Conversas de Senhoras PDF
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CONVERSA DE SENHORAS:
A PERFORMANCE DO FEMININO EM ANA
CRISTINA CESAR
CONVERSA DE SENHORAS:
A PERFORMANCE DO FEMININO EM ANA
CRISTINA CESAR
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A PERFORMANCE DO FEMININO EM ANA
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Lista de Figuras
Abstract: On Ana Cristina Cesar's (1952-1983) poetics, feminine stereotyped discourses and
parodies use of textual genders such as correspondences and intimate diaries, produce an
ironic effect wherein it is played, in a provocative manner, the relation of the woman herself,
transmuted in discourse, to the literary tradition, which has been, throughout History,
predominantly masculine. Furthermore, her games with autobiography and the ostensive
questionings regarding an identitarian fixity extend the problematization of feminine subject
to the problematization of poetry's subjectivity itself. For those reasons and for maintaining a
constant and desacralized dialogue with modern tradition, this carioca poet bequeathed to us
an original poetic diction, forged by bricolage of dissonant voices, some of them stemming
from high literary tradition and others cunningly picked of daily life banality. Giving
sustentation for this paper, theories related to modern poetry examination and its origins such
as those conducted by HAMBURGUER (2007), BARBOSA (2009) and other German
Romanticism related theorists have been performed, in addiction to studies on gender
performance fields, such as done by Judith BUTLER (2010), named Gender trouble:
feminism and identity subversion, and KLINGER (2007), on performative narrative fields.
Ana Cristina Cesar's critical fortune fundamental texts have been read as well.
INTRODUO
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expomos, o nosso segredo mais bvio que estamos jogando com nossa prpria
identidade, problema mortal, alis.
na linha tnue entre a recuperao de uma tradio e a urdidura de uma
esttica capaz de captar o efmero que este trabalho pretende tatear o universo da
escritora carioca Ana Cristina Cesar, que, apesar de sua breve vida, foi capaz de nos
legar uma obra complexa, centrada na percepo crtica do feminino no mundo, em
franca comunicao com os ideais estticos que a cercavam no bojo da dcada de 70 e
num trnsito direto tanto para o passado, com aquilo que os modernos propuseram de
mais central, como para o futuro, antecipando a utilizao ostensiva e estratgica de
procedimentos como a pardia, cara ao ps-modernismo. A pardia entendida aqui no
sentido dado por Hutcheon (1991), ou seja, como reproduo discursiva feita com
afastamento no necessariamente cmico, mas com elementos de metalinguagem que
levam reflexo crtica.
No processo de formao intelectual, baseado no fluxo e refluxo da tradio,
preciso considerar que um poeta verdadeiro nunca despreza seu tempo, nunca deixa de
interpret-lo, nunca se esquiva da captao de certa conscincia evolutiva do esprito e
do conhecimento humanos, antecipando-a em snteses simblicas.
Ana Cristina Cesar realiza esse trabalho por meio de uma inventividade esttica
centrada na insero e subverso de assuntos e formas poticas ligados tradicionalmente
ao universo feminino. Assim, ela se vale basicamente de simulacros de dirios e cartas
que falseiam uma escrita autobiogrfica para compor um jogo de cartas marcadas que,
em ltima instncia, seja capaz de um questionamento profcuo em relao s
potencialidades da escritura potica e aos limites interpretativos da prpria crtica,
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16
projeto. Nele, alm da construo original de voz feminina ao mesmo tempo crvel e
crtica, descortina-se uma potica de efeito que ampara essa urdidura. J como caso
retrico, temos: a desconstruo dos gneros do discurso, em relevo a carta e o dirio; a
fluncia na bricolagem; o abuso da elipse e/ou da ornamentao, fato que dialoga com o
kitsch; e por fim a ironia e a autoironia como figuras maiores no acabamento de um
texto que se coloca como vertigem de descoberta e segredo, habitando o lugar complexo
de uma espcie de pr-clmax lingustico.
Por si s, esse projeto se defronta com engajamentos, se atualiza no contexto do
ps-modernismo, sobrevive gerao marginal e se projeta como proposta artstica para
o futuro, presente neste instante. A crtica literria no tem dvidas da excentricidade de
Ana Cesar em relao gerao marginal, por conta da sofisticao de sua formao,
que transparecia na forma e no contedo de seu texto. Nela, a paixo pela literatura se
defrontava com o impasse de situar-se em uma gerao fatalmente antiliterria, o que a
fez, nas palavras do crtico: Descer aos infernos do antiliterrio, escarafunchar a
selvageria aqum dos bons modos civilizados. Enfim, refazer a viagem da transgresso
modernista num contexto obviamente ps-modernista (MORICONI,1996, p. 12).
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autor, mas de uma propriedade que prpria da linguagem, como afirma Hamburguer
(2007). Viso multifacetada do real. Tal expresso aponta para uma aporia da crtica,
uma velha pergunta ainda muito polmica, que se desmembra em duas e que a obra de
Ana Cristina Cesar ajuda a responder: A poesia comunica? e O que a poesia
comunica?.
Na esteira desse pensamento, autores contemporneos comeam a tecer
questionamentos de base acerca de questes fundamentais da poesia, por exemplo:
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uma motivao individual, pode engendrar o mesmo problema tratado aqui por
Hamburguer. Segundo Joo Alexandre,
por essa via que se d a escolha terica em que se baseia esta tese. Por certo, a
leitura e meditao dos textos-chave que utilizam a herana moderna como pedra no
caminho ainda por digerir merece lugar de destaque. O passado recente da poesia ainda
est em causa e a ele se ligam propostas inovadoras de poetas contemporneos, alguns
com mais rebeldia, outros com mais cuidado, mas todos com um sentimento de dvida
em relao aos fundadores do pensamento moderno.
Nessa trilha, a recuperao de ideias do Primeiro Romantismo Alemo serve ao
intento de buscar um parmetro de crtica reflexiva, capaz, por exemplo, de
compreender as relaes de um poeta com a Histria Literria e com as dimenses
socioantropolgicas inerentes sua obra e colhidas de sua conscincia em relao ao
esprito de seu tempo. Alm disso, como movimento fundador, a contribuio dos
romnticos legou aos ps-modernos mais do que geralmente se aponta quando se faz
um recorte especfico.
Por outro, utilizamos como ferramenta os estudos ligados performance
(sobretudo no que se refere teatralizao de identidades, exposio de rituais ntimos,
buscas identitrias), rea da literatura ainda em expanso, mas que j nasce crivada de
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enfrentamentos nada fceis como, por exemplo, estabelecer dilogo entre os chamados
Estudos Culturais e a Crtica Estruturalista.
Como aporias da razo, sabemos que estudos to diversos podem ser
confrontados em apenas uma linha da expresso potica. Alis, essa uma de suas
funes: que o esforo terico fique sempre desguarnecido pela pulso da palavrachoque, pelo lance de dados, pelo conluio entre cifras e cifrantes, como, alis, deixa
claro a seguinte provocao potica de Ana Cristina Cesar:
33 potica
estou farto da materialidade embrulhada do signo
da metalinguagem narcsica dos poetas
do texto de espelho em punho revirando os culos
modernos
estou farta dessa falta enxuta
dessa ausncia de objetos rotundos e contundentes
do conluio entre cifras e cifrantes
da feminil hora quieta da palavra
da lista (poltica raqutica sifiltica) de super-signos
cabais: duro ofcio, espao em branco, vocbulo
delirante, trao infinito
(CESAR, A. C. Potica, 2013, p.325)
20
potica reivindica a seduo dos maxilares/ o plgio atroz /ratas devorando ninhadas
midas.
Saber, enfim, se a vida foi feita para acabar num livro ou se a verdade da poesia
deve iluminar o pensamento humano, se isto se trata de um problema tico ou esttico,
se a contradio sintoma de lucidez ou recalque... enfim, essa problemtica parece
estar no cerne de uma poesia marcada pela captao dos rudos da rua, como a de Ana
Cristina Cesar, merecendo assim um leitor que possa abdicar de uma ou de outra linha
de anlise para fazer a escolha em favor de uma potica, que possa analisar texto e
contexto em nveis horizontais.
Como esclarece Matos (2004) a respeito dessa vertente dos estudos literrios,
No movimento de sua histria, o texto incorpora e carrega marcas de
seu uso contextual, assim como o contexto constantemente marcado
e modificado pelo texto. Dessa maneira, pode-se dizer que o foco da
anlise da performance no final dos anos 80 tornou-se ao mesmo
tempo mais textual e mais contextual. (...) No campo da literatura,
essas especulaes trazem tona o velho e nunca bem resolvido
dilema dos critrios intrnsecos vs. critrios extrnsecos de abordagem
da obra (...). Poucos foram os grandes crticos que souberam
superar essa dicotomia, entre eles, exemplares, Antnio Candido e
Erich Auerbach. A opo dicotomizada e seu potencial conflituoso,
apesar de censurada por muitos e considerada dmode, volta e meia
d sinal de sobrevivncia, sob novos feitios ou embutida em novas
disputas terico-metodolgicas, como as ainda recentes desavenas
entre Teoria Literria e Estudos Culturais. (MATOS, 2004, p.55)
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Por isso, no primeiro captulo deste trabalho, colocamos em pauta uma espcie
de encontro com a potica da autora carioca que se faz na contemporaneidade. Antes de
ler uma autora cuja maior parte da obra fora editada postumamente, so necessrias
algumas observaes sobre o arquivo de Ana C. e sobre a irrecuperabilidade de seu
projeto inicial, marcado por sua morte precoce. Assim, aceitando a inexorabilidade das
camadas de discursos que se sobrepem aos textos apresentados pela autora, buscamos
uma ponderao entre a pesquisa das fontes e o lidar com o arquivo que hoje se nos
apresenta.
No segundo captulo, aprofundamos a discusso sobre a maneira de composio
de Ana Cristina Cesar, tendo como base sua relao com a tradio e a maneira peculiar
como ela lida com essa herana. O trabalho de traduo, a influncia da leitura, as
retomadas, as Imitations, uma ntida formao intelectual e artstica que sobreviveu s
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rasuras da poeta vo dando tom ao texto. Seguimos Ana Cristina de perto e caminhamos
com ela nas viagens, nos rascunhos, nos poemas, para, a partir da dialetizao da obra
vs. arquivo, compor um contexto que possa embalar uma leitura at certo ponto livre,
limitada apenas pelo exerccio cuidadoso da anlise.
No terceiro captulo, propomos uma articulao interpretativa da obra a partir do
alcance da performance nas artes em geral e na literatura para ver as diversas
contaminaes de uma encenao discursiva utilizada literariamente. Ana constri a
falsa impresso de intimidade atravs de um refinado processo de simulacros dos
gneros, que foi identificado nas anlises. A teoria performativa de Austin, a polmica
com Derrida, a utilizao do termo nos estudos de gnero e nas artes plsticas tambm
foram abordados com a inteno de esclarecer o leitor e iluminar os vrios
procedimentos performticos da obra. Trazendo tona a articulao entre os vrios
sentidos de performance, buscamos um ganho terico para rever certos procedimentos
literrios no que concerne s implicaes da palavra dita em relao a seu contexto,
sobretudo quando esse contexto modificado pela atmosfera artstica, tornando-se
assim polissmico.
No quarto captulo, uma digresso poltica torna-se contingente quando
constatamos as implicaes ticas da insero pardica do discurso feminino
performatizado no cerne de uma literatura que utiliza de mecanismos de devorao de
discursos com vistas a uma subverso do papel tradicional da mulher na literatura.
Nesse caso, a leitura de Judith Butler com sua teoria da performance de gnero foi
preponderante para a formao de uma interpretao da obra.
Assim, como numa conversa de senhoras, falsamente incua, centrada mais em
detalhes do que em substncia, este trabalho buscou rever, pela lente do texto de Ana, a
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1. GATOGRAFIAS
25
Pouco mais de dez anos depois, Caio Fernando Abreu revelou que Ana
Cristina Cesar havia lhe enviado o texto sob o ttulo de O cisne. (...) Em
resumo, intertextualidade, provavelmente. Traduo, se preferir.
Transferncia, certamente. De fato, no seria conveniente ouvir essa carta
de Paris ao p da letra, receb-la como a confisso dolorosa de uma
brasileira nostlgica, sofrendo com os rigores da Europa. Seu texto , antes
de tudo, fruto da alegria, nascido de uma leitura apaixonada do Cygne que,
por sua vez, resistiu a toda espcie de violaes e de projees. (2006, p.
229-231)
Ao que parece, a tal carta (ou poema) nem fora escrito na capital francesa e sim na
Inglaterra. Nos livros que encerram versos, a soluo editorial nem sempre corresponde
soluo potica, sempre mais traidora. Muitas vezes, inclusive, a forma de apresentao do
texto, a embalagem, responde a uma leitura mais ingnua, aquela que pode ser vendida para o
pblico mdio, que no gosta de se decepcionar em suas expectativas, s voltas com dramas
passionais de uma jovem intelectual de classe mdia. Assim, as edies mais famosas e que
mais circularam do texto de Ana trazem o gosto de adentrar pelos bastidores da literatura e
simulam surpreender a poeta em sua vida cotidiana, unindo, num casamento feliz, fotografia e
trecho (s vezes deslocado de seu contexto original), para compor mais um caso miditico
de um perfil feminino interessante, sem sublinhar muitas vezes o caso propriamente
potico. Tal procedimento revela-se traidor quando consideramos o enredamento que a
prpria potica de Ana faz em relao utilizao da autobiografia como categoria
performtica de composio de sua voz. Dessa forma, texto e vida formam um amlgama
gerador de um outro texto: a vida inventada por um eu-lrico que se sabe pura linguagem,
conforme nos contam as folhas de rosto dos diversos livros pstumos de Ana C.
26
Ela tinha sido publicada pela primeira vez em 1983, pela editora Brasiliense, e
continha Cenas de Abril (de 1979), Correspondncia Completa (1979), Luvas de Pelica
(1980), todos publicados anteriormente de modo artesanal, alm de novos poemas
acrescentados.
27
A seo Cenas de Abril era, em sua forma artesanal, um livro magro que teve
tiragem pequena e sofisticada, com direito a escolha de trs cores para as capas: creme, gelo e
azul. Eram sbrias, clssicas: o nome da autora por extenso no alto, o ttulo logo em seguida,
e depois, como ilustrao, l embaixo, algo atraa o olhar, quebrava a seriedade, introduzindo
sutilmente surpresa ou inquietude: a vinheta de uma formao botnica que lembrava o
aparelho genital feminino (FREITAS FILHO, 2013, p. 8-9). J Correspondncia Completa
livro de uma s carta que saiu j na segunda edio: No custa imaginar a aflio de um
28
29
30
(Fig. 4 Capa de Inditos e Dispersos, 4ed. editora tica e Instituto Moreira Sales)
Considerando que a obra da poeta, desde sua estreia, utiliza como matria-prima
de sua dico potica justamente os simulacros desses elementos autobiogrficos, podemos
dizer que tais publicaes enfatizam um lado da balana vida/arte que corresponde
constatao de que Ana Cesar vivia seus simulacros de discursos. Para essa potica, no cabe
a pergunta: qual fato aludido no poema corresponde ao real? Cabe, sim, a constatao: sua
vida e suas relaes foram contaminadas pela fora da derriso de um estilo marcado pelo
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A ideia de reunir algumas cartas e cartes postais de Ana Cristina Cesar para
a publicao, me veio de uma certeza: a de que seria interessante mostrar em
estado original uma das principais matrizes de sua criao literria (...) Ao
fazer, portanto, essa seleo privilegiamos, seguramente, o aspecto mais
exigente da escrita epistolar de Ana Cristina, devido importncia de suas
interlocutoras, tanto no plano intelectual quanto afetivo. (...) Ela se confessa
sim, mas faz (fala de) literatura o tempo todo. Em muitos e extensos
momentos dessa correspondncia, ouvimos trechos de sua dico potica de
teor to peculiar. Verdadeiros exerccios prvios do que mais tarde ela iria
transportar para os seus textos literrios. [sic] (CI, 1999a, p. 9)
No trecho de Armando, percebe-se a crena num linha divisria que poderia ser
estabelecida entre um momento de formao matricial e ou, mais maduro, em que a dico
potica de Ana Cesar poderia estar mais acabada. Tal linha nunca pode ser comprovada. A
interseco entre a fabricao de um estilo e vivncia da poeta traduz-se numa marca em que
o feixe de vozes ficcionais e reais aglutina-se verborragicamente. O amigo, em sua tica
apaixonada, atropela o intenso trabalho pardico em relao ao gnero do texto confessional,
ponto articulador de toda ironia da obra de Ana Cristina Cesar em relao literatura feita por
mulheres. Assim, embora faa um excelente trabalho de divulgao da obra, acaba por inflar a
leitura biograflica, pavor explcito da escritora morta.
Em 1999, com Correspondncia Incompleta, organizado tambm por Armando
Freitas Filhos e Helosa Buarque de Hollanda, viera a pblico um conjunto formado por
cartas, fotos, cartes postais e originais. A capa uma bela foto em close do rosto de Ana
Cristina Cesar e uma assinatura na cor rosa com o nome Ana C. Nota-se a presuno de uma
32
aproximao com o ser real de Ana. No entanto, o que se procura como real nunca se
descolou de uma rede de metforas e encobrimentos, que tornou-se ao mesmo tempo destino e
aposta literria dessa jovem poeta.
33
soltos (2008) talvez seja o livro mais significativo, pois a edio permite que qualquer leitor
entre em contato com vrios textos em estado primrio, com rasuras diversas, em seus
suportes originais. Ele traz em sua prpria forma de veiculao a promessa de uma
aproximao ntima entre autor e pblico interessado, uma maneira de fazer coincidir, mesmo
que virtualmente, o momento de elaborao e o de fruio do texto, j que se apresenta como
bastidor, como processo.
(Fig. 6 Capa de Antigos e Soltos: poemas e prosas da pasta rosa - Instituto Moreira Sales)
Inserido neste tipo de pesquisa (chamada de crtica gentica, pois se debrua sobre
a gnesis de um texto e suas vrias verses), Philippe Willemart prope o seguinte exerccio:
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O volume no republica os escritos tericos de Ana Cristina Cesar e seleciona parte do material disponvel em
Antigos e Soltos.
35
Luvas de Pelica (1980), A teus ps: prosa/poesia (1982) e dos pstumos Inditos e Dispersos:
poesia e prosa (1985) e uma seleo de Antigos e Soltos: poemas e prosas da pasta rosa
(2008), alm de posfcio de Viviana Bosi.
Sim. Pode-se afirmar que a poesia de Ana Cesar anda reverberando nos dias
atuais. Mas... constatar como est sua obra hoje nos faz querer imaginar o que realmente teria
sido naquele momento (anos 70 e 80). Tarefa intil. Jamais venceremos as camadas de
impregnao do tempo no prprio tempo. Leitores de hoje esto fadados a ler, mesmo que de
forma inconsciente, com a precipitao das consequncias mais que na anlise das causas.
Como no caso de Pierre Mnard, sabemo-nos aqui num processo de leitura criadora. sempre
outra Ana que se erige dessas investigaes. Mas, para nos contentarmos com certa
autorizao inscrita na prpria obra em relao a esses processos exumatrios, podemos ler
um trecho em que a dimenso da conscincia se apresenta clara e radiante nessas colises de
sentido que a prpria Ana fazia em meio beleza estilstica dos cortes de Luvas de pelica:
Tenho medo de perder este silncio. Vamos sair? Vamos andar no jardim?
Por que voc me trouxe aqui para dentro deste quarto? Quando voc morrer
os caderninhos vo todos para a vitrine da exposio pstuma. Relquias. Ele
me diz com o ar um pouco mimado que a arte aquilo que ajuda a escapar
da inrcia. (ATP, 1998, p. 125-126, grifo nosso)
No caso de Ana Cristina Cesar, a grande expectativa frustrada por sua obra a de
uma escrita biogrfica, o que quer dizer que, sim, de fato, sua escrita cria ostensivamente essa
expectativa, e seu estilo (de cortes, simulacros, disperses, intimidades vazias), da mesma
maneira deliberada, a frustra.
Na dissertao intitulada Ana C: as tramas da consagrao (2007), a
pesquisadora argentina Luciana Mara di Leone aborda justamente esse processo a que
36
estamos aludindo e ao qual se deve dar ateno antes de iniciar qualquer leitura que se queira
mais criteriosa:
Voltemos nossa pergunta primeira: quem , hoje, para ns, Ana C.? A
resposta possvel seria: Ana C. uma srie de discursos e mais um pouco.
Esse pouco foi descrito aqui com diferentes nomes: as pegadas da sua
desapario nos textos, as relquias a serem vitalizadas, o rastro prateado da
lesma... Mas, agora, quem Ana C. no podemos nem queremos saber. O
centro da pergunta se trasladou: j no est em Ana C., mas em ns. Que
leitores podemos e queremos ser?
Como diz Derrida, o chamado trabalho do luto, cheio de armadilhas, fica
como o problema a resolver, ativamente. Escrever. Chamar Ana, despert-la,
traz-la para entre as letras e as pginas, mais uma vez, para compreend-la,
para ret-la. E quando Ana chegar, misturada entre as vozes que a evocam,
melhor brincar com ela, melhor toc-la, para lutar contra sua petrificao.
(DI LEONI, 2007, p. 123)
37
baralhar bem antes de ler (cf. BOSI, 2001). As anotaes manuscritas do conta de que o
livro iria conter a seo Cartas a Navarro, alm de pequenos poemas (com ttulos de
pratos culinrios), receitas (talvez com ttulos de poesias) e pginas e textos confessionais de
um dirio (como uma tertlia ou minuta de frias).
Esse projeto de livro pode ter sido esboado realmente por Ana, mas convm
lembrar que h, na extenso da obra, diversas menes a livros/romances que nunca
existiram, mas cujo projeto figura como experimentao potica em si. So poemas que
tratam da inteno de escrever romances, novelas, poemas... Por exemplo, aquele que est em
Cenas de Abril, livro de 1979:
16 de junho
Decido escrever um romance. Personagens: a Grande Escritora de Grandes
Olhos Pardos, mulher farpada e apaixonada. O fotgrafo feio e fino que me
v pronta e prosa de lpis comprido inventando a ilha perdida do prazer. O
livrinho que sumiu atrs da estante que morava na parede do quarto que
cabia no labirinto cego que o coelho pensante conhecia e conhecia e
conhecia. Nessa altura eu tinha um quarto s para mim com janela de correr
narcisos e era atacada de noite pela fome tenra que papai me deu. (ATP,
1982, p. 105)
38
39
Percebe-se que, h quase trinta anos, a obra de Ana Cristina Cesar circula
contaminada pelo olhar prximo de pessoas que, na tentativa de completar aquilo que
tinha ficado insuficiente, vasculham o chamado arquivo da autora, contribuindo e
atrapalhando, por assim dizer, para a leitura de uma poesia que, apesar de muito admirada,
ainda carece de ser melhor compreendida.
De fato, nas funes da linguagem de Jakobson (2010) que se esconde a
decodificao da informao acima. Em seu sistema, ele delimita zonas de predominncia de
certas funes de acordo com o a categoria de anlise mobilizada. Na conhecida teoria, temos
a seguinte interdependncia: a mensagem necessita de um contedo ou contexto ao qual ela se
refira, de um emissor que a envie, de um destinatrio que a receba, de um canal de contato
que faa a ligao e de um cdigo que permita sua compreenso. O conhecido esquema a
40
seguir explicita essas relaes inserindo a funo predominante nas zonas especficas do
modelo:
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A leitura que Caio Fernando Abreu parece ter feito do livro o localizaria na esfera
do emissor, funo emotiva da linguagem. Se isso fosse verdade, o Tu acionado pelo texto
deveria ser to real quanto o suposto Eu que se confessa. No se tratava disso. O Tu
sublinhado no texto de Ana Cesar, os diversos vocativos, as interjeies, as marcas de tempo
e de lugar servem, na verdade, funo ftica, uma espcie de teste que checa a todo
momento se o outro ainda est l, mobilizando-o para a mensagem, onde se localiza a funo
potica. Conforme explica o autor:
41
42
DE MAN, Paul. Autobiografia como Des-figurao. Sopro, vol. 71, maio de 2012. Disponvel em <
http://www.culturaebarbarie.org/sopro/n71pdf.html>. Acesso em: 04 de agosto de 2012.
Utilizo aqui a referncia a jogo performtico, inicialmente, na mesma acepo que adota Klinger (2006) em
sua tese de doutorado, ou seja, de uma dramatizao de si que supe, da mesma maneira que ocorre no palco
teatral, um sujeito duplo, ao mesmo tempo real e fictcio, pessoa (ator) e personagem. (cf. p.58). O assunto ser
abordado com profundidade no decorrer da tese, o que ampliar nosso campo de discusso a esse respeito.
43
Refiro-me, mais uma vez, ao campo de debates ligados ao termo performance, dessa vez na acepo de Judith
Butler (2010), que em resumo trata da atuao imitativa e contingente de modelos pr-estabelecidos e
artificialmente construdos de gnero. As devidas relaes entre essas teorias e a obra de Ana Cristina Cesar
sero feitas no captulo 4 deste trabalho.
44
45
preocupao com o que se far de seus textos aps sua morte. A angstia com os signos
relatada quase que numa crise de pnico.
A soluo parece ser sempre a criao de um personagem dentro do personagem
que escreve. Como em Fernando Pessoa, a fragmentao da identidade cria as disperses
necessrias ao excesso criativo vivido pela autora, e a referncia ao brilhante romance de
Virgnia Woolf - Orlando - deixa clara a preocupao com um enfrentamento esttico das
questes de gnero e de identidade, sobretudo a feminina.
H um espelhamento entre o eu-lrico e o texto-lrico, como se o falseamento de
um afetasse o falseamento de outro. Aqui o dilema entre arte e vida, tpico da gerao de 70,
deslocado para outro eixo: no a arte que imita a vida, mas a vida que imita a arte. O
personagem central o signo visceral e o sujeito se desvanece nas molduras que se impe.
Cabe aqui lembrar a citao feita por Derrida para abrir seu famoso artigo A palavra
soprada:
46
1.3 Inclassificvel
Atrs daquele olhar profundo, escondiam-se muitos paradoxos, entre os quais o
pertencimento/distanciamento em relao gerao que a abrigou. Nessa dialtica, est
inscrita a questo estilstica fundamental de sua poesia: de um lado, uma fina conscincia da
tradio, principalmente aquela que deu origem poesia moderna, com sua dimenso crtica e
autorreferente; de outro, a impregnao da vida na arte, to cara chamada gerao marginal.
Essa uma questo que a pesquisadora e amiga de Ana Cesar, Helosa Buarque de Hollanda,
considera at hoje como uma das mais interessantes em sua obra, conforme sua declarao em
2012, a propsito do que seria o aniversrio de 60 anos da poeta carioca, quando relembrada
47
(pelo poeta Armando Freitas Filho, com quem divide o palco) do pontap que costumava e
costuma dar em poetas estreantes:
Esse pontap foi coloc-la numa antologia de poesia marginal, que era um
tipo de poesia que se fazia na poca, muito ligada contracultura, uma coisa
muito leve, muito performtica, ligada ao rock n roll, as apresentaes
evidenciavam isso muito. Sempre tinha aqueles saraus na poca no
chamava sarau, mas chamava artimanha e os poetas se apresentavam
sempre com uma banda do lado, ento era uma coisa muito jovem, muito
contracultural mesmo... E a Ana Cristina, que eu botei nessa antologia, ela
no era nada disso. Eu botei porque o texto dela era bom e eu achei que ela
era... eu no sei porque que eu botei, mas ela virou uma poeta marginal por
conta da companhia, e muito interessante porque essa convivncia dela
(no fui eu que liguei ela, aos marginais, evidentemente, mas... era a gerao
dela, ela era muito geracional, apesar de ela ter uma cultura inglesa muito
forte por via da famlia, apesar de ela ter uma coisa com a literatura muito
erudita, muito cuidadosa, ela lia muito e fazia uma certa diferena com os
companheiros... eu, que era mais velha, e que tava muito ligada quelas
pessoas, muito ligada quela turma, eu via que ela se dava muito bem, ela
(acho isso to interessante)... ela pertencia sim quele grupo: ela namorava
sim alguns poetas, ela ia passar fim de semana l na fazenda do Lui, onde
todos iam, ela discutia o trabalho dela com essas pessoas, mas ela era muito
diferente dessas pessoas. Ento criou-se uma ambiguidade em relao
carreira da Ana, logo no lanamento, que eu acho muito interessante, porque
ela era realmente as duas coisas: ela era contracultural sim; ela era uma
roqueira sim, mas ao mesmo tempo ela era uma Billy Holiday. Ela tinha uma
coisa de passado, uma coisa de outra cultura que vinha, o que fez dela uma
figura to especial, que chama tanta ateno. Quer dizer, muito fcil voc...
ela um pouco inclassificvel. Um pouco inclassificvel porque ela
desafinou da gerao dela sem abandonar a gerao dela. Isso eu acho
interessante no prprio texto dela.5
Como frisa a pesquisadora, Ana Cristina Cesar desafinou sem abandonar. Isso
provavelmente por conta de um tipo de formao mais rgida, mais inglesa, como diziam
alguns amigos. Em sua biografia, constam publicaes de quando Ana Cristina tinha apenas 7
anos. Segundo informaes do site do Instituto Moreira Salles:
HOLANDA, H. B. Bate papo a propsito dos 60 anos de nascimento de Ana Cristina Cesar. Disponvel
em: < http://www.youtube.com/watch?v=mpE3v_wJJUk>. Acesso em: 20 de maio de 2013.
48
49
50
caderno da Ana Cristina cheio de poemas e escolhi aqueles sozinha, sem a participao dela.
Meu critrio foi o de pegar o que fosse mais caracterstico da poesia dela entre os muitos
poemas daquele caderno.
Ana Cesar foi uma brilhante estudante de Letras. Carregava forte influncia da
teoria literria e suas convices crticas so vazadas pela sua formao. Barthes e os
formalistas russos, alm de boa dose de crticos brasileiros comentando ttulos universais,
fazem parte de seu arcabouo. Entretanto, uma vasculhada em seus Escritos do Rio revela
uma estudante bastante ativa, que vai s fontes, que l com propriedade e com capacidade
apurada de intertextualizar discursos. Essa estudante produz textos que chegam a colocar no
limite suas leituras, demonstrando a distncia entre a simples apreenso e a verdadeira
compreenso, ou seja, a utilizao real do texto como instrumento de pensamento que
permite, inclusive, o lanar-se para alm do texto.
Quando Ana Cristina Cesar ingressa no curso de Letras, na PUC-RIO, ela j tinha
passado uma temporada em intercmbio na Inglaterra (1968-1970). J tinha gostado de ler
Emily Dickinson e Sylvia Plath e se aproximado da escrita da neozelandesa Katherine
Mansfield. Ana C. viajou pela segunda vez Inglaterra, j formada e com o ttulo de Mestre
em Comunicao para um novo mestrado, dessa vez focada no tema da sociologia da
literatura, na Universidade de Essex, grande centro de intelectuais de esquerda.
Os relatos e as cartas dessa poca do conta de informar que o tema e a
metodologia do curso logo a entediam. A soluo encontrada foi mudar o curso e matricularse na disciplina de Teoria e Prtica da Traduo Literria, que logo despertou nela um intenso
gosto pelos estudos e um perodo de vasta produo intelectual:
51
O problema da traduo, seja de uma lngua para outra ou, num sentido muito
mais amplo, de uma matria, de um sistema para outro, passa a ser uma das isotopias da obra
de Ana Cristina Cesar. Traduzir tambm uma forma de colocar em linguagem verbal outras
linguagens captadas pelos sentidos. o que sugere a citao do disco de Caetano Veloso
lanado em 1979, o Cinema Transcendental, que aparece como parte de um ensaio
denominado Pensamentos sublimes sobre o ato de traduzir: Vo passando os anos/ e eu no
te perdi/ Meu trabalho te traduzir. Ana parece, nesse momento, compor uma ideia mais
elaborada da teoria das correspondncias, presente mais uma vez em Baudelaire.
52
ostracismo sem precedentes do tom a uma poesia evasiva, que parece poder ser sintetizada
pelo poema n 485, em que aparece o sintagma Oness Toalette after Death, figura
definindo estado ao mesmo tempo indiferente, vaidoso e feminino com que a Morte
abordada ao longo da obra. Foquemos agora nos estudos tradutrios e no que eles podem ter
acrescentado em termos de resolues estticas obra da poeta.
Comecemos pela
485
To make Ones Toilette after
Death
Has made the Toilette cool
Of only Taste we care to please
Is difficult, and still
Thats easier than Braid the
Hair
485
Fazer a Toalete depois
Que a Morte esfria
O nico Motivo de faz-la
difcil, e todavia
mais fcil que fazer
Tranas, e Corpetes apertados
Quando olhos que afagaram
Por Declogos so arrebatados
(C&T, 1999b, p.395)
53
54
sujeito lrico constri a fim de supostamente traduzir seu estar no mundo. Alm disso, o
papel, o cdigo, o livro, o verso... tudo isso parece estar acima da vivncia. Vejamos ainda
mais detidamente mais uma dessas tradues:
1263
There is no Frigate like a Book
To take us Lands away,
Nor any Coursers like a Page
Of prancing Poetry
This Traverse may the poorest take
Without oppress of Toll
How frugal is the Chariot
That bears a Human soul. (C&T, 1999b, p. 388)
1263
No h Fragata igual a um livro, que daqui
Nos distancie
Nem Corcel que galope mais que um Verso
De poesia
No custa pedgio ao pobre
Essa travessia
Frugal o carro que nos leva
Nesta Via. (C&T, 1999b, p. 388)
55
Pode-se perceber com clareza a conscincia semntica e formal que Ana Cristina
tinha do que estava fazendo. Porm, a presena do verso curto intercalando o mais longo,
apesar de compor a prosdia aludida (marcada por regularidade e primitivismo), ir passar a
fazer parte de uma esttica da suspenso, que Ana Cesar utilizaria ostensivamente.
Se repararmos bem os dois ltimos versos da traduo: Frugal o carro que nos
leva/ Nesta Via, percebemos um tipo de fechamento que serve mais como um ponto em que
se limita uma sensao do que como uma abertura para algo que poderia se estender para uma
meditao futura. No original, temos How frugal is the Chariot /That bears a Human soul.
A referncia metafsica alma humana, fechando o poema, simplesmente desaparece. O
fechamento, pelo contrrio, acontece com um ditico, elemento de trazer para perto do
sujeito. Elemento tambm de inscrio do sujeito. De limitao e delimitao. O motivo,
portanto, da evasiva pelo caminho frugal dos versos reaparece decifrado e refratado pela
atualizao de Ana Cesar, sem o peso da seriedade de Dickinson.
56
57
e do que levaram
apesar da grande comoo que ata
parece que ata mos e ps
e nem desata
no me canso ao volante, fico prosa, dona do nariz,
neurastnica
diante dos outros motoristas, dos sinais
vermelhos
Numa curva fechada pensei: estou cega e no entanto
guio esta Braslia. (I&D,1999b p. 162-163)
O conjunto desses elementos leva o poema a ter em sua superfcie uma mistura de tons
essencialmente amenos, como se afastados do calor do vivente para uma atmosfera de conluio
com a noite, com o sentido de violao, de perda. Concluindo, quando esta negatividade
aparece no poema, j aparece pacificada demonstrando que sempre estivera por ali. O
sentimento eleito para descrever a cena a comoo que, apesar de reter certo sentido de
emoo repentina, costuma ser externalizada de maneira branda, com o sentido de j no
haver mais o que fazer. O rasgo de vida do poema fica por conta do ato de dirigir, situao na
58
qual o eu lrico relata sentir certa liberdade e prazer, inclusive no risco de estar cega e mesmo
assim guiar uma Braslia.
D#
Fernando Pessoa, Walt Whitman, Emily Dickinson, Elisabeth Bishop, Gertrude Stein,
Katherine Mansfield e Virginia Woolf.
Portanto, o trajeto que ora iniciaremos pretende colaborar no com um
esclarecimento, mas com a difcil tarefa de sublinhar um trabalho construtivo na potica de
Ana Cristina Cesar e que, preciso dizer, imita muito o improviso. preciso recuperar a
historicidade deste texto para captar suas inovaes, j que, como aponta Eliot:
Nenhum poeta, nenhum artista, tem sua significao completa sozinho. Seu
significado e a apreciao que dele fazemos constituem a apreciao de sua
relao com os poetas e artistas mortos. No se pode estim-lo em si;
preciso situ-lo, para contraste e comparao entre mortos. Entendo isso
como um princpio de esttica, no apenas histrica, mas no sentido crtico.
Com eles, uma margem, um limite estrutural transposto. (ELIOT, 1989, p.
39)
D$
D"
DA
D%
(2003, p.125). Dessa forma, a disposio de sujeitos e objetos parece ter a inteno de compor
uma espcie de display entre a dimenso da realidade e a dimenso literria, confundindo
ambas e gerando mediaes. Como no sentimento amoroso descrito por Drummond, relao
de Ana Cesar com a leitura passa a ser um profundo gesto de identificao, uma minerao,
como define o poeta no clssico Minerao do outro. A praa de convites est no campo
virtual do signo, em sua convivncia ntima com os escritores: Onde avano, me dou, e o que
sugado / ao mim de mim, em ecos se desmembra (DRUMMOND DE ANDRADE).De
forma potica, ela assume que a realidade um construto de palavras, de vozes e frases que
definem a multifacetada condio humana.
Este processo foi, de certa forma, abordado por Annita Costa Malufe (2011) em
sua tese de doutorado. Guiada pela filosofia de Deleuze, ela identifica uma teia de relaes
entre a potica de Ana Cesar e uma viso crtica sobre a linguagem que subjaz criao
potica, fazendo da leitura dessa poesia uma meditao prazerosa a respeito das fronteiras da
significao, da rede de filamentos que unem na linguagem atualizada pelo poema a uma srie
de outras linguagens remotas, na poltica inerente ao gesto cotidiano consolidado na
linguagem.
Na srie Mil Plats, os filsofos Deleuze e Guattari se pem a pensar a respeito
dos postulados tradicionais da lingustica e formulam a mxima que desloca a linguagem do
eixo entre algo visto (ou sentido) e algo dito e a coloca num outro. Malufe explica o
pensamento da seguinte forma: "A lngua seguiria a forma do ouvir dizer: todo discurso
sempre um discurso indireto, e o reportar de algo j dito, j ouvido. A linguagem iria sempre
de um dizer a dizer (...)" (MALUFE, 2011, p.35). Citando ainda os filsofos, completa:
"Existem muitas paixes em uma paixo, e todo tipo de voz em uma voz, todo um rumor,
glossolalia: isto porque todo discurso indireto, e a translao prpria linguagem a do
discurso indireto." (MP2, p.13 apud MALUFE, 2011, p. 35).
D&
DD
O prprio Whitman assinalava que sua vida era apenas uns poucos traos
apagados sobre os quais ele quase nada sabia. O fascnio pela figura do
poeta surge antes de sua potica radical, que afirma, como verdadeiro
inventor, que a palavra funda o real, que o livro o poeta. No finaldespedida e chave de Leaves of grass, ele chega a dizer que aquele no um
livro: Sou eu que tu abraas e que te abraa, e mergulha com delcia nos
braos de quem o l, ou seja, de quem o toca.(C&T,1999b, p. 251-252)
DN
DC
Muito pelo
DB
N#
demolio. Para isso, a utilizao do chiste, do humor, parece capital na formulao da justa
medida entre a elegncia do discurso e a expresso do esprito afiado pela insolncia rebelde
dos modernos.
Como esclarece Arrigucci (2002, p. 33-34), a partir de fragmentos de Schlegel,
Ana Cristina Cesar, em vrios de seus poemas curtos, parece recorrer a uma
espcie de iluminao instantnea na busca pela traduo ideal de uma percepo. Abaixo,
alguns exemplos recolhidos de Inditos e Dispersos (1998):
Cimes
Tenho cimes deste cigarro que voc fuma
To distraidamente. (p.30)
***
aqui
Por enquanto
Ainda no tem
Cortina
Luz indireta
Amenizando a noite
Quadro nas paredes (p.122)
***
Estou vivendo de hora em hora, com muito temor.
Um dia me safarei aos poucos me safarei, comearei um
[safri.
(1.8.83) (p. 184)
N$
N"
NA
Zular, Roberto (2005), O que fazer com o que fazer? Algumas questes sobre o Me segura queu vou dar um
troo de Waly Salomo, Revista Literatura e Sociedade, n. 8, So Paulo, DTLLC/USP e Ed. Nankin.
N%
N&
ND
cnico iniciado com a abertura do volume. Antes de comear o poema, comea a trilha sonora
ou a insero do leitor numa espcie de iniciao:
NN
A ausncia de limites entre poesia e prosa, a falta de uma temtica que possa ser
ao menos delineada, aproximam o texto de uma espcie de cena que no se compreende bem,
mas da qual nos tornamos cmplices medida que pouco a pouco somos iniciados na
vertigem desses segredos.
Os clichs E a ltima, eu j te contei?, Sonhei outra vez com a mesma coisa,
Do you believe in love....? misturam-se a referncias a linguagens que servem apenas como
ambientao, dilogo esttico: Billy the Kid versus Drcula/Drcula versus Billy the Kid..
Pode-se definir o clich, segundo Riffaterre (1989, p.154), como um grupo de
palavras que evoca julgamentos batidos, banais, gastos. Trata-se de uma estrutura lexical que
apresenta uma expressividade forte e estvel. Embora seja caracterizado como batido, o
clich pode ser eficaz, j que no passa despercebido. Embora estereotipado, nem sempre
banal, pode ser renovado se for descontextualizado. O choque no leitor se d ao frustrar a
expectativa pelo deslocamento de sentido, levando o leitor para o inesperado.
NC
NB
C#
C$
C"
CA
verborragia que se configura muitas vezes como soluo na poesia moderna, o que leva a
linguagem quase ao limite de sua capacidade de referenciao.
O rudo do bordel faz lembrar os subrbios, onde nos pardieiros/ Persianas
acobertam beijos sorrateiros do poema O sol, de Baudelaire. Contudo, ao contrrio do
poeta francs que, como o Sol busca em cada canto os acasos da rima, Ana Cesar parece
fazer um recorte ainda bruto, como se uma essncia espiritual que de fato fosse a poesia
devesse ser (di)lapidada pelo olho clnico do leitor moderno. Os excessos flutuam, desviam,
interrompem o ritmo, banalizam o tempo, arrastam a leitura, entediam o leitor, traduzem,
enfim, a insuficincia da linguagem para a necessidade humana de comunicar sua essncia.
PRIMEIRA LIO
Os gneros de poesia so: lrico, satrico, didtico, pico,
ligeiro.
O gnero lrico compreende o lirismo.
Lirismo a traduo de um sentimento subjetivo, sincero e
pessoal.
a linguagem do corao, do amor.
O lirismo assim denominado porque em outros tempos os
versos sentimentais eram declamados ao som da lira.
O lirismo pode ser:
a) Elegaco, quando trata de assuntos tristes, quase sempre a
morte.
b)Buclico, quando versa sobre assuntos campestres.
c) Ertico, quando versa sobre o amor.
O lirismo elegaco compreende a elegia, a nnia, a endecha, o
epitfio e o epicdio.
Elegia uma poesia que trata de assuntos tristes.
Nnia uma poesia em homenagem a uma pessoa morta.
Era declamada junto fogueira onde o cadver era incinerado.
C%
C&
can even matter in the study of heavy verse. But the operative word is
"enjoyable." (AUDEN, 1979, p. xxvii)2
"
A devoo constante de Eliot por cantigas populares, versos infantis, sales de msica, os maiores absurdos de
certos excntricos vitorianos e a obra do Groucho Marx. E depois foi com as pardias de Ring Lardner de
Night and Day martelando na minha cabea - que eu comecei a pensar que o mundo precisava de uma
antologia de verso leve (ou ligeiro) americana. Os versos em si so agradveis, eles tm um grande significado
para muita gente e podem at mesmo importar no estudo do verso pesado. Mas a palavra de ordem "divertido.
(trad. nossa)
3
Michel Riaudel comenta o processo de Robert Lowell em relao ao de Ana Cristina Cesar em
poemas/tradues como o j comentado Carta de Paris, nascido, segundo o estudioso, de uma traduo de Le
Cygne, de Baudelaire.
CD
Em A teus ps, so inmeros os exemplos de textos que se parecem com prtextos, por exemplo, um ndice onomstico figura no final do livro. Os nomes ali citados
dialogam com as influncias explcitas inscritas no livro, porm no de maneira segura.
Vejamos:
ndice Onomstico
Alvim, Francisco
Augusto, Eudoro
Bandeira, Manuel
Bishop, Elizabeth
Buarque, Hel
Carneiro, ngela
Dickinson, Emily
Drabik, Grazyna
Drummond, Carlos
Freitas F, Armando
Holiday, Billie
Joyce, James
Kleinmain, Mary
Mansfield, Katherine
Meireles, Cecilia
Melim, Angela
Mendes, Murilo
Muricy, Katia
Paz, Octavio
Pedrosa, Vera
Rhuys, Jean
Stein, Gertrude
Whitman, Walt
(CESAR, 1998, p. 84)
Claramente, o texto parece ser uma chave de leitura para o livro todo. Cada um
desses nomes aponta para aspectos de sua potica, que feita de colagens e contribuies. O
gnero, no caso, ndice onomstico, faz o papel metalingustico de desvio de ateno.
Embora parea ser um texto srio, dada a formatao dos nomes listados moda de
referncias bibliogrficas, d fortes indcios de mecanismos manipuladores, armadilhas.
Cumpre, portanto, pela metade, sua funo de paratexto, de texto didtico, e, por
CN
inteiro, sua funo de enredar o leitor nessa cortina de signos. Basta notar uma ausncia para
concluir que no se trata de uma dica segura, confivel. Onde est, s para citar um dos
mais importantes, o nome de Charles Baudelaire?
Assim como em outros casos, a pretensa chave falsa. Trata-se mais de um
mecanismo de esconder do que de revelar. Mecanismo idntico aos demais poemas, nos quais
se encena, por exemplo, em vez de uma dica de leitura, uma relao ntima de um texto
confessional com um leitor, como em Sete chaves.
Sete Chaves
Vamos tomar ch das cinco e eu te conto minha
grande histria passional, que guardei a sete chaves,
e meu corao bate incompassado entre gaufrettes.
Conta mais essa histria, me aconselhas como um
marechal do ar fazendo alegoria. Estou tocada pelo
fogo. Mais um roman cl?
Eu nem respondo. No sou dama nem mulher
moderna.
Nem te conheo.
Ento:
daqui que eu tiro versos, desta festa com
arbtrio silencioso e origem que no confesso
como quem apaga seus pecados de seda, seus trs
monumentos ptrios, e passa o ponto e as luvas
(ATP, 1998, p.40)
CC
idiossincrasias de um eu disposto a encenar um drama pessoal que possa justificar seu estar
no mundo, marcado pela voz soprada da poesia, sempre a interpel-la, fazendo-a tagarelar
suas percepes.
Alis, o campo semntico das chaves, como num continuum, se liga ao campo dos
segredos geralmente destilados em cartas, que depois viram cartas marcadas ou cartas
que no mentem jamais. Essas so tambm letra tn hermosa, no universo de papel que
integra a sereia, tudo dentro dessas margens, construdas pelo anjo que registra. Muito
perto dos acontecimentos, sem sobrevoos, com a distncia mnima de uma luva, separando a
pele do poema da pele da vida.
Destarte, um ser inundado de poesia envolve, na sua longa digresso de fatos
imersos em linguagem, o trabalho, os estudos, os encontros, as iluses, a intensidade e a
fraqueza cotidianas, o tdio e a inspirao. Dessa forma, a relao do sujeito com o texto
perfaz um movimento circular, em que se projeta, no cerne dos problemas do escrever, uma
figurao daquele que escreve, e esta figurao que escreve, incessantemente, projeta a
imagem do escrever. Por essa via, esse eu-lrico posiciona-se num limite que se coloca no
horizonte da prpria escritura, como uma margem que avana medida que avanamos em
direo a ela, revelando, em ltima instncia, que o espao potico, embora esboce um limite,
acaba por ampliar sua rea na medida em que a perseguimos, o que leva o potico a articular
uma srie de questionamentos que acabam por problematizar as fronteiras entre a arte e a vida
e as diversas atuaes (performances) possveis nesse espao.
B#
B$
popularizadas pela editora tica tivessem justamente esse tipo de filtro nas imagens
selecionadas. A capa de A teus ps, por exemplo, feita no referido tom, traz a imagem quase
non-sense, embora lrica, de um banco visto muito de perto, sem personagem enquadrado,
com uma roda de bicicleta ao fundo, um tanto desfocada. Ao redor, uma espuma embaada
que pode muito bem ser o mar de Copacabana.
A sugestiva cena cotidiana, vista na estreita perspectiva de um eu e no mximo
de um tu (mais imaginado que real), amarelecida pelo tempo, resume a poesia que se quer
encontrar no interior do livro. No entanto, a poesia de Ana no se enquadra facilmente na
paisagem. Ele parece incluir nveis mais elevados e custicos de conscincia crtica.
Hoje, como sabemos, o referido processo de exposio ntima ganhou maior
amplitude. A explorao daquilo que se convencionou chamar de celebridade, numa espcie
de nfase do biogrfico/autobiogrfico j que este indivduo no costuma se constranger ao
falar de si, se autopromover torna possvel ver na sociedade da informao uma lgica de
exibicionismo e narcisimo. Isso faz da leitura crtica da poesia de Ana Cristina Cesar uma
experincia ainda mais rica, que encerra um problema que viria a se tornar mais forte no
prprio domnio do poeta. Como nos lembra Siscar,
B"
Samba-cano
Tantos poemas que perdi.
Tantos que ouvi, de graa,
pelo telefone ta,
eu fiz tudo pra voc gostar,
fui mulher vulgar,
meia-bruxa, meia-fera,
risinho modernista
arranhando na garganta,
BA
malandra, bicha,
bem viada, vndala,
talvez maquiavlica,
e um dia emburrei-me,
vali-me de mesuras
(era uma estratgia),
fiz comrcio, avara,
embora um pouco burra,
porque inteligente me punha
logo rubra, ou ao contrrio, cara
plida que desconhece
o prprio cor-de-rosa,
e tantas fiz, talvez
querendo a glria, a outra
cena luz de spots,
talvez apenas teu carinho,
mas tantas, tantas fiz...
(ATP, 1998, p.72)
B%
sobre a qual se diz comumente que certa coisa lhe caiu como uma luva, por outro, ndice
de barreira, proteo da intimidade, vestimenta, mscara. A pelica se aplica ao que chique,
distinto, aquilo que tem classe. Dessa metfora nasceu o ditado popular que circula em toda
sociedade brasileira h muitos anos: dar um tapa com luva de pelica.
A figurinista Beth Filipecki, compondo um personagem para a rede globo em uma
novela que retratou a sociedade carioca do incio do sculo XX, explica que as luvas eram objeto de
sofisticao, imitando os padres europeus. Alm disso, as luvas de pelica proibiam a exposio
demasiada da mulher. As mais longas tambm restringem os movimentos. Segundo a especialista,
por serem smbolo de ostentao e fineza, criou-se a expresso popular que significa revidar uma
afronta de forma elegante: Quem nunca ouviu a frase dar tapa com luva de pelica?1
De fato, se podemos localizar rapidamente na escrita de Ana o devassamento de
uma intimidade, em seguida notamos que o exagero da exposio de rituais ntimos fazem
parte de uma atuao cnica como construo performtica, que tem como chave de
funcionamento a adeso, por parte do leitor, a um lugar de superioridade em relao a um eulrico fragilizado, exposto, fragmentado e socialmente marcado feminino.
Essa adeso um pr-requisito do texto. depois de tratar o leitor com sedutora
intimidade que o jogo vira, o tempo fecha e o apontamento crtico de um jogo
sadomasoquista, no qual as relaes de poder se invertem alternadamente, comea a se
desenrolar. nesse jogo que se coloca a expresso potica crtica e irnica de Ana Cesar.
Como comentamos, desde os primeiros seis poemas escolhidos para a estreia
oficial de Ana Cesar na antologia 26 poetas hoje, esses traos principais da potica de Ana
Cristina Cesar j estavam delineados. Naquele conjunto, a experincia paradoxal de um
(()<
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jornal ntimo comea a se configurar e, com coragem e elegncia, uma longa encenao de
intimidade comea a ser tecida.
Nesses textos, o fragmentrio cumpre a funo de denunciar um todo existencial
previsvel e ao mesmo tempo inapreensvel. A linguagem totalmente vazia de retricas
transcendentais indicia o limite tnue entre o prosaico e a possibilidade de mediao de uma
experincia original.
No entanto, em cada fragmento, o vazio existencial ganha forma pela ausncia de
qualquer ndice de elevao. As datas de dirio traduzem com exagero e artificialidade o
invisvel cotidiano, trazendo, em meio a gargalhadas de pastelo, uma discusso sria sobre a
recente condio humana profundamente mudada pela Modernidade como, por exemplo, no
trecho a seguir retirado de Simulacro de uma solido:
30 de agosto
Hoje ro cinco unhas at o sabugo e encontrei no cinema, vendo
Charles Chaplin e rindo s gargalhadas, de chinelos de couro,
um menino claro. Usei a toalha alheia e fui ao ginecologista.
9 de setembro
Tornei a aparar os cachos. Lcifer insiste em se dar mal comigo;
no sei mais como manter a boa aparncia. Minha amiguinha
me devolveu a luva. J recebi o montante.
(CESAR apud HOLLANDA, 2007, p.143)
No trecho, a referncia a Chaplin pode ser lida como rememorao do que fora
perdido sem mesmo ser percebido a tempo, ou seja, o humano no humano pr-mecanizao.
BD
Neste poema, o grau de intimidade com o leitor chega, talvez, ao nvel mximo. O
feminino aqui se expe como um rouge a mais, que tem um significado a mais, ndice da
condio marcada. Os planos de vida so mencionados, mas no se realizam. A tarefa
intelectual serve de consolo. Vida imaginada e arte sincera se alternam e se contaminam,
podendo virar vida sincera e arte imaginada nos caminhos da poesia performtica. Nesses
textos, no raras vezes o narrador, ou eu-lrico, no caso da poesia, atua como uma espcie de
performer. Como aponta Ravetti (2002), o corpo est sempre presente e
Nos anos 70, no Brasil, a dico performtica (com a presuno de uma audincia
e s vezes em eventos em que a audincia era real, misturando msica e literatura as
artimanhas) trouxe poesia um carter de aproximao com o cotidiano vivido.
BN
Polinizaes cruzadas
entre lido e vivido. Entre a espontaneidade coloquial e o estranhamento
pensado.
Entre a confisso e o jogo. Entre o vivenciado e o inventado. Entre o
propsito e o instinto. Entre a demirgica lbia e as camadas superpostas do
refletido.
Imbrglio dlgebra e jogo de azar.
Fria serenidade e fria de touro em cmera escura.
Choque de besouro contra a vidraa. Entre.
Procura do ponto de liga alqumica: amlgama de oral (reino da mente veloz
em presena, do imediato, das sbitas vozes intervenientes, do esprito em
chamas, do estalo de Vieira, das lnguas de fogo em reprise do Pentecostes
ao vivo?) e de escrito (reino do adiamento, do recalque, do mediato, do
procrastinado, da letra morta in vitro?).
Entre o ponto e o poroso
BC
O que hoje conhecido como poesia marginal pode ser definido como um
acontecimento cultural que, por volta de 1972-1973, teve um impacto
significativo no ambiente de medo e no vazio cultural, promovidos pela
censura e pela violncia da represso militar que dominava o pas naquela
poca, conseguindo reunir, em torno da poesia, um grande pblico jovem,
at ento ligado mais msica, ao cinema, shows e cartoons. (A poesia
marginal. Disponvel em <http://www.heloisabuarquedehollanda.com.br/apoesia-marginal/>. Acesso em 17 de junho de 2013)
expresso
de
Dcio
Pignatari,
geleia
geral,
adotada
como
ttulo
da
cano/poema/manifesto de Torquato Neto (em parceria com Gilberto Gil), consolida bem a
retrica daquele momento. Em uma de suas estrofes, podemos ler:
BB
$##
inscrever no quadro. Pollock, por exemplo, elegia esse momento como o ponto mximo de
sua concepo artstica, por meio de uma gestualstica prpria, ritualizada.
Ainda mais radical que este primeiro momento, o nascente movimento da body
art assume o corpo como suporte, transformando o artista-performer em sujeito e objeto de
sua obra que suplementada pelo ilimitado sentido que o corpo sempre reverbera (como
sindoque da condio humana). A body art no raras vezes possui uma estrutura que acolhe
os procedimentos da colagem, da repetio, do esvaziamento do sentido, s vezes chegando s
beiras de atingir uma espcie de mantra hipntico, num estado alterado de conscincia. Nessa
busca quase que ritualstica, a figura do
$#$
Fama e Fortuna
Assinei meu nome tantas vezes
e agora viro manchete de jornal.
Corpo di - linha nevrlgica via
corao. Os vizinhos abaixo
imploram minha expulso imediata.
No ouviram o frenesi pianssimo da chuva
nem a primeira histria mesmo de terror:
no Madame Tussaud o assassino esculpia
as vtimas em cera. Virou manchete.
Eu guio um carro. Olho a baa ao longe,
na bruma de non, e penso em Haia,
Hamburgo, Dover, ncoras levantadas
em Lisboa. No cheguei ao mundo novo.
Nada nacional. Deso no meu salto,
di a culpa intrusa: ter roubado
teu direito de sofrer. Roubei tua
surdina, me joguei ao mar,
estou fazendo gua. D o bote.
(I&D, 1999b, p. 170)
Segundo os estudos do arquivo de Ana C., feitos por Luciana Di Leone, o poema
foi composto na ocasio em que, no ano de 1982, Ana se muda para uma casa na Gvea. A
essa altura, seu relacionamento com uma mulher provoca indignao da vizinhana,
ocasionando o pedido de sua expulso. (cf. DI LEONI, 2008, p. 8)
No poema, o eu lrico j se desdobra em uma vida pblica e uma vida ntima. Na
vida pblica, a assinatura, tantas vezes repetida, deveria garantir a respeitabilidade do nome,
livrando-o da exposio na manchete de jornal. A poesia, frenesi pianssimo da chuva, no
mobiliza os vizinhos, que expem de fato, publicando no jornal, o exposto encenado da
poesia, duplicando a exposio. Assim, a autora e sua vida ntima seriam como duplos um
$#"
deles seria uma cpia de cera (que sobrevive) e outro, o original, guilhotinado pela vizinhana
como ocorreu com os modelos do famoso museu Madame Tussaud.
Alm disso, para acrescentar ainda uma chave interpretativa, o ttulo Fama e
Fortuna, alm de apenas reproduzir a justaposio de dois termos que, na sociedade do
espetculo, costumam vir mesmo nesta ordem, aponta, ironicamente, para o mito do escritor,
aquele que, geralmente, apesar de ter um nome uma firma, uma marca, uma assinatura que
assegura sua autoria no dispe da outra metade do sintagma, da fortuna... ou justamente
est submisso a ela, se ela a Fortuna for lida como a deusa romana da sorte (boa ou m).
Mas, no poema, o assunto rapidamente acaba. A manchete de jornal carregada
de fama ou infortnio dura apenas um dia. O eu-lrico retorna a seus dramas ntimos, sem
ncoras. Lamenta a queda, se joga ao mar e, bem ao gosto da autora, no dramalho do
naufrgio, desafia o leitor com mais uma ambiguidade: Deso do meu salto [...] me joguei
ao mar,/ estou fazendo gua. D o bote.
Assim, o leitor/amante assume, necessariamente, a atitude dbia de quem deve,
maneira de uma serpente atenta, dar o bote da interpretao, mas tambm salva o nufrago
que se afoga no mar da linguagem.
Ligado a um momento mais frvolo e narcisista do sujeito, por assim dizer, ou
mais engajado, qualquer escrita possui uma amplitude social. No entanto, no contexto da
crtica filosfica do sujeito, um retorno do autor est tambm ligado a uma problematizao
das frequentes aparies do corpo, do nome, da assinatura, da imagem, da fotografia no plano
da literatura, o que reitera o conceito de performance, que buscamos aprofundar a partir de
agora.
$#A
$#%
$#&
uma prtica como o batismo ou a declarao de um casamento) ocorra, ela deve ser um gesto
reconhecvel como cerimnia, algo que se repete mais ou menos da mesma forma, em que
os atores tenham papis preconcebidos, como numa atuao.
Assim, um ator no palco podendo representar um casamento um excelente modelo
de como um casamento uma repetio (uma iterao), uma atuao. Dessa forma, podemos
reverter o pensamento dual do que seja srio e parasitrio em Austin, e considerar, com
Derrida, que os performativos srios so apenas um caso especial de performativos.
O que resultar dessa longa discusso o conceito de iterabilidade, proposto por
Derrida, ou seja, o valor da repetio como marca de um processo performativo. Iterabilidade
assim uma espcie de potncia estrutural de todo signo de ser repetido na ausncia no
somente de seu referente, mas tambm na ausncia de seu significado ou inteno. , ao
repetir-se como mesmo e como outro, que o rito aciona a citacionalidade necessria para o
funcionamento do significante e, de modo mais abrangente, do cdigo. por repetir-se tantas
vezes que uma assinatura tem valor de assinatura, de modo que a encenao parte
constitutiva da validao de uma suposta verdade.
Segundo o filsofo, a assinatura, marca de originalidade, paradoxal, pois
depende de um reconhecimento. preciso que uma assinatura seja uma boa cpia de outra
assinatura feita em presena de uma autoridade para pr em curso seu funcionamento. O real
depende da cpia e a cpia o substitui:
$#D
Em obras como a de Ana Cristina Cesar, o trabalho com a linha tnue da performance
vale-se de simulacros de presena ntima num ataque ostensivo s fronteiras entre a arte e a
realidade, de modo a valer-se da mentira como apontamento da falncia de sistemas rgidos,
baseados na essncia e na Verdade.
$#N
Segundo Klinger (2006), esse texto pode ser considerado uma autofico, uma
dramatizao de si mesmo, que dialetiza os preceitos de Lejeune (1975) para a autobiografia,
j que o nome da capa coincide e, ao mesmo tempo, no coincide com o sujeito que narra sua
histria no texto. Para a autora,
$#C
Ana Cesar parece ter captado essa esteira de influncia nos jogos entre realidade e
fico realizados e ironizados em seus poemas. O mesmo autor do outrora citado O falso
mentiroso dedicou-se a esse tipo de anlise terica a respeito da obra de Ana Cristina Cesar.
$#B
Em seu antolgico artigo Singular e Annimo, ele ressalta que, nos textos hbridos escritos
pela autora,
O poema, sem ser carta, sem ser carta aberta, abre no entanto lugar para um
destinatrio que, apesar de ser sempre singular, no pessoal porque
necessariamente annimo. Singular e annimo o leitor, ele no todos como
tambm no uma nica pessoa. O poema no um discurso em praa
pblica para uma massa indistinta, nem papo a dois confluente e ntimo.
SANTIAGO (2013, p. 452)
Fica difcil fazer literatura tendo Gil como leitor. Ele l para desvendar
mistrios e faz perguntas capciosas, pensando que cada verso oculta
sintomas, segredos biogrficos. No perdoa o hermetismo. No se confessa
os prprios sentimentos. J Mary me l toda como literatura pura, e no
entende as referncias diretas (ATP, p. 120)
Entre Mary e Gil est a literatura de Ana Cristina Cesar. Tendo passado pelos
bancos universitrios, Ana tinha mais trnsito com os paradoxos que envolviam a exposio
de qualquer coisa que seja atravs das molduras da arte.
No poema Soneto, por exemplo, a referncia ao nome, espcie de garantia de
autenticidade, se desloca em direo a um sujeito que no garante que possa responder por
essa identidade:
Pergunto aqui se sou louca
Quem quer saber dizer
Pergunto mais, se sou s
E ainda mais, se sou eu
Que uso o vis pra amar
E finjo fingir que finjo
$$#
Adorar o fingimento
Fingindo que sou fingida
Pergunto aqui meus senhores
quem a loura donzela
que se chama Ana Cristina
E que se diz ser algum
um fenmeno mor
(I&D,1999b, p. 38)
$$"
Todavia, note o leitor que no se trata aqui de uma proposio panfletria, mas de
uma abordagem profunda, crtica, posicionada, que se depara como problemas formais, de
base, capazes de recolocar, no mbito artstico, o signo do feminino por meio de uma voz
prpria.
$$A
O que resulta que, em textos em que habita uma conscincia criadora, sempre
que a estrutura do sentido abre uma fresta para a reflexo crtica, a estrutura do prprio
suporte artstico, como matria que abriga e multiplica essa reflexo, inevitavelmente
afetada. Trata-se de um tipo de literatura engajada que no provm de outras reas do
conhecimento humano, mas deriva da prpria arte.
No caso da abordagem desse novo feminino pela literatura que comeou a se
delinear com o incio da Revoluo Industrial, sabemos que ainda hoje, no sculo XXI, apesar
das inegveis conquistas, h a busca de uma voz de representao que possa, de um lado,
modificar empiricamente o lugar de subservincia de uma maioria de sujeitos femininos no
mundo contemporneo e, de outro, representar, de fato, o feminino sem que esse movimento
de representao seja mais uma vez um mecanismo de represso e subjulgamento. Alm
disso, quanto essa representao se prope a um lugar artstico, ela precisa apresentar
solues que sejam reconhecveis como estticas, formais.
Podemos citar, como ponto de referncia do aparecimento dessa representao
matricial inovadora na literatura, o monlogo interior da personagem Molly Bloom, de James
Joyce, no pico moderno Ulisses (1922). A questo do desejo, que central na discusso da
emancipao feminina, aparece nele e em uma linhagem de textos que podem ser
relacionados a ele como ponto-chave da sada de uma neutralidade masculina no discurso.
Octavio Paz, ao se debruar sobre o tema do desejo na literatura, em A dupla
chama (1994), recupera um pouco dessa linhagem:
$$%
$$&
disparou como louco e sim eu disse sim eu quero Sim. (JOYCE, 2005, p.
815)
Ulysses
E ele e os outros me veem.
Quem escolheu este rosto para mim?
Empate outra vez. Ele teme o pontiagudo
Estilete da minha arte tanto quanto
Eu temo o dele.
Segredos cansados de sua tirania
Tiranos que desejam ser destronados
Segredos, silenciosos, de pedra,
Sentados nos palcios escuros
De nossos dois coraes:
Segredos cansados de sua tirania:
Tiranos que desejam ser destronados.
O mesmo quarto e a mesma hora
Toca um tango
Uma formiga na pele
Da barriga,
Rpida e ruiva,
Uma sentinela: ilha de terrvel sede.
Conchas humanas.
Estas areias pesadas so linguagem.
Qual a palavra que
Todos os homens sabem?
(I&D, 1999b, p.121-122)
$$D
No poema, sabe-se que olhar masculino como tirnica sentinela brinca a escolher
rostos para o eu lrico. Contra o pontiagudo falo masculino erige-se o tambm flico
Estilete da minha arte. Temor dividido, ameaa e provocao. A natureza catica do
feminino criada por Joyce substituda por frases curtas, pensadas, cheias de um silncio
tirnico. Em Joyce, a verborragia mtica; em Ana, a pausa ldica. O prazer no est no
derramamento e sim na conteno. Enquanto em Joyce s h corpo, no poema de Ana Cesar
os coraes contm palcios escuros de segredos. A Penlope atual est cada vez mais livre
para o xtase, mas assumiu uma srie de demandas novas. O problema do orgasmo no se d
mais em nvel visceral, mas no jogo de mscaras em que disputa o poder representado pela
arte.
O tango anuncia a mudana de tom: o desejo representado pela formiga ruiva na
pele da barriga enseja a ilha de terrvel sede. Mas, na praia de Ana, a areia linguagem e s
a palavra certa (a palavra que todos os homens sabem?) pode abrir a chave. Aqui, o eu lrico
se afasta de Molly Bloom e o enorme sim transforma-se num precrio talvez.
A voz que fala a mesma que cala e, nos silncios elpticos das referncias, o
jogo entre o desejo solto e o patrulhamento d vazo ao efeito pretendido por Ana: no
entorpecimento sensual de sua linguagem que a poeta finca a estaca da lucidez: a interrogao
ao final, alm de deslocar o foco do poema (dos personagens da cena direto para o leitor)
ainda requisita, para a continuao da cena ertica, a palavra certa, a palavra mgica, a
palavra primeira, tal qual uma esfinge disfarada de amante. O que se v que a estratgia da
sensualidade parece mascarar uma acirrada competio.
Esse modus operandi recorrente nos procedimentos da autora. O que parecia ser
entrada livre na intimidade alheia demanda um pagamento: participao no enigma, quebra-
$$N
Sbado de aleluia
Escuta, Judas.
Antes que voc parta pro teu baile.
A morte nos absorve inteiramente.
Tudo aconchego rido.
Cheiro eterno de Proderm.
Mesa posta, e as garras da vontade.
A gana de procurar um por um
E pronunciar o escndalo.
Falar sem ser ouvida.
Desfraldar pendengas: te desejo.
Indiferena fantica ao ainda no.
(ATP, p. 78)
O dilogo ntimo que nunca aconteceu, pelo menos com o leitor, vale-se, como
estratgia de entrada, do iderio cristo. Ao trazer para a cena o mote bblico, o leitor j
pressente que um movimento subversivo est para acontecer. No mesmo livro, inclusive,
temos, na mesma linha, Sexta-feira da paixo.
Ao ler o ttulo do poema, a histria oficial da semana santa evocada: a data
referida tem sentido paradoxal, pois, de um lado, carregada da expectativa pela Pscoa e, de
outro, faz pairar no ar um sentimento pesado de vingana e traio, j que, nesse dia,
$$C
costume entre os cristos se fazer a malhao do Judas, episdio pitoresco em que um boneco,
pendurado como um enforcado, surrado violentamente e depois queimado, como que num
linchamento do traidor de Jesus Cristo. A situao leva a uma atmosfera, ainda que brbara,
de alma lavada.
No entanto, o poema esquiva-se da violncia. Ela apenas est subentendida. Na
primeira linha, j o infame personagem deslocado, pois o eu lrico, em vez de malhar o
Judas, dirige-se a ele carinhosamente. Obviamente, ao receber Judas como vocativo, o
personagem com quem se fala est sutilmente sendo acusado de traidor, mas o tom de
resignao. O verbo no imperativo, amenizado pela proximidade da segunda pessoa em vez
da terceira, figura mais como pedido ou mobilizao do que como ordem. Os versos seguintes
ratificam a textura de proximidade: h um baile presumido. Nem a interferncia do kitsch ao
definir o cheiro desmonta a cena: proderm um creme contra assaduras, usado geralmente em
bebs. Remisso infncia? O arqutipo maternal continua: mesa posta, Falar sem ser
ouvida. No poema, Judas est identificado com o leitor, a se divertir com mesa posta dos
dramas pessoais do eu lrico sem, de fato, lhe dar a devida ateno. A relao de fanatismo,
do texto para o leitor. A encenao de amor absoluto, que, apesar disso, nada espera em
troca.
importante o leitor notar que, no poema, as frases no partem de um mesmo
ponto de vista, o que caracterizaria certa incoerncia. Como uma cena estilhaada, pontos de
vista diferentes so trazidos sem que haja marcaes. A princpio, o procedimento figura
como caos, mas, pela fora que tem, logo o percebemos como recurso de estilo.
A chantagem emocional que est por trs da cena talvez seja a responsvel pela
aleluia referida no ttulo: h uma espcie de prazer no enredamento do leitor e na ameaa
trazida pelo tom fnebre. Como pagamento pela mesa farta da poesia, o poema solicita,
$$B
encenando uma paixo doentia, a ateno sempre disposio, negando, com indiferena,
qualquer gesto que se assemelhe a um ainda no. Pelo seu nvel de tenso, o texto poderia
ser encenado como discurso passional que antecede o crime, avisado com sutileza, bem ao
gosto do gnero feminino.
$"#
$"$
genuno, natural daquela sociedade. J para Butler, aquilo que parece natural deve ser
questionado, pois foi imposto performativamente, ou seja, de forma repetitiva como sistemas
de norma sobre indivduos e corpos.
Nomeada por Lacan como mascarada, a tese de que as mulheres, em ltima
instncia, encenam extremadamente o feminino na presena do masculino, foi discutida por
Butler (2010) e tem grande utilidade na compreenso das camadas da representao nos textos
de Ana Cristina Cesar.
Na retrica de Ana Cesar, o exagero na construo do feminino com seus
atributos de seduo parece esconder, muitas vezes, uma identidade cambiante, frgil,
perdida.
Conforme aponta Butler (2010), cada situao de performance atualiza uma
rememorao de outras tantas performances internalizadas, isto , em cada gesto,
comportamento ou fala est inscrito um outro gesto, uma ao do Outro, internalizada
performativamente. Nesse sentido, em Problemas de gnero: feminismo e subverso da
identidade, a autora argumenta que a identidade performativamente constituda, quer
dizer, por sequncias de atos, gestos e desejos que
$""
21 de Fevereiro
No quero mais a fria da verdade. Entro na sapataria popular.
Chove por detrs. Gatos amarelos circulando no fundo.
Abomino Baudelaire querido, mas procuro na vitrina um
modelo brutal. Fica boazinha, dor; sbia como deve ser, no to
generosa, no. Recebe o afeto que se encerra no meu peito. Me
calo decidida onde os gatos fazem que me amam, juvenis,
reais. Antes eu era 36, gata borralheira, p ante p, pequeno
polegar, pagar na caixa, receber na frente. Minha dor. Me d a
mo. Vem por aqui, longe deles. Escuta querida, escuta. A
marcha desta noite. Se debrua sobre os anos neste pulso. Belo
belo. Tenho tudo que fere. As alems marchando que nem homem.
As cenas mais belas do romance o autor no soube
comentar. No me deixa agora, fera.
$"A
143)
$"%
devir sombrio, marcado por dor e sofrimento, embora tambm por resignao e aceitao
irnicas. Essa dubiedade de sentimentos (que ocorre em vrios nveis) parece nascer
especialmente da condio de ser urbano, de ser metropolitano, que Ana Cristina, enquanto
poeta, captou em Baudelaire (E alegres retornamos lodosa estrada,/ Na iluso de que o
pranto as ndoas nos desfaa.) e reconfigurou em seus eu lricos.
A situao de citadino leva o eu que fala no texto em questo a uma soluo
curiosa para evitar a fria da verdade: entrar em uma sapataria popular. Dos inmeros
sentidos a presentes, um que coaduna tanto com o dndi baudelairiano quanto com a ideia de
aceitao irnica da dor aquele que insere a sapataria popular como o lugar adequado para
encontrar o elemento antinatural responsvel pelo mascaramento necessrio sobrevivncia
do sujeito na cidade.
O sapato, que no conto de fadas a revelao de uma majestade para a
borralheira, no poema o ndice da marcha dura das alems, aludindo ao pejorativo termo
usado para identificar a homossexualidade feminina: sapato. Em outras palavras, segundo o
texto, pode-se pensar que s se enfrenta a fria da verdade calando-se um modelo brutal
de sapato. Nesse sentido, o momento retratado neste dirio ntimo parece ser o da
compreenso por parte do eu lrico de que o fingimento, juntamente com a aceitao pacfica
da dor, criam as duvidosas condies para que se possa fazer a travessia por um enigmtico e
sombrio futuro que se apresenta. A imagem da gata borralheira, a, apresenta-se justamente
como smbolo da perda da inocncia, como desapego voluntrio do estado de pureza,
compreendido no texto como o grande responsvel pela produo de feridas. O eu lrico
aproxima-se da dor, com quem conversa e para quem pede a mo, num processo de
personificao que acentua a pungncia do instante em que aceita perder a inocncia,
descalar o fingimento e fazer da aflio sua companheira. A citao explcita a Baudelaire
por meio de um oxmoro (abomino/querido) refora a situao paradoxal em que o eu
$"&
Noite de Natal.
Estou bonita que um desperdcio.
No sinto nada
No sinto nada, mame
Esqueci
Menti de dia
Antigamente eu sabia escrever
Hoje beijo os pacientes na entrada e na sada
$"D
$"N
realiza-se com um plano metafrico mais denso, tornando-se mais eficaz poeticamente e
menos combativa.
Freitas trabalha por meio de procedimentos como recorte/colagem, repetio,
esvaziamento de sentido, citaes enxertadas, aluses a nomes prprios sem contextualizao,
palavres, entre outros procedimentos que encenam certa histeria que deriva, de alguma
forma, do fluxo de conscincia primordial de Molly Bloom. o que acontece no poema (sem
ttulo) do livro Um tero do tamanho de um punho, de 2012:
$"C
$"B
banal. A presena do humor e a ausncia de uma temtica especfica aliadas aos mecanismos
formais de um ritmo prximo dico comum singularizam o poema. O prprio nome da
poeta, composto de um pr-nome de dico mais difcil (Gertrude), em que abundam os sons
consonantais, e o segundo composto de um sonoro ditongo nasal (Stein), parece repetir-se ao
longo do poema: sequncias como tem um bundo (ditongos nasais), se opem a chega pra
l gertude (sons oclusivos e constritivos), assim como em acha graa em soltar pum/
debaixo dgua eu hein gertrude stein?, as palavras pum e debaixo dgua eu hein, por
seus sons voclicos, do o contraponto ao acha graa e gertrude, vrias vezes repetido. Os
contrastes e deslocamentos, portanto, figuram na base fnica, endossando o fator de
estranhamento presente tambm nos nveis conceitual e discursivo do poema.
Nesses textos, recursos como ironia, humor e provocao enredam o leitor numa
atmosfera de desiluso e afastamento, ao mesmo tempo em que empreendem uma exposio
sria do feminino, conduzindo ao posterior efeito de comprometimento por parte do leitor
pelo mecanismo prprio e paradoxal da comunicao potica.
A leitura desses textos, com vistas aos jogos pardicos e dramticos imbricados
neles, dialoga com reflexes sobre identidade de gnero. Nesse sentido, podemos dizer que os
poemas de Anglica Freitas atuam desconstruindo sistemas amplos pr-estabelecidos na
prpria forma de sua potica questionadora e disruptiva. No entanto, o recurso do humor mais
escrachado empobrece a figura da ironia, tornando o efeito do poema mais programtico.
A potica de Ana Cristina Cesar, j na dcada de 70, aborda os esteretipos
ligados ao universo feminino, porm nela uma mistura libertria da revoluo sexual e uma
manuteno irnica dos discursos tradicionais compem uma esttica de encenao e
subverso da fala feminina reduzida a uma tagarelice construda, como j discutido no
captulo 2. No entanto, tal tagarelice subvertida por armadilhas retricas capazes de
$A#
Flores do mais
devagar escreva
uma primeira letra
escrava
nas imediaes
construdas
pelos furaces;
devagar mea
a primeira pssara
bisonha que
riscar
o pano de boca
aberto
sobre os vendavais;
devagar imponha
o pulso
que melhor
souber sangrar
sobre a faca
das mars;
devagar imprima
o primeiro
olhar
sobre o galope molhado
dos animais; devagar
pea mais
e mais e
mais
(ATP,1998, p. 48)
$A$
$A"
escreva e imprima. A suavidade do pea, no final do poema, apenas ameniza o tom que
, verdadeiramente, imperativo e manipulador.
Para finalizar, os elementos arquetpicos do mundo feminino vm como que
enriquecidos por um saber que impe (devagar imponha/ o pulso que melhor/ souber
sangrar). O sangue feminino se ope a pulso (ligado a punho) metfora do vigor masculino.
De forma catalizadora, podemos por fim reconhecer como melhor exemplo da
esttica analisada nesta tese, o que motivou o ttulo, o poema a seguir, ndice bem acabado da
potica de devorao da chamada tagarelice feminina operada por Ana Cristina Cesar:
Conversa de senhoras
No preciso nem casar
Tiro dele tudo que preciso
No saio mais daqui
Duvido muito
Esse assunto de mulher j terminou
O gato comeu e regalou-se
Ele dana que nem um realejo
Escritor no existe mais
Mas tambm no precisa virar deus
Tem algum na casa
Voc acha que ele aguenta?
Sr. ternura est batendo
Eu no estava nem a
Conchavando: eu fao a trplica
Armadilha: louca pra saber
Ela esquisita
Tambm voc mente demais
Ele est me patrulhando
Para quem voc vendeu seu tempo?
No sei dizer: fiquei com o gauche
No tem a menor lgica
Mas e o trampo?
Ele est bonzinho
Acho que mentira
No comea
(ATP, p.48).
$AA
$A%
$A&
Doutora em Estudos da Performance (New York University), Mestre em Histria Social da Cultura (PUC-RJ) e
possui graduao (Bacharelado) em Artes Cnicas (UNIRIO). pesquisadora e professora de Histria da Arte,
Esttica e Teoria do Teatro e Estudos da Performance. Tem experincia na rea de Artes, com nfase em Teatro
e Performance, trabalhando principalmente com os seguintes temas: corpo e arte, teoria da performance,
performance, estudos de gnero, teoria do teatro, teatro brasileiro e crtica teatral. Alm das atividades de
pesquisa e ensino, tem trabalhado extensivamente como tradutora de teatro, produtora cultural, curadora de
eventos e festivais e fotgrafa. autora de "A crtica cmplice - Dcio de Almeida Prado e a formao do teatro
brasileiro moderno". (Fonte: Currculo Lattes) http://www.bv.fapesp.br/pt/pesquisador/105705/ana-bernstein/
$AD
$AN
$AC
analisado como possvel esquete de uma performance solo autobiogrfica. Ser comparada
depois ao trabalho da artista Finley e anlise de sua obra feita por Bernstein (2001). Eis o
texto de Luvas de Pelica, talvez o responsvel pelo ttulo do livreto:
Num minuto vou passar para vocs vrios cartes postais belos e brilhantes.
Esta a mala de couro que contm a famosa coleo.
Reparem nas minhas mos, vazias.
Meus bolsos tambm esto vazios.
Meu chapu tambm est vazio. Vejam. Minhas mangas.
Viro de costas, dou uma volta inteira.
Como todos podem ver, no h nenhum truque, nenhum alapo escondido,
nem jogos de luz enganadores.
A mala repousa nesta cadeira aqui.
Abro a mala com esta chave-mestra em cerimnias do tipo, se me permitem
a brincadeira.
A primeira coisa que encontramos na mala, por cima de tudo, adivinhem
um par de luvas.
Ei-las.
Pelica.
Coisa fina.
Visto as luvas mo esquerda... mo direita... corte... perfeito.
(...)
A valise de couro conter objetos de toucador? No, meus amigos.
Como todos podem ver mediante uma ligeira rotao que fao na cadeira
sobre a qual ela se encontra, a valise contm apenas papel... cartes...
dezenas, talvez centenas de cartes postais. Estranha valise!
E agora, ateno.
Com minhas mos enluvadas um momento enquanto abotoo uma... e
depois outra cuidadosamente... no h fraude... ajusto os punhos, assim... e
agora com estas mos, ao acaso, apanho o primeiro carto postal, que
contemplo por um instante sob a luz... h um reflexo ...mas vejo aqui uma
moa afogada entre os juncos... passo o primeiro carto, por favor passem
uns para os outros... segundo carto: a Avenida Atlntica... vo passando...
cadilaque em Acapulco... Carmem... Centro Pompidou... igreja no
Alabama... castelo visto do levante... dois cupidos de culos escuros...
(...)
Vo lendo, vo lendo, a maioria est em branco mesmo, com licena.
Eu preciso sair mas volto logo.
Um cisco no olho, um pequeno cisco; na volta continuo a tirar os cartes da
mala, e quem sabe, quando o momento for propcio, conto o resto daquela
histria verdadeira, mas antes de sair tiro a luva, deixo aqui no espaldar desta
cadeira.
$AB
$%#
CONSIDERAES FINAIS
No decorrer desta pesquisa, buscamos uma aproximao com o texto de Ana Cristina
Cesar que difere um pouco das abordagens que tm sido dadas a ele no decorrer dos ltimos
anos. Objeto hoje de teses acadmicas, ensaios e antologias, alm de sua recolocao no
mercado editorial por meio do volume nico Potica (2013), da Companhia das Letras, a
obra de Ana Cristina sempre celebrada como manifestao de destaque na poesia brasileira,
caso nico, distante at, se considerados o nvel de conscincia criadora e as relaes
intertextuais que pratica, dos seus companheiros de gerao.
Nesse ponto, exemplificamos com um dos trabalhos de Malufe (2006), que traz a
proposio de um texto louco, conforme podemos ler a seguir:
142
transforma num continuum sua escrita fragmentria, podendo, a partir da, ser lida como um
todo significante, atualizado a cada leitura mas guardando suas linhas fundamentais.
Juste-se a isso o fato de que o projeto literrio de Ana Cristina Cesar - ao que parece,
consciente de sua imagem e de sua assinatura - inseriu e problematizou na prpria urdidura da
obra, por meio dos procedimentos de performance autobiogrfica, o interesse briograflico de
um certo tipo de leitor, flagrado, inserido e subvertido em sua potica capaz de enredar os
jogos com a biografia na discusso profcua da subjetividade literria e da identidade feminina
frente literatura.
143
apagamento dos rastros do sujeito emprico do escritor em favor de uma estrutura aberta que,
principalmente por conta de uma constante ironia, atua como simulacro de um discurso
confessional e assim o subverte, apontando com perspiccia seus limites (cf. JUSTINO,
2006).
Em paralelo utilizao das frases feitas, imagens kitsch e mais uma srie de
elementos que podem ser considerados como rudos em relao ao discurso potico, uma
escrita de originalidade se projeta, com imagens certeiras e refinado dilogo com a tradio, o
que leva ao descolamento final da escrita de Ana Cesar tanto dos gneros parodiados em sua
prpria obra como da dico mais casual da prpria gerao marginal com a qual ela
identificada.
A leitura cuidadosa, buscando uma potica, comprovou que a autora usava como
matria-prima os arqutipos da linguagem feminina, tais com a tagarelice, o universo dos
dramas passionais, o abuso dos segredinhos ntimos e dos vocativos (com a funo ftica de
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manuteno do vnculo com o leitor) e da quebra da lgica do discurso racional para causar o
efeito de um estilhaamento de vozes, na montagem de uma retrica do escrever como
mulher para questionar o lugar da mulher frente grande literatura.
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