TURNER, Victor. O Processo Ritual, Estrutura e Antiestrutura.
TURNER, Victor. O Processo Ritual, Estrutura e Antiestrutura.
TURNER, Victor. O Processo Ritual, Estrutura e Antiestrutura.
COLEQAO
O PROCESSO
RITUAL
ANTROPOLOGA
Estrutura e Antiestrutura
Orientafo de:
Vctor W. Turner
Unversldade de Chicago
Tradufo de
Nancy Campi de Castro
FICHA CATALOGRAFICA
T853p
Turner, Vctor W.
O Prooesso Ritual: estrutura e anti-estrutura;
tradugo de Nancy Campi de Castro. Petrpolis,
Vozes, 1974.
245p. ilust. 21cm (Antropologa, 7).
Do original ingls: The ritual process.
1. Ritos e cerimnias. 2. Ritos e cerimSnias
Zambia. 3. Ndembu (tribo africana) Aspectos
antropolgicos. 4. Etnologa Zambia. I. Ttulo.
II. Serie.
74-0360
CDD-301.2
301.296894
CDU-39
39(689.4)
PETRPOLIS
EDITORA VOZES LTDA.
1974
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IntroduQo
Edigo Brasileira
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I
interins reflexivos entre as posiges bem definidas e os dominios
das estruturas sociais e sistemas culturis. Poder-se-ia dizer que
no clculo do socio-cultural, a "communitas" e a liminaridade
representan! os zeros e os mnus sem os quais nao possvel
a um grupo social computar ou avaliar sua situago atual ou
seu porvir num futuro calculvel.
A dialtica estrutura / antiestrutura , na minha opinio, um
universal cultural que nao deve ser identificado com a relago
entre cultura e natureza, ponto importante do pensamento de
Claude Lvi-Strauss. Enquanto a "communitas" um relacionamento entre seres humanos plenamente racionis cuja emancipago temporaria de normas scio-estruturais assunto de escolha
consciente, a liminaridade muitas vezes, ela prpria, um artefato (ou "mentefato") de ago cultural. O drama da estrutura
e antiestrutura termina no palco da cultura. Este fato me animou a passar do estudo das culturas tribais para as que
possuam grandes tradiges no campo das letras. As pessoas da
floresta, do deserto e da tundra reagem aos mesmos processos
como as pessoas das cidades, das cortes e dos mercados. As
revoluges e reformas podem ser estudadas empregarido-se a
msma terminologa que se usa para o estudo dos produtos
(outputs) culturis das grandes e estveis civilizages. O Processo Ritual urna tentativa de compreender algo desse processo
social total de interago e interdependencia, bem como das disjunges, as vezes frutuosas, entre acontecimentos ordenados donde
se origina o pensamento independente.
VCTOR TURNER
Chicago, malo de 1974
Introdugo
ALFRED HARRIS
Departamento de Antropologa
Universidade de Rochester
Prefacio
r
Sumario
116
5.
HUMAN1DADE
E HlERARQUIA. A
10
LIMINARIDADE DA
11
14
sobre os mitos e rituais das sociedades pr-letradas, captou, assim afirma ele, na estrutura intelectual subjacente
dessas sociedades propriedades similares quelas encontradas nos sistemas de determinados filsofos modernos.
Muitos outros estudiosos e dentistas, da mais impecvel
estirpe racionalista, desde a poca de Morgan, acharam
que valia a pena dedicar dcadas inteiras de sua vida
profissional ao estudo da r e 1 i g i o. Basta citar Jfepenas Tylor, Robertson-Smith, Frazer e Herbert Spencer;
Durkheim, Mauss, Lvy-Bruhl, Hubert e Herz; van
Gennep, Wundt e Max Weber, para confirmar o que
digo. Trabalhadores de campo em antropologa, incluindo Boas e Lowie, Malinowski e Radcliffe-Brown, Griaulle
e Dieterlen, e um grande nmero de seus coetneos e
sucessores, trabalharam intensamente na rea do ritual
pr-letrado, fazendo observaces meticulosas e exatas sobre centenas de atos, e registrando com dedicada atenco
textos vernculos de mitos e preces, tomados de especialistas em religio.
A maioria desses pensadores tomou a si a implcita
posigo teolgica de tentar explicar, ou invalidar por
meio de explicares, os fenmenos religiosos, considerando-os produto de causas psicolgicas ou sociolgicas
dos mais diversos, e at confutantes, tipos, negando-lhes
qualquer origem sobre-humana; mas ningum negou a
extrema importancia das crencas e prticas religiosas
para a manutencao e a transformaso radical das estruturas humanas, tanto sociais quanto psquicas. Talvez o
leitor se sinta aliviado eom a declaraco de que nao tenho
a inten?o de penetrar na arena teolgica mas me esfor?arei, tanto quanto possvel, em limitar-me a urna pesquisa emprica de aspectos da religio e, de modo particular, em descobrir algumas das propriedades do ritual
africano. Mais exatamente, tentare!, com temor e tremor,
devidb minha alta estima por sua grande erudieo e
reputago em nossa disciplina, opor-^me rao ocasional desafio de Morgan a posteridade, e demonstrar que os
modernos antroplogos, trabalhando com os melhores instrumentos conceptuis legados a eles, podem agora tornar
16
Comecemos pelo atento exame de alguns rituais executados pelo povo em cujo meio fiz um trabalho de campo
durante dois anos e meio, o povo ndembo, do noroeste
de Zmbia. Tal como os iroqueses de Morgan, o povo
ridembo rnatnlinear, e combina a agricultura de enxada
com a ca?a, qual atribuem alto valor ritual. O povo
ndembo pertence a um grande conglomerado de culturas
da frica Central e Ocidental, que associam considervel
habilidade na escultura em madeira e as artes plsticas
a um complicado desenvolvimento do simbolismo ritual.
Muitos desses povos tm ritos complexos de iniciaco,
com longos perodos de recluso na floresta, para treinamento de novaos em costumes esotricos, freqentemente associado presen?a de dancarinos mascarados,
que retratam espirites dos ancestrais ou deidades. Os
ndembos, juntamente com seus vizinhos do norte e do
oeste, os lundas de Katanga, os luvales, os chokwes e
os luchazis, do grande importancia ao ritual; seus vizinhos do leste, os kaondes, os lambas e os Has, embora
pratiquem muitos rituais, parecem ter menos variedades
distintas de ritos, um simbolismo menos exuberante, e
to possuem cerimnias de circunciso dos, meninos.
.uas diversas prticas religiosas sao menos estreitamente
unidas urnas as outras.
Quando iniciei o trabalho de campo entre os ndembos,
t'iabalhei dentro da tradico estabelecida por meus preaecessores, na utilizacao do Instituto Rhodes-Livingstone
Para Pesquisa Sociolgica, localizado em Lusaka, capital
administratva da Rodsja do Norte (atual Zmbia), Este
rf- ma's an*'g instituto de pesquisa estabeleeido na
a-ica britnica, fundado em 1938, destinado a ser um
'^ ' onde problema do estabelecirnento de relaces
permanentes e satisfatrias entre nativos e nao-nativos
JTenho-me detido nesta "ausencia de musicalidade relifgjosa" (para fazer uso da expresso que Max Weber
,.aplicpu a si mesmo, bastante injustificadamente) dos
fpntistas sociais de minha gerago a respeito dos estu||K.S religiosos, principalmente para sublinhar a relutncia
4e
sent, no inicio, em coligir dados sobre os ritos.
s prirrieiros nove meses de t r a b a l h o de campo,
19
acumulei considerveis quantidades de dados sobre parentesco, estrutura da aldeia, casamento e divorcio, orgamentos individuis e familiares, poltica tribal e de aldeia,
e sobre o ciclo da agricultura. Preenchi meus cadernos
de anotagoes com genealogas; tracei as plantas das
chocas da povoagao e coletei material de recenseamento;
vagueei pelos arredores para conseguir termos de parentesco raros e descuidados. Sentia-me, no entanto, insatisfeito, como se estivesse sempr do lado de fora lhando
para dentro, mesmo quando passei a fazer uso do vernculo sem nenhuma dificuldade. Isto porque percebia
constantemente o batuque dos tambores do ritual na vzinhanga do meu acampamento, e as pessoas que conhecia despediam-se freqentemente de mim para passar
dias assistindo a ritos de nomenclatura extica, tais
como kula, Wubwang'u, e Wubinda. Finalmente, fui
forgado a reconhecer que, se de fato pretenda conhecer
o que significava at mesmo um mero segmento da cultura ndembo, teria de vencer meus prprios preconceitos contra o ritual e comegar a investig-lo.
E' verdade que ja no inicio de minha estada entre
os ndembos tinha sido convidado por eles para assistir
as freqentes realizares dos ritos de puberdade das
mofas (Nkang'a), e tentara descrever o que hvia visto
com a exatido possvel. Mas urna coisa observar as
pessoas executando gestos estilizados e cantando caneces
enigmticas que fazem parte da prtica dos rituais, e
outra tentar alcangar a adequada compreensao do_que^
os movimentos e as palavras significam para e/as) Para
obter esclarecimientos recorr inicialmente a Agenda Distrital, urna cmpilago de apontamentos feitos ao acaso
pelos oficiis da Administrago da Colonia sobre faros
costms que Ins parteceram interessantes. La encntrei breves relatos sobre crnga dos ndembos em um
Deus Supremo, hi espritus ancestrais e sobre diferentes
especies de ritos. Alguns errri relatos de crirrtnias
realmente assistidas, mas a maioria deles era bascada
em informagoes d embregados do governo local, tais
como mensageirbs e funcionarios de origen! ndembo.
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'Ejes, entretanto, difcilmente forneciam explicages satisfatrias sobre os longos e complicados ritos referentes
i puberdade que tinha visto, embora me tenham dado
agumas informages preliminares relativas a outras especies de ritos que eu anda nao tinha visto.
'' Meu prximo passo fi conseguir urna serie de entrevistas com um chefe chamado Ikelenge, excepcionalfinte bem dotado e que possua um slido conhecimento
a lngua inglesa. O chefe Ikelenge logo entendeu o que
u quera e deu-me um inventario dos nomes mais importantes de rituais ndembos, com um breve relato sobre
:
|s principis caractersticas de cada um deles. Logo desIfebri que os ndembos nao s ressentiam, absolutamente,
eom o interesse de um estrangeiro por seu sistema ritual,
e estavam perfeitamente. preparados para admitir a presenga em suas celebragoes de qualquer pessoa que traHsse as crengas deles com o devido respeito. Pouco
tempo depois o chefe Ikelenge convidou-me a assistir
e'xecugo de um ritual pertencente ao culto dos cagadores
eferh armas de fogo, Wuyang'a. Durante essa execugo
eliftpreendi que ao menos um conjunto de atividades
<@fnmicas, a saber, a caga, dificilmente seria entendido
s
||Jn a aquisifao do idioma ritual pertinente caga. A
a|umulagao dos smbolos, simultneamente indicativos do
ff er ^e ca?ar e da virilidade, deu-me tambm a enten;;
d^ varias caractersticas da organizagao social ndembo,
fpeeialmente a acentuagao da importancia dos elos con^flIPprnes entre os parentes masculinos nutria sociedade
^trilnear, cuja continuidade estrutural era feita atravs
fff mulheres. Nao quero deter-me agora no problema
^|>Mtualizago do papel dos sexos, mas apenas salienf
j|! Q'ue certas, regularidades observadas na anlise dos
'"pifos numricos,, tais eomo genealogias da aldeia, rei|teamentos e registros sobre a sucessao nos cargos e
|ff jeiian?a de.propriedades, so se tornavam plenamente
*S^K301'Ve
'S a 'uz ^e va'ores encarnado se expressos em
"If ?5 as cerimnias rituais. .
t3via lmites, contudo, para o auxilio que o chefe
^nge estava capacitado a oferecer-me. Em primeiro
> r- sua posigo e os mltiplos papis inerentes a ela
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impediam-no de deixar a aldeia principal por muito tempo e .suas relaces com a misso local, de importancia
poltica para ele, eram excessivamente delicadas, numa
situaao em que os mexericos espalhavam as novidades
com toda a rapidez, nao Ihe permitindo o luxo de assistir a muitas cerimnias pagas. Alm disso, minha prpria
pesquisa estava rpidamente se transformando numa investigac.o microssociolgica do processo evolutivo da vida
da aldeia. Mudei meu acampamento da capital do 'chefe
para um conglomerado de aldeos comuns. Ali, com o
passar do tempo, minha familia veio a ser aceita mais
ou menos como urna parte da comunidade local, e, com
os olhos abertos para a importancia do ritual na vida
dos ndembos, minha mulher e eu come?amos a perceber
muitos aspectos da cultura ndembo que tinham sido previamente invisveis para nos por causa de nossos antoIhos tericos. Como disse Nadel, olfatos mudam com as
teoras, e novos fatos produzem teoras novas.
Foi mais ou menos nessa poca que li algumas
observares no segundo artigo publicado pelo Instituto
Rhodes-Livingstone, The Study of African Society, escrito,
por Oodfrey e Monica Wilson (1939), no sentido de que,
em muitas sociedades africanas onde o ritual anda
um assunto de importancia, ha um certo nmero de
especialistas religiosos aptos a interpret-lo. Mais tarde!
Monica Wilson (1957) escreveria que "qualquer anlise
que nao se baseasse em alguma tradu9o dos smbolos
usados pelo povo daquela cultura estara exposta a sus'
peitas" (p. 6). Comecei, entao, a procurar especialista:
em ritual ndembo, para gravar textos interpretativos for
necidos por eles sobre ritos que pude observar. Noss
liberdade de acesso as execufes e a exegese foi, sen
dvda, ajudada pelo fato de que, tal como acontece cort
a maior parte dos antroplogos em trabalho de campo
distribuamos remedios, enfaixvamos ferimentos, e, n<
caso de minha mulher (que filha de mdico e mai
corajosa nestes assuntos do que eu), injetvamos sor<|
em pessoas mordidas por cobras. Urna vez que muito|
dos cultos rituais dos ndembos sao realizados em favo1
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representases espontneas. Urna de nossas maiores dificuldades era freqentemente decidir, em determinado
da, a qual de duas ou mais execuc.5es assistiramos. A
medida que nos tornvamos cada vez mais parte do
cenado da aldeia descubrimos que com grande freqncia as decises de executar o ritual estavam relacionados
com crises na vida social das aldeias. Escrevi albures,
com minucias, sobre a dinmica social das cerimnias
rituais, e nao pretendo fazer mais do que urna men?o
passageira a elas nestas conferencias. Aqui lembrarei apenas que, entre os ndembos, existe urna conexo estreita
entre conflito social e ritual, nos nveis de aldeia e "vizinhanca" (termo que emprego para designar agrupamentos descontinuos de aldeias), e que a multiplicidade de
situaces de conflito est correlacionada com urna alta
freqneia de execuc.6es rituais.
V"
atribuido cuja acepco remonta a alguma palavra primitiva, ou timo, muitas vezes um verbo. Os estudiosos
rnostraram que em outras sociedades bantos este freqentemente um processo de estabelecer urna etimologa
ficticia, dependente da similaridade do som mais que da
derivacao a partir de urna origem comum. Nao obstante,
para o prprio povo o processo constitu parte da "explicacao" de m smbolo ritual; e aqui estamos empenhados em descobrir "a viso interior ndembo", o modo
cmo os ndembos sentem seu prprio ritual e o que
pensam a respeito dele.
Meu principal objetivo neste capitulo explorar a semntica dos smbolos rituais no soma, um ritual dos
ndembos, e construir, a partir de dados exegticos e de
observado, um modelo da estrutura semntica desse simbolismo. Primeiramente, preciso- prestar multa atenc.o
ao modo pelo qual os ndembos explicam seus prprios
smbolos. Meu procedimento consistir em comec.ar pelos
aspectos particulares e chegar generalizado, dando
conhecimento ao leitor de cada passo ao longo do caminho percorrido. Irei agora examinar de perto urna
especie de ritual que observe! em tres ocasies e para
o qual tenno urna quantidade considervel de material
interpretativo. Espero a indulgencia do leitor para o fato
de ter que mencionar um grande nmero 'de termos
vernaculares ndembos, porque urna importante parte da
explicac.o dos smbolos dada pelos ndembos baseia-se
nq estudo de etimologas de folk. A significagp de um
dado smbolo muitas vezes, embora de modo algum
invariavelmente, derivada pelos ndembos do nome a ele
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25
ISOMA
Ku-tumbuka, urna dan?a festiva, para celebrar o afastarnento da interdigo da sombra e a volta da, candidata
vida normal. No Isoma, isto assinalado 'quando a
candidata da luz urna crianza e chega a cri-la at
o estgio dos primeiros passos.
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A mscara "Mvweng'i"
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O nome "Isoma"
'
Kako nkaka eyo nkaka eyo nkaka yetu nenzi, eyo eyo, nkako
yetu, mwanta:
"Av, av, nosso av chegou, nosso av, o chefe;"
mbwemboye mbwemboye yawume-e.
"a glande do penis, a glande est seca,
mwang'u watulemba mbwemboye yawumi.
urna disperso dos espirites tulemba, a glande est seca".
A cantiga representa para os ndembos urna concentraco do poder masculino, porque nkaka tambm significa
"um possuidor de escravos", e um "chefe" possui muitos
escravos. A secagem de glande um smbolo da aquisigo .
de um auspicioso "status" masculino de adulto e urna das
finalidades dos ritos de circunciso Mukanda, porque a
glande de um menino nao circuncidado considerada
mida e podre e portante de mau agouro, dentro do prepucio. Os espirites tulemba, exorcizados e aplacados em
outro tipo de ritual, fazem as crianzas adoecerem e definharem. Mvweng'i expulsa-os dos meninos. Acredita-se
que as cordas do seu traje sirvam para "amarrar" (kukasila) a fertilidade feminina. Em resumo, ele o smbolo da masculinidade amadurecida na sua mais pura expressao e seus atributos de cac.a acentuam mais isto
e, como tal, perigoso para as mulheres no seu papel
mais feminino, o de me. Ora, na figura de Mvweng'i
que a sombra aparece vtima. Mas aqui ha certa ambigidade de exegese. Alguns informantes dizem que a sombra se identifica com o Mvweng'i, outros, que a sombra
(mukishi) e o mascarado (ikishi) operam em conjunto.
Os ltimos dizem que a sombra desperta o Mvweng'i e
atrai seu auxilio para afligir a vtima.
E' interessante notar que a sombra sempre o espirito
de urna prenla morta, enquanto o Mvweng'i como a
masculinidade personificada. sse motivo que estabelece
a ligaso do disturbio reprodutivo com a identifica?o de
urna mulher a um tipo de masculinidade, encontrado
em outros pontos do ritual ndembo. Ele foi mencionado
por mim em conexao com os ritos de cura de perturba?5es menstruais, em The Forest of Symbols (1967): "Por
que, ento, a paciente identificada com derramadores
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33
As finalidades do Isoma
Entre as finalidades implcitas do Isoma incluem-se a
restaurado da correta relaco entre matrilinearidade e
casamento, a reconstrufo das relages "conjugis entre
mulher e marido e finalmente a fertilidade da mulher, por
conseguinte do casamento e da linhagem. Conforme os
ndembos explicam, a finalidade explcita dos ritos est
em dissipar os efeitos daquilo que chamam chisaku. Em
sentido lato, chisaku indica "infortunio ou doenca, devidos ao descontentamento das sombras ancestrais ou a
quebra de um tab". Mais especficamente, indica tambm urna maldico proferida por urna pessoa viva para
39ular urna sombra, podendo incluir remedios especialmente feitos para causar danos a um inimigo. No caso
do Isoma, o chisaku de qualidade especial. Acredita-se
que um prente matrilinear da vtima tenha ido at a
nascente (kasulu) de um riacho situado na vizinhanca
da aldeia de seus parentes maternos, e la tenha rogado
urna praga (kumushing'ana) contra ela. O efeito desta
praga "despertar" (ku-tonisha) urna sombra que tenha
sido outrora membro do culto Isoma. Como disse um
informante (e traduzo literalmente): "No Isoma eles degolam um galo vermelho. Isto representa o chisaku, ou
a desgra9a em virtude da qual as pessoas morrem e deve,
ent, desaparecer (chisaku chafwang'a anta, chifumi).
O chisaku morte, que nao deve acontecer paciente;
doenc.a (musong'u), que nao deve vir para ela; sofrimento (ku-kabakana), e este sofrmente vem do rancor
(chtela) de um feiticeiro (muloji). Urna pessoa que
amald9oa outra com a morte tem um chisaku. O chisaku
proferido junto fonte de um rio. Se urna pessoa passa
por la e pisa nela (ku-dyata) ou cruza por sobre ela
(ku-badyika), a m sorte (malwa) ou o insucesso (kuhalwa) a acompanharo em qualquer lugar para onde for.
Adquirida naquele lugar, na fonte do riacho, e deve ser
tratada (ku-uka) la. A sombra do Isoma surgiu como
resultado desta praga, e vem sob a forma do Mvweng'i".
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Superficie muito escorregada, fazendo os trepadores escorregarem com facilidade (ka-selumuka) e cair. Do mesmo modo, os filhos da paciente tiveram a tendencia a
"escorregar" prematuramente. Mas o "polimento" (ksenena) dessa rvore tambm tem valor teraputico e este
lado de sua significado importante em outros ritos e
tratamentos, porque seu uso faz com que a-"doenga"
(musong'u] escorregue da paciente.4 E', de fato, comum
que os smbolos dos ndembos, em todos os nveis de
simbolismo, expressem simultneamente um estado auspicioso e outro nao-auspicioso. Por exemplo, o prprio
nome Isoma, significando "escorregar", representa ao
mesmo tempo estado indesejvel da paciente e o ritual
para cur-lo.
Aqu encontramos outro principio ritual, expresso pelo
termo ndembo ku-solola, "fazer aparecer, ou revelar".
Aquilo que se torna sensorialmente perceptvel na forma
:de um smbolo (chijikilu) pass a ser, desse modo^ aessvel aco propositada da sociedade, operando atravs
de seus especialistas religiosos. E' o "oculto" (chamusweka) que "perigoso" ou "nocivo" (chafwana). Assim,
dizer o nome de um estado nao-auspicioso ja meiocaminho para remov-la. Corporificar a aco invisvel de
feiticeiros e sombras em um smbolo visvel ou tangvel
um grande passo no sentido de remedi-la. Isto nao
est muito longe da prtica do moderno psicanalista.
Quando algo apreendido pelo espirito, quando se torna
um objeto capaz de ser pensado, pode- ser enfrentado
e dominado. E' ineressante notar que o prprio principio da revelacao est corporificado num smbolo medicinal ndembo, usado no Isoma. E' a rvore musoli (cujo
nome deriva, segundo os informantes, de ku-solola), da
qual sao tiradas tambm as folhas e pedafos da casca.
Ela largamente usada no ritual ndembo, estando seu
nome ligado as suas propriedades naturais. Produz grande quantidade de pequeos frutos, que caem no chao
e atraem para fora do esconderijo varias especies de
animis comestveis que podem, entao, ser morios pelo
4
'
-'
43
pala (Anthodeista species) o nome da especie medicinal seguinte e urna vez mais temos a representado do
estado nao-auspicioso da paciente. Os ndembos derivam
seu nome de kupapang'ila, que significa "perambular confusamente", em que a pessoa saiba onde est. Um informante explica-o do seguinte modo: "Urna mulher vai,
de um lado para outro, sem ter filhos. Nao deve fazer
isto. E' por esta razo que talhamos o remedio mupapala". Por tras dessa idia e da idia de "escorregar" >'
est a nogo de que bom e apropriado que as coisas
se fixem no lugar adequado e as pessoas fac.am o que
Ihes conveniente fazer na sua fase da vida e segundo
sua posico na sociedade.
Em outra representa?o do soma, o remedio principal, ou smbolo dominante, nao foi urna rvore de especie
particular, mas qualquer rvore cujas razes estivessem
totalmente expostas a vista. Tal rvore chamada wuvumbu, derivada do verbo ku-vuntbuka, significando
"estar desenterrado e sair do esconderijo", como, por
exemplo, um animal cacado. Assim, um informante esbocou o significado dla dizendo o seguinte: "Usamos
a rvore wuvumbu para trazer qualquer coisa superficie. Do mesmo modo, tudo no soma deve ser claro"
(-lumbuluka). Trata-se de outra variante do tema da
"revelado".
Os remedios fros ou quentes
Abertura da Morte e da Vida
As vezes, urna porc.o de madeira retirada de urna
rvore podre cada. Esta, mais urna vez, representa
musong'u da paciente ou seu estado de doenga, de tormento. Equipados com esse arsenal de remedios revigorantes, fecundadores, reveladores, clarificantes, doadores
de sade e fixadores, alguns dos quais, alm disso, representam a especie de padecimento da paciente, os peritos voltam ao lugar sagrado, onde o tratamento ser
feito, Completam agora os preparativos qu cftierem
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qele espago consagrado sua estrutura visvel. As oIhas e os fragmentos de casca medicinis sao triturados
por urna especialista do sexo 'fmininb num almofariz
destinado ao preparo de refeic.es. Sao, ern seguida, moIhados com agua e o remedio liquefeito dividido em
duas porcoes. Urna dlas colocada num grande e
grosso pedaco de csea (ifurivu), o dentro de um caco
de lou?a de barro (chizand), sendo ento aquerida no
fogo aceso exatamente do lado de fora do buraco cavado atravs da entrada da toca da ratazana gigante
ou do tamandu. A outra p o r c o derramada 'fra
dentro de um izawu, termo que se refere tanto a um
vaso de barro quanto a urna gamela para remedio, ou
dentro de urna cabaca quebrada, sendo esta colocada
perto da "nova cavidade" (veja-se a Figura 1). Segundo um informante, as cavidades representan! "sepulturas"
(iulung'a) e poder procriativo (lusemu), em outras palavras, tmulo e tero. O mesmo informante continua:
"A ikela (cavidade) do calor a ikela da morte. A ikela
ira vida. A ikela. da ratazana a ikela da desgraca
ou rancor (chisaku). A,ikela nova a ikela do, fazer
bem (kuhandish) ou da cura. Urna ikela localiza-se
|na nascente de um riacho ou perto, dla; representa
'jisemu, a capacidade de p r o c r i a r. A nova ikela deve
soprar para longe da paciente ,(muyeji). Desta maneira
as coisas ruins a abandonarao. O crculo de rvores quebradas um chipang'u, [Este um termo com mltiplos
significados que representa (1) um cercado; (2) um
cercado ritual; (3) um patio cercado, ao redor da morada do chefe e da cabana dos remedios; (4) um crculo ao redor da la]. A mulher com lufwisha [isto ,
que perdeu tres ou quatro crianzas natimortas ou por
mortalidade infantil] 'deve entrar no buraco da vida e
passar atravs do tnel para o buraco da morte. O mdico mais importante asperge-a com o remedio fri, enguanto seu assistente borrifa-a com o remedi quete".
45
<><^> Mscente
<^*<^> do rio
Remedio fri
Kuhandisha
IKELA DA VIDA
OU DA SADE
Peritos
do sexo
masculino
Peritos
do sexo
feminino
Tnel
Fogueira das
mulheres
Fogueira dos
homens
Chisaku
IKELA DA MORTE
OU DA FEITIQARIA
Galo vermelho
FIGURA 1. Isoma: a cena do ritual. O casal a ser tratado sentase na cavidade "quente" de um tnel, representando a passagem da morte para a vida. Um mdico cuida do fogo medicinal
situado atrs do casal. Urna cabaca de remedios frios est
colocada em frente da cavidade "fria", podendo-se ver a entrada
do tnel. Os mdicos esperara ai os pacientes surgirem.
46
\
\
Toca
do animal
(obstruida)
Remedio quente
do outro lado do
fogo
Cerca
/
/
/
tr
2. soma: a paciente segura a franga branca de encono ao seio esquerdo, representando o lado da amamentago.
49
4#:"
&;
FIGURA 3. Isotna: o mdico, ao lado da cabaga, borrifa os pacientes com remedio, enquanto os homens ficam de pe, do lado
direito do eixo longitudinal do tnel, cantando a canfo "ondulante", kupunjila.
50
*;-<;,
51
r
,f;:
53
lif^l^il
Toca/nova
ca
vidade
Sepultura/
{
ertilidade
te/vida
Mor
es
gra?a
quente/
pnmdo fri
o/ausencia
f
an
54
Latitudinal
Altitudinal
Fogueira da
esquerda/fogueira
da direita
Mulheres/homens
superficie inferior/
superficie superior
Paciente/marido
da paciente
razes cultivadas/
remedios do mato
Franga branca/
galo vermelho
Animis/seres
humanos
us/vestidos
gO
Candidatos/peritos
Razes medicinis/
folhas medicinis
Sombras/seres vivos
Franga branca/galo
vermelho
vermelho/
8a branca
55
57
SITUACAO E CLASSIFICACAO
Em outros tipos de contextos rituais, outras elassifica?6es sao aplicveis. Assim, em ritos de circunciso
masculina, as mulheres e os atributos femininos podem
ser considerados desfavorveis e maculadores. A situa930 porm se inverte nos ritos de puberdade das mocas.
O que realmente necessrio para a cultura ndembo e,
na vrdade para qualquer outra, urna tipologa das
situares culturalmente reconhecidas e estereotipadas, na
qual os smbolos utilizados sejam classificadps de acord com a estrutura visada da situacao particular, Nao
existe urna nica hierarquia de classificacao que possa
ser considerada capaz de abranger todos os tipos de
sltaces. Pelo contrario, ha diferentes planos de classificago, que se entrecruzam uns com os outros, nos
quais os pares binarios constitutivos (ou rubricas tridicas) acham-se l i g a d o s so temporariamente. Por
exemplo, em determinada situago a distinc.p vermelho/
branco pode ser homologa a masculino/feminino, em
outra, a feminino/masculino, e, ainda m, outra a carne/
frinha, sem conotacao sexual.
Smbolos nicos podem, sem dvida, representar os pontos de interconexo entre planos' separados de classificaco. Deve ter sido notado que, no Isom, a posigo
galo vermelho/franga branca aparece em todas as tres
colunas. No plano vida/morte, a franga branca igualase vida e fertilidade, em oposic.o ao galo vermelho,
que se iguala morte e feitigaria; no plano direita/
esquerda, o galo masculino e a franga, feminiro; e
no plano acima/abaixo, o galo est cima, pois ser
usado como "remedio" (yitambu), derramado d cima
para baixo, enquanto a franga est abixo, urna vez
que se liga de perto com a paciente que est sendo
medicada, como a crianga me. Isto conduz ao pro- \
blema da "polissemia", ou multivocidade de muitoSi
sa
59
Planos d classificaco
cimento. (Abordei o assnto em outra parte, com.algumas minucias por exemplo, 1967, p. 28-30, 54-55).
Como sao encontrados no Isoma, os smbolos e suas
relances nao sao somente um conjunto de classificac.5es
cognoscitivas para estabelecer a o r d e m no universo
ndembo. Sao tambm, e talvez de modo igualmente importante, um conjunto de dispositivos evocadores para
despertar, canalizar e domesticar emoc.5es poderosas
tais como odio, temor, afeic.o e tristeza. Esto tambm
imbuidos de motivac.5o e tm um aspecto "volutivo".
Numa palavra, a totalidade da pessoa e nao so o "espirito" dos ndembos, acha-se existencialmente implicada as questes da vida e da morte a que se refere
o Isoma.
Finalmente, o Isoma nao "grotesco", no sentido
de que seu simbolismo seja caricato ou incongruente.
Cada elemento simblico relaciona-se com algum elemento emprico de experiencia conforme claramente revelam as interpretac.5es indgenas dos remedios vegetis.
Do ponto de vista da ciencia do sculo XX podemos
achar estranho que os ndembos julguem que, colocando
certos objetos dentro de um crculo de espac.0 sagrado,
tragam com eles os poderes e virtudes que parecem empricamente possuir, e que, ao manipul-los da maneira
prescrita, podem a r r u m a r e concentrar tais poderes,
quase como se fossem feixes lser, para destruir forjas
malignas. Mas, dado o limitado conhecimento da idia
de causalidade natural transmitido na cultura ndembo,
qum duvidar que em circunstancias favorveis o uso
desses medicamentos pode produzir considervel beneficio psicolgico? A expresso simblica do interesse de
grupo pelo bem-estar de urna mulher infeliz, reunido
mobilizago de um conjunto de coisas "boas" em favor
dla, bem como a associac.o do destino individual corn
smbolos dos processos csmicos da vida e da morte
isto tudo, na realidade, se apresentar para nos como
algo meramente "ininteligvel"?
60
Os Paradoxos da Gemelaridade
no Ritual Ndembo
!
ANALISEI
NO
PRIMEIRO
CAPTULO UM TIPO
DE RITUAL
61
63
65
A finalidade dos ritos dos nyakyusas livrar os gmeos e seus pais do perigoso contagio de sua condicao.
Os pais devem ser tratados com remedios e ritual, a fim
de que, da por diante, gerem urna so crianza em cada
nascimento, nao podendo mais afetar os vizinhos com
a doenca mstica. Entre os nyakyusas e outras sociedades bantos, tais como os sukus, do Congo, sobre cujos
ritos de gemelaridade Van Qennep (1960) escreveu, e
os sogas, de Uganda (Roscoe, 1924, p. 123), os ritos
de gemelaridade abrangem a comunidade local inteira.
Van Gennep chama a aten?ao para o fato de que, nos
ritos de reintegra?o dos sukus, em seguida um longo
perodo "liminar" durante o qual os gmeos sao solados do= contato com a vida pblica por seis anos,
existe "urna travessia ritual do territorio pertencente
sociedade como um todo e urna (total) repartido de
alimentos" feita pelos aldees (p. 47). Ja fiz menc.ao
do modo pelo qual os ndembos consideram os gmeos
urna carga para a comunidade inteira. Isto pode ser
visto como outro exemplo de urna tendencia social amplamente predominante, seja para tornar aquilo que sai
fora da norma um assunto de interesse para o grupo
mais amplamente reconhecido seja para, destruir o ie. nmeno excepcional. No primeiro caso, o anmalo pode
ser sacralizado e considerado sagrado. Assim, na Europa
66
68
70
um sino duplo de cafa (mpwambu) pelo principal mdico. A finalidade disto "abrir os ouvidos das crianzas
que ainda nao nasceram, a fim de que possam saber que
sao gmeos". O canto e o soar do sino servem tambm
para "despertar as sombras" (ku-tonisha akishi), pois
cada perito do mdico tem urna sombra guardia, que foi
outrora um membro do culto Wubwang'u. Alm disso,
sao encarregados de "despertar" as rvores medicinis,'
as especies com as quais serao preparadas as pocoes e
as loces de remedio Wubwang'u. Sem esses sons estimulantes, acredita-se que as rvores continuariam a ser
meramente rvores; com eles, e mais o acompanhamento
72
73
dos ritos de sacraliza?So, tornam-se poderes mgicamente eficazes, semelhantes as "virtudes" possudas pelas
ervas medicinis na teraputica ocidental.
Em um texto sobre a coleta de remedios, que cito integralmente as pginas 108-110, ha urna passagem que
diz: "Deve haver renovaco (ou urna causa de levantamento) e dispersao daquelas palavras priniitivas (ou
tradicionais) e um corte (de remedios)". Estas "palavras" sao as cancoes e as preces do Wubwang'u e afetam msticamente o corte das plantas medicinis. Encontra-se um exemplo de prece quando o remedio
simblico dominante dos ritos consagrado, isto , a
rvore kata wubkang'u. Primeramente, o profissional
mais velho danga em torno dla em crculo, porque
"deseja agradecer sombra", pois ela a grande rvore da sombra Wubwang'u "grande" no mbito do
ritual, porque todas as rvores que vi tratadas dessa
maneira eram espcimes jovens e delgados. Ento ele
cava um buraco em cima da raiz principal da rvore e
deposita nele os aumentos, enquanto profere a seguinte prece:
cortado e dado a um perito do sexo feminino para carregar. Segundo um conhecedor, "ela volta-se para o
leste, porque tudo vem do leste (kabeta kamusela], onde
o sol nasce; quando algum morre, o rosto virado na
direc,ao do leste, significando que ele nascer outra vez,
mas urna pessoa estril (nsama) ou urna feiticeira (muloji) enterrada com a face para o oeste, a fim de que
morra para sempre". Em resumo, o leste a dirego
auspiciosa e doadora de vida.
Urna libaco de cerveja entao derramada na cavidade sobre os alimentos, a fin de que "as sombras
possam vir comer e beber ali". Em seguida, o mdico
enche de agua, ou de cerveja, e de argila branca pulverizada (mpemba ou tnpeza) e sopra isto sobre os risonhos assistentes dispersos, o que eito em sinal de
bnc.ao. Depois, a paciente posta de pe, encostada
rvore, com o rosto voltado para o leste, enquanto pedacos de casca sao cortados da rvore e postos na cesta
(vejam-se as Figuras 9 e 10), e um ramo frondoso
74
FIGURA 9. Cerimnia dos gmeos: a paciente fica de pe, encostada rvore medicinal, com o rosto voltado para o leste, a
direco do renascimento. O mdico corta porges de casca, com
a machadinha do ritual e langa-as na cesta.
75
^
Iheres fazem jardins no solo rico e preto de aluvio ao
lado dos riachos, e ensopam as razes de mandioca em
poc.as formadas ali por perto. No Wubwang'u, ha urna
rvore "mais velha" separada para o mato, e outra
para o riacho. Kata wubwang'u a rvore "mais
velha" para o mato. O fruto desta rvore dividido
em duas porcSes simtricas, que os ndembos comparam
explicitamente aos gmeos (ampamba ou ampasa). Urna
quantidade de outras rvores da mata seca sao a seguir
visitadas procura de pedacos de casca e de galhos
frondosos. Passo a citar, abaixo, urna lista contendo
os nomes de cada especie, acompanhada de urna abreviada explicafo nativa sobre a razo por que a rvore
utilizada.
Explicaco Ndembo
ESPECIE
Termo Ndembo
1. Kata
Wubwang'u
2. Museng'u
FIGURA 10. Cerimnia dos gmeos: esta figura ilustra a identitificago ritual dos gmeos, neste caso de sexos opostos. O
homem de branco gmeo da paciente que est de costas para
a trepadeira fnolu-wawubwang'u da qual esto sendo cortadas
folhas medicinis. Ele deve ficar perto dla, em cada ato de
cortar medicinal.
A rvore kata wubwang'u, como no soma, conhecida como "a mais velha", ou "o lugar de saudaco",
sendo um smbolo multvoco (isto , que tem multas
acepces). Tal smbolo considerado o lugar crtico de
transico dos modos de comportamento seculares para
os sagrados. No Wubwang'u faz-se clara diferenciago
entre os remedios colhidos na floresta seca (yitumbu
ya mwisang'a) e os apanhados no mato a beira d'gua
(yitumbu yetu). O mato liga-se regularmente ao mesmo
tempo ca9a e virilidade, enquanto as moitas beira
d'gua esto relacionadas com a feminilidade. As mu76
Denominafo
Botnica
Ochna pulchra
3. Mung'indu
Swartzia
madagascariensis
4. Mucha
5. Mufung'u
Parman mobola
? Arisophyllea
boehmii
Hymenocardia
acida
6. Kapepi
- Musoli
Vangueriopsis
lanciflora
Pterocarpus
angolensis
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"Duplos f r u t o s gmeos"
"Urna f l o r produz
muitos frutos pequeos os gmeos
sao c o m o urna so
pessoa"
"Produz f r u t o s , e
assim d a r me
muitos filhos"
Idntica de n 3
Idntica de n' 3
Idntica de n' 3
"tem f r u t o s finos,
como folhas; sao azedos (batuka), usados
como condimento"
"De ku-solola 'tornar
visvel' fazer com
que urna mulher que
nao tenha filhos possa ger-los".
"Sua resina vermelha
chamada 'sangue'
para dar mu-
9. Mudumbila
10. Muhotuhotu
Canthium venosum
11. Mudeng'ula
12. Mwanalala
Paropsia
brazzeana
ou amarelo, sabe-se que de alguma forma houve bruxaria na anomala; a prpria me pode ser urna feiticeira, ou outra pessoa estar enfeiti?ando-a. O remedio
ntolu devolye ao leite a cor normal (veja-se tambm
Turner, 1967, p. 347). Os ndembos crem que as coisas
brancas representam virtudes e valores tais como bondade, pureza, boa sade, sorte, fertilidade, franqueza,
comunho social e varias outras auspiciosas qualidades.
Assim, molu, o smbolo dominante dentre os remedios
da beira d'gua, representa maternidade, lactaco, os
seios, e fertilidade. Como Mudyi, molu representa os aspectos nutricionais da maternidade.
Os outros remedios da beira d'gua sao, ento, coIhidos. Ei-los segundo a ordem da colheita:
Expllcaco Ndembo
ESPECIE
Termo Ndembo
DenominafSo
Botnica
1. Molu
waWubwang'u
Possivelmente
urna especie das
Convolvulaciae
2. Muso'jlsoji
3. Muhotuhotu
i ' 4. Mudyi
5. Katuna
Canthium venosum
Diplorrhyncus
condylocarpon
(Uvariastrom
hexalobodies)
Harungana
madagascarienss
79
^
gue, assim tambero a
me deve ter muito
sangue".
"T e m muitas razes
espalhadas u m a
mulher deve ter muitos filhos. Ku-tung'ula significa 'falar de
urna p e s s o a pelas
costas", talvez o odio
(chtela) venha disto".
6. Mutung'ul
Comentario
A grande maioria dessas especies representa a fertililidade desejada pela mulher. Algumas relacionam-se
com a idia do sangue materno. Um entendido concedeu-me a informacao de que urna enanca que ainda
nao nasceu "alimenta-se atravs do sangue da me",
indicando desse modo algum conhecimento sobre a fisiologa da reproduco. De grande interesse a conexo
de remedios como muhotuhotu e mutung'ulu com dificuldade, maledicencia e rancores. Estas condices sao
como um fio vermelho que corre atravs da estrutura
ideolgica do Wubwang'u, e, de fato, associam-se ao
simbolismo do vermelho. Assim, as criancas que acompanham o mdico de seus pais na mata decoram os
restos com a argila vermelha pulverizada e trazida pelo
profissional mais idoso (veja-se a Figura 11). As que
sao gmeas desenham um crculo vermelho em volta do
olho esquerdo, e, com argila branca em p, um crculo
branco em volta do olho direito. Estes sao feitos "para
as sombras dos gmeos, ou para as mes deles", disseram-me os informantes. De acord com o que disse
um deles, o crculo vermelho "representa o sangue",
enquanto o branco representa o "vigor" ou a "sorte".
Porm outro disse explicitamente que o crculo vermelho
representa "o rancor" (chtela), e. ja que foi feito em
torno do olho esquerdo, ou olho "feminino", "talvez a
causa do ressentimento venha deste lado". Perguntado
sobre o que pretenda dizer com isto, ele prosseguiu
80
afirmando que talvez houvesse hostilidade entre a paciente e sua av, quando esta ltima, agora urna sombra Wubwang'u atormentadora, era viva. Por outro
lado, continuou ele, a sombra pode ter ficado enraivecida por brigas dentro do grupo ligado por parentesco
matrilinear (akwamama, "aqueles que esto do lado da
me") e entao resolveu punir um dos seus membros. De
qualquer maneira, disse ele, o odio encontra-se mais
freqentemente na matrilinhagem (ivumu, ou "tero")
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do que entre os parentes paternos, que sao benevolentes uns com os outros. Esta era urna tentativa
consciente de correlacionar as oposites binarias masculino/feminino, patrilateralidade/matrilinearidade, benevolncia/rancor, branco/vermelho, de maneira inteiramente coerente.
Nessa interpretacao acha-se implcito tambm o prprio paradoxo da gemelaridade. Os gmeos constituem
ao mesmo tempo sorte e fecundidade razovel e
quanto a isto tm afinidade com relaco ideal que deveria ligar os parentes do lado paterno e m sorte
e excessiva fecundidade. Diga-se, de passagem, que os
ndembos consideram os gmeos de sexos opostos como
sendo mais auspiciosos do que os gmeos do mesmo
sexo ponto de vista largamente difundido as sociedades africanas possivelmente pelo fato de os gmeos
do mesmo sexo ocuparem idntica posicao como irmos,
na estrutura poltica e de parentesco.
Exceto o simbolismo gmeos-fruto do kata wubwang'u
e o simbolismo dos muitos-em-um do museng'u os remedios como tais nao fazem explcita referencia gemelaridade. Ao contrario representan!, cumulativamente,
fecundidade exuberante. Mas a incisiva distinco feita
nos ritos entre remedios da selva e remedios do mato
com passagens, distinco relacionada pelos informantes
com a existente entre masculinidade e feminilidade, associa-se ao principal tema dualista do Wubwangu.
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i,
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Bibliotecas
honda), e representa a sombra atormentadora que outrora foi tambm me de gmeos. O outro compartimento que tem interesse para a pesquisa antropolgica.
Ha urna frase enigmtica na narrativa dos ritos reais
(veja-se adiante, p. 109), nyisoka yachifwifwu chansama, que literalmente significa "rebentos de um feixe
de folhas de urna pessoa estril". O termo nsama representa um homnimo, na realidade um sinistro jogo
de palavras. Um dos sentidos da palavra "um feixe
de folhas, ou de capim". Quando um cacador deseja obter
mel, sobe a urna rvore at a colmeia (mwoma) e puxa
atrs dele numa corda um feixe de capim ou de folhas.
Joga a corda sobre um galho, pe fogo no feixe nsama,
e suspende-o at ficar sob a colmeia. Comeca a fumegar intensamente e a fumaca expulsa as abelhas. Os
restos enegrecidos do feixe sao t a m b m chamados
nsama. Nsama significa anda "urna pessoa estril ou
infecunda", talvez no mesmo sentido em que dizemos
"um caso sem esperanzas". O preto , com freqncia,
mas nem sempre, a cor da esterilidade no ritual ndembo.
No Wubwang'u, quando os habis conhecedores retornam da floresta com ramos frondosos, o profissiona!
mais velho arranea algumas folhas desses galhos e
amarra-as formando um feixe, conhecido como nsama
yawayikodjikodji abulanga kusema anyana, "o feixe das
sombras malvolas que nao deixam parir filhos" ou,
abreviadamente, nsama. Ento, esse chimbuki (mdico)
toma urna cabaca (chikashi ou lupanda) de cerveja de
milho ou de urna especie de sorgo e despeja-a no nsama
corno urna libacao, dizendo: "Vos todas, sombras sem
filhos, aqui est a vossa cerveja. Nao podis beber a
cerveja que ja est despejada dentro deste vaso grande"
(no compartimento do lado direito). "Aquela a cerveja
Para as sombras que tiveram filhos". Coloca ento a
Porc,ao de lama preta do rio no chipang'u e pe o feixe
em cima da lama. Acredita-se que a argila preta
sirva para "enfraquecer as sombras causadoras
doenfas".
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mo "urna relaco jocosa" (wusensi). A referencia especfica dos ritos dirige-se divisao da humanidade ern
homens e mulheres e ao despertar do desejo sexual
pela acentuaco da diferenca entre eles, em forma de
comportamento antagnico. As sombras dos mortos, de
certa maneira, nao tm sexo, ja que se acredita que do
seu nome e caractersticas pessoais as crianzas de ambos
os sexos, e, num determinado sentido, que nasc.am &
novo nelas. E' a sua humanidade genrica que se salienta, ou talvez, sua bissexualidade. Mas os seres vivo8
sao diferenciados pelo sexo, e as diferencas sexuais sao,
como escreve Oluckman (1955), "exageradas pelos cos-
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turnes" (p. 61). No Wubwang'u, os ndembos estao obcecados pela alegre contradicho de que quanto mais os
sexos acentuam as diferencas entre eles e a agresso
mutua, mais desejam o encontr sexual. Cantam cancoes
obscenas e rabelaisianas, durante a coleta dos remedios
na floresta e no final da danca pblica, quando a paciente borrifada com esses remedios, sendo que algujnas cancoes pem em relevo o confuto sexual e outras
sao ditirambos em louvor da unio sexual, freqentemente especificada como adlteras. Cr-se que essas
canc.5es "revigorem" (ku-kolesha) tanto os medicamentos quanto a paciente. Acredita-se tambm que fac.am
os assistentes ficarem fortes sexual e corporalmente.
A principio, antes de cantar as cancoes obscenas, os
ndembos entoam urna frmula especial, "kaikaya wd,
kakwawu weleli" ("aqu outra coisa feita"), que tm
o efeito de tornar legtima a menco de assuntos que,
de outro modo, seriam o que chamam de "urna coisa
secreta, de vergonha ou de pudor" (chuma chakujinda
chansonyi). Idntica frmula repetida nos casos legis
concernentes a assuntos como adulterio e quebras de
exogamia, quando as irms e as filhas, ou contraparentes (aku), dos queixosos e dos defensores esto presentes. Os ndembos tm urna frase costumeira, que
explica as canfSes Wubwang'u. Este canto liberado
da vergonha, porque o despudor (urna caracterstica) do
tratamento c u r a t i v o do Wubwang'u (kamina kakadi
nsonyi mulong'a kaWubwang'u kakuuka nachu nsonyl
kwosi). Em resumo, o Wubwang'u urna ocasio de
desrespeito autorizado e de impudicia prescrita. Mas nenhuma promiscuidade sexual posta em prtica no
comportamento real deles; a indecencia expressa sbente por palavras e por gestos.
Os cnticos, em ambas as fases, decorrem segundo
Urna serie ordenada. Primeiramente, os membros de casexo depreciam os rgos sexuais e as facanhas dos
do sexo oposto, exaltando os seus prprios.
mulheres, por zombaria, asseguram a seus maridos
tm amantes secretos e os homens replicam que
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tudo o que cnsguem das muiheres sao doenc.as venreas, conseqncia do adulterio. Posteriormente, ambos os sexos louvam, em termos lricos, os prazeres da
relafo sexual. A atmosfera alegre e agressivamente
jovial, homens e muiheres empenhando-se em apuparemse uns aos outros (veja-se a Figura 20). Julga-se que
o canto agrade poderosa e alegre manifestafo das
sombras no Wubwang'u.
II
FIGURA 20. Cerimnia dos gmeos: homens e muiheres jovialmente insultam-se uns aos outros, simbolizando verbalmente a
competigo de fecundidade entre os sexos.
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Flyting: gerundio do dlaleto ingls (fl'yte); urna disputa ou troca de
insulto pessoal, em forma de versos. Aoa do tradutor.
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Os episodios rituais que aprsente!, embora superficialmente os Ritos da Nascente do Rio, e do Duplo*
Sacrrio com a Luta de Fecundidade entre os Sexos
relacionam-se com dois aspectos do paradoxo da
gemelaridade. O primeiro encontra-se no fato da nogao
2 = 1 poder ser encarada como, um misterio. D fato, os
ndembos caracterizara o primeiro episodio' por um termo
que exprime amplamente este sentido. E' mpang'u, que
se aplica ao episodio central e mais esotrico de um
rito. A mesma palavra tambm significa "urna expresso secreta ou senha", tal como usada pelos novicos
e seus guardies na cabana da circunciso. Os ritos na
nascente do riacho representara un misterio religioso,
como os antigos gregos e romanos, ou os dos cristos
modernos, porquanto dizem respeito a assuntos ocultos
inexplicveis, alm da razo humana. O segundo aspecto a impresso que os ndembos tm de que,2=,l
constitu um absurdo, urna enorme e quase brutal brih-j
cadera. Embora grande parte de seus ritos seja devq-j
i
7
Minha cunhada, a Sra. Helen Bernard, da Universidade de Welllngtofl.
Nova Zelandia, chamou-me a atencSo para a semelhanc.a deste ponto de vista
com a nogao hind de um lila.
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'8LOTECA
CENTRAL
UFES
107
dor diferenca entre esses ritos a constante acenico no Wubwang'u da opos9o entre os sexos e
s principios sociais de filiado, derivados dos pas
sexo oposto. No Isoma, a diada sexual ficava surdinada anttese vida/morte. No Wiibwangu a
losico social o principal tema.
108
169
Comentario
Este relato traduz o Wubwang'u em poucas palavras.
Mas, como natural, omite muitos dos detalhes fascinantes que, para os antroplogos, constituem as principis indica?5es do universo privado de urna cultura.
Torna claro que a sombra atormentadora no Wubwang'u
tpicamente urna me de gmeos, ja falecida (nyampasa). Ela prpria era membro do culto, pois no modo
de pensar ritual dos ndembos, conforme observei, somente um membro do culto, depois da morte, pode afligir
os vivos no modo de manifestaco tratada por aquele
culto. Mais ainda, o texto torna claro que a atribulaco
est na linha de descendencia matrilinear. Todava, comentarios, fornecidos por outros informantes insistem em
afirmar que urna sombra do sexo masculino pode "aparecer no Wubwang'u" se foi pai de gmeos (sampasa)
ou, ele mesmo, um gmeo.. No entanto, nunca encontr!
um nico caso desses. O Wubwang'u nao considerado
um espirito independente, mas representa o modo pelo
qual urna sombra de ancestrais demonstra seu desenvolvimento para com o conhecido vivo.
Segundo outros informantes, sao "as mulheres que
explicam aos homens os remedios e as tcnicas curativas do Wubwang'u. A irm de um mdico ensinou a
ele; ela era urna nyampasa, urna me de gmeos. Ento
ele disse que ambos os gmeos morreram e, de fato,
fnito comum que um deles morra, ou ambos, pois
os ndembos afirmam que a me ou favorecer um, corn
leite e alimentaso suplementar, negligenciando o outro,
ou tentar alimentar ambos igualmente com urna quan110
111
)mu mumuchidika.
"Isto p que est no ritual.
v
Neyi chidika chaWubwang'u chiamani deh nameleh
Quando o ritual do Wubwang'u ja est terminado .noitinh
chimbaki wukunora nsewu
o mdico pega a flecha
wukwinka mumpasakanyi janyinu yakufnwendu wachimunswa
e coloca-a na diviso dos-dedos do pe esquerdo.
Muyeji wukwinza wukamukwata nakumakwata mumaya.
A paciente chega e segura-o pela cintura.
Chimbuki neyi wukweti mfumwindi
Se o doutor pegar o marido dla
mumbanda wukumukwata mfumwindi mumaya
a mulher segurar seu marido pela cintura
hiyakuya kanzonkwela invtala
e eles vo pulando at entrar na cabana
nakuhanuka munyendu yawakwawa adi muchisu.
e passaro por baixo das pernas das outras pessoas que
esto porta.
lyala ninodindi akusenda wuta ninsewu mwitala dawu. .
O homem e sua mulher carregaro um arco e urna flecha
para dentro da cabana.
Chimbando wayihoshang'a
O mdico diz a eles:
nindi mulimbamumba
Entrenv no curral (como um homem diz a suas ovelhas e
cabras),
ingilenu mwitala denu ingilenu /nwitala
entrem na sua cabana, entrem na sua cabana!
Chakwingilawu anta ejima hiyakudiyila kwawu kunyikala yawu.
Quando eles vo para dentro, todas as pessoasv vo embora
para suas prprias aldeias.
Tunamanishi.
""-..,
Nos terminamos".
O ritual de gemelaridade entre os ndembos poe em relevo muitos tipos de dualidade reconhecidos por eles
prprios. A separado entre hornens e mulheres, a oposico entre o rancor mesquinho e privado e o sentimento
social, e entre esterilidade e fecundidade, sao comuns
ao, Wubwang'u e ao soma. Porm o Wubwang'u tem
certos aspectos especiis, prprios dele. Mostra plenamente a animalidade e a humanidade do sexo, as formas de excessiva proliferac.o, justaposta ao misterio
do casamento, que une os dissemelhantes e reprime o
excesso. O casal ao mesmo tempo elogiado por sua
112
113
Comentario
115
Liminaridade e "Communitas'
116
Liminaridade
Os atributos de liminaridade, ou de personae (pessoas)
liminares sao hecessariamente ambiguos, urna vez que
esta condico e estas pessoas furtam-se ou escapam
rede de classificacoes que normalmente determinam a
localizarlo de estados e posicoes num espaco cultural.
As entidades liminares nao se situam aqui nem la; esto
no meio e entre as posicoes atribuidas e ordenadas pela
Bei, pelos costums, convencoes e cerimonial. Seus atrip'uta ambiguos e indeterminados exprimem-se por. urna
Ijca vaciedade d smbolos, naquelas varias sociedades
||ue rituaizam as transieses sociais e culturis. Assim,
Utoin-aridadfe-freqirentemene comparada morte, ao
!star no tero, invisibilidade, escurido, bissexuaidade, as regioes selvagens e a um eclipse do sol
u da la.
As entidades liminares, como os nefitos nos ritos
e iniciaco ou de puberdade, podem ser representadas
l*>mo se nada possussem. Podem estar disfamadas de
ft
nonstrs, usar apenas urna tira de pao como vesinnta ou aparecer simplesmente nuas, para demonstrar
|er como seres liminares, nao possuem "status", pro"Tiedade, insignias, roup mundana indicativa de classe
irj papel, social psi9 em um sistema de parentesco,
Li
no, justapostos e alternantes. O primeiro o da sociedade tomada como um sistema estruturado, diferenciado
e freqentemente hierrquico de^ posicoes' poltico-jurdico-econmicas, com muitos tipos de avaliacao, separando os homens de acord com as noyes de "mais"
ou de "menos". O s e g u n d o , que surge de maneira
evidente no perodo liminar, o da sociedade considerada como um "comitatus" no-estruturado, ou rudimentarmente estruturado e relativamente indiferenciado, urna
comunidade, ou mesmo comunho, de individuos guais
que se submetem em conjunto autoridade geral dos
andaos rituais.
Prefiro a palavra latina communitas comunidade,
para qu se possa distinguir esta modalidade de rela?o social de urna "rea de vida em comum". A distinco entre estrtura e "communitas" nao apenas a
distin?o familiar entre "mundano" e "sagrado", ou a
existente por exemplo entre poltica e religiao. Certos
cargos fixos as sociedades tribais tm muitos atributos
sagrados; na realidade toda posi?ao social tem algumas
caractersticas sagradas. Porm este componente "sagrado" a d q u i r i d o pelos beneficiarios das posicoes
durante os "rites de passage", gra?as aos quais mudam de posico. Algo 'da sacralidade da transitoria
humildade e ausencia de modelo toma a dianteira e
modera o orgulho do individuo incumbido de urna posico o cargo mais^ alto. Como Fortes (1962, p. 86)
demonstrou de maneira convincente, nao se trata simplesment de dar un cnho geral de legitimidade as
posicoes estruturais de urna sociedade. E' antes urna
questo de reconhecer um laco humano essencial e genrico, sem o qual nao poderia haver sociedade. A
liminaridade implica que o alto nao poderia ser alto
sem que o baixo existisse, e quem est no alto deve
experimentar o que significa estar em baixo. Sem dvida um pensamento deste tipo esteve na base da deciso do prncipe Phillip, alguns anos atrs, de mandar
o filho, o herdeiro presuntivo do trono britnico, para
118
119
"Communitas"
Ulti escola o tho da floresta na Australia, por determinado tempo, a fim de que pudesse aprender a
"levar urna vida dura".
I
Um exemplo sumario de um rite de passage dos ndembos do Zmbia ser citado com utilidade aqui, porque
se refere mais alta posico social naquela tribo, a
do chefe mais velho Kanongesha. Tambm servir para
desenvolver nossos conhecimentos sobre o modo como
os ndembos se utilizam de seus smbolos rituais e os
explicara. A posic.o de chefe mais velho ou supremo entre
os ndembos, como em muitas outras sociedades africanas, paradoxal, pois ele representa ao mesmo tempo
o pice da hierarquia poltico-legal estruturada e a co-
120
121
e a "passividade" da liminaridade as transieses diacrnicas entre urna posigo^ social e outr, e a inferioridade "estrutural" ou sincrnica de certas pessoas, grupos
e categoras sociais nos sistemas polticos, legis e econmicos; As cpndices "liminares" e "inferiores" esto
freqerttmente associadas aos poderes rituais e comunidade, inteira, considerada como indiferenciada.
V oiremos aos ritos de investidura do Kanongesha dos
ndembos. O componente liminar de tais ritos comec.a
com a construyo de um pequeo abrigo de folhas, distante mais ou menos um quilmetro e meio da aldeia
principal. Esta cabana conhecida por ka\w ou kafwi,
termo ndembo derivado de ku-fwa, "morrer", porque
ai que o chefe eleito morre para o seu estado de homem
comum. As imagens da mpr-te proliferam na liminaridade dos ndembos. Por exemplo, o lugar secreto e sagrado
onde os novicos sao circuncisados, conhecido como
ifwilu ou ' chifwilu, termo tambm derivado de ku-fwa.
O chefe eleito, vestido apenas com um pao esfarrapado na cintura e urna esposa ritual, que ou sua
esposa mais idosa (mwadyi) ou urna mulher escrava
especial, conhecida como lukanu (em conformidade com
o bracelete real), nessa ocasio, vestida da mesma maneira, sao convocados pelo Kafwana a entrar no abrigo
kafu, logo depois do pr-do-sol. Diga-se de passagem
que o prprio chefe tambm conhecido como mwadyi
ou lukanu, nesses ritos. O casal conduzido para a
cabana cmo se fossem invlidos. La, o homem e a
mulher se sentam agachados numa postura indicativa de
vergonha (nsonyi) ou de recato, enquanto sao lavados
com remedios misturados com agua trazida do Katukang'onyi, o local do rio onde os chefes ancestrais da
dispora lunda meridional h a b i t a r a m .durante algum
tempo, , na viagem iniciada na capital Mwantiyanvwa,
;
antes de se separarem para conquistar reinos para si.
;A madeira para o fogo nao deve ser cortada com um
; Cachado, mas deve ser encontrada cada no solo. Isto
[significa que produto da trra e nao artefato. Urna
122
123
vez mais vemos a conexo do carter ancestral de pertencer aos lundas com os poderes ctnicos.
Em seguida cometa o rito de Kumukindyita, que quer
dizer literalmente "falar palavras ms ou insultantes
contra ele". Podemos denominar este rito "O Insulto ao
Chefe Eleito". Cometa quand o Kafwana faz um corte
no lado inferior do bra?o esquerdo do chefe no qual
o bracelete lukanu ser colocado no dia seguinte -
espreme um remedio na inciso, e aperta urna esteira
sobre a parte superior do bra?o. O chefe e sua mulher
sao, ento, forjados rudemente a se sentarem na esteira. A mulher nao deve estar grvida, pois os ritos
que se seguem sao considerados destruidores^ da fecundidade. Alm do mais, o par soberano deve ter-se abstido
de relances sexuais por varios dias antes dos ritos.
O Kafwana cometa a fazer urna homilia, transcrita
a seguir:
"Silencio! Tu es um tolo egosta e desprezvel, alm de ter
mau genio! Nao amas teus companheiros, so te zangas com
eles! Baixeza e ladroeira tudo o que tens! No entanto, chamamos-te aqui e te dizemos que deves ser o sucessor na chefia.
Pe de lado a mesquinhez, pe de lado a clera, renuncia as
relages adlteras, renuncia a elas mediatamente! Nos te outorgamos a chefia. Deves comer junto com teus companheiros,
deves viver bem com eles. Nao prepares remedios de feiticaria
a fim de poderes destruir teus companheiros as cabanas deles
isto proibido! Desejamos que tu e so tu sejas nosso chefe.
Que tua mulher prepare alimento para as pessoas que vffl
aqui, a aldeia principal. Nao sejas. egosta, nao conserves a
chefia somente para ti! Deves rir junto com .o povo, deves
abster-te de praticar feiticaria, se porventura ja a realizaste!
Nao devers matar gente! Nao deves deixar de ser generoso
para com o povo!
Mas tu, Chefe Kanongesha, Chifwanakenu ['filho que se parece com o pai'] de Mwanyanvwa, danzaste para obter a
chefia porque teu predecessor morreu [isto , porque tu mataste]. Mas hoje tu nasceste como um novo chefe. Deves conhecer o povo, Chifwanakenu. Se eras mesquinho, e costumavas comer teu piro de mandioca, ou tua carne sozinho, hoje
ests na chefia. Deves abandonar tuas maneiras egostas, devfi8
saudar amavelmente a todos, es o chefe! Deves deixar de se*
adltero e briguento. Nao deves fazer julgamentos parciais oftl
nenhum caso legal que envolva teu povo, especialmente se
124
A~fasL_de, reagregacao. neste caso, compreende a investidura ~pubTlca~o* Kanongesha, com toda a pompa e
cerimnia. Apesar deste ato ter o mximo interesse para
o estudo da chefia dos ndembos e para urna importante
tendencia da antropologa social britnica da atualidade,
nao nos ocuparemos aqui do assunto. Nossa atengo
prende-se agora a questo da Hminaridade e dos po. deres rituais dos fracos. Estes aparecem sob dois as[ pecios. Primeiramente, o Kafwana e as outras pessoas
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Transio/estado
Totalidade/parcialidade
Homogeneidade/heterogeneidade
"Communitas" /estrutura
Igualdade/desigualdade
Anonmia/sistemas de nomenclatura
Ausncia de propriedade/propriedade
Ausncia de "status"/"status"
Nudez ou ^uniformidade de vesturio/variedade de vesturio
Continncia sexual/sexualidade
Subestimao das distines sexuais/Alta importncia das distines sexuais
Ausncia de classe/distines de classe
Humildade/justo orgulho da posio
Descuido com a aparncia pessoal/cuidado com a aparncia
pessoal
Nenhuma distino de riqueza/distines de riqueza
Altrusmo/egosmo
Obedincia total/obedincia apenas classe superior
Sacralidade/secularidade
Silncio/fala
Suspenso dos direitos e obrigaes de parentesco/obrigaes
e direitos de parentesco
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OS MOV1MENTOS MILENARISTAS
Entre as mais extraordinarias manifestares da "communitas" encontram-se os movimentos religiosos, chamados milenaristas, que surgem na meio das massas
que Norman Cohn (1961) denominou "massas desarraigadas e desesperadas, na cidade e no campo... vivendo
a margem da sociedade" (p. 31-32) (isto , da sociedade estruturada), ou onde sociedades anteriormente
tribais sao postas sob o dominio estranho e absoluto
de sociedades complexas e industriis. Os atributos de
tais movimentos devem ser bastante conhecidos dos
leitores. Somente lembrarei aqui algumas das propriedades da liminaridade nos rituais tribais que mencionei
antes. Muitos desses corresponden! bem de perto aos
dos movimentos milenaristas: Jipmogeneidade, igualdade, anonmia, ausencia de propriedade (muitos movimentps__ realmente ordenam aos seus membros a destruicjp^ de qualquer propriedade que possuam, a fin
de_ tqrnarem mais prximos o advento do estado perfeito
de harmona e comunho que desejam, pois os direitos
djQpropriedade estao ligados a distingoes estruturais,
tanto verticais quanto horizntais); redugo de todos
ao mesmo nivel de "condi^o social"; uso de vestuario
uniforme (as vezes para ambos os sexos); continencia
sexual (ou a anttese desta, a comunidade sexual, pois
tanto a continencia quanto a comunidade sexual liquidam com o casamento e com a familia, que legitiman!
o estado da estrutura); redu9o ao mnimo das distinces de sexo (todos sao "iguais vista de Deus" ou
dos ancestrais); aboligo de categoras, humildade, descuido pela aparncia pessoal, altruismo, obediencia total
ao profeta ou lder, instru?ao sagrada; levar ao mximo
as atitudes e o cornportamento religioso, por oposic.o
ao secular; suspenso dos direitos e obrigac.5es de parentesco (todos sao irmos ou camaradas uns dos outros,
quaisquer que tenham sido os lagos mundanos anteriores) ; simplicidade de fala e de maneiras, loucura sagrada, aceitado da dor e do sof rmente (at o ponto,
de se submeter ao martirio), e assim por diante.
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E' digno de nota que muitos desses movmentos permeiam, seccionando-as, as divises tribais e nacionais
durante o impulso inicial. A "communitas", ou "sociedade aberta", difere neste ponto da estrutura ou da
sociedade fechada, pelo fato de ser potencial ou idealmente extensiva aos limites da humanidade. Na prtica,
naturalmente, o mpeto logo se exaure, e o prprio
"movimento" se torna urna instituido entre outras instituicoes, freqentemente mais fantico e militante que
os restantes, por julgar-se o nico possuidor das verdades humanas universais. Muitas vezes, tais movimentos oco'rrem durante fases da historia que sob varios
aspectos sao "homologas" a perodos liminares de importantes rituais em sociedades estveis e rotineiras,
quando os mais importantes grupos ou categoras sociais
naquels sociedades estao passando de um estado cul- tural para outro. Sao essencialmente fenmenos de transi?ao. Talvez seja esta a razo pela qual em tantos
desses movimentos muito da mitologa e do simbolismo
que possuem tomado de emprstimo dos mitos e smbolos de tradicionais rites de passage, quer as culturas
em que se originam, quer as culturas com as quais estao
em contato dramtico.
OS "HIPPIES", A "COMMUNITAS"
E OS PODERES DOS FRACOS
Na moderna sociedade ocidental, os valores da "communitas" estao surpreendentemente presentes na litera tura e no cornportamento do fenmeno que veio a ser
conhecido como a "gera?o 'beat'", a que se sucederam
os "hippies", os quais, por sua vez, tm urna jovem
diviso conhecida como o "teeny-boppers". Sao os membros "audaciosos" das c a t e g o r a s de adolescentes e
jovens adultos que nao tm as vantagens dos rites
de passage nacionais que "optaram" fugir da ordem
social ligada ao "status" e adquirirn! os estigmas dos
mais humildes, vestindo-se como "vagabundos", ambu-
137
Ha algumas outras manifestares desta distin9o encontradas as sociedades mais simples. Sero consideradas por mim nao como passagens entre estados, mas
antes como estados binarios opostos, que, sob certos
aspectos, expressam a distincao entre a sociedade considerada como estrutura de partes opostas hierrquica
138
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A ESTRUTURA E A "COMMUNITAS"
AS SOCIEDADES BASEADAS NO PARENTESCO
1. Os Talensis
"Isto , os ancestrais relacionados com ele derivam, por definigo, de urna linhagem matrilinear do adivinho, e a figura
dominante entre eles geralmente urna mulher, "urna me".
O bakologo... a autntica encarnago do aspecto vingativo
e invejoso dos ancestrais. Persegue o homem em cuja vida
intervm inexoravelmente, at que o homem afinal se submeta
e o "aceite, isto , se encarregue de montar um sacrrio para
os espritos [matrilaterais] bokologo em sua prpria casa, a
fim de poder oferecer-lhes sacrificios com regularidade. Todo
homem., e nao apenas aqueles que sofrenan infortunios excepcionais, levado pelo sistema religioso dos talensis a projetar
seus mais ntimos sentimentos de culpa e de inseguranga amplamente sobre a imagem da me, corporificada no complexo
bakologo. Em geral, tambm, um homem nao se sujeita, mediatamente, as exigencias dos ancestrais bakologo. Contemporiza, foge, resiste, as .vezes durante anos, at ,ser por fim foreado a submeter-se e a aceitar o bakologo. Nove de cada grup
de dez homens cima de quarenta anos tm sacrrios bakologo,
mas nem todo homem tem talento para ser adivinho, e por isso
a maioria dos homens simplesmente possuem sacrrio mas nao
o usam para a adivinhago" (p. 325 grifos sao meus).
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ilnhgem do ancestral dominante, ou mais freqentemente urna ancestral do complexo bakologo, quase
sempre urna ancestral matrilateral, tem a responsabilidade de instalar o sacrrio para a pessoa aflita. O
chefe da linhagem sacrifica as duas aves trazidas pelo
paciente no sacrrio de sua linhagem, explicando aos
ancestrais a natureza da ocasio que trouxe o filho de
sua irm ou neto matrilateral a fazer-lhes splicas.
Pede-lhes que abenc.oem o estabelecimento de um novo
sacrrio, que ajudem o candidato a tornar-se um adivinho bem sucedido, e que Ihe conc^dam prosperidade,
filhos e sade isto , as coisas boas em geral. Em
seguida, a p a n h a alguns sedimentos que f icaram no
fundo do pote, que o mais importante componente
de um sacrrio bogar, e coloca-os num pequenino pote
que o candidato deve levar para casa e acrescent-lo
ao seu novo sacrrio. "Deste modo", diz Fortes, a "continuidade direta do novo .sacrrio bakologo com o bogar
da linhagem matrilateral fica tangivelmente simbolizada"
(p. 326).
Assim, dois sacrrios separados por mais de trinta
quilmetros e p r e c i s o lembrar que a prpria
Talelndia "quase nao tem trinta quilmetros de extensao" e diversos outros sacrrios intermediarios sao
direta e "tangivelmente" ligados pelos ritos. O fato de
ser quase impossvel o contato fsico continuo' entre as
linhagens em questo, nao ideolgicamente importante
no caso, porque os sacrrios bakologo sao smbolos e
expresoes da comunidade tale. "Nove entre dez" dos
homens maduros tem urna quantidade de ancestrais
bakologo cada um. Todos esses homens esto ritualmente interligados atravs deles a urna pluralidade de povoados, inversamente, cada bogar- de l i n h a g e m tem
ligado a si um certo nmero de sacrrios bakologo, mediante conexes sororais ou de irms. Tais encadeamentos, nos seus conjuntos e secc.oes transversas, sa
mais do que vnculos meramente pessoais ou espirituais!
representan! os lac.os da "communitas" opondo-se s
divisoes da estrutura. Sao, alm de tudo, vnculos cria144
3. Os Ashantis
Para que nao se julgue que a estrutura est umversalmente associada patrilinearidade e masculinidade,
e que a "communitas" est associada matrilateralidade
e feminilidade as sociedades articuladas segundo o
principio da descendencia unilinear, vale a pena examinar-se brevemente urna sociedade matrilinear bastante
conhecida, a dos ashantis, de Gana. Os ashantis pertencem a um grupo de sociedades da frica Ocidental,
que possuem sistemas polticos e religiosos muito desenvolvidos. Todava, o parentesco unilinear ainda tem
<.
146
147
Em primeiro lugar, o vnculo pai-filho, base da diviso ntoro, o vnculo estruturalment inferior. No
entanto, os smbolos com os qais se associa delineiam
um quadro de enorme valor para compreenso da
"communitas". De a c o r d com Rattray (1923) os
ashantis acreditam que o "ntoro ou o semen, transmitido pelo homem, misturado ao sangue [um smbolo
de matrilinhagem] na mulher, que explica os misterios
fisiolgicos da concepco... ntoro... . . . empregado
as vezes como sinnimo de sunsum, o elemento espiritual, no homem ou na mulher, do qual depende... a
for?a, o magnetismo pessol, o carter, personalidade,
poder, alma, chamem-no como quiserem, de que dependem a sade, a riqueza, o poder da palavra, o sucesso em qualquer empreendimento, enfim, tudo aquilo
que faz valer a pena viver" (p. 46). Mais urna vez,
' deparamo-nos com as particulares correlces entre personalidade e valores universais, de um lado, e "espirito"
ou "alma", de outro, que parecem ser os sinais caractersticos da "communitas".
Rattray (1923) enumerou .nove divises ntoro, embora
afirme poder haver mais. Essas divises, naturalmente,
permeiam o conjunto dos membros das matrilinhagens
segmentares abusaa. Um dos ntoro considerado tradicionalmente, como "o primeiro ntoro ja outorgado aos
homens, o ntoro Bosommuru" (p. 48). O mito correlacionado_ com o estabelecimento dele, segundo o modo
de ver de Rattray, esclarece o modo de pensar dos
ashantis sobre o ntoro em geral:
i
ventres, com as palavras kus kus (usadas na maioria das cerirtinias em conexo com ntoro e Onyame), e ento ordenouIhes que voltassem para casa e se deitassem juntos.
As mulheres conceberam e deram luz as primeiras enancas
no mundo, qu tomaram o Bosommuru como seu ntoro, passando cada homem adiante este ntoro a seus filhos.
Se um homem ntoro Bosommuru, ou mulher, v urna serpente morta (nunca matam urna serpente) espalha argila branca
sobre ela e a enterra (p. 48-49).
Esse mito simblicamente relaciona o ntoro, ao mesmo tempo semen e divisao social, com o Deus do Cu
(que tambm m deus da chuva e da agua) com a
agua, um rio e a fecundado das mulheres. Outras divises '
ntoro como o Bosomtwe, grande lago na parte central
dos ashantis, e o Bosompra, rio que nasce.no territorio
dos ashantis, associam-se com corpos de agua. Os principis deuses ashantis sao divindades masculinas, filhos
de Onyame, o supremo Deus masculino. Alm disso,
todos se relacionam com a agua, o smbolo dominante
da fecundidade, e, por extensao, de todas as coisas boas
que os ashantis possuem em comum, independentemente
das filiales subgrupais. Rattray (1923) cita os ashantis,
que dizem: "Onyame decidiu mandar os seus prprios
filhos trra, a fim de que pudessem receber beneficios
da humanidade e tambm conferi-ls a ela. Todos esses
filhos traziarh os nmes do que sao agora rios e lagos...
ou todo outro rio ou agua d alguma importancia. Os
tributarios desses sao tambm seus filhos" (p. 145146). Acrescenta.: "O que foi dito at aqui suficiente para demonstrar que as aguas para os ashantis...
so consideradas possuidoras do poder ou do espirito
do diyino Criador, sendo poftanto urna grande for?a
doadora de vida. Assim como urna mulher, da nascimento
a urna crianca, do mesmo modo possa a agua fazer
nascer um deus, diss-me certa vez um sacerdote"
(p. 146).
Outros lquidos corpreos ligam-se simblicamente
com "o elemenfo ntoro no homem", diz Rattray (1923,
P. 54), por exemplo, a saliva; e a agua borrifada pela
boca do rei ashanti durante os ritos relativos ao rio
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51
dla, ou (3) ocupam os degraus mais baixos. Isto lvanos de volta ao problema da definifo da estrutura
social. Urna fonte autorizada de defini?o A Dictionary
of the Social Sciences (Gould e Kolb, 1964) no qual
A. W. Eister examina algumas das principis formulaf6es dessa concepto. Spencer e muitos socilogos modernos consideram a estrutura social como "a combinafo mais ou menos distintiva (da qual pode haver mais
de um tipo) de instiiuices especializadas e mutuamente
dependentes [a acentua9o de Eister] e as organizafes institucionais de posi^es e de atores que implicam,
todas originadas no curso natural dos acontecimentos,
medida que os grupos de seres humanos com determinadas necessidades e capacidades atuaram uns sobre
os outros (em varios tipos ou modos de interac.o) e
procuraram enfrentar o meio ambiente" (p. 668-669).
concepto de Raymond Firth (1951), mais analtica,
exprime-se da seguinte maneira: "Nos tipos de sociedades comumente estudadas pelos antroplogos, a estrutura social pode incluir relac.es crticas ou fundamentis
provenientes de modo semelhante de um sistema de
classes bascado as relac.5es com o solo. Outros aspectos da estrutura social surgem mediante a participaco
em outros tipos de grupos persistentes, os cas, castas,
grupos etrios ou sociedades secretas. Outras relac.5es
bsicas devem-se tambm pos9o no sistema de parentesco" (p. 32).
A maioria das definieres contm a 'nocao de urna
cornbinac.o de posi?5es ou de situafes sociais. Muitas
implicam a institucionalizagao e a persistencia de grupos
e de rela?5es. A mecnica clssica, a morfologa e a
fisiologa dos animis e das plantas, e, mais recentemente, com Lvi-Strauss, a lingstica estrutural, foram
exploradas pelos dentistas sociais procura de conceitos, modelos e formas homologas. Todos tm, em comum, a no9o de urna combinado superorgnica de
Partes ou de posi?5es, a qual persiste, com modificac.5es
r^ais ou menos gradativas, atravs do tempo. O conceito de "confuto" passou a relacionar-se com o conceito
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A "Communitas"
Modelo e Processo
MODALIDADES DA "COMMUNITAS"
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sade do espirito e do corpo, Justina universal, camaradagem e fraternidade entre todos os homens, igualdade
diante de Deus, da lei, ou a forc,a da vida de homens
e mulheres, jovens e velhos, e de pessoas de todas as
rafas e grupos tnicos. Em todas essas fprmulac.oes
utpicas tem especial importancia a permanente conexao
entre igualdade e ausencia de propriedade. Tomemos,
por exemplo, a repblica ideal de Gonzalo, na Tempestade de Shakespeare (ato II, cena I, linhas 141163), em que Gonzalo se dirige aos infames Antonio
e Sebastio da seguinte maneira: (Reproduzimos aqu a
verso brasileira do trecho citado e tomada da traduc.o
do teatro completo de Shakespeare por Carlos Alberto
Nunes, Clssicos de Bolso, vol. I, p. 68-69. Nota do
tradutor).
Gonzalo:
Na repblica
Paria tudo peles sus contrarios,
Pois nao admitira especie alguma
de comercio; de magistrado, nada,
netn mesmo o nome; o estudo ficaria
ignorado de todo; suprimira,
de vez, ricos e pobres e os servigos;
Contratos, sucesses, questSes de trra,
demarcages, cuidados da lavoura,
plantago de vinhedos, nada, nada.
Nenhum uso tambm de leo e de vinho,
Trigo e metal. Ocupago nenhuma.
Todos os homens ociosos, todos.
E as mulheres tambm mas inocentes e puras.
Faltara, de igual modo, sobrariam...
Sebastio:
Mas o rei era ele.
Antonio:
Da repblica o fim esquece o inicio.
Gonzalo:
Todas as coisas em comum seriam
Sem suor nem esforgo produzidas
164
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plenamente o ser de outra. Diz Buber (1961): "Somente quando tenho de tratar com outro essencialmente, ou
seja, de modo tal que ele nao mais um fenmeno do
meu Eu, mas ao invs o meu Tu, que experimento
a realidade da fala com o outro na incontestvel autenticidade da reciprocidade" (p. 72). Porm Buber nao
restringe a comunidade a relacionamentos didicos. Fala
tambm de um "Nos essencial", com o que significa
"urna comunidade de varias pessoas independentes, que
tm um ego e auto-responsabilidade... O Nos inclui
o Tu. So os homens que sao capazes, vefdadeiramente,
de dizer Tu a um outro podem verdadeiramente dizer
Nos com um outro... Nenhum tipo particular de forma?ao de grupo enquanto tal pode ser mencionado
como exemplo do Nos essencial, mas em muiros deles
a variedade favorvel ao surgimento do Nos pode ser
vista claramente.. . Para impedir o aparecimento do
Nos, ou sua conserva?o, basta que seja aceito um nico
homem vido de poder, capaz de utilizar-se dos outros
como meios para seus prprios fins, ou que almeje ter
importancia e fafa exibico de si mesmo" (p. 213-214).
Nesta e em outras formulaces semelhantes, Buber
deixa claro que o "Nos essencial" um modo transitorio, embora muito poderoso, de relacionamento entre
pessoas integris. Para mim, o "Nos essencial" tem
carter liminar, pois a duraco implica institucionaliza9o e repetifo, enquanto a comunidade (que, aproximadamente, equivale "communitas" espontnea) sempre completamente nica, e por conseguinte socialmente
transitoria. As vezes Buber parece desorientado sobre a
possibilidade de converter esta experiencia de reciprocidade em formas estruturais. A "communitas" espontnea nao pode n u n c a ser expressa adequadamente
numa forma estrutural, mas pode surgir de modo imprevisvel em qualquer tempo entre os seres humanos que
sao institucionalmente contados ou definidos como membros de algum tipo, ou de todos os tipos, de agrupamento social, ou de nenhum. Assim, como na sociedade
pr-letrada, os ciclos de desenvolvimento individuis e
166
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da msica "rock" e de luzes falseantes, tentam estabelecer a "total" comunho de uns com os outros. Esperam
e acreditam que isto os torne capazes de atingir uns aos
outros pelo drglement ordonn de toas les sens, numa
reciprocidade terna, silenciosa, cognoscitiva e numa completa concretidade. O tipo de "communitas" desejado
pelos homens tribais nos seus ritos e pelos "hippies"
nos seus "happenings" nao a camaradagem aprazvel
e sem esforco, que pode surgir entre amigos, colaboradores e colegas de profisso, em qualquer tempo. O que
buscam urna experiencia transformadora, que vai at
as razes do ser de cada pessoa, e encontra nessas
razes algo profundamente comunal e compartilhado.
A homologa etimolgica freqentemente estabelecida
entre as palavras "existencia" e "xtase" tem cabimento
neste caso; existir "estar fora", isto , estar fora da
totalidade das posicoes estruturais que normalmente una
pessoa ocupa num sistema social. Existir estar em
xtase. Porm para os "hippies" como tambm para
muitos "movimentos mlenaristas e "entusisticos" o
xtase da "communitas" espontnea considerado o fin
do esforc.o humano. Na religio das sociedades pr-industriais, este estado considerado mais como um meio
para o individuo atingir o fim que consiste em tornar-se
mais plenamente envolvido na rica multiplicidade do desempenho estrutural de funcoes. Nisto existe, talvez,
maior sabedoria, pois os seres humanos sao responsveis uns peirante os outros no provimento das necessidades modestas, tais como alimentaeao, bebida, roupa,
cuidadoso ensino das tcnicas materiais e sociais. Essas
responsabilidades implicam urna cuidada ordenaco dos
relacionamentos h u m a n o s e do conhecimento que o
homem tem da natureza. Ha um misterio de distancia
mutua, aquilo que o poeta Rilke chamou "a circunspecto
do gesto humano", que to humanamente importante,
quanto o misterio da intimidade.
Mais urna vez volvemos necessidade de visualizar a
vida social do homem como um processo, ou antes,
como urna multiplicidade de processos, no qual o car-
169
ter de um tipo de fase onde suprema a "communitas" difere profundamente, at de modo abissal, do
carter de todos os outros. A grande tentago humana,
encontrada de maneira preeminente entre os utopistas,
est em resistir a renunciar as boas e aprazveis qualidades daquela fase a fim de abrir caminho para aquilo
que pode ser os necessrios sofrimentos e perigos da
fase seguinte. A "communitas" espontnea ricamente
carregada de sentimentos, principalmente os prazerosos.
A vida na "estrutura" est cheia de dificuldades objetivas: devem ser tomadas decises, as inclinages precisam ser sacrificadas aos desejos e necessidades do
grupo e os obstculos fsicos e sociais so sao superados
a custa de esforgos pessoais. A "communitas" espontnea tem algo de "mgico". Subjetivamente, ha nela o
sentimento de poder infinito. Mas este poder nao transformado difcilmente pode ser aplicado aos detalhes de
organizado da existencia social. Nao sucedneo para
o pensamento lcido e para a vontade firme. Por outro
lado, a ago estrutural prontamente se torna rida e
mecnica se a q u e l e s que nela esto envolvidos nao
forem peridicamente imersos no abismo regenerador da
"communitas". A sabedoria consiste sempre em achar a
relacao adequada entre estrutura e "communitas", as
circunstancias dadas de tempo e lugar, em aceitar cada
modalidade quando dominante sem rejeitar a outra,
e em nao se apegar a urna quando seu mpeto atual
est esgotado.
A repblica de Gonzalo, como Shakespeare parece
irnicamente indicar, urna fantasa ednica. A "communitas" espontnea urna fase, um momento, nao
urna condigno permanente. No momento em que um pau
de cavar fincado na trra, em que um potro domado,
em que se procura proteco contra urna alcatia de
lobos ou um inimigo do homem posto em fuga, temos
os grmes de urna estrutura social. Esta nao apenas
o conjunto de grilhes em que os homens por toda
parte estao, mas os prprios meios culturis que preservam a dignidade e a liberdade, bem como a exis-
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homem e outro, e entre o homem e a natureza. As abstraces parecem como hostis ao contato vivo. William
Blake, por exemplo, um grande expoente literario da
"communitas" em Prophetic Books, escreveu que "quem
quiser fazer o bem aos outros deve faz-lo em diminutos
pormenores; o bem geral o pretexto dos hipcritas
e dos velhacos".
Porm, como outros videntes de antigs e modernas
"communitas", S. Francisco tomou muitas decises essenciais com base no simbolismo dos sonhos. Por exemplo, antes de decidir demitir-se da directo oficial da
Ordem em 1220, "sonhou com urna pequea galinha
preta que, apesar de tentar o mais possvel, era demasiado pequea para cobrir com as asas toda a ninhada".
Pouco mais tarde, suas deficiencias c o m o legislador
foram-lhe reveladas em outro sonho, no qual "tentava
em vo alimentar seus irmos famintos com migalhas
de pao que Ihe escorregavam por entre os dedos" (p.
34). Foi sem dvida o prprio carter concreto de seu
pensamento e, se conhecssemos os fatos relativos ao
seu ambiente social, a multivocidade do seu simbolismo
que fizeram de S. Francisco um mediocre legislador. A
criacjo de urna estrutura social, especialmente dentro da
moldura protoburocrtica da Igreja Romana, tria exigido urna tendencia abstraco e a generalizarlo, urna
capacidade de produco de conceitos unvocos e urna
perspicacia generalizadora; e estas se oporiam ao imediatismo, espontaneidade e, sem dvida, direta
mundanidade da nogo da "communitas" de S. Francisco. Alm disso, S. Francisco, como outros antes e depois
dele, nunca foi capaz de superar as limita^oes numricas que parecem atacar os grupos que levam ao mximo a "communitas" existencial. "S. Francisco foi um
chefe espiritual supremo de pequeos grupos. Mas era
incapaz de prover a organizado impessoal requerida
para a manutenco de urna rdem que se espalhou pelo
mundo inteiro" (p. 36).
Recentemente, Martin Buber (1966) examinou o problema e afirmou que "urna comunidade orgnica e
sement essas comunidades podem reunir-se para for-
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Em tudo quanto dissemos, S. Francisco parece deliberadamente ter compelido os frades a habitarem as
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Segundo Lambert:
A figura principal no espirito'de S. Francisco... a imagem
do Cristo n . . . A nudez era um smbolo de grande importancia para S. Francisco. Usava-o para marcar o comec,o e o
fim de sua vida convertida. Quando quis repudiar os bens de
seu pai entrar para a religio, ele o fez despindo-se e cando
n no palacio do bispo, em Assis. No fim da vida, quando
morria em Porcincula, obrigou seus companheiros a despi-lo,
a fim de que pudesse enfrentar a morte sem roupas, no chao
da cabana .. Quando dorma, era sobre a trra n u a . . . Por
duas vezes, preferiu abandonar a mesa dos frades e sentar-se
na trra nua para comer sua refeigo, impelido, em cada urna
dessas ocasies, pelo pensamento da pobreza de Cristo (p. 61).
A pobreza de Cristo, claramente, tinha "imensa significago emocional" para S. Francisco, que considerava
a nudez como o principal smbolo da emancipado da
sujeigo econmica e estrutural, assim como das coac.es
exercidas sobre ele por seu pai terreno, o rico negociante de Assis. Para ele a religiao era a "communitas",
entre o homem e Deus e entre os homens uns com os
outros, vertical e horizontalmente por assim dizer, e a
pobreza e a nudez constituan! ambas smbolos exprssivos da "communitas" e instrumentos para alcanc.-la.
Mas sua noc.5o imaginativa da pobreza, como sendo a
absoluta pobreza de Cristo, era difcil de ser posta eni
prtica por um grupo social forjado pela Igreja a institucionalizar sua organizado, a rotinizar nao apenas o
carisma do fundador mas tambm a "communitas" de
seu comego espontneo, e a formular em termos legis
precisos sua relago coletiva com a pobreza. A propriedade e a estrutura esto indissoluvelmente entrelazadas,
e a constitui?o de unidades sociais duradouras incorpora ambas as dimensoes, bem como os valores centris
que legitimizam e a forma de ambas.
A medida que a Ordem Franciscana perdurava no
tempo, desenvolveu-se no sentido de tornar-se um sistema estrutural, e quando isto aconteceu a sincera simplicidade das f o r m u l a c . 5 e s de S. Francisco sobre a
propriedade, na Regra original, deram lugar a defini?5es mais legalistas. De fato ele dera apenas duas lacnicas instruyes, na primeira Regra de 1221 e na
Regra revista, de 1223. Na primeira, diz indiretamente,
em um captulo referente primordialmente ao trabalho
manual dos frades e posse de seus estabelecimentos:
"Que os irmos sejam cuidadosos, onde quer que estejam, nos eremitrios ou em outras residencias, a fim
de que nao se apropriem de um estabelecimento para
si mesmos ou o mantenham contra algum" (Boehnier,
p. 8-11, linhas 5-7). Em 1223, houve urna ampliafo
deste preceito: "Que os irmos nao se apropriem de
nada para si mesmos, nem de urna casa, nem de um
estabelecimento, nem de qualquer coisa". Poder-se-ia
Desde o inicio a Ordem dos Franciscanos lanc.ou rebentos, e dentro de algumas dcadas aps a morte do
fundador encontramos os irmos em militas partes da
Italia, Sicilia, Franga, Espanha e at mesmo empreendendo viagens missionrias Armenia e Palestina.
Desde o principio, tambm, a pobreza e a vida errante
na realidade, o entusiasmo dos frades levou-os a
serem olhados com suspeita pelo clero secular, organizado em divisSes locis, as ss e as parquias. Nestas
circunstancias, segundo ressalta Lambert, a idia de S.
Francisco sobre a pobreza que, como vimos, associase "communitas" existencia! "to extremada que
tena de causar imensas dificuldades logo que devesse
ser aplicada nao a um bando de frades errantes, mas
a urna ordem em desenvolvimento, com problemas de
local para morar, aprendizagem, irmos doentes e outros
semelhantes" (p. 68). Mais dificis ainda eram os problemas de continuidade estrutural, concernentes manipula?o de recursos, que punham em agudo relevo a
questo da natureza da propriedade. Esta ltima questo tornou-se quase urna obsesso na Ordem, durante
o sculo que se seguiu morte de S. Francisco, e teve
cmo conseqncia a divisao dlas em dois ramos prin-
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pensar que estas expressoes sao absolutamente inequvocas, porm toda estrutura em desenvolvimento gera
problemas de organiza?o e valores que provocam a
redefinico dos conceitos centris. Freqentemente isto
interpretado como contemporiza?o e hipocrisia, ou
perda de fe, mas na realidade nada seno a resposta
racional a urna alterac.o na escala e na complexidade
das relac.oes sociais e, juntamente com aquelas, a urna
mudanza na localizafo do grupo no campo social que
ocupa, com as concomitantes transformares de suas
principis finalidades e dos meios para atingi-las.
OS ESPIRITUAIS CONTRA OS CONVENTUAIS.
CONCEITUALIZACAO E ESTRUTURA
"A influncia de sucessivos papas era muito naturalmente dirigida no Sentido de fazer dos franciscanos, tal como da Ordem
rival dos dominicanos, um instrumento adequado de seus planos
de ao, tanto espiritual quanto poltica. Para esta finalidade,
a pobreza extrema tendia a ser, geralmente, um estorvo. Os
benfeitores pertencentes ao mundo exterior, que se sentiam
atrados pela austeridade da pobreza francisana, tiveram um
papel no enfraquecimento desta, ao fazerem donativos difceis
de serem recusados. Os prprios frades, os nicos verdadeiros
guardies de sua observncia, demasiadas vezes no se interessavam suficientemente por proteger sua pobreza contra 'pessoas
do mundo exterior que, movidas por altos propsitos, desejavam aliviar-lhes a carga. De fato, foram sobretudo os membros
da ordem, e no quaisquer personagens do mundo exterior por
exaltadas que fossem, cs responsveis pela evoluo do idea'
franciscano que, nos primeiros vinte anos, levou os irmos
com tanta rapidez a um ponto to distante da vida primitiva
de S. Francisco e de seus companheiros" (p. 70).
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"DOMINIUM" E "USUS"
Algum dia os antroplogos daro plena ateno ao domnio, com freqncia esplendidamente documentado, da
poltica religiosa medieval, onde podero acompanhar os
processos polticos atravs dos tempos com alguns de^
talhes durante sculos. Neste ponto desejaria apenas
acentuar que o primitivo grupo de livres companheiros
de S. Francisco grupo no qual a "communitas" normativa mal se desvencilhara da "communitas" existencial
no poderia ter perdurado se no se organizasse
para se manter em um campo poltico complexo. Contudo, a memria da "communitas" original, exemplificada pela vida, vises e palavras de S. Francisco, conservou-se sempre viva na ordem, especialmente pelos
espirituais, e de maneira notvel por homens como Joo
de Parm, ngelo da Clareno, Olivi e Libertino. Mas,
desde que pr sucessivas bulas papais e pelas obras de
So Boaventura, a doutrina da pobreza absoluta foi
[jurdica e teologicamente definida, os espirituais viramse forados a uma atitude "estrutural" em relao
pobreza.
Na definio formal, a noo de propriedade tinha
t sido separada em dois aspectos: dominium (ou propriel/as) e usus. O dominium significa essencialmente os diireitos sobre a propriedade, o usus, o efetivo manuseio
;e o consumo da propriedade. Ora, o papa Gregrio IX
l declarou que os franciscanos deveriam conservar o usus,
[mas renunciar ao dominium, de qualquer espcie. A prin cpio os franciscanos pediram a seus benfeitores o
[direito de conservar o dominium, mas logo depois com preenderam que seria mais conveniente chegar a um
acordo completo, e colocar o dominium sobre todos os
seus bens nas mos do papado. Foi a respeito das conseqncias prticas do usus que pela primeira vez o
componente ideolgico da ruptura entre conventuais e
espirituais se configurou tornando-se finalmente um smbolo diacrtico da oposio entre ambos. Pois os con[ventuais, orientados mais no sentido da estrutura, to-
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A "COMMUNITAS" APOCALPTICA
As noes da "communitas" no esto sempre asso[ ciadas a vises ou teorias de uma catstrofe universal.
[Nas iniciaes tribais, por exemplo, encontramos, pelo
[menos implicitamente, a noo da absoluta pobreza colmo sinal de comportamento liminar. Mas no encontrarmos as idias escatolgicas dos movimentos quilisticos.
l Todavia, muito freqentemente descobrimos que o conJceito de ameaa ou de perigo para o .grupo e de fato
[existe habitualmente um real perigo na faca do circunfcisor ou do cicatrizador, nos muitos ordlios e na disJciplina severa est presente de modo muito relevante.
|E este perigo um dos principais ingredientes na profduo da "communitas" existencial, como a possibiliIdade de .uma "viagem m", para a "communitas" das
idrogas de determinados habitantes de uma moderna ciidade que tem o nome de S. Francisco. Nas iniciaes
jtribais, t a m b m, encontramos mitos e suas sanes
Irituais na liminardade, que se relacionam com catstrofes e crises divinas, como a matana ou auto-imolao
Ide importantes divindades para o bem da comunidade
ihumana, e que localizam a crise no passado vivo ou no
jfuturo iminente. Mas, quando a crise tende a ser coloJcada preferentemente antes, e no depois ou dentro da
experincia social contempornea, j comeamos a entrar
|na ordem da estrutura e a considerar a "communitas"
como um momento de transio e no como um modo
stabelecido de ser ou um ideal que ser em breve perImanentemente atingido.
O MOVIMENTO SAHAJIYA DE BENGALA
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A doutrina do Sahajly difere da ortodoxia do Vaisnava pelo fato de que esta ltima prescrevia a unio
sacramentai entre cnjuges, enquanto que os discpulos
de Caitanya, conforme vimos, preceituavam as relaes
sexuais rituais entre um devoto e a mulher de outro.
O prprio Caitanya tinha uma companheira ritual deste
tipo, "a filha de Sathi, cujo pensamento e corpo eram
devotados a Caitanya"! Convm observar que os parceiros rituais dos Gosvmins, os primitivos companheiros de Caitanya e os expositores da teologia Sahajy,
eram "mulheres de ... grupos sem castas, lavadeiras
ou mulheres de outras castas baixas" (1966a, p. 127).
De fato, as prprias gopls eram vaqueiras e, por conseguinte, no pertenciam casta mais alta. Esta qualidade da "communitas" de no reconhecer as distines
hierrquicas estruturais efetivamente de todo tpica do
Sahajly e do Vaisnavismo, como uma totalidade.
A DIVISO ENTRE DEVOCIONAIS E
CONSERVADORES
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i
Os sucessores de Caitanya malograram porque o grupo
de Advaita foi absorvido pelo sistema de castas e o
grupo de Nitynanda, exclusivista e cheio de fervor
missionrio, foi muito perseguido e gradualmente perdeu o
nimo da luta. Historicamente, o fluxo do sahajynismo
parece ter lentamente declinado nos sculos XVII e
XVIII, apesar do vaisnavismo ser ainda uma fora ativa
em Bengala, segundo Dimock. Por exemplo, a seita de
msicos conhecidos como baules, que tocam um "instrumento primitivo, mas obsessivo, de uma s corda, chamado 'ek-tara'", e que cantam "canes suaves emocionantes como o vento, que o seu lar", esta seita
afirma estar "enlouquecida plo som da flauta de Krishna
e, tal uma gopi, no dando nenhuma importncia ao
lar nem tendo respeito para com o mundo, segue o som
da flauta" (1966a, p. 252). Um fascinante exemplo da
convergncia, nas modernas condies de transporte e
de comunicao, dos liminares ocidentais e orientais, e
dos portadores da "communitas" pode ser encontrado
atualmente em muitas lojas de discos. A capa de um
recente disco de canes de Bob Dyjan mostra o popular cantor americano, porta-voz dos indivduos estru-.
turalmente inferiores, ladeado por baules, esses msicos
errantes de Bengala. O violo e o ek-tara se reuniram.
E' ainda mais fascinante considerar a freqncia com
que as xpreses da "communitas" esto culturalmente
ligadas aos instrumentos simples de sopro (flautas e
gaitas) e aos instrumentos de corda. Talvez, alm de
serem facilmente transportveis, seja a capacidade de
traduzir em msica a qualidade da "communitas" humana espontnea, o que justifica o amplo uso de tais
instrumentos. Os baules, como S. Francisco, eram "trovadores de Deus". Seria adequado encerrar este captulo
com uma de suas canes, que claramente indica como
o esprito da "communitas" vaisnava tem persistido no
mundo de hoje:
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Humildade e Hierarquia.
A Liminaridade de Elevao
e de Reverso de Status
OS RITUAIS DE ELEVAO
E DE REVERSO DE "STATUS"
i
VAN GENNEP, o PAI DA ANLISE PROCESSUAL FORMAL,
utilizava-se de dois grupos de termos para descrever as
trs fases da passagem de um estudo ou condio, culturalmente definido, para outro. No apenas empregou
com referncia primeira ao ritual, os termos em srie
separao, margem e reagregao, mas tambm com
referncia primeira a transies espaciais, empregou os
termos pr-liminar, liminar e ps-liminar. Quando discute o primeiro conjunto de termos e os aplica aos
dados, Van Qennep insiste no que eu chamaria de aspectos "estruturais" da passagem. Por outro lado o uso
que faz do segundo conjunto indica seu interesse fundamental pelas unidades de espao e de tempo, nas quais
o comportamento e o simbolismo se acham momentaneamente libertados das normas e valores que governam
a vida pblica dos ocupantes de posies estruturais.
Neste ponto a liminaridade torna-se central e ele fez
emprego de prefixos unidos ao adjetivo "liminar", para
indicar a posio perifrica da estrutura. Quero significar por "estrutura", tal como antes, a "estrutura social",
conforme tem sido usada pela maioria dos antroplogos
sociais britnicos, isto , como uma disposio mais ou
menos caracterstica de instituies especializadas mutua-
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mente dependentes e a organizao institucional de posies e de atores que elas implicam. No me refiro
"estrutura" no sentido tornado popular por Lvi-Strauss,
ou seja, concernente a categorias lgicas e forma das
relaes entre elas. Na realidade, nas fases liminares
do ritual costuma-se muitas vezes encontrar a simplificao, at mesmo chegando a ser eliminao, da estrutura social no sentido britnico e a ampHficao da
estrutura no sentido de Lvi-Strauss. Encontramos relaes sociais simplificadas, enquanto o mito e o ritual
so complexos. A razo disto muito simples de ser
compreendida: se a liminaridade considerada como um
tempo e um lugar de retiro dos modos normais de ao
social, pode ser encarada como sendo potencialmente um
perodo de exame dos valores e axiomas centrais da
cultura em que ocorre.
Neste captulo, focalizaremos principalmente a liminaridade, como fase e como estado. Nas grandes e
complexas sociedades a liminaridade, resultando da
progressiva diviso do trabalho, tornou-se freqentemente um e s t a d o religioso ou semi-religioso e, em
virtude desta cristalizao, mostrou-se propensa a reingressar na estrutura e a receber um inteiro suplemento
de papis e posies estruturais. Em lugar da cabana
de recluso temos a igreja. Mais que isto, desejo distinguir dois tipos principais de liminaridade embora
muitos outros venham a ser sem dvida descobertos
primeiro , a liminaridade que caracteriza os ritos de
elevao de "status" nos quais o sujeito do ritual, ou o
novio, conduzido irreversivelmente de posio mais
baixa para outra mais alta, em um sistema institucionalizado de tais posies. Em segundo lugar, a liminaridade encontrada com freqncia .no ritual cclico e
ligado ao calendrio, em geral de tipo coletivo, no qual,
em determinados pontos culturalmente definidos do ciclo
das estaes, grupos ou categorias de pessoas que habitualmente ocupam baixas posies na estrutura social,
so positivamente obrigadas a exercer uma autoridade
ritual sobre seus superiores, devendo estes, por sua vez,
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A ELEVAO DE "STATUS"
maneira particularmente vivida, em muitos rituais africanos de investidura. O futuro ocupante da chefia ou
do comando primeiramente separado da vida comum,
devendo em seguida submeter-se a ritos liminares que
o rebaixem rudemente antes de, nas cerimnias de readmisso, ser instalado em seu trono na glria final. J
tratei dos ritos de investidura dos ndembos (cap. 3),
onde o futuro chefe e sua esposa ritual so rebaixados
e repreendidos durante uma noite de recluso numa
pequena cabana por muitos de seus futuros sditos.
Outro exemplo africano do mesmo padro vivamente
contado no relato de Du Chaillu (1868) sobre a eleio
de "um rei de Gabo". Depois da descrio dos ritos
funerrios pelo velho rei, Du Chaillu descreve como os
ancios "da aldeia" escolhem secretamente um novo rei,
o qual " mantido ignorante de sua boa sorte at o
ltimo momento".
"Aconteceu que Njogoni, um bom amigo meu, foi eleito. A
escolha recaiu nele em parte porque provinha de boa famlia,
mas principalmente porque era o favorito do povo e poderia
conseguir a maioria dos votos. No creio que Njogoni tivesse
a menor suspeita sobre a sua elevao. Quando andava pela
praia, na manh do stimo dia (aps a morte do rei precedente),
o povo inteiro caiu sobre ele, de repente, dando incio a uma
cerimnia que antecede cproao (e, deve ser considerada
liminar no complexo de ritos funerrios totais de investiduras)
e que tem a finalidade de dissuadir at o mais ambicioso dos
homens a aspirar coroa. Cercaram-no numa densa multido,
e ento comearam a cobri-lo com todas as espcies de maus
tratos que a pior das plebes possa imaginar. Alguns cuspiamlhe no rosto, davam-lhe socos; outros, ainda, davam-lhe pontaps, lanavam-lhe objetos repugnantes, enquanto os infelizes
que estavam a distncia e no podiam alcanar o coitado seno
com a ivoz, permanentemente amaldioavam a ele e o pai, a
me, as irms e os irmos, e todos os ancestrais dele at a
mais remota gerao. Um estranho no daria um Centavo pela
vida daquele homem que estava para ser coroado.
N meio de todo o barulho e de toda luta, apreendi as palavras qu me derajn a explicao de tudo isto. Com intervalos
de poucos .minutos, um indivduo dava-lhe um soco ou um
pontap, .gritando: "No s ainda nosso rei; durante alguni
tempo faremos o que quisermos contigo. Dentro em breve, ns
que teremos de fazer a tua vontade".
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bloqueada por sentimentos poderosos que sempre surgem nas transies sociais decisivas.
Pode haver outro aspecto da funo do mascaramento
nas festas norte-americanas de Halloween e nos mitos
e rituais dos caiaps, assim como em outras manifestaes
culturais. Anna Freud teve muitas coisas esclarecedoras
a dizer sobre a freqente identificao das crianas, nos
jogos, com os animais, ferozes e outros seres ameaadores e monstruosos. O argumento da Srta. Freud
cuja fora, reconhecidamente, provm da posio terica
de seu famoso pai complexo mas coerente. Na fantasia infantil, o que toma a forma animal o poder
agressivo e punitivo dos pais, em particular o pai, especialmente com referncia ameaa paterna, bastante conhecida, de castrao. Ela chama a ateno para o terror
quase irracional que as crianas pequenas sentem pelos
animais ces, cavalos e porcos, por exemplo - medo
normal, explica ela, aumentado pelo medo inconsciente
do aspecto ameaador dos pais. Declara ento que um
dos mecanismos de defesa mais eficaz utilizado pelo
"ego" contra tal temor inconsciente consiste na identificao coni o objeto aterrorizador. Desta maneira, sentese que lhe foi roubado o poder, talvez, at que o poder
possa ser retirado dele.
Para muitos psiclogos adeptos da psicologia profunda, tambm, a identificao significa substituio.
Retirar o poder de um ser forte enfraqec-o. Desse
modo, as crianas, com freqncia, brincam fingindo-se
de tigres, lees, onas, salteadores, ndios ou monstros.
Elas esto assim, segundo Anna Freud, identificando-se
inconscientemente com os prprios poderes que as ameaam profundamente e, numa espcie de jiu-jitsu, fortalecendo seus prprios poderes pessoais, por meio do
poder que ameaa enfraquec-las. H em tudo isto, naturalmente, uma qualidade traioeira inconscientemente, a pessoa visa a "matar a coisa que ama" e esta
precisamente o tipo de comportamento que os pais
generalizados devem esperar de crianas 1 generalizadas,
dentro dos costumes do Halloween norte-americano. Fa-
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porque se acredita que as irregularidades histricas concretas alteram o equilbrio natural entre as categorias
estruturais julgadas permanentes.
A "COMMUNITAS" E A ESTRUTURA, NOS
RITUAIS DE REVERSO DE "STATUS"
"communits". Isto particularmente verdadeiro nas felaes entre categorias e grupos sociais ordenados em
posies muito altas e muito baixas, embora seja vlido
para as relaes entre os ocupantes de qualquer classe
ou posio social. Os homens usam a autoridade de que
seu cargo se reveste para abusar dos ocupante de
posies mais inferiores, prejudic-los confundindo a posio com a pessoa dela incumbida. Os rituais de reverso de "status", quer estejam colocados em pontos
estratgicos no ciclo anual, quer sejam provocados por
calamidades consideradas como o resultado de graves
pecados sociais, so tidos como restabelecedores da estrutura social e da "communits", mais uma vez, em sua
correta relao mtua.
Para servir de ilustrao, cito. um exemplo bem conhecido, tirado da l i t e r a t u r a antropolgica, referente
cerimnia Apo, dos ashantis do norte de Gana. Esta
cerimnia, que Rattray (1923) pde observar entre os
povos tekimans, realiza-se durante os oito dias que precedem imediatamente o ano novo dos tekimans, o qual
comea a dezoito de abril. Bosman (1705), o, antigo
historiador holands da Costa da Quine, descreve o que
Rattray chama "indubitavelmente uma mesma cerimnia"
(p. 151), nos seguintes termos: h "... uma festa de
oito dias, acompanhada de toda espcie de cantos, saltos, danas, jbilo e alegria,; nesta poca permitida
uma perfeita liberdade de stira, e o escndalo to
altamente exaltado que podem falar livremente de todas
as faltas, vilanias e fraudes de seus superiores e dos
inferiores, sem que haja punies e mesmo a mnima
interrupo" :(Bosman, Carta X).
As observaes de Rattray confirmam com abundncia
de pormenores a caracterizao de Bosman. Ele deriva
o termo Apo de uma raiz que significa "falar rude ou
asperamente a algum", e indica que existe um outro
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termo para a cerimnia ahorohorua, possivelmente derivado do verbo horo, que quer dizer "lavar", "limpar".
Os ashantis estabelecem uma conexo positiva entre a
linguagem franca, rude e a purificao, conforme fica
demonstrado pelas palavras do velho sumo sacerdote do
deus Ta Kese, ditas em tekiman, a Rattray e literalmente
traduzidas por ele:
"Sabeis que cada um de ns tem uma sunsum (alma) que
pode ferir-se, ser tratada com violncia ou adoecer, tornando
deste modo o corpo doente. Com muita freqncia, apesar de
existirem outras causas, por exemplo a feitiaria, a m sade
causada pelo mal e pelo dio que outra pessoa tem no pensamento contra vs. Por outro lado, vs tambm podeis ter
dio no corao contra outro indivduo, por algo que este
lhe tenha feito, e isto tambm faz com que sua sunsum fique
atormentada e adoea. Nossos antepassados sabiam que isto
o que acontece, e assim estabeleceram uma poca, uma vez
por ano, em/que homem e mulher, livre ou escravo, teria liberdade de falar em voz alta tudo o que tivesse na cabea,
de dizer aos vizinhos o que pensava deles e de suas aes, e
no somente aos vizinhos mas tambm ao rei ou ao chefe.
Quando um homem falou assim livremente, sentir a sunsum
tranqila e acalmada, e a sunsum da outra pessoa contra
quem ele acabou de falar abertamente tambm se sentir acalmada. O rei dos ashantis pode ter morto vossos filhos e por
esta razo o odiais. Isto o faz ficar doente e vs tambm.
Se vos foi permitido dizer-lhe na cara o que pensais, ambos
se sentiro beneficiados" (p. 153).
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tipo quando uma grande rea territorial de uma sociedade tribal ameaada por alguma calamidade natural,
como uma praga de insetos, a fome ou a seca. O Dr.
Peter Rigby (1968) publicou recentemente uma descrio detalhada de ritos femininos deste gnero, entre os
gogs da Tanznia. Estes ritos foram cuidadosamente
discutidos em outros trabalhos por autoridades como
Eileen Krige, Gluckman, e Junod. Assim, indicarei apenas
que em todas as situaes nas quais se verificam existe
a crena de que os homens, alguns dos quais ocupando
posies importantes na, estrutura social, de algum modo
incorreram no desagrado dos deuses ou dos ancestrais,
ou, noutra interpretao, alteraram tanto o equilbrio
mstico entre a sociedade e a natureza, que as perturbaes da primeira provocaram anormalidades na ltima.
Resumindo, os superiores estruturais, por suas dissenses sobre interesses particulares ou setoriais, trouxeram
a desgraa para a comunidade local. Compete ento aos
indivduos estruturalmente inferiores (no exemplo zulu,
s mulheres jovens, normalmente sob a ptria potestas
dos pais ,ou a manas dos maridos), representando a
"communitas" ou a comunidade global que transcende
todas as divises internas restabelecer as coisas em
seu devido lugar. Para tal fim usurpam simbolicamente
por um curto perodo de tempo as armas, as vestimentas, os atavios e o estilo de comportamento de superiores
estruturais, isto , os homens. Mas uma velha forma tem
agora um novo contedo. A autoridade agora exercida
pela prpria "communitas", mascarada de estrutura. A
forma estrutural despoja-se dos atributos egostas e se
purifica pela associao com os valores da "communitas". A. unidade que fora q u e b r a d a pela discrdia
egosta e por ocultos maus sentimentos restaurada por
aqueles que so normalmente considerados estarem situados abaixo da batalha pelas posies jurdicas e
polticas. Mas a palavra "abaixo" tem dois sentidos:
no significa somente o que estruturalmente inferior;
significa tambm a base comum de toda vida social
222
REVERSO DE "STATUS" NA
"FESTA DO AMOR" NA ALDEIA INDIANA
Resumindo nossas descobertas at agora feitas sobre os
rituais de reverso de "status", podemos dizer o seguinte: o mascaramento dos fracos com uni poder agressivo
e o concomitante mascaramento dos fortes com humildade e passividade so estratagemas que purificam a
sociedade de seus "pecados" produzidos estruturalmente, o que os "hippies" chamariam de "hang-up" [problema ou dificuldade, especialmente de natureza pessoal
ou emocional e primeira vista sem soluo].* Fica
assim constitudo o palco para uma experincia exttica
da "communitas", seguida do sbrio retorno a uma estrutura agora e x p u r g a d a e reanimada. Uma das
melhores descries "por dentro" deste processo ritual
Nota do Tradutor.
223
encontra-se em um artigo escrito pelo sbrio e desapaixonado analista da sociedade da aldeia indiana, Professor McKim Marriott (1966). Estuda o festival Holi,
na aldeia de Kishan Garhi, "localizada do lado oposto
do Juman, para quem vem de Mathura e Vrindaban,
distante um dia de caminhada da terra lendria de Vraja
do jovem Krishna. "Realmente, a divindade que preside
os ritos Krishna, e os ritos narrados a Marriott como
"festas de amor" eram um festival da primavera, a
"maior celebrao religiosa do ano". Como um inexperiente pesquisador de campo, Marriott tinha sido mergulhado nos ritos no ano anterior, fora levado com
engodos a beber uma mistura contendo maconha, foi
untado com ocre e jovialmente espancado. No ano seguinte, refletiu sobre qual seria a funo social desses
turbulentos ritos, maneira de Radcliffe-Brown:
"Passei agora um ano inteiro em minhas investigaes, e o
Festival do Amor se aproximava outra vez. Mas uma vez eu
ficava apreensivo pela minha pessoa fsica, mas estava prevenido com o conhecimento da estrutura social que podia produzir uma melhor compreenso dos acontecimentos que iriam
ocorrer. Desta vez, sem a dose de maconha, comecei a ver
o pandemnio de Holi encaixando^se numa ordenao social
extraordinariamente regular. -Era porm uma ordem exatamente
inversa dos princpios rituais e sociais da vida rotineira. Cada
ato tumultuoso no Holi implicava alguma regra ou fato positivos e opostos da organizao social diria na aldeia.
Quem eram aqueles homens sorridentes, cujas canelas estavam sendo impiedosamente espancadas pelas mulheres? Eram
os mais ricos fazendeiros brmanes e jts da aldeia, e as espancadoras eram as ardentes Rdhs locais, as "esposas da
aldeia", representando ao mesmo tempo o sistema de parentesco real e o fictcio existente entre as castas. A esposa de um
"irmo mais velho" era devidamente a companheira de pilhrias
de um homem, enquanto a esposa de um "irmo mais moo"
era devidamente apartada dele por regras de extremo respeito,
mas ambas estavam amalgamadas aqui com as substitutas da
me de um homem, as esposas dos "irmos mais moos de seu
pai", numa trama revolucionria de "esposas" que cruzavam
todas as linhas e laos menores. As mais intrpidas espancadoras desse batalho disfarado eram muitas vezes de fato as
esposas dos lavradores, artesos e criados, de baixa casta, dos
fazendeiros as concubinas e as ajudantes da cozinha d*s
224
225
AS RELIGIES DE HUMILDADE
E DE REVERSO DE "STATUS"
Examinamos at aqui os ritos liminares em sistemas
religiosos pertencentes a sociedades altamente estruturadas, cclicas e caracterizadas pela repetio. Gostaria
de prosseguir tentando indicar que possvel encontrar
uma distino semelhante que estabelecemos entre a
liminaridade dos ritos de elevao de "status" e a limi-
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229
AS PSEUDO-HIERARQUIAS
NO MILENARIANISMO DA MELANSIA
Apesar de a literatura sobre os movimentos religiosos e
semi-religiosos no apoiar completamente o ponto de
vista que venho defendendo, persistindo muitos problemas e dificuldades, h todavia fortes indcios de que as
formas religiosas que podem ser claramente atribudas
s atividades inventivas de grupos ou categorias estruturalmente inferiores em pouco tempo assumam muitas
das caractersticas externas das hierarquias. Tais hierarquias podem simplesmente inverter um escalonamento
secular, ou substituir inteiramente o arcabouo secular,
quer na estrutura eclesistica do movimento quer em
suas crenas escatolgicas. Bom exemplo de um movimento que tentou copiar na forma de sua organizao,
a estrutura social europia, pode ser encontrado em
Road Belong Cargo (1964), de Peter Lawrence. Eis o
que se encontra no programa de Yali, um dos profetas
madang da Melansia:
"O povo devia renunciar a viver em vilarejos e reunir-se em
grandes 'acampamentos', que teriam as casas construdas ao
longo de ruas enfeitadas de flores e de arbustos. Cada 'acampamento' devia ter uma nova 'Casa de Repouso', que j no
seria chamada haus kiap, mas haus yali. Seria utilizada por
Yali, quando visitasse o povo na qualidade de Oficial de Administrao. Cada 'acampamento' deveria ter latrinas adequadas,
e novas estradas seriam abertas, por toda a rea... Os velhos
chefes deveriam ficar sob a direo de 'patrezinhos', os quais
supervisionariam o trabalho de reconstruo e fiscalizariam a
execuo das ordens de Yali. A monogamia seria imposta, as
segundas esposas se divorciariam e se casariam com os homens
solteiros" (p. 160).
Outros aspectos de limitao da estrutura administrativa e da cultura material e religiosa europia foram
introduzidas neste "culto importado como carga". Muitos outros cultos importados tm caractersticas semelhantes de organizao e, em acrscimo, mantm a
crena de que os europeus sero expulsos ou destrudos, e seus prprios ancestrais e profetas vivos os go-
231
230
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P rontamente Pstos
na
233
Entre os "Anjos do Inferno", encontramos uma rplica da estrutura da organizao associativa secular,
mais do que uma reverso de "status". Entretanto,
existem elementos de reverso de "status" em suas
cerimnias de iniciao, durante as quais os Anjos novatos devem trazer para o ritual calas e jaquetas
novas e limpas, com a nica finalidade de mergulhlas em excrementos, urina e leo. Sua condio de sujos
e de maltrapilhos, "amadurecida" at ao ponto da desintegrao, um sinal de "status", que inverte o padro
"asseado e limpo" dos "cidados", aprisionados pelo
"status" e pela estrutura. Mas, apesar das pseudo-hierarquias, tanto os Vice-Lordes quanto os Anjos sublinham
os valores da "communitas". O Vice-Lorde "Teddy",
por exemplo, disse a respeito do pblico em geral: "E
ento eles logo disseram que tnhamos uma organizao. Mas tudo o que pensamos que somos apenas
camaradas" (Keyser, 1966). Thompson tambm insiste
com freqncia no carter da "unidade grupai" dos
"Anjos do Inferno". Assim, a pseudo-estrutura no parece ser incomparvel com a real "communitas". Esses
grupos brincam de estrutura e no se empenham seriamente na estrutura scio-econmica. Sua estrutura
principalmente "expressiva", embora tenha aspectos instrumentais, Mas as estruturas expressivas desse tipo
podem, em certas circunstncias, converter-se em estruturas pragmticas, como no caso das sociedades secretas
chinesas, tal a sociedade Trade estudada no livro The
Hung League (1866), de Gustave Schlegel. Igualmente,
a estrutura cerimonial da sociedade Povo da Serra Leoa
foi utilizada como base de uma organizao politicamente rebelde, na insurreio dos mendes, em 1898
(Little, 1965, passim).
AS RELIGIES DE HUMILDADE FUNDADAS
POR PERSONALIDADES COM ALTO "STATUS"
Buda
Como exemplos de fundadores religiosos estruturalmente
superiores ou bem estabelecidos, que pregaram os valores da humildade e da "communitas", poder-se-ia citar
Buda, So Francisco, Tolstoi e Gandhi. O caso de Jesus
menos ntido: enquanto Mateus e Lucas traam a
genealogia de seu pai Jos at o rei Davi, embora a
importncia e a posio social de um carpinteiro sejam
elevadas em muitas sociedades rsticas, Jesus habitualmente tido como "um homem do povo". Conta-se
que o pai de Buda era um importante chefe da tribo
dos sakiyas, e sua me Maha Maya era filha de um
rei vizinho numa regio ao sudeste do Himalaia. De
acordo com o relato admitido, Siddhrta, nome pelo qual
era o prncipe conhecido, viveu uma vida abrigada
durante vinte e nove anos atrs das paredes protetoras
do palcio real, espera de suceder ao pai. Em seguida, encontramos a clebre narrativa de suas trs
aventuras no mundo alm dos portes do palcio, com
o cocheir Channa, durante as quais deparou sucessivamente com um velho consumido pelo trabalho, um
leproso e um cadver em decomposio, e viu pela primeira vez a sina dos indivduos estruturalmente inferiores. Aps sua primeira experincia com a morte, quando
voltou ao palcio, ouviu o som de msica, celebrando
a chegada de seu primognito -e herdeiro, segurana
da continuidade estrutural da linhagem. Longe de ficar
satisfeito, sentiu-se perturbado por esta nova obrigao
no domnio da autoridade e do poder. Juntamente com
Channa, ele saiu s escondidas do palcio e vagueou
por muitos anos entre o povo comum da ndia, apren-
236
237
Finalmente, e em parte devido ao estudo da lei inglesa (principalmente as anlises de Snell sobre as
mximas da eqidade), Gandhi chegou a compreender
que o ensinamento mais profundo da no-possesso
significava que todos quantos desejavam a salvao
"deveriam agir como um depositrio de bens, o qual,
mesmo dirigindo grandes riquezas, no considera como
sua nem a parcela mais nfima delas" (p. 324). Foi
assim, embora por um caminho diferente, que Gandhi
chegou mesma concluso da Igreja Catlica no exame
do problema da pobreza franciscana: foi feita uma distino jurdica entre dominium (posse) e usus (admi238
Os Lderes Cristos
Na tradio crist, tambm houve inumerveis fundadores de ordens e seitas religiosas originrias da metade
superior do cone social e no entanto pregavam o estilo
de liminaridade das crises da vida como a via de salvao. Numa lista mnima, poder-se-ia citar os santos
Bento, Francisco, Domingos, Clara e Teresa de vila,
na esfera catlica; os wesleys, com a sua "vida modesta e pensamento elevado", George Fox, fundador dos
ququeres, e (para citar um exemplo norte-americano)
Alexandre Campbell, lder dos Discpulos de Cristo, que
procurou restaurar a primitiva cristandade e, em especial, as primitivas condies da fraternidade crist, na
esfera protestante. Esses lderes protestantes procediam
de slidas origens de classe mdia; apesar disto, procuraram desenvolver em seus adeptos um estilo de vida
simples, despretensiosa, sem distino de posies sociais mundanas. O fato desses movimentos posteriormente terem sucumbido ao "mundo" e na realidade,
conforme demonstra Weber, terem nele prosperado de
nenhum modo lhes impugna as intenes originais. Efetivamente, segundo vimos, o curso regular de tais movimentos consiste em reduzir a "communitas" de um
estado a uma fase entre exerccios de posies, numa
estrutura sempre em desenvolvimento.
Tolstoi
Gandhi foi fortemente influenciado no s por alguns
aspectos do hindusmo, mas tambm pelas palavras e
pela obra do grande anarquista e romancista cristo
239
Leo Tolstoi. "The Kingdon of God is Within You" escreveu Gandhi (1948), "dominou-me, deixando uma impresso duradoura em mim" (p. 172). Tolstoi, que era
um nobre rico e um famoso romancista, atravessou uma
crise religiosa quando tinha cerca de cinqenta anos.
Durante esta crise chegou mesmo a considerar o suicdio
uma fuga da falta de sentido e da superficialidade da
vida entre a classe alta, os intelectuais e os estetas. Foi
levado ento a pensar que "a fim de compreender a
vida, preciso compreender no uma vida excepcional
como a nossa, que somos parasitas na vida, mas a vida
do povo simples e trabalhador aqueles que fazem
a vida e o significado que eles lhe atribuem. O povo
trabalhador mais simples ao redor de mim era o povo
russo, e eu me voltei para ele e para o significado que
davam vida. Este significado, se possvel traduzilo em palavras, o seguinte: Todo homem veio a este
mundo pela vontade de Deus. E Deus fez o homem de
tal maneira que todo homem pode destruir sua alma
ou salv-la. A finalidade do homem na vida salvar
a alma, e para salvar a alma deve viver 'religiosamente'
e para viver 'religiosamente' deve renunciar a todos os
prazeres da vida, trabalhar, humilhar-se, sofrer e ser
compassivo" (1940, p. 67). Como todos sabem, Tolstoi fez
ingentes esforos para reproduzir suas crenas em sua
vida, e viveu como um campons at o fim de seus dias.
ALGUNS PROBLEMAS DE ELEVAO
E DE REVERSO
J foi dito o bastante para sublinhar, por um lado, a
afinidade existente entre a liminaridade dos rituais de
elevao de "status" e os ensinamentos religiosos dos
profetas, santos e mestres estruturalmente superiores, e
por outro lado a afinidade existente entre a liminaridade
dos rituais de reverso de "status", tanto os determinados pelo calendrio quanto os ligados a crises naturais,
e as crenas e prticas religiosas de movimentos domi-
240
241
243
relao entre uma estrutura institucionalizada e com lenta variao e um modo particular de "communitas", que
tende a ser localizado nesse tipo determinado de estrutura. Sem dvida, nas grandes e complexas sociedades,
com alto grau de especializao e de diviso de trabalho, com muitos elos associativos dos interesses individuais e geral enfraquecimento dos estreitos laos entre
grupos, a situao provavelmente ser muito diferente.
Num esforo para sentir a "communitas", os indivduos
procuraro tornar-se membros de pretensos movimentos
ideolgicos universais, cuja divisa bem poderia ser a
frase de Tom Paine: "o mundo a minha aldeia". Ou
ento iro coincidir com os pequenos grupos de "marginalizados", como as comunidades dos "hippies" ou
dos "diggers", de So Francisco e de Nova Iorque,
onde "a aldeia [de Greenwich ou que outro nome tenha]
o meu mundo". A dificuldade que esses grupos at
agora no conseguiram resolver que a "communitas"
tribal representa o complemento e o reverso da estrutura
tribal, e, ao contrrio dos utopistas do Novo Mundo,
dos sculos XVIII e XIX, no criaram ainda uma estrutura capaz de manter a ordem social e econmica por
longos perodos de tempo. A flexibilidade e a mobilidade das relaes sociais nas modernas sociedades industriais, entretanto, podero oferecer melhores condies para o surgimento da "communitas" existencial,
quanto mais no seja, somente em encontros transitrios
e inumerveis, do que qualquer forma anterior de ordem
social. E' provvel que seja isto que Walt Whitman quis
dizer, quando escreveu:
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B/o de Janeiro: Rua Senador Dantas, 118-1
Tel.: 242-9571