortuna, dirigira bem as operaes e arriscara a prpria
vida. Mesmo assim, o sucesso no deixou de aumentar a glria de Pompeu, pois os
rebeldes escapados do combate e havia cinco mil deles! chocaram-se com suas
tropas e foram mortos, o que permitiu que escrevesse ao Senado: Crasso venceu os
escravos fugitivos ostensivamente; quanto a mim, cortei as razes da guerra.
Concluindo: Pompeu celebrou um brilhante triunfo sobre Sertrio e a Espanha.
Enquanto Crasso nem tentou solicitar o grande triunfo. Longe disto! Acreditava que
celebrar at mesmo o triunfo a p, chamado de ovao, aps uma guerra servil, seria vil
e indigno. (Plutarco, Crasso, 11)167

Sendo assim, os soldados do exrcito espartacano, alm de indisciplinados, eram


covardes e deixaram o seu general ser trucidado pelo inimigo. Mas, no fim, Plutarco no
deixa de traar o perfil de dois grandes homens, como demonstra o seu texto. Crasso, que
havia arriscado a vida e a carreira, pois se tivesse sido derrotado por um exrcito de
escravos seria humilhado, no gozou de nenhuma grande honraria por ter preservado
nada menos que o modo de vida romano e os alicerces de seu imprio. significativo, no
entanto, o fato dele mesmo no querer um triunfo, pois considerava, nas palavras de
Plutarco, uma guerra servil algo inferior e indigno.
Novamente, torna-se relevante ir alm das opinies que refletem as fontes,
posies de classe, sem dvida. de extrema importncia que os escravos antigos
tenham se levantado de tal maneira contra a escravido, ainda que no propusessem a sua
abolio. A revolta de Esprtaco foi uma insurreio e uma fuga coletiva, uma fuga
insurrecional, portanto, mas que tinha como objetivo final garantir a todos os escravos
167 Apud ARAJO, op. cit., p. 13.

fugitivos um destino individual de homens livres. Isso assim porque, segundo Arajo
(2006, p.25), que se baseia neste ponto em Yvon Garlan, ainda que os prisioneiros trcios,
germanos e gauleses, que tomaram parte nesta revolta, cassem na escravido
coletivamente, em especial por meio da guerra, o seu destino no cativeiro era individual,
pois eram vendidos para donos individuais. Assim, o destino do escravo sempre um
destino individual, ao contrrio de outras formas de servido coletivas da Antiguidade.
Na revolta liderada por Euno, falamos aqui em revoluo unicamente por um
elemento distintivo de todas as demais rebelies de escravos da Roma antiga, mesmo a de
Esprtaco, que foi a tomada do poder poltico de Estado e o estabelecimento de um novo
governo pelos rebeldes sicilianos. Para uma definio de revoluo poltica pouco
importa se o Estado siciliano continuou a ter escravos ou se o tipo de governo institudo
no foi uma forma revolucionria, mas um modelo de regime poltico j conhecido; o
que importa que houve a derrubada de um governo e a constituio de um novo
governo por outra classe social. O fato disto no ter evoludo para uma revoluo social
ou que sequer pudesse evoluir para isso devido aos limites estruturais do mundo antigo
para um projeto que precisou de sculos de desenvolvimento social, econmico,
filosfico e cultural para que pudesse germinar no invalida o feito realizado pelos
escravos sicilianos. Tambm no podemos classificar como um simples golpe, porque
no foi um golpe poltico dado por uma minoria ou que apenas trocou os homens que
ocupavam os cargos governamentais; houve aqui um genuno movimento de massas, uma
insurreio, que no se esgotou em si mesma, que no formou simplesmente uma
comunidade independente parte, como um quilombo, assim como se deu na Segunda
Revolta da Siclia, e que no foi uma fuga, representando sim uma fuga da sua prpria
escravido, mas no em termos territoriais como a revolta de Esprtaco, o que deixa para
ns apenas a alternativa de reconhecer que este foi um dos momentos em que uma classe
subalterna economicamente explorada na Antiguidade realizou de fato uma revoluo,
no tendo homens livres como protagonistas, mas como homens sujeitos a um trabalho
compulsrio e reduzidos juridicamente condio de propriedade. Isto em nada se
confunde com a anlise da historiografia sovitica, de inspirao stalinista, tambm
criticada neste trabalho, que via nestas revoltas de conjunto como revolues, num
sentido geral, e como parte da revoluo no s poltica, mas econmica e social que

levou ao fim do Imprio Romano, sendo parte de um amplo movimento articulado com
homens livres e pobres do imprio e os chamados povos brbaros. sabido que sequer
uma parte significativa de homens livres da Itlia e da Siclia aderiram a estas revoltas;
alm disso, as prprias rebelies no eram articuladas e coordenadas entrre si; eram,
todas elas, movimentos isolados. O seu carter parcial, local e por interesses diretos e
imediatos foi a maior limitao de todas essas revoltas e a maior prova de que os escravos
no se enxergavam enquanto classe, no desenvolveram uma genuna conscincia de
classe, nem se propunham a suplantar o regime escravista pela via da revoluo. O
isolamento desses diversos movimentos, junto com as traies, serviu para facilitar a sua
represso e j preparavam desde o incio a sua derrota. Mas no podemos exigir dos
escravos antigos aquilo que mesmo para os escravos das colnias nos Tempos Modernos
era uma tarefa que dependia de uma conjuntura absolutamente extraordinria, como a que
se deu em Saint-Domingue, estando o movimento de escravos que culminou na
Revoluo Haitiana, ligado ao contexto interno explosivo da colnia, mas tambm
revoluo burguesa na Frana, sua Metrpole. Se eles nunca se propuseram a destruir o
sistema escravista pela revoluo, ao menos destronaram os seus antigos senhores e
assumiram o seu lugar, ainda que por um breve momento. Assim ao se encerrar o
primeiro ensaio geral da luta dos escravos, os rebeldes sicilianos organizaram um Estado,
preservando as foras produtivas da ilha para o funcionamento da economia e
constituindo um governo e um exrcito para cuidar da administrao pblica e da defesa
frente ao contra-ataque romano, que viria recuperar sua provncia pela fora das armas.
No subttulo acima, evocamos o mito de Prometeu. Na histria contada por
Hesodo em Os trabalhos e os dias e na Teogonia168, Prometeu rouba de Zeus o fogo,
ddiva divina, e o entrega os homens; foi Prometeu tambm que ensinou aos homens as
artes, as cincias e tudo o que se relacionava aos conhecimentos e ao trabalho que nos
168 HESODO. Os Trabalhos e os Dias. Introduo, traduo e comentrios: Mary de Camargo Neves
Lafer. So Paulo: Iluminuras Projetos e Produes Editoriais Ltda, 1991; Teogonia a origem dos deuses.
Traduo: Jaa Torrano. So Paulo: Iluminuras Projetos e Produes Editoriais Ltda., 1992.

fazem humanos e nos diferenciam dos outros animais. Os escravos eram equiparados
pelo discurso ideolgico greco-romano a animais e a instrumentos de trabalho,
ferramentas que falam. A humanidade perdida no discurso vigente e tambm em sua
prtica social, a cada castigo sofrido, a cada noite dormida no ergstulo, a cada combate
na arena com as feras era recuperada na prpria experincia de sua luta, que os escravos
de Roma empreenderam pela sua liberdade, e que ao conseguir obter vitrias sobre os
romanos tambm era recuperada no discurso social, dando maior relevo s qualidades
propriamente humanas daqueles que caram na escravido. Euno e Esprtaco foram as
lideranas produzidas por aquela conjuntura poltica, econmica e social, os indivduos
mais conscientes e capazes para conduzir aos seus pares para a fuga da vida de servido
que levavam. O processo de luta e de organizao gerava uma nova realidade, na qual os
rebeldes passavam por um processo de desalienao progressiva, ainda que limitada, ao
se libertarem da explorao e da reificao de forma mais completa para alguns, inclusive
do ponto de vista da classe dominante, como era o caso de Esprtaco, mas para todos
eles, em especial na revolta que percorreu a Itlia entre 73-71 a.C., no interior de sua
comunidade todos eram livres e iguais e isso j era o maior grau de liberdade que se
poderia alcanar entre os grupos subalternos na Antiguidade. A aluso ao mito de
Prometeu, parte da cultura grega, helnica, e ocidental, como definio do significado de
humanidade frente realidade da escravido pode servir-nos como forma de perceber o
mpeto humano liberdade, ao conhecimento e criao, que se manifesta at naqueles
que mais so privados disso. Tambm podemos ver em Euno e Esprtaco, que
convenceram seus companheiros a iniciar uma luta que se tornou depois muito maior do
que todos eles e muito maior do que imaginavam, mas que apontava desde o princpio um
norte, seja a constituio de uma corte com um chefe escravo como rei, seja pela marcha
para a liberdade na terra natal, encarnando, assim, aquele que de uma fasca incendeia os
pilares do domnio aristocrtico, despertando na conscincia a necessidade de passar da
passividade ou da resistncia passiva para a revolta aberta, impelidos tambm pela
prpria necessidade objetiva, imposta pela realidade concreta, incontornvel e criadora,
ao mesmo tempo, de uma oportunidade mpar.

CONCLUSO

Neste captulo, analisamos a revolta de Esprtaco e o seu impacto sobre a


sociedade romana. Assim como as revoltas anteriores, aqui no se tratou de uma
revoluo social, mas de uma fuga insurrecional que implicava em srios danos
economia italiana e uma contestao prtica da ideologia escravista, representando um
duro golpe no paradigma escravista republicano e no discurso acerca da inferioridade dos
escravos, sendo a referida construo terica posta em xeque, refutada de maneira patente
pelos eventos inigualveis dessa conjuntura extraordinria de crise da Repblica. Se no
podemos falar na substituio de uma viso de mundo que percebia os escravos como
seres inferiores, podemos, ao menos, dizer que essas revoltas produziram uma fissura no
paradigma ideolgico vigente, que tinha suas bases na teoria da escravido natural de
Aristteles e no discurso escravista dos intelectuais romanos, como Cato.
Devemos destacar que se a crise e queda do Imprio foram acompanhadas pela
crise do escravismo antigo, a crise da Repblica foi acompanhada de seu florescimento,
da sua implantao em ritmo acelerado, gerando mudanas sociais profundas, abalando
as velhas estruturas da repblica oligrquica. Na medida em que no existia um aparelho
burocrtico em todos os seus aspectos poltico, jurdico, administrativo e militar
totalmente adequado para regular essa nova economia e as novas relaes sociais que
com ela se desenvolviam, a ecloso de uma srie de conflitos que marcaram os sculos II
e I a.C., sendo o ltimo sculo da Repblica marcado pelos mais graves confrontos entre
os cidados romanos da classe dominante, especialmente, os romanos e seus aliados e os
senhores e seus escravos. O Principado foi, ento, um ajuste poltico-administrativo que
correspondia s transformaes econmico-sociais do perodo em que explodiram a
revolta de Esprtaco, a Guerra Social e a Conjurao de Catilina. Desse modo, as grandes
revoltas de escravos acabaram tendo uma influncia importante sobre o fim da repblica
e surgimento do Principado, seno de maneira direta e decisiva, pelo menos de uma
maneira indireta, como forma de conteno daqueles que eram a principal fora produtiva
da economia romana.

No entanto, o maior impacto dessas revoltas se deu no campo simblico. O


reconhecimento da humanidade dos escravos de forma mais direta e clara na literatura
romana, ainda que oscilando o tempo todo, manifestando a ambiguidade das relaes
escravistas e a necessria reificao dos seres humanos escravizados para o
funcionamento de uma sociedade escravista, e a exposio por parte dos autores do
regime imperial das qualidades mais elevadas demonstradas pelos escravos antigos em
sua luta desesperada por liberdade so, sem sombra de dvida, a maior conquista destas
rebelies para aqueles que viveram na escravido depois do seu acontecimento at os dias
de hoje, sendo, de fato, a sua maior vitria para a Histria.

CONCLUSO

A esmagadora maioria dos escravos era composta pelos escravos rurais, que sero
a base dos exrcitos de escravos rebeldes, que tiveram como vanguarda de seu
movimento os setores que tinham acesso a armas, como pastores e gladiadores. A
participao de alguns escravos de tipo urbano e de escravos domsticos na liderana das
revoltas, como Esprtaco e Euno um gladiador e um escravo domstico
respectivamente, forneceu a estes movimentos os quadros que necessitavam para sua
direo. A capacidade de Esprtaco na estratgia justificada por Apiano por sua
participao no exrcito romano, inclusive, por mais que esta afirmao parea muito
mais uma forma de justificar e explicar, de acordo com a ideologia escravista, como um
escravo poderia ser um general melhor que muitos dos melhores generais romanos.
Apesar da situao extrema de opresso sob a qual viviam os escravos, as condies para
a organizao de uma revolta eram muito difceis, pois os escravos viviam sob forte
vigilncia, acorrentados e com pouca oportunidade de comunicao. Nas cidades
existiam muitas das condies objetivas favorveis para a organizao de uma revolta,
como maior mobilidade, liberdade de movimentos, facilidade para a comunicao e
acesso a bens culturais importantes, conhecimentos, elementos que influenciam na
organizao e na construo de um programa mais coerente para um movimento e sua
articulao; no entanto, as melhores condies de vida e a expectativa de uma vida
melhor e da prpria obteno da liberdade no motivavam os escravos a arriscar tudo em
uma revolta, o que poria sob risco as chances pacficas de se obter a liberdade, por meio
da emancipao; ou seja, onde havia algumas das condies objetivas dizemos algumas

porque tambm no h dvida de que os instrumentos da represso direta (armada ou


judiciria) estivesssem mais concentrados nas zonas urbanas , no havia condies
subjetivas (cidade) e onde havia condies subjetivas, no havia condies objetivas
(campo). Somente quando as condies objetivas e subjetivas se encontraram e numa
conjuntura extremamente favorvel que as grandes revoltas de escravos de fato
ocorreram.
Os escravos antigos no tinham organizaes perenes, como sindicatos ou
partidos, como o proletariado moderno, ou mesmo instituies e organizaes polticas
como as criadas pelos plebeus. Cada luta comeava do zero. Eles no tinham tambm
intelectuais orgnicos que formulassem uma teoria e um programa revolucionrios. No
existia, portanto, a possibilidade histrica de chegarem conscincia de classe e, por
conseguinte, ao programa poltico da revoluo social. Sendo assim, os escravos que se
levantaram na Roma antiga desenvolveram um certo grau de conscincia que poderia ser
classificado como uma identidade de classe ou um sentimento de classe, que se confundia
com todas as influncias culturais e religiosas que configuravam a psicologia de classe
dos escravos rebeldes. Analisando a relao dos escravos na estrutura socioeconmica a
que estavam ligados e observando o que foi a regra geral em toda a histria romana em
que o modo de produo escravista foi dominante, podemos encar-los como uma classe
que no era classe, ou seja, uma classe em si e no uma classe para si, enquanto um grupo
social que se organizava politicamente na sociedade. Marx desenvolveu este argumento
na anlise dos camponeses franceses do sculo XIX, mas isto pode ser seguramente
estendido para a maioria dos casos das classes sociais subalternas nas sociedades prcapitalistas:

Os pequenos camponeses constituem uma imensa massa, cujos membros vivem


em condies semelhantes mas sem estabelecerem relaes multiformes entre si. Seu
modo de produo os isola uns dos outros, em vez de criar entre eles um intercmbio
mtuo. Esse isolamento agravado pelo mau sistema de comunicaes existente na
Frana e pela pobreza dos camponeses. Seu campo de produo, a pequena propriedade,
no permite qualquer diviso do trabalho para o cultivo, nenhuma aplicao de mtodos
cientficos e, portanto, nenhuma diversidade de desenvolvimento, nenhuma variedade de
talento, nenhuma riqueza de relaes sociais. Cada famlia camponesa quase autosuficiente; ela prpria produz inteiramente a maior parte do que consome, adquirindo
assim os meios de subsistncia mais atravs de trocas com a natureza do que do
intercmbio com a sociedade. Uma pequena propriedade, um campons e sua famlia; ao

lado deles outra pequena propriedade, outro campons e outra famlia. Algumas dezenas
delas constituem uma aldeia, e algumas dezenas de aldeias constituem um departamento.
A grande massa da nao francesa , assim, formada pela simples adio de grandezas
homlogas, da mesma maneira por que batatas em um saco constituem um saco de
batatas. Na medida em que milhes de famlias camponesas vivem em condies
econmicas que as separam umas das outras, e opem o seu modo de vida, os seus
interesses e sua cultura aos das outras classes da sociedade, estes milhes constituem
uma classe. Mas na medida em que existe entre os pequenos camponeses apenas uma
ligao local e em que a similitude de seus interesses no cria entre eles comunidade
alguma, ligao nacional alguma, nem organizao poltica, nessa exata medida no
constituem uma classe. So, consequentemente, incapazes de fazer valer seu interesse de
classe em seu prprio nome, quer atravs de um Parlamento, quer atravs de uma
conveno. No podem representar-se, tm que ser representados.(...) 169

No entanto, esta definio que se enquadra perfeitamente no caso dos escravos


antigos ao longo de sua histria, em linhas gerais, parece no dar conta do carter
dinmico e processual da realidade se observada em seus detalhes, em especial nos
momentos explosivos da luta de classes como este que objeto de nosso estudo. Como
dizer que os escravos no se organizavam politicamente diante de insurreies que
forjaram exrcitos e levaram formao de comunidades independentes? certo que os
escravos faziam poltica todo o tempo, a poltica do possvel, evidentemente, em cada
forma de resistncia, mesmo individual e cotidiana, ou at quando tentavam a via do
acordo, trabalhando bem ou juntando dinheiro para obter sua alforria, negociando com o
seu senhor melhores condies de trabalho, etc. Mas vimos que as revoltas eram
desarticuladas entre si e isto demonstra, de fato, uma ausncia de uma organizao em
termos territoriais mais amplos, sendo rebelies locais, que, dependendo do seu
desenvolvimento, podiam estender-se para alm da regio onde haviam se iniciado.
Porm, neste nvel regional elas chegavam a um grau de organizao relativamente
elevado. Portanto, preciso considerar outras definies presentes em outros tericos
marxistas que auxiliam esta anlise. Lnin foi quem desenvolveu, originalmente, o
conceito de lampejos de conscincia, que as classes subalternas eram capazes de ter por

169 MARX, Karl. O 18 Brumrio de Lus Bonaparte. In: Os Pensadores. Seleo por Jos Arthur Giannotti.
Traduo de Leandro Konder. So Paulo: Editora Abril S.A. Cultural e Industrial, 1974, pp. 402-403.

si mesmas e iniciarem um movimento espontneo em torno de suas reivindicaes.


Quando Lnin escreveu sobre isso, estava discorrendo sobre o movimento operrio russo
nas suas primeiras aes de luta contra os patres; por isso, o mais importante aqui
extrairmos o conceito e percebermos a fecundidade do mesmo para o nosso estudo:

(...) Houve, na Rssia, greves nas dcadas de 1870 e 1880 (e mesmo na


primeira metade do sculo XIX), que foram acompanhadas da destruio espontnea
de mquinas etc. Comparadas a esses tumultos, as greves aps 1890 poderiam mesmo
ser qualificadas de conscientes, tal foi o progresso do movimento operrio nesse
intervalo. Isto nos mostra que o elemento espontneo, no fundo, no seno a forma
embrionria consciente. Os tumultos primitivos j traduziam certo despertar da
conscincia: os operrios perdiam sua crena costumeira na perenidade do regime que
os oprimia; comeavam... no direi a compreender, mas a sentir a necessidade de uma
resistncia coletiva, e rompiam deliberadamente com a submisso servil s autoridades.
Era, portanto, mais uma manifestao de desespero e de vingana que de luta. As greves
aps 1890 mostram-nos melhor os lampejos de conscincia: formulam-se reivindicaes
precisas, procura-se prever o momento favorvel, discutem-se certos casos e exemplos de
outras localidades etc. Se os tumultos constituam simplesmente a revolta dos oprimidos,
as greves sistemticas j eram o embrio mas, nada alm do embrio da luta de
classe. Tomadas em si mesmas, essas greves constituam uma luta sindical, mas no
ainda social-democrata: marcavam o despertar do antagonismo entre operrios e
patres; porm, os operrios no tinham, e no podiam ter, conscincia da oposio
irredutvel e de seus interesses com toda a ordem poltica e social existente, isto , a
conscincia social-democrata. Nesse sentido, as greves aps 1890, apesar do imenso
progresso que representaram em relao aos tumultos, continuavam a ser um
movimento essencialmente espontneo.170

Nesta passagem, o movimento que faz a conscincia da classe assume um carter


dinmico. Para o autor, o elemento espontneo (e o prprio autor que coloca entre
aspas o termo), que pode ser percebido desde as manifestaes individuais, na sabotagem
aos equipamentos de trabalho e para aquele que explorado tambm de opresso e de
explorao, j uma forma embrionria consciente que, mesmo nos tumultos mais
simples, j se traduz um certo despertar da conscincia. Aqui tambm aparece a idia
de sentimento, quando se fala que a classe passa a sentir a necessidade de uma
resistncia coletiva, rompendo deliberadamente com a submisso servil s
170 V.I. Lnin. Que Fazer? So Paulo: Editora Hucitec, 1988, p. 24.

autoridades, o que pode ser visto na revolta da Siclia, quando os escravos do


proprietrio Damfilo se rebelar e matam o seu senhor, ou na revolta de Esprtaco,
quando estoura o levante dos gladiadores na escola de Cpua. Ao se iniciarem revoltas,
fosse para negociar ou talvez mesmo no caso de uma ruptura limitada e parcial,
inaugurava-se um novo momento que era o despertar do antagonismo, mostrando
melhor os lampejos de conscincia. Ainda nesse caso, no se trata para Lnin de uma
luta de classe, sendo apenas o seu embrio, o germe de uma verdadeira luta poltica.
Neste ponto importante frisar que as rebelies servis simbolizaram a forma mais
extrema da luta de classes empreendida por uma classe socialmente explorada e
submetida explorao extra-econmica das classes dominantes. Isto assim porque no
podemos exigir das classes exploradas sempre o programa mximo, sendo realizada
por elas a luta poltica possvel e efetiva num dado sistema econmico-social. O sentir da
classe mencionado foi fundamental para instrumentalizar os revoltosos em seus levantes,
no com um programa cientfico, mas com as informaes, paradigmas, idias de
liberdade que se manifestavam atravs do pensamento religioso, por exemplo, no culto a
Dionsio. O no quero destes escravos tambm teve importante significado poltico, na
medida em que rompia com aquilo que era o cerne do paradigma escravista e abalava a
estabilidade do seu regime poltico-social, ao pr em xeque a sua dominao de classe
por meio da revolta aberta e mais do que isso com objetivos polticos claros, que no
conduziam, naquela realidade histrica, abolio da escravido. Raymond Williams
desenvolve o tema relao entre as classes e as realidades objetivas em que se inserem e o
conceito de estruturas de sentimento das classes que responde de modo mais satisfatrio
aos problemas tericos de nossa anlise:

Tais modificaes podem ser definidas como modificaes nas estruturas de


sentimento. O termo difcil, mas sentimento escolhido para ressaltar uma distino
dos conceitos mais formais de viso de mundo e ideologia. No que tenhamos
apenas de ultrapassar crenas mantidas de maneira formal e sistemtica, embora
tenhamos sempre de lev-las em conta, mas que estamos interessados em significados e
valores tal como so vividos e sentidos ativamente, e as relaes entre eles e as crenas
formais ou sistemticas so, na prtica, variveis (inclusive historicamente variveis),
em relao a vrios aspectos, que vo do assentimento formal com dissentimento privado
at a interao mais nuanada entre crenas interpretadas e selecionadas, e experincias
vividas e justificadas. Uma definio alternativa seriam as estruturas de experincias:
num certo sentido, a melhor palavra, a mais ampla, mas com a dificuldade de que um

dos seus sentidos tem o tempo verbal do passado que o obstculo mais importante ao
reconhecimento da rea da experincia social que est sendo definida. Falamos de
elementos caractersticos do impulso, conteno e tom; elementos especificamente
afetivos da conscincia e das relaes, e no de sentimento em contraposio ao
pensamento, mas de pensamento tal como sentido e sentimento tal como pensado: a
conscincia prtica de um tipo presente, numa continuidade viva e inter-relacionada.
Estamos ento definindo esses elementos como uma estrutura: como uma srie, com
relaes internas especficas, ao mesmo tempo engrenadas e em tenso. No obstante,
estamos tambm definindo uma experincia social que est ainda em processo, com
freqncia ainda no reconhecida como social, mas como privada, idiossincrtica, e
mesmo isoladora, mas que na anlise (e raramente de outro modo) tem suas
caractersticas emergentes, relacionadoras e dominantes, e na verdade suas hierarquias
especficas. Essas so, com freqncia, mais reconhecveis numa fase posterior, quando
foram (como ocorre muitas vezes) formalizadas, classificadas e em muitos casos
incorporadas s instituies e formaes. Mas j a essa altura o caso diferente: uma
nova estrutura de sentimento j ter comeado a se formar, no verdadeiro presente
social.171

No trecho citado surge a idia de experincia. Isto para ns relevante, pois


percebemos ao longo do estudo que, conforme os escravos faziam a sua experincia no
curso das lutas e acumulavam experincias mesmo com as lutas anteriores, avanavam no
sentido de criar novas possibilidades. Uma anlise simplesmente estruturalista enxergaria
os escravos antigos no contexto econmico do mundo antigo e da abstrairia os
resultados, ou seja, a conscincia de classe ou a no conscincia de classe desses homens
e mulheres pelas condies histricas vigentes. O defeito deste tipo de anlise que ela
ignora que a realidade tambm possibilidade. A pergunta que fizemos acima evidencia
isso: e se os espartacanos tivessem conseguido escapar do jugo romano e fugir da
Pennsula Itlica? Isto no era de maneira nenhuma impossvel, ao contrrio, o exrcito
liderado por Esprtaco quase saiu da Itlia tanto pelo norte quanto pelo sul, para a Siclia,
havendo nesse caso o peso do espontanesmo prprio dessas revoltas, com a chamada
indisciplina dos soldados rebeldes pelos autores antigos, mas tambm fatores
absolutamente contingenciais, que poderiam ocorrer em qualquer luta poltica, mesmo

171 WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Traduo de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1988, pp.134-135.

nos dias de hoje, em qualquer guerra, como o fato de Esprtaco ter sido trado pelos
piratas cilcios ou alguns dos percalos que sofreu e que impediram sua fuga pelo norte
tambm. Quando se inicia um conflito, no se sabe exatamente, a priori, quem ir vencer.
Naturalmente, os escravos antigos tinham muito contra eles, devido aos limites
estruturais estabelecidos e j por ns discutidos. Mas no podemos creditar tudo a foras
histricas invisveis e achar que resolveremos todos os problemas com uma anlise
meramente estrutural. A oportunidade existiu e o sonho de liberdade daqueles escravos
realmente existiu, no na forma de uma libertao geral, mas a conquista da liberdade
atravs daquela que foi a mais espetacular fuga coletiva da Histria. No pretendemos
rejeitar, de modo algum, a relao entre a conscincia possvel de uma classe e a estrutura
social. Na verdade exatamente o oposto; devemos tentar compreender a conscincia
possvel, relacionando-a tambm com a experincia social e como determinadas
conjunturas abrem uma janela histrica que permite que os atores polticos produzam
novas alternativas, transbordando as margens mais ou menos estreitas de uma dada
formao econmico-social. Lucien Goldmann define conscincia real e conscincia
possvel e atravs dessas definies poderemos traar a relao dialtica existente entre
ambas e como isso se traduz em momentos em que as oportunidades geradas pela
dinmica social podem alargar o campo de possibilidades antes delimitado:

A conscincia real resulta de mltiplos obstculos e desvios que os diferentes


fatores da realidade emprica opem e infligem realizao dessa conscincia possvel.
Assim como essencial para compreender a realidade social no mergulhar e no
confundir a ao do grupo social essencial, a classe, na infinita variedade e
multiplicidade das aes de outros grupos e at dos fatores csmicos, tambm essencial
separar a conscincia possvel duma classe de sua conscincia real num certo momento
da histria, resultante das limitaes e dos desvios que as aes dos outros grupos
sociais assim como os fatores naturais e csmicos inflige a essa conscincia de classe.
O homem se define por suas possibilidades, por sua tendncia para a
comunidade com outros homens e para o equilbrio com a natureza. A comunidade
autntica e a verdade universal exprimem essas possibilidades por longussimo perodo
da histria; a classe por si (oposta classe em si), o mximo de conscincia possvel,
exprimem possibilidades no plano do pensamento e da ao numa estrutura social dada.
(...)172

172 GOLDMANN, Lucien. Cincias Humanas e Filosofia. Traduo de Lupe Cotrim Garaude e J. Arthur
Giannotti. So Paulo: Difuso Europia do Livro, 1967, p. 99.

Comparando as principais revoltas servis de Euno e de Esprtaco vemos que


ambas superaram o que poderamos considerar como os limites histricos estabelecidos,
ou ser que apenas superaram na realidade prtica os nossos limites tericos ao nos
depararmos com um contexto que sempre, de alguma maneira, classificamos com base
em pressupostos modernos, das expectativas que fazemos do que seria o ideal de
conscincia e o mximo possvel dessas lutas? Euno liderou uma revoluo poltica
resultante de uma verdadeira revolta de escravos, numa poca em que s quem fazia
revolues polticas eram os homens livres. Esprtaco superou o paradigma escravista ao
no escravizar a outros, liderando um movimento de libertos, de homens livres que
queriam manter sua liberdade conquistada de forma perene, e que continha um certo
igualitarismo que se manifestava nos debates sobre os rumos da revolta e na diviso dos
saques; ao desafiar diretamente o poder romano e chefiar o maior movimento de escravos
fugitivos que j existiu, demarcou para a Histria qual foi a real conscincia possvel dos
escravos antigos. Se por um lado eles nunca desenvolveram uma genuna conscincia de
classe, por outro eles chegaram a uma conscincia poltica e uma identidade social, que
transcendia as diferenas tnicas, que por mais que permanecessem e se manifestassem
nas disputas polticas existentes no interior desses movimentos, no impediam a
organizao de todos aqueles que sofriam a mesma explorao.
De um historiador sovitico, apesar de todos os vcios da historiografia produzida
no perodo stalinista na URSS, podemos destacar as causas gerais que impediram que
aqueles movimentos de escravos fossem vitoriosos:

(...) Apesar do seu grande desenvolvimento foi esmagado (o movimento de


Esprtaco), como foram as rebelies de escravos anteriores. As causas do fracasso so
encontradas tanto nas condies histrico-objetivas, como na esfera das subjetivas de
classe. Dissemos que qualquer movimieto revolucionrio que ocorre na fase de
desenvolvimento de uma estrutura socioeconmica particular no pode se tornar uma
revoluo. Embora na terceira dcada do sculo, o sistema poltico romano j estavisse
convulsionado, a sociedade escravista em geral ainda estava em estado de florescimento:
ainda faltavam alguns sculos para o seu declnio. Assim, o movimento de Esprtaco,

como todas as outras rebelies de escravos da poca, estava condenado historicamente


ao fracasso. 173

Embora partindo da perspectiva que de fato seria possvel uma revoluo polticosocial seguida ou conjuntamente com uma revoluo econmico-social dirigida pelos
escravos em aliana com outros grupos sociais, defendendo que o mesmo teria ocorrido
quando da queda do Imprio Romano, no podemos desconsiderar a observao relevante
feita no que tange ao perodo de rebelies servis que estamos estudando de que um fator
essencial que levou derrota destes movimentos que eles se deram num momento de
florescimento da sociedade escravista romana, isto , justamente no perodo de
implantao do modo de produo escravista enquanto um modo de produo estruturado
e consolidando-se como o dominante no imprio, em especial na Siclia e na Itlia,
precisamente onde ocorreram as maiores revoltas de escravos da Roma antiga. Assim,
condies objetivas e subjetivas somadas foram fatores limitadores no s de uma
revoluo, impossvel nesses casos nos termos em que pensavam os historiadores
soviticos, como tambm do sucesso de atos insurrecionais simplesmente e que
pretendiam a fuga do imprio e nada mais. Na verdade, as insurreies de escravos,
embora no tenham servido para libertar os escravos que delas participaram ativamente,
contriburam para as modificaes ocorridas em Roma no sculo I a.C. e jogaram um
papel na conjuntura poltica e econmica de fins do regime republicano.
Kovaliov aponta tambm o impacto direto na economia representado pela revolta
de Esprtaco:

No entanto, mesmo que a rebelio de 73-71 tenha sido sufocada, ela desferiu
um golpe na economia escravista da Itlia. Como conseqncia da rebelio, a Itlia
tinha perdido nada menos que 100.000 escravos, os campos foram devastados e muitas
cidades destrudas. 174

173 KOVALIOV, op. cit., p. 296.

Em Arajo, as consequncias polticas e ideolgicas aparecem com maior


destaque:

A revolta de escravos liderada por Esprtaco e a Guerra Social sinalizaram


para as classes dominantes que o sistema escravista e, inclusive, as relaes com outros
segmentos sociais os italianos, os homens livres e pobres deveria, para ser mantido,
sofrer alguns ajustes: os populares deveriam receber mais ateno a seus reclamos, da a
poltica imperial de panis et circenses; os escravos deveriam ser mais controlados,
cerceados em seus movimentos, de modo a evitar revoltas, mas, por outro lado, a sanha
dos senhores deveria ser coibida pelo Estado para que no houvesse exacerbao de
nimos e, consequentemente, rebelies; os italianos deveriam ter suas reivindicaes
atendidas, e serem integrados, e foram atendidos antes mesmo do Principado. (...) 175

Na mitologia grega, Prometeu deu o fogo aos homens e os libertou de sua


condio de animalidade: puderam os mesmos, a partir da, criar e interferir no mundo ao
seu redor. Prometeu deu aos homens o conhecimento e a chama da esperana. A luta dos
escravos sicilianos e espartacanos parecem confirmar essa caracterstica presente naquilo
que costumamos chamar humanidade. Ao enfrentarem a Repblica romana, os escravos
antigos provaram que no eram instrumentos, que no eram animais; gritaram, ento,
para o mundo: Sim, somos homens!.

174 KOVALIOV, op. cit., p. 297.

175 ARAJO, op. cit., p. 206.

INDICAO BIBLIOGRFICA

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