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TURNER, Victor. O Processo Ritual, Estrutura e Antiestrutura.

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O PROCESSO RITUAL

COLEQAO

O PROCESSO
RITUAL

ANTROPOLOGA

Estrutura e Antiestrutura

Orientafo de:

ROBERTO AUGUSTO DA MATTA

Vctor W. Turner

Unversldade de Chicago

Luiz DE CASTRO PARIA

Tradufo de
Nancy Campi de Castro

FICHA CATALOGRAFICA

(Preparada pelo Centro de Catalogago-na-fonte do


Sindicato Nacional dos Editores de Limos, GB)

T853p

Turner, Vctor W.
O Prooesso Ritual: estrutura e anti-estrutura;
tradugo de Nancy Campi de Castro. Petrpolis,
Vozes, 1974.
245p. ilust. 21cm (Antropologa, 7).
Do original ingls: The ritual process.
1. Ritos e cerimnias. 2. Ritos e cerimSnias
Zambia. 3. Ndembu (tribo africana) Aspectos
antropolgicos. 4. Etnologa Zambia. I. Ttulo.
II. Serie.

74-0360

CDD-301.2
301.296894
CDU-39
39(689.4)

PETRPOLIS
EDITORA VOZES LTDA.
1974

EMESU

IV

IntroduQo
Edigo Brasileira

1969 by Vctor W. Turner


First published 1969
by Aldine Publishing Company
Ttulo do original ingls:

THE RITUAL PROCESS

1974 da tradugo portuguesa


Editora Vozes Ltda.
Ra Frei Lus, 100
25.600 Petrpolis, RJ
Brasil
BIBLIOT.EC*

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DESDE SUA PUBLICADO EM 1969, O PROCESSO RITUAL TEVE QUATRO


reimpresses nos Estados Unidos e foi publicado ou est em
vas de ser lanzado em italiano, francs, japons, em ediges
britnicas e esta brasileira. Estou lisonjeado pelo fato de o livro
vir a pblico em lngua portuguesa devido as substanciis contribuices etnogrficas e teorticas que vm sendo dadas pelos
antroplogos brasileiros no estudo dos camponeses e indios deseu pas.
Apesar de O Processo Ritual ter sido escrito para antroplogos, parece ter chamado a atengo dos historiadores, psiclogos, crticos literarios, liturgos e historiadores das religies. E"
possvel que sua nfase sobre a sociedade como processo vital
em que episodios marcados por considerares scio-estruturais
foram seguidos de fases caracterizadas por antiestrutura social
(liminaridade e "communitas") provou ser mais fcil, a esses especialistas do que a orientaco dada pelas tradicionais escolas
de Sociologa que persistem em equiparar o social com o scioestrutural., Liminaridade a passagem entre "status" e estado
cultural que foram cognoscitivamente definidos e lgicamente _articulados. Passagens liminares e "liminares" (pessoas em passagem) nao esto aqui nem la, sao um grau intermediario. Tais
fases e pessoas podem ser muito criativas em sua libertaco dos
controles estruturais, ou podem ser consideradas perigosas do
f" to , de vista da manutengo da lei e da ordem. A "communitas um relacionamento no-estruturado que muitas vezes se
senvolve entre ''minares. E' um relacionamento entre individuos
oncretos, histricos, idiossincrsicos. Esses individuos nao esto
Amentados em func.5es e "status" mas encaram-se como seres
tn anS **a'S- A dinmica empregada no relacionamento con- v
e trutura social e
-da e"Str^nstitu
?
antiestrutura social a fonte de
sec laf J
'5es e problemas culturis. Arte, jogo, esporte,
cao e experimentago filosfica e cientfica, medram nos

I
interins reflexivos entre as posiges bem definidas e os dominios
das estruturas sociais e sistemas culturis. Poder-se-ia dizer que
no clculo do socio-cultural, a "communitas" e a liminaridade
representan! os zeros e os mnus sem os quais nao possvel
a um grupo social computar ou avaliar sua situago atual ou
seu porvir num futuro calculvel.
A dialtica estrutura / antiestrutura , na minha opinio, um
universal cultural que nao deve ser identificado com a relago
entre cultura e natureza, ponto importante do pensamento de
Claude Lvi-Strauss. Enquanto a "communitas" um relacionamento entre seres humanos plenamente racionis cuja emancipago temporaria de normas scio-estruturais assunto de escolha
consciente, a liminaridade muitas vezes, ela prpria, um artefato (ou "mentefato") de ago cultural. O drama da estrutura
e antiestrutura termina no palco da cultura. Este fato me animou a passar do estudo das culturas tribais para as que
possuam grandes tradiges no campo das letras. As pessoas da
floresta, do deserto e da tundra reagem aos mesmos processos
como as pessoas das cidades, das cortes e dos mercados. As
revoluges e reformas podem ser estudadas empregarido-se a
msma terminologa que se usa para o estudo dos produtos
(outputs) culturis das grandes e estveis civilizages. O Processo Ritual urna tentativa de compreender algo desse processo
social total de interago e interdependencia, bem como das disjunges, as vezes frutuosas, entre acontecimentos ordenados donde
se origina o pensamento independente.

VCTOR TURNER
Chicago, malo de 1974

Introdugo

LEWIS HENRY MORGAN FEZ PARTE DA UNIVERSIDADE DE ROCHESTR


desde a poca em que foi fundada. Ao morrer, legou Universidade manuscritos, biblioteca e recursos para a instituigo de
urna Faculdade para mogas. Exceto urna ala a que foi dado o
nome dele, e pertence ao atual edificio da Residencia Feminina,
sua figura ficou sem um marco comemorativo na Universidade,
at que as Conferencias "Lewis Henry Morgan" tiveram inicio.
Estas Preleges devem-se a urna feliz combinago de circunstancias. Em 1961, as familias de Joseph R. e Joseph C. Wilson
fizeram urna doago Universidade, para ser utilizada parcialmente na promogo das ciencias sociais. O Professor Bernard
S. Cohn, na poca Chefe do Departamento de Antropologa e de
Sociologa, sugeriu que a criago das Conferencias seria urna
homenagem oportuna a um grande antroplogo, e representara
adequado us para parte da doago. Tinha ele o apoio e a
assistncia do Diretor (mais tarde, Reitor) McCrea Hazlett, do
Diretor Arnold Ravin, e do Diretor Adjunto R. J. Kaufmann.
Os detalhes relativos as Conferencias foram elaborados pelo
Professor Cohn e demais membros de seu Departamento.
As "Conferencias Morgan" foram planejadas, inicialmente, para
constiturem tres series anuais, em 1963, 1964 e 1965, a seren
continuadas se as circunstancias assim o permitissem. Julgou-se
conveniente, no principio, que cada serie tratasse de um aspecto
Particularmente significativo da obra de Morgan. Assim sendo,
as Conferencias do Professor Meyer Fortes, em 1963, versaram
sobre parentesco; o Professor Fred Eggan dedicou atengo ao
'"dio americano e o Professor Robert M. Adams examinou urna
aceta particular do desenvolvimento da civilizago, concentran-se na sociedade urbana. As Conferencias do Professor Eggan
as do Professor Adams foram publicadas em 1966; as do Proes
sor Fortes devem ser publicadas em 1969.

As Conferencias do Professor Turner consideraran! reas nao


abordadas extensamente por Morgan, e, nesta reviso, levou a
explorago alm do que tinha feito primitivamente. Assim procedendo, isto , apresentando ao mesmo tempo a pesquisa acabada e sugestivas investigages, o Professor Turner apreendeu
com xito o espirito do modo de enfoque de Morgan, espirito
que as "Conferencias Morgan" tm por finalidade perpetuar.
Como aconteceu, na verdade. tambm em anos anteriores, a
visita do Professor Turner propiciou muitas ocasies para trocas
infornrais d idia's com diversos xpoerfts' da 'Cngregago e
com estudantes. Todos aqueles que participaran! dlas, lembrarse-o com agrado da contribuigo do Professor Turner para a
vida do Departamento, enquanto durou sua estada na Universidade. Suas conferencias originis, em que este livro se baseia,
foram pronunciadas na Universidade de Rochester, de 5 a 14 de
abril de 1966.

ALFRED HARRIS
Departamento de Antropologa
Universidade de Rochester

Prefacio

Os CONFERENCISTAS MORGAN, EM NMERO SEMPRE CRESCENTE,


devem, sem dvida, sentr-se entusiasmados, quando se lembrarem dos dias passados na Universidade de Rochester, em que
foram regiamente recebidos pelo Professor e pela Senhora Alfred
Harris, alm de seus hospitaleiros colegas, mas tambm interpelados e (algumas vezes) defendidos por um grupo de perspicazes estudantes, dotados daquela vivacidade que seria de esperar
ver neles em um dia primaveril. Sinto-me profundamente agradecido a ambos, estudantes e professores, por muitas valiosas
stigestes, que incorporei a este livro.
Inclu tres das quatro "Conferencias Morgan" formando os tres
primeiros captulos do livro. Em lugar da outra conferencia,
mais adequada a urna monografa sobre o simbolismo do ritual
de caga ndembo, que tenho em preparago, acrescentei deis captulos. Referem-se primordialmente as nSfes de "liminaridade"
e de "communitas", levantadas no Captulo III deste livro. O
livro divide-se em duas partes principis. A primeira trata principalmente da estrutura simblica do ritual ndembo e dos aspectos semnticos daquela estrutura; a segunda, comegando mais
ou menos na metade do terceiro captulo, procura explorar algumas das particularidades sociais, mais que as simblicas, da
fase liminar do ritual. Foi dada particular atengo a urna modalidade "extra"-estrutural, ou "meta"-estrutural do inter-relacionamento social, que denomino "communitas". Alm disso, exploro
associages que foram acentuadas fora da antropologa na
j .atura, na filosofa poltica e na prtica de religies complexas,
universalistas" entre "communitas", marginalidade estrutural
e inf
erioridade estrutural.
S
2"
grato ao falecido Professor Alian Holmberg, ento Chefe
do
m Apartamento de Antropologa, em Cornell, por ter reduzido
"a carga docente enquanto escrevia as "Conferencias Morgan",

e a meu amigo Bernd Lambert por ter-se encarregado de varias


de minhas aulas durante esse perodo.
A reviso das "Conferencias Morgan" e a redago dos novos
captulos foram realizadas quando eu era membro da Sociedade
de Humanidades, na Universidade de Cornell. Gostaria de agradecer ao Professor Max Black, Diretor e dirigentes da Sociedade,
pela oportunidade a mim concedida, liberando-me do ensino e
das tarefas administrativas, a fim de que pudesse desenvolver
as linhas de pensamento i n i c i a d a s na ltima "Conferencia
Morgan". O estilo de pensamento, brilhante embora sobrio, do
Professor Black, sua sutileza, afabilidade e simpata foram ddivas desse ano de trabalho. Em acrscimo, e de maneira muito
especial, foi sob es auspicios da Sociedade que pude realizar um
seminario interdisciplinar com estudantes de todos os niveis de
aprendizagem e professores de diversos departamentos, no qual
consideramos muitos dos problemas de "limiares, transiges e limites" no ritual, no mito, na literatura, na poltica, e em idias
e prticas utpicas. Algumas das conclusoes do seminario influenciaram os dois ltimos captulos do livro; outras produziro
frutos mais tarde. Dirijo meus mais calorosos agradecimentos
a todos os membros do seminario, por suas contribuiges crticas
e criadoras.
Pela dedicada e especializada ajuda de secretaria, durante as
varias fases do empreendimento, gostaria de agradecer a Carolyn
Pfohl, a Michaeline Culver e a Helen Matt, da administrago
do Departamento de Antropologa, e a Olga Vrana e a Betty
Tamminen, da Sociedade de Humanidades.
Como sempre, o apoio e a assistncia de minha mulher foram
decisivos, no papel de redatora e incentivadora.

r
Sumario

Introdufo Edifo Brasileira, 5


Introdfo, 7
Prefacio, 9

1. PLANOS DE CLASSIFICACO EM UM RITUAL


DA VIDA E DA MORTE, 13
2. Os PARADOXOS DA GEMELARIDADE NO RITUAL NDEMBO, 61
3. LIMINARIDADE E "COMMNITAS",

116

4. A "CoMMUNiTAs". MODELO E PROCESSO, 160


VCTOR W. TURNER
Malo de 1968.

5.

HUMAN1DADE

E HlERARQUIA. A

ELEVAQO E DA REVERSAD DE "STATUS", 201


Bibliografa, 246

10

LIMINARIDADE DA

11

Planos de Classificagao em um Ritual


da Vida e da Morte
MORGAN E A RELIGIAO
DIZER EM PRIMEIRO LUGAR QUE PARA MIM, BEM

como para muitos outros, Lewis Henry Morgan foi um


dos guias de meus dias de estudante. Tudo aquilo que
escreveu trazia a marca de um espirito apaixonado e
cristalino. Porm, aceitando o encargo de proferir as
"Conferencias Morgan" para o ano de 1966, senti-me
imediatamente conscio de urna profunda desvantagem, que
poderia parecer mesmo parausante. Morgan, anda que tivesse registrado fielmente mitas cerimnias religiosas,
tinha acentuada averso a dar ao estudo da religio a
mesma penetrante atenco que devotou ao parentesco e
poltica. No entanto, as cren?as e prticas religiosas
constituan! o ssnto principal de minhas palestras. Duas
cita?6es salientam especialmente a atitude de Morgan. A
primeira tirada de sua fecunda obra clssica Acient
Soety (1877): "O desenvolvimento das dlas religiosas
est cercado por to intrnsecas dificuldades que poder
vir nao receber nunca urna explcacao plenamente satisfatria. A religio ocupa-se to extensamente com a
natureza imaginativa e emocional, por consegunt cm
aqueles elementos certos do conhcimento, que todas
as reigioes primitivas sao grotescas e, at cert ponto,
"iinteligrveis" (p- 5). A segunda consiste em urna passagern pertencente ao estudo erudito sobre a religio de
13

"Handsome Lake", de autora de Merle H. Deardorff


(1951). A referencia, feita por Morgan, sobre o evangeIho sincrtico de "Handsome Lake", no livro League
of the Ho-de-no-sau-nee or Iroquois, baseou-se em um
conjunto de anotacoes feitas pelo jovem Ely Parker
(um indio sneca 4 que, mais tarde, tornou-se secretario
militar do general Ulysses S. Grant), representando textos
e traduco dos relatos do neto de Good Message, de
Handsome Lake, em Tonawanda. Segundo palavras de
Deardorff, "Morgan seguiu fielmente as anotages de Ely,
relatando aquilo que Jimmy Johnson, neto do profeta,
disse, mas desviou-se largamente dos comentarios de Ely
sobre a narrativa e acompanhamento do cerimonial" (p.
98. Veja-se tambm William Fenton, 1941, p. 151-157).
A correspondencia entre Morgan e Parker mostra que
se Morgan tivesse mais cuidadosamente dado ouvidos a
Ely, poderia ter evitado a crtica geral sobre o seu
"League", feita pelo indio sneca, quando o leu: "Nao
ha nada realmente errado no que ele diz, mas tambm
nao o certo. Na realidade, ele nao entende daquilo sobre
o que est falando". Vejamos, ento, o que o indio sneca "na realidade" quer dizer com essas extraordinarias
observares, que parecem ser dirigidas ao trabalho de
Morgan sobre os aspectos religiosos, mais do que os polticos, da cultura do povo roques. Para mim, os comentarios de sneca referem-se desconfianza de Morgan
sobre o "imaginativo e o emocional", sua relutncia
em admitir que a religio tem um importante aspecto i
racional, e sua cren?a em que tudo quanto aparece
como "grotesco" conscincia "evoluda" de um sabio
do sculo XIX deve ser, ipso {acto, em grande parte
"ininteligveis". Tambm denunciam nele urna relutncia
declarada, talvez podendo ser considerada como incapacidade, para fazer aquela explora?o emptica da vida
religiosa dos iroqueses, o que seria urna tentativa para
apreender e mostrar aquilo que Charles Hockett chamou
de "viso interior" de urna cultura alheia. Tal procedi1
Sneca: parte do povo indio roques, habitante da regio a oeste de
Nova lorque. Nota do tradutor.

14

ment teria podido tornar compreensveis muitos dos


componentes e i n t e r - r e l a ? 6 e s aparentemente bizarros
dessa cultura. Sem dvida, Morgan poderia ter meditado
com benfico resultado as palavras de Bachofen (1960),
dirigidas a ele numa carta: "Os estudiosos alemaes propem fazer com que a antigidade seja inteligvel, medindo-a de acord com as conceptees populares da poca
atual. Eles so vem a si mestnos as criagoes do passado.
Penetrar at a estrutura de urna mentalidade diferente da
nossa urna tarefa ardua" (p. 136). A respeito desta
nota, o Professor Evans-Pritchard (1965b) comentou recentemente que ", fora de dvida, urna tarefa ardua,
especialmente quando estamos lidando com assuntos dificis, como a magia,primitiva e a religio, nos quais
demasiado fcil, ao traduzir as concepgoes dos povos
mais simples para as nossas prprias, transplantar nosso
pensamento para o deles" (p. 109). Gostaria de acrescentar, a ttulo de condigno neste ponto, que, em materia
de religio, assim como de arte, nao ha povos "mais
simples", ha somente povos com tecnologas mais simples
do que as nossas. A vida "imaginativa" e "emocional"
do homem sempre, e em qualquer parte do mundo,
rica e complexa. Faz parte de minha incumbencia exatamente mostrar quanto pode ser rico e complexo o simbolismo dos ritos tribais. Tambm nao inteiramente
correto falar da "estrutura de urna mentalidade diferente
da nossa". Nao se trata de estruturas cognoscitivas diferentes, mas de urna idntica estrutura cognoscitiva,
articulando experiencias culturis muito diversas.
Com o desenvolvimento da psicologa profunda clnica,
Pr um lado, e do campo de trabalho profissional em
antropologa, por outro, m u i t o s produtos daquilo que
Morgan chamou "natureza imaginativa e emocional" come
?aram a ser olhados com respeito e atengo, sendo
Pesquisados com rigor cientfico. Freud encontrou as
antasias dos neurticos, as ambigedades das imagens
ni
ncas, no humor e no trocadilho, as enigmticas expessoes oris dos psicticos, indicacoes sobre a estrura
da psique normal. Lvi-Strauss, em seus estudos
15

sobre os mitos e rituais das sociedades pr-letradas, captou, assim afirma ele, na estrutura intelectual subjacente
dessas sociedades propriedades similares quelas encontradas nos sistemas de determinados filsofos modernos.
Muitos outros estudiosos e dentistas, da mais impecvel
estirpe racionalista, desde a poca de Morgan, acharam
que valia a pena dedicar dcadas inteiras de sua vida
profissional ao estudo da r e 1 i g i o. Basta citar Jfepenas Tylor, Robertson-Smith, Frazer e Herbert Spencer;
Durkheim, Mauss, Lvy-Bruhl, Hubert e Herz; van
Gennep, Wundt e Max Weber, para confirmar o que
digo. Trabalhadores de campo em antropologa, incluindo Boas e Lowie, Malinowski e Radcliffe-Brown, Griaulle
e Dieterlen, e um grande nmero de seus coetneos e
sucessores, trabalharam intensamente na rea do ritual
pr-letrado, fazendo observaces meticulosas e exatas sobre centenas de atos, e registrando com dedicada atenco
textos vernculos de mitos e preces, tomados de especialistas em religio.
A maioria desses pensadores tomou a si a implcita
posigo teolgica de tentar explicar, ou invalidar por
meio de explicares, os fenmenos religiosos, considerando-os produto de causas psicolgicas ou sociolgicas
dos mais diversos, e at confutantes, tipos, negando-lhes
qualquer origem sobre-humana; mas ningum negou a
extrema importancia das crencas e prticas religiosas
para a manutencao e a transformaso radical das estruturas humanas, tanto sociais quanto psquicas. Talvez o
leitor se sinta aliviado eom a declaraco de que nao tenho
a inten?o de penetrar na arena teolgica mas me esfor?arei, tanto quanto possvel, em limitar-me a urna pesquisa emprica de aspectos da religio e, de modo particular, em descobrir algumas das propriedades do ritual
africano. Mais exatamente, tentare!, com temor e tremor,
devidb minha alta estima por sua grande erudieo e
reputago em nossa disciplina, opor-^me rao ocasional desafio de Morgan a posteridade, e demonstrar que os
modernos antroplogos, trabalhando com os melhores instrumentos conceptuis legados a eles, podem agora tornar
16

inteligveis muitos dos enigmticos fenmenos religiosos


das sociedades pr-letradas.
ESTUDOS DOS RITOS DA FRICA CENTRAL

Comecemos pelo atento exame de alguns rituais executados pelo povo em cujo meio fiz um trabalho de campo
durante dois anos e meio, o povo ndembo, do noroeste
de Zmbia. Tal como os iroqueses de Morgan, o povo
ridembo rnatnlinear, e combina a agricultura de enxada
com a ca?a, qual atribuem alto valor ritual. O povo
ndembo pertence a um grande conglomerado de culturas
da frica Central e Ocidental, que associam considervel
habilidade na escultura em madeira e as artes plsticas
a um complicado desenvolvimento do simbolismo ritual.
Muitos desses povos tm ritos complexos de iniciaco,
com longos perodos de recluso na floresta, para treinamento de novaos em costumes esotricos, freqentemente associado presen?a de dancarinos mascarados,
que retratam espirites dos ancestrais ou deidades. Os
ndembos, juntamente com seus vizinhos do norte e do
oeste, os lundas de Katanga, os luvales, os chokwes e
os luchazis, do grande importancia ao ritual; seus vizinhos do leste, os kaondes, os lambas e os Has, embora
pratiquem muitos rituais, parecem ter menos variedades
distintas de ritos, um simbolismo menos exuberante, e
to possuem cerimnias de circunciso dos, meninos.
.uas diversas prticas religiosas sao menos estreitamente
unidas urnas as outras.
Quando iniciei o trabalho de campo entre os ndembos,
t'iabalhei dentro da tradico estabelecida por meus preaecessores, na utilizacao do Instituto Rhodes-Livingstone
Para Pesquisa Sociolgica, localizado em Lusaka, capital
administratva da Rodsja do Norte (atual Zmbia), Este
rf- ma's an*'g instituto de pesquisa estabeleeido na
a-ica britnica, fundado em 1938, destinado a ser um
'^ ' onde problema do estabelecirnento de relaces
permanentes e satisfatrias entre nativos e nao-nativos

devia constituir objeto de especial estudo. Sob a dire?ao


de Godfrey Wilson e de Max Gluckman, e, mais tarde,
de Elizabeth Colson e de Clyde Mitchell, os pesquisadores do Instituto fizeram estudos de campo sobre os
sistemas polticos e jurdicos tribais, sobre relances de
casamento e de familia, aspectos da urbanizaco e migra^oes de trabalho, estrutura comparada das aldeias e
sistemas ecolgicos e econmicos tribais. Realizaram tambm boa quantidade de trabalho no tragado de mapas e
classificaram todas as tribos da regio que era, na poca,
a Rodsia do Norte em seis grupos, classificac.o feita
de acord com seus sistemas de descendencia. Conforme
Lucy Mair (1960) indicou, a contribuico do Instituto
Rhodes-Livingstone para o delineamento de planos de
aco, tal como a de outros Institutos de Pesquisa na
frica inglesa, nao se reduz " prescrico da ago apropriada a situares especficas", mas "principalmente
anlise de situacoes, realizada de maneira tal que seus
autores pudessem ver mais cteramente as forgas com as
quais estavam lidando" (p. 89-106).
Entre essas "forcas", o ritual tinha urna propriedade
muito baixa, no tempo em que comecei o trabalho de
campo. Realmente, o interesse pelo ritual nunca foi grande
entre os pesquisadores do Instituto Rhodes-Livingstone.
O Professor Raymond Apthorpe (1961) assinalou que,
das noventa e nove publicages do Instituto, at aquela
poca, que tratavam de varios aspectos da vida africana
durante os ltimos trinta ou mais anos, so tres tiveram
por assunto o ritual (p. IX). Mesmo agora, cinco anos
mais tarde, das trinta e urna publicares do Rhodes-Li-
vingstone curtas monografas sobre aspectos da vida
das tribos da frica Central somente quatro ocupavam-se principalmente com o ritual, sendo duas dlas de
nossa autora. Evidentemente, a atitude de Morgan com
relago as "religies primitivas" anda persiste em muitas
reas. No entanto, o primeiro diretor do Instituto, Godfrey Wilson, demonstrou profundo interesse pelo estudo
do ritual africano. Sua mulher Monica Wilson (1954),
com quem fez intensas pesquisas de campo sobre a re18

ligio do povo nyakyusa, da Tanzania, e que publicou


notveis estudos sobre rituais, escreveu a propsito: "Os
rituais revelam os valores no seu nivel mais profundo.. .
os homens expressam no ritual aquilo que os toca mais
intensamente e, sendo a forma de expresso convencional
e obrigatria, os valores do grupo que sao revelados.
Vejo no estudo dos ritos a chave para compreender-se a
constituico essencial das sociedades humanas" (p. 241).
Se o ponto de vista de Wilson correto, como acredito
que seja, o estudo dos ritos tribais figurara certamente
no espirito da aspirago inicial do Instituto, que era
"estudar... o problema do estabelecimento de relacoes
permanentes satisfatrias entre nativos e nao-nativos",
porque "rlaces satisfatrias" dependem de urna pro funda compreenso mutua. Em contraste, o estudo da
religio tem sido importante no trabalho dos Institutos
de Pesquisa situados na frica Oriental e Ocidental
especialmente no perodo anterior conquista da independencia poltica e logo aps a obtengo desta. as
ciencias sociais, em geral, acredito, est-se difundindo o
recpnhecimento de que as crengas e prticas religiosas
,so algo mais que "grotescas" ref lexes ou expressoes
,-deJ relacionamentos econmicos, polticos e sociais. Antes,
,estao chegando a ser consideradas como decisivos in\ ;dcios para a compreenso do pensamento e do senti-mento das pessoas sobre aquelas relages, e sobre os
ambientes naturais e sociais em que operam.
\
O TRABALHO DE CAMPO PRELIMINAR
SOBRE O RITUAL NDEMBO

JTenho-me detido nesta "ausencia de musicalidade relifgjosa" (para fazer uso da expresso que Max Weber
,.aplicpu a si mesmo, bastante injustificadamente) dos
fpntistas sociais de minha gerago a respeito dos estu||K.S religiosos, principalmente para sublinhar a relutncia
4e
sent, no inicio, em coligir dados sobre os ritos.
s prirrieiros nove meses de t r a b a l h o de campo,

19

acumulei considerveis quantidades de dados sobre parentesco, estrutura da aldeia, casamento e divorcio, orgamentos individuis e familiares, poltica tribal e de aldeia,
e sobre o ciclo da agricultura. Preenchi meus cadernos
de anotagoes com genealogas; tracei as plantas das
chocas da povoagao e coletei material de recenseamento;
vagueei pelos arredores para conseguir termos de parentesco raros e descuidados. Sentia-me, no entanto, insatisfeito, como se estivesse sempr do lado de fora lhando
para dentro, mesmo quando passei a fazer uso do vernculo sem nenhuma dificuldade. Isto porque percebia
constantemente o batuque dos tambores do ritual na vzinhanga do meu acampamento, e as pessoas que conhecia despediam-se freqentemente de mim para passar
dias assistindo a ritos de nomenclatura extica, tais
como kula, Wubwang'u, e Wubinda. Finalmente, fui
forgado a reconhecer que, se de fato pretenda conhecer
o que significava at mesmo um mero segmento da cultura ndembo, teria de vencer meus prprios preconceitos contra o ritual e comegar a investig-lo.
E' verdade que ja no inicio de minha estada entre
os ndembos tinha sido convidado por eles para assistir
as freqentes realizares dos ritos de puberdade das
mofas (Nkang'a), e tentara descrever o que hvia visto
com a exatido possvel. Mas urna coisa observar as
pessoas executando gestos estilizados e cantando caneces
enigmticas que fazem parte da prtica dos rituais, e
outra tentar alcangar a adequada compreensao do_que^
os movimentos e as palavras significam para e/as) Para
obter esclarecimientos recorr inicialmente a Agenda Distrital, urna cmpilago de apontamentos feitos ao acaso
pelos oficiis da Administrago da Colonia sobre faros
costms que Ins parteceram interessantes. La encntrei breves relatos sobre crnga dos ndembos em um
Deus Supremo, hi espritus ancestrais e sobre diferentes
especies de ritos. Alguns errri relatos de crirrtnias
realmente assistidas, mas a maioria deles era bascada
em informagoes d embregados do governo local, tais
como mensageirbs e funcionarios de origen! ndembo.
20

'Ejes, entretanto, difcilmente forneciam explicages satisfatrias sobre os longos e complicados ritos referentes
i puberdade que tinha visto, embora me tenham dado
agumas informages preliminares relativas a outras especies de ritos que eu anda nao tinha visto.
'' Meu prximo passo fi conseguir urna serie de entrevistas com um chefe chamado Ikelenge, excepcionalfinte bem dotado e que possua um slido conhecimento
a lngua inglesa. O chefe Ikelenge logo entendeu o que
u quera e deu-me um inventario dos nomes mais importantes de rituais ndembos, com um breve relato sobre
:
|s principis caractersticas de cada um deles. Logo desIfebri que os ndembos nao s ressentiam, absolutamente,
eom o interesse de um estrangeiro por seu sistema ritual,
e estavam perfeitamente. preparados para admitir a presenga em suas celebragoes de qualquer pessoa que traHsse as crengas deles com o devido respeito. Pouco
tempo depois o chefe Ikelenge convidou-me a assistir
e'xecugo de um ritual pertencente ao culto dos cagadores
eferh armas de fogo, Wuyang'a. Durante essa execugo
eliftpreendi que ao menos um conjunto de atividades
<@fnmicas, a saber, a caga, dificilmente seria entendido
s
||Jn a aquisifao do idioma ritual pertinente caga. A
a|umulagao dos smbolos, simultneamente indicativos do
ff er ^e ca?ar e da virilidade, deu-me tambm a enten;;
d^ varias caractersticas da organizagao social ndembo,
fpeeialmente a acentuagao da importancia dos elos con^flIPprnes entre os parentes masculinos nutria sociedade
^trilnear, cuja continuidade estrutural era feita atravs
fff mulheres. Nao quero deter-me agora no problema
^|>Mtualizago do papel dos sexos, mas apenas salienf
j|! Q'ue certas, regularidades observadas na anlise dos
'"pifos numricos,, tais eomo genealogias da aldeia, rei|teamentos e registros sobre a sucessao nos cargos e
|ff jeiian?a de.propriedades, so se tornavam plenamente
*S^K301'Ve
'S a 'uz ^e va'ores encarnado se expressos em
"If ?5 as cerimnias rituais. .
t3via lmites, contudo, para o auxilio que o chefe
^nge estava capacitado a oferecer-me. Em primeiro
> r- sua posigo e os mltiplos papis inerentes a ela

21

impediam-no de deixar a aldeia principal por muito tempo e .suas relaces com a misso local, de importancia
poltica para ele, eram excessivamente delicadas, numa
situaao em que os mexericos espalhavam as novidades
com toda a rapidez, nao Ihe permitindo o luxo de assistir a muitas cerimnias pagas. Alm disso, minha prpria
pesquisa estava rpidamente se transformando numa investigac.o microssociolgica do processo evolutivo da vida
da aldeia. Mudei meu acampamento da capital do 'chefe
para um conglomerado de aldeos comuns. Ali, com o
passar do tempo, minha familia veio a ser aceita mais
ou menos como urna parte da comunidade local, e, com
os olhos abertos para a importancia do ritual na vida
dos ndembos, minha mulher e eu come?amos a perceber
muitos aspectos da cultura ndembo que tinham sido previamente invisveis para nos por causa de nossos antoIhos tericos. Como disse Nadel, olfatos mudam com as
teoras, e novos fatos produzem teoras novas.
Foi mais ou menos nessa poca que li algumas
observares no segundo artigo publicado pelo Instituto
Rhodes-Livingstone, The Study of African Society, escrito,
por Oodfrey e Monica Wilson (1939), no sentido de que,
em muitas sociedades africanas onde o ritual anda
um assunto de importancia, ha um certo nmero de
especialistas religiosos aptos a interpret-lo. Mais tarde!
Monica Wilson (1957) escreveria que "qualquer anlise
que nao se baseasse em alguma tradu9o dos smbolos
usados pelo povo daquela cultura estara exposta a sus'
peitas" (p. 6). Comecei, entao, a procurar especialista:
em ritual ndembo, para gravar textos interpretativos for
necidos por eles sobre ritos que pude observar. Noss
liberdade de acesso as execufes e a exegese foi, sen
dvda, ajudada pelo fato de que, tal como acontece cort
a maior parte dos antroplogos em trabalho de campo
distribuamos remedios, enfaixvamos ferimentos, e, n<
caso de minha mulher (que filha de mdico e mai
corajosa nestes assuntos do que eu), injetvamos sor<|
em pessoas mordidas por cobras. Urna vez que muito|
dos cultos rituais dos ndembos sao realizados em favo1
22

de doentes, e ja que os remedios europeus sao vistos


como possuindo urna eficacia mstica da mesma qualidade que os daquele povo, porm com urna potencia
hiaior, os especialistas em curas comefaram a olhar-nos
como colegas e a acolher com satisfa?ao nossa presenca
as suas atividades.
Lembro-me de ter lido. as Missionary Trovis do Dr.
Livingstone que ele fazia questao de consultar os curadores locis sobre a condic.o dos pacientes e com isto
contribuiu para o bom relacionamento com urna parte
influente da populacho da frica Central. Seguimos seu
exemplo, e isto pode ter sido urna das razes pelas quais
n'os foi permitido assistir as fases esotricas de varios
fftos e obter o que o inqurito-cruzado sugera como
sendo interpretares razoavelmente dignas de confiaba
de muitos dos smbolos empregados nos rituais. Ao dizer
"dignas de confianca" quero dar a entender naturalmente
que as interpreta^es eram, em conjunto, reciprocamente
consistentes. Poder-se-ia de fato dizer que essas interpretaces constituem a hermenutica padronizada da cultura
ndembo, e nao de associac.oes livres ou opinioes excntricas de individuos. Tambm recolhemos interpretares
de ndembos que nao eram especialistas em rituais, ou,
pelo menos, nao eram especialistas no ritual diretamente
em exame. A maioria dos ndembos, tanto homens quanto
mulheres, eram membros pelo menos de urna associaco
d culto e difcilmente se encontrava urna pessoa mais
velha que nao fosse um "expert" no conhecimento secreto de mais de um culto. Deste modo, construmos
gradualmente um corpo de dados de observado e de
comentarios interpretativos que, ao ser submetido an''f6, comecou a mostrar certas regularidades, das quais
01
possvel extrair urna estrutura, expressa num conjunto de padres. Mais adiante consideraremos algumas
,as caractersticas desses padres.'
;,purante todo esse tempo, nunca pedimos que um
-1,,ual fosse realizado exclusivamente para nosso proveito
tr
jetlt
polgico; nao somos favorveis a semelhante reprea cao teatral artificial. Mas nao havia carencia de
23

representases espontneas. Urna de nossas maiores dificuldades era freqentemente decidir, em determinado
da, a qual de duas ou mais execuc.5es assistiramos. A
medida que nos tornvamos cada vez mais parte do
cenado da aldeia descubrimos que com grande freqncia as decises de executar o ritual estavam relacionados
com crises na vida social das aldeias. Escrevi albures,
com minucias, sobre a dinmica social das cerimnias
rituais, e nao pretendo fazer mais do que urna men?o
passageira a elas nestas conferencias. Aqui lembrarei apenas que, entre os ndembos, existe urna conexo estreita
entre conflito social e ritual, nos nveis de aldeia e "vizinhanca" (termo que emprego para designar agrupamentos descontinuos de aldeias), e que a multiplicidade de
situaces de conflito est correlacionada com urna alta
freqneia de execuc.6es rituais.
V"

atribuido cuja acepco remonta a alguma palavra primitiva, ou timo, muitas vezes um verbo. Os estudiosos
rnostraram que em outras sociedades bantos este freqentemente um processo de estabelecer urna etimologa
ficticia, dependente da similaridade do som mais que da
derivacao a partir de urna origem comum. Nao obstante,
para o prprio povo o processo constitu parte da "explicacao" de m smbolo ritual; e aqui estamos empenhados em descobrir "a viso interior ndembo", o modo
cmo os ndembos sentem seu prprio ritual e o que
pensam a respeito dele.

Razes para a realizaco do ritual Isoma

Meu principal objetivo neste capitulo explorar a semntica dos smbolos rituais no soma, um ritual dos
ndembos, e construir, a partir de dados exegticos e de
observado, um modelo da estrutura semntica desse simbolismo. Primeiramente, preciso- prestar multa atenc.o
ao modo pelo qual os ndembos explicam seus prprios
smbolos. Meu procedimento consistir em comec.ar pelos
aspectos particulares e chegar generalizado, dando
conhecimento ao leitor de cada passo ao longo do caminho percorrido. Irei agora examinar de perto urna
especie de ritual que observe! em tres ocasies e para
o qual tenno urna quantidade considervel de material
interpretativo. Espero a indulgencia do leitor para o fato
de ter que mencionar um grande nmero 'de termos
vernaculares ndembos, porque urna importante parte da
explicac.o dos smbolos dada pelos ndembos baseia-se
nq estudo de etimologas de folk. A significagp de um
dado smbolo muitas vezes, embora de modo algum
invariavelmente, derivada pelos ndembos do nome a ele

O Isoma (ou Tubwiza) pertence a urna classe (muchid)


de rituais assim conhecidos pelos ndembos e identificados como "rituais das mulheres", ou "rituais de procria^ao", sendo urna subclasse dos "rituais dos espirites dos
ncestrais, ou "sombras", termo que tom emprestado a
Monica Wilson. A palavra ndembo usada para designar
"ritual" chidika, que tambm significa "um compromisso especial" ou "urna obrigac.o". Isto se relaciona
cbm a idia de que o individuo tem a obriga?ao de
venerar as sombras dos ncestrais, porque, como dizem
s ndembos, "nao foram elas que deram luz ou geraram
voces?" Os rituais a> que me retiro sao de fato excutados porque pessoas ou grupos incorporados deixaram de
essa obrigaco. Seja por sua prpria culpa ou
corno representante de um grupo de parentes, acredita-se
9ue
pessoa foi "apanhada" por urna sombra, como
ize
izern os ndembos, e atormentada por uma desgrana,
Wjgada apropriada ao sexo a que pertence e a seu papel
-?la'' A infelicidade adequada as mulheres consiste em
guma forma de interferencia a capacidade de reproe"?ao da vtima. Em carter ideal, uma mulher que viva
Paz cm seus companheiros e se lembre dos parentes
rt
,. s dever casar-se e ser me de "crianfas espertas
e
ncantadoras" (tradu?So de uma expressao ndembo).

24

25

ISOMA

Mas urna mulher que seja rixenta ou membro de um


outra norma igualmente desejada, a de que deveria congrupo dividido por brigas e que, simultneamente "estribuir com filhos para se tornarem simultneamente memqueceu a sombra [da me mora, da av materna ou de
hros de sua aldeia matrilinear.
qualquer outra ancestral matrilinear mora] no fgado
E' interessante noar que sao as sombras de parenes
[ou, como diramos nos, no 'corac.o']" corre o perigo
fernininos
marilineares direos as mes dos individuos
de ter seu p o d e r procriaivo (Lusemu) "amarrado"
ou
avs
maernas
as sombras encarregadas de afligir
(kukasild) pela sombra ofendida.
as mulheres com disrbios reproduivos, o que conduz
Os ndembos, que praticam a descendencia matrilinear
esterilidade emporria. A maior pare dessas vtimas
combinada com o casamento virilocal, vivem em aldeias
es residindo com os maridos, quando os vaicnios depequeas e movis. O efeio desse arranjo que as
cidem que foram apanhadas pela inferilidade ocasionada
mulheres, atravs de quem as crianzas herdam a filiaco
pelas sombras matrilineares. Elas foram apanhadas, assim
primaria de linhagem e residencia, passam muio empo
dizem os ndembos, porque "se esqueceram" daquelas somdo seu ciclo reproduivo as aldeias dos maridos e nao
bras que nao so sao suas ascendentes diretas, mas amas dos parenes marilineares. Nao ha regra fixa, como
bm as progenioras imedialas de seus parentes maternos,
exise, por exemplo, enre os habitantes matrilineares das
que formam o grupo central de membros das aldeias,
ilhas Trobriand, segundo a qual os filhos das mulheres
que nao sao as de seus maridos. Os ritos de cura, inque vivem sob essa forma de casamento devem ir residir
cluindo o soma, tm como urna de suas funfes sociais
as aldeias dos irmos de suas mes e de outros parenes
a de "obrig-las a se lembrarem" dessas sombras que sao
maernos, ao aingirem a adolescencia. Como conseqnos nodulos estruturais de urna-linhagem marilinear resicia disto cada casameno fecundo se transforma, enre; dene no local. A eserilidade que essas sombras acaros ndembos, em urna arena de lua surda entre o marido
retam considerada emporria, podendo ser afasada
de urna mulher e os irmos dla, e os irmos da me com a execufo dos ritos apropriados. Quando a mulher
da esposa, com relac,ao a filiacjo residencial. Havendo
se lembra da sombra que a aflige e, assim, do seu deverambm um estreio lago enre urna mulher e seus filhos,
bsico de fidelidade aos seus parenes matrilineares, a
iso significa habiualmente que, depois de um perodo
nerdifo' sobre' sua ferilidade cessar. Rodera coninuar
curio ou longo, a mulher acompanhar os filhos a sua
vivendo com o marido, mas com urna vivida conscincia
aldeia de filiac.o marilinear. Meus dados numricos
a respeio do lugar onde se ,siua a lealdade fundamental
sobre o divorcio enre os ndembos indicam que esses
dla e dos seus filhos. A crise produzida por esta conndices sao os mais altos dentre todas as sociedades
.tr.adicao entre as normas soluciona-se por meio de rituais
marilineares da frica Cenral, para as quais exisem da- ricos em simbolismo e feriis em significado.
dos quaniativos dignos de confianza, e todas tm altos
ndices de divorcio. Ja que com o divorcio as mulheresj
voltam aos seus parenes maternos e a foriiori aos
A forma processual
filhos que residem entre esses parentes num sentidoj
real a continuidade da aldeia, aravs das mulheres, de-
ritual Isoma participa, juntamene com outros cultos
e
pende da desconinuidade marial. Mas, enquano urna
mulheres, de um mesmo perfil diacrnico ou forma
mulher est residindo com o marido e com os filhos pe Prcessual. Em cada um deles, urna mulher sofre de
queos, cumprindo assim a norma desejada de que
rerturba56ef ginecolgicas. Em tal caso ou o marido ou
mulher deve agradar ao marido, ela nao est cumprindo
^ Prente marilinear do sexo masculino procura um
i
26
27

Ku-tumbuka, urna dan?a festiva, para celebrar o afastarnento da interdigo da sombra e a volta da, candidata
vida normal. No Isoma, isto assinalado 'quando a
candidata da luz urna crianza e chega a cri-la at
o estgio dos primeiros passos.

adivinho, que qualifica precisamente o tipo de afligo em


que a sombra, como dizem os ndembos, "saiu da sepultura para apanh-la". Dependendo do tipo de ailiqao, o
marido ou o prente masculino serve-se de um mdico
(chimbuk), que "conhece os remedios" e os procedimentos rituais corretos para aplacar a sombra atormentadora,
a fim de que atue como mestre de cerimonias no procedimento a ser realizado. Este mdico, ento, convoca
outros mdicos para ajud-lo. Eles podem ser mulheres
que ja passaram por situacao idntica no mesmo tipo de
ritual e assim ganharam acesso ao culto de cura, ou
homens ligados de perto por parentesco matrilinear, ou
por afinidade a urna paciente anterior. Os pacientes
(ayeji) podem ser considerados como "candidatos" qualidade de membros do culto, e os mdicos como seus
"peritos". Acredita-se que as sombras atormentadoras
(akish) tenham sido antigos peritos. A associac.o ao
culto, deste modo, corta transversalmente a aldeia e a
linhagem, colocando temporariamente em operagao o que
pode ser chamado "urna comunidade de sofrimento", ou
melhor, de "antigos sofredores" do mesmo tipo de afli?o que agora atinge a candidata doente. A associaco
num culto como o /soma entrecorta at mesmo as fronteiras da tribo, porque membros de tribos cultural e!
lingsticamente aparentadas como os luvales, chokwes e
luchazis, tm autorizago de comparecer aos ritos Isoma'
dos ndembos, na qualidade de peritos e, como tal, de
cumprir tarefas rituais., O perito "mais velho" (muku-\
lumpi), ou "maior (weneni) geralmente um homem,
mesmo para os cultos de mulheres, como o Isoma. Pois,j
como acontece na maioria das sociedades matrilineares,
enquanto a colocago social obtida atravs das mu
Iheres, a autoridade fica as mos dos homens.
Os cultos das mulheres tm a trplice estrutura diacrnica com que o t r a b a l h o de Van Gennep nos;
familiarizou. A primeira fase, .chamada Ilembi, separa 3
candidata do mundo profano; a segunda, chamada Kan*
kunka (literalmente, "na cabana de capm"), parcialmente;
aparta-a da vida secular; enquanto a terceira, chamada)

O que foi dito o bastante a respeito dos ampios


cenrios sociais e culturis do Isoma. Se quisermos penetrar agora na estrutura interna, das idias contidas
neste ritual, temos de compreender como os ndembos
interpretan! os seus smbolos. Meu mtodo assirn necessariamente o inverso daquele de inmeros estudiosos
que comegam por extrair a cosmologa que freqentemente
se expressa em termos de ciclos mitolgicos e, ento,
passam a explicar rituais especficos como exemplos ou
expresses de "modelos estruturais" que encontraram nos
mitos. Os ndembos, porm, possuem muito poucos mitos
e narrativas cosmolgicas ou cosmognicas. E', conseqentemente, necessrio comegar pela outra extremidade,
com os blocos bsicos da cpnstru?ao, as "molculas" do
ritual. A estas chamarei "smbolos" e por enquanto evitarei envolver-me no longo debate sobre a diferenga entre
os conceitos de smbolo, signo, e sinal. Ja que esta aproximacao preliminar parte de urna perspectiva "de denfro", facamos antes do mais um exame dos costumes dos
ndembos.
J; No contexto ritual ndembo, quase todo objeto usado,
jpdo gesto realizado, todo canto ou prece, toda unidade
e
espaco e de tempo representa, por convicgo,
c
, oisa diferente de si mesmo. E' mais do que parece ser
> freqentemente, muito mais. Os ndembos tm nofo da
UH5ao simblica ou expressiva dos elementos rituais. Um
Cemento ritual, ou unidade, , chamado Mjikijilu. LiteralWente esta palavra significa "ponto de referencia", ou
marca". Seu timo ku-jikijila, "marcar urna pista", faa
urna marca em urna rvore com urna machadinha

28

29

A exegese nativa dos smbolos

ou quebrando um de seus galbos. Este termo extrado


originariamente do vocabulario tcnico da caga, profisso
fortemente envolvida por prticas e crengas rituais. Chijikijilu tambm significa urna "baliza", urna destacada caracterstica da paisagem, tal como um formigueiro, que
separa as hortas de um homem ou o dominio de um chefe
do de outro. O termo tem assim dois significados principis : 1) como marca de calador, representa um elemento
de ligago entre um territorio conhecido e outro, desconhecido, pois atravs de urna serie dessas marcas que
o calador encentra o caminho de volta da mata estranha
para a aldeia que Ihe familiar; 2) tanto como "marca"
e quanto como "baliza" transmite a nogo de algo estruturado e ordenado, opondo-se ao nao estruturado e
catico. Ja por isso seu uso ritual metafrico: liga o
mundo conhecido dos fenmenos sensoriais perceptveis
com o reino desconhecido e invisvel das sombras. Torna
inteligvel o que misterioso, e, tambm, perigoso. Um
chijikijilu tem, alm disso e simultneamente, um componente conhecido e um desconhecido. At certo ponto pode
ser explicado, e ha principios de explicago a disposigao
dos ndembos. Tem um nome (ijina) e urna aparncia
(chimwekeshu), e ambos sao utilizados como pontos de
partida para a exegese (chakulumbwishu).

estar relacionado nogao de "esquecimento" das ligagSes


niatrilineares de urna pessoa. Discutindo a significago da
palavra Isoma, diversos informantes mencionaram o termo
[tifwisha, como indicativo da condigo da paciente. Lufwisha um nome abstrato, derivado de ku-fwisha, por
sua vez derivado de ku-fwa "morrer". Kufwisha tem ao
mesmo tempo um sentido genrico e um especfico. Genricamente, significa "perder parentes por morte", especficamente, "perder filhos". O nome lufwisha significa
tanto "dar nascimento a urna crianga mora" quanto
"morte constante de criangas". Disse-me um informante:
"Se sete criangas morrem, urna depois da outra, isto
lufwisha". Isoma , por conseguinte, a manifestago de
urna sombra que faz a mulher dar luz urna crianga
morta ou leva morte urna serie de criangas.

A mscara "Mvweng'i"

Para comegar, o prprio nome soma tem um valor


simblico. Meus informantes derivam-no de ku-somoka,
"escorregar do lugar ou fixar". Esta designago tem
mltipla referencia. Em primeiro lugar, refere-se condigo especfica que os ritos tem por finalidade dissipar.
Urna mulher "apanhada no Isoma" , muito freqentemente, urna mulher que teve urna serie de gestages
malogradas ou abortos. Julgam que a crianga nascitura
"escorregou", antes que chegasse a sua hora de nascer.
Em segundo lugar, ku-somoka significa "abandonar o
grupo a que o individuo pertence", talvez tambm com a
mesma implicago de prematuridade. Este tema parece

A sombra que emergiu no Isoma manifesta-se tambm


de outros modos. Julga-se que aparece nos sonhos da
paciente, vestida como um dos seres mascarados que participam dos ritos de circunciso dos meninos (Mukanda).
As mulheres acreditam que estes seres mascarados, conhecidos como makishi (no singular, ikishi), sejam sombras de antigos ancestrais. O que conhecido como
Mvweng'i usa um saiote de fibra (nkamb) como os novigos durante seu retiro depois da circunciso e urna
indumentaria consistindo em muitos cordoes feitos de tecido de casca de rvores. Carrega urna sineta de caga
(mpwambu) usada pelos cagadores para se manterem em
contato uns com os outros na mata densa ou para chamar
Os
caes. E' conhecido como "av" (nkak),. aparece dePis que as feridas da circunciso cicatrizaran! e grandemente temido pelas mulheres. Se urna mulher toca no
Mvweng'i, acredita-se que abortar. Um canto tradicionalentoado quando este ikishi aparece pela primeira
perto da cabana onde os novigos esto reclusos na
diz o seguinte:

30

31

O nome "Isoma"

'

Kako nkaka eyo nkaka eyo nkaka yetu nenzi, eyo eyo, nkako
yetu, mwanta:
"Av, av, nosso av chegou, nosso av, o chefe;"
mbwemboye mbwemboye yawume-e.
"a glande do penis, a glande est seca,
mwang'u watulemba mbwemboye yawumi.
urna disperso dos espirites tulemba, a glande est seca".

A cantiga representa para os ndembos urna concentraco do poder masculino, porque nkaka tambm significa
"um possuidor de escravos", e um "chefe" possui muitos
escravos. A secagem de glande um smbolo da aquisigo .
de um auspicioso "status" masculino de adulto e urna das
finalidades dos ritos de circunciso Mukanda, porque a
glande de um menino nao circuncidado considerada
mida e podre e portante de mau agouro, dentro do prepucio. Os espirites tulemba, exorcizados e aplacados em
outro tipo de ritual, fazem as crianzas adoecerem e definharem. Mvweng'i expulsa-os dos meninos. Acredita-se
que as cordas do seu traje sirvam para "amarrar" (kukasila) a fertilidade feminina. Em resumo, ele o smbolo da masculinidade amadurecida na sua mais pura expressao e seus atributos de cac.a acentuam mais isto
e, como tal, perigoso para as mulheres no seu papel
mais feminino, o de me. Ora, na figura de Mvweng'i
que a sombra aparece vtima. Mas aqui ha certa ambigidade de exegese. Alguns informantes dizem que a sombra se identifica com o Mvweng'i, outros, que a sombra
(mukishi) e o mascarado (ikishi) operam em conjunto.
Os ltimos dizem que a sombra desperta o Mvweng'i e
atrai seu auxilio para afligir a vtima.
E' interessante notar que a sombra sempre o espirito
de urna prenla morta, enquanto o Mvweng'i como a
masculinidade personificada. sse motivo que estabelece
a ligaso do disturbio reprodutivo com a identifica?o de
urna mulher a um tipo de masculinidade, encontrado
em outros pontos do ritual ndembo. Ele foi mencionado
por mim em conexao com os ritos de cura de perturba?5es menstruais, em The Forest of Symbols (1967): "Por
que, ento, a paciente identificada com derramadores

32

e sangue, do sexo masculino? O campo (social) desses


objetos simblicos e os elementos do comportamento sugerem que os ndembos se,ntem que a mulher, perdndo
o sangue menstrual e nao podendo gerar enancas, est
ativamente renunciando ao papel que dla se espera como
mulher casada e madura. Ela est se comportando como
uni assassino masculino (ou seja, um cacador, ou homicida) e nao como urna nutridora feminina" (p. 42. Para
una anlise mais completa dos ritos curativos Nkala,
veja-se Turner, 1968, p. 54-87). A situagao no Isoma
nao diferente. Deve-se notar que nesses cultos a vtima
freqlentemente identificada em varios episodios e simbolismos, com a sombra que a atormenta, podendo-se, legtimamente afirmar que est sendo perseguida por urna
parte ou aspecto de si mesma, projetada na sombra. Assim,
segundo o pensamento ndembo, urna vtima curada no
Isoma tornar-se- ela prpria urna sombra atormentadora
depois da morte, e como tal se identificar com o poder
masculino Mvweng'i, ou ficar estreitamente reunida a ele.
, Mas seria, todava; errneo considerar as crencas do
Isoma apenas como expresso do "protesto masculino".
Esta atitude inconsciente pode bem ser mais importante
nos ritos Nkula, do que no Isoma. A tenso estrutural
entre descendencia matrilinear e o casamento virilocal
parece dominar o idioma ritual do Isoma. E' porque a
mulher se aproximou demasiadamente do "lado masculino" do casamento que suas parentas maternas mortas Ihe
enfraqueceram a fertilidade. A correta, rela^ao que deve"a existir entre descendencia a afinidade foi perturbada;
9 casamento veio a sobrepujar a mtrilinhagem. A mulher
fi chamuscada pelos pingosos fogos da sacralidade mas?ulina. Uso esta metfora porque os prprios ndembos a
empregam: se as mulheres vem as chamas da cabana de
^clusao dos meninos quando esta queimada depois do
ntual da circunciso, crenca que elas ficaro jistradas
como se fossem atingidas pelas chamas ou tomarao a
fParncia da zebra (ng'ala), pdero apanhar lepra ou,
n
utros casos, enouquecero ou tornar-se-o.abQbalhadas.
E)287T 3

33

As finalidades do Isoma
Entre as finalidades implcitas do Isoma incluem-se a
restaurado da correta relaco entre matrilinearidade e
casamento, a reconstrufo das relages "conjugis entre
mulher e marido e finalmente a fertilidade da mulher, por
conseguinte do casamento e da linhagem. Conforme os
ndembos explicam, a finalidade explcita dos ritos est
em dissipar os efeitos daquilo que chamam chisaku. Em
sentido lato, chisaku indica "infortunio ou doenca, devidos ao descontentamento das sombras ancestrais ou a
quebra de um tab". Mais especficamente, indica tambm urna maldico proferida por urna pessoa viva para
39ular urna sombra, podendo incluir remedios especialmente feitos para causar danos a um inimigo. No caso
do Isoma, o chisaku de qualidade especial. Acredita-se
que um prente matrilinear da vtima tenha ido at a
nascente (kasulu) de um riacho situado na vizinhanca
da aldeia de seus parentes maternos, e la tenha rogado
urna praga (kumushing'ana) contra ela. O efeito desta
praga "despertar" (ku-tonisha) urna sombra que tenha
sido outrora membro do culto Isoma. Como disse um
informante (e traduzo literalmente): "No Isoma eles degolam um galo vermelho. Isto representa o chisaku, ou
a desgra9a em virtude da qual as pessoas morrem e deve,
ent, desaparecer (chisaku chafwang'a anta, chifumi).
O chisaku morte, que nao deve acontecer paciente;
doenc.a (musong'u), que nao deve vir para ela; sofrimento (ku-kabakana), e este sofrmente vem do rancor
(chtela) de um feiticeiro (muloji). Urna pessoa que
amald9oa outra com a morte tem um chisaku. O chisaku
proferido junto fonte de um rio. Se urna pessoa passa
por la e pisa nela (ku-dyata) ou cruza por sobre ela
(ku-badyika), a m sorte (malwa) ou o insucesso (kuhalwa) a acompanharo em qualquer lugar para onde for.
Adquirida naquele lugar, na fonte do riacho, e deve ser
tratada (ku-uka) la. A sombra do Isoma surgiu como
resultado desta praga, e vem sob a forma do Mvweng'i".
34

..

,,..

, -.;

Como o leitor pode notar, ha em tudo isto um forte


colorido de fei^aria. Diferentemente de outros tipos de
rnulheres, o Isoma nao executado apenas para aplacar
urna nica sombra, mas tambm desina-se a exorcizar
influencias msticas malignas que emanam nao so dos
vivos como dos morios. Existe aqu urna terrvel combina9o de feit9o, sombra e Ikishi Mvweng'i, que se deve
enfrentar. Os ritos abrangem referencias simblicas a
todas essas influencias. E' significativo que um prente
matrilinear seja considerado a causa precipitadora da
doen9a, o estimulador dessas duas series de seres ancestrais, um prximo, outro remoto, o Mvweng'i e a sombra
feminna. E' tambm significativo que os ritos sejam realizados, sempre que possvel, perto da aldeia habitada
pelos parentes matrilineares da vtima. Alm disso, ela
fica parcialmente reclusa depois nesta aldeia por um
tempo considervel, e o marido deve residir com ela em
carter uxorilocal durante aquele perodo. Parece haver
alguma ambigidade nos relatos dos meus informantes
sobre a interpreta9o da praga desencadeadora. Acreditase que esta cheir'a a feit9aria e, em conseqncia,
"m", mas ao mesmo tempo a maldi9o pode ser parcialmente justificada pelo esquecimento por parte da vtima
das suas Iiga9es matrilineares tanto passadas como
presentes. Os ritos em parte tm a finalidade de efetuar urna reconcilio entre as partes em jogo, visveis
e invisveis, embora tambm contenham episodios. de
exorcismo.
A PREPARACAO DO LOCAL SAGRADO
Julgamos suficiente o que foi dito sobre as estruturas
sociais e as cren9as principis subjacentes ao Isoma.
Passemos agora aos ritos propriamente ditos e consideremos as interpreta9oes dos smbolos na ordem em que
correm. Estas interpreta9es ampliaro nossa imagem da
e
strutura da cren9a, pois os ndembos que, como ja disse,
trn notavelmente poucos ritos compensara esta escassez
Pela riqueza de urna detalhada exegese. Nao ha atalhos,

tacado em algumas especies de cultos de mulheres, e


etimolgicamente com ku-lemba, "suplicar, pedir perdo,
ou ficar arrependido". A noc.o de propciac.o muito
importante neles, porque os mdicos estao em parte implorando, em favor da paciente junto as sombras e as
outras entidades preter-humanas, a devolu9o da maternidade.

atravs do mito e da cosmologa, para se chegar estrutura no .sentido de Lvi-Strauss da religio


ndembo. Temos de proceder esmiucadamente e pouco a
pouco, de "marca" a "marca", de "baliza" a "baliza", se
quisermos seguir adequadamente o modo nativo de pensar,
rnente quando o caminho simblico do desconhecido
para o conhecido estiver completo que poderemos olhar
para tras e compreender sua forma final.
Gomo acontece com todos os ritos dos ndembos,
o modelo de procedimento em cada caso especfico
estabelecido pelo adivinho originariamente consultado sobre a molestia da vtima. E' ele quem declara que a
mulher perdeu urna serie de filhos por aborto ou morte
na infancia, infortunios resumidos no termo lufwisha.. E'
ele quem decreta que os ritos devem come?ar no buraco
ou na toca de um rato gigante (chitaba) ou de um tamandu (m/u/'i). Por que faz ele esta prescri9o um
tanto estranha? Os ndembos explicam-na da seguinte maneira: ambos esses animis tapam suas tocas depois de
escav-las. Cada um deles um smbolo (chijikijilu) para
a manifestado da sombra do /soma, que escondeu a
fertilidade (lusetnu) da mulher. Os peritos do mdico
devem abrir a entrada bloqueada da toca e assim devolver-lhe, simblicamente, a fertilidade e tambm torn-la
capacitada a criar bem os seus filhos. O adivinho decide
em cada caso qual dessas especies animis escondeu a
fertilidade. A toca deve ficar prxima fonte do riacho
onde foi rogada a praga. O pronunciamento de urna
maldigo comumente acompanhado pelo enterro de "remedios", em geral comprimidos (ku-panda), dentro de
um pequeo chifre de antlope. Baseado em conhecimento
de outros ritos dos ndembos, suspeito fortemente que
esses remedios sao escondidos perto da nascente do rio.
A toca do animal estabelece o ponto reerencial de orientago para a estrutura espacial do lugar sagrado. Os
ritos aqu discutidos sao os "ritos de separa?o" conhecidos como ka-lembeka ou iletnbi, termo ndembo materialmente correlacionado com os modos de utilizac.o dos
remedios ou com os recipientes destes, de emprego des-

Em todos os ritos ilembis, um dos primeiros passos


compete aos peritos do mdico praticar, guiados pelo
mais velho, ou "mestre de cerimnias", consiste em ir
floresta para recolher os remedios que servirlo mais
tarde no tratamento da paciente. Este episodio conhecido como ku-lang'ala ou ka-hukula yitumbit. No
soma, antes de ser dado este passo, o marido da paciente, se for casada, constri para uso dla urna pequea
choc.a redonda de capim, para o perodo de recluso subseqente, fora do anel formado pela dzia ou pouco mais
de cabanas que constituem urna aldeia ndembo. Tal cabana (nkunka) feita tambm para mocas submetidas
recluso depois dos ritos da puberdade, e a choca do
Isoma explcitamente comparada a essa. A paciente
como urna novic.a. Da mesma forma como urna novica na
puberdade "cresce" at tornar-se mulher, de acord com
o modo de pensar dos ndembos, assm tambm a canddata do Isoma dever crescer de novo para tornar-se
urna mulher frtil. Tudo aquilo que foi destruido pela
praga tem de ser outra vez refeito, embora nao exatamente do mesmo modo, pois as crises da vida sao irreversveis. Existe analoga, mas nao rplica.
Um galo vermelho fornecido pelo marido e urna franga
branca fornecida pelos parentes matrilineares da paciente
sao, ento, recolhidos pelos peritos, que se dirigem para
determinada fonte do riacho onde a adivinhac.ao previaroente tenha indicado que a maldifo foi feita. Examinara
cuidadosamente o terreno, procura de sinais da toca de
Ur
n rato gigante ou da toca de um tamandu. Quando
a
encontram, o perito mais velho dirige-se ao animal da
Se
guinte maneira: "Rato gigante (ou tamandu), se
v
c que mata crianzas, devolva agora a fertilidade

36

37

mulher para que ela possa criar bem os flhos". Neste


ponto o animal parece representar toda a "troika" 2 das
torgas atormentadoras o feiticeiro, a sombra, e o ikishi.
A tarefa seguinte consiste em amarrar dois molhos de
capim, um sobre a entrada vedada da toca, o outro mais
ou menos a um metro e vinte centmetros sobre o tnel
feito pelo animal. A trra abaixo deles removida com
urna enxada e o perito mais velho e seu principal assistente masculino comegam a cavar ali buracos profundos,
conhecidos como makela (no singular ikela), termo reservado para cavidades que servem a finalidades mgicoreligiosas. Depois, duas fogueiras sao acesas a urna
distancia de cerca de tres metros dos buracos, mais
prximas do segundo que do primeiro. Diz-se que urna
fogueira est situada "do lado direito" (isto , olhandose da toca do animal para a cavidade nova) e reservada
para o uso dos peritos do sexo masculino; o outr, situado "do lado esquerdo", para as mulheres. O especialista mais velho coloca ento um pedago de cabala
quebrada perto da primeira cavidade na entrada da toca,
e os peritos do sexo feminino, guiados pela me da paciente, caso seja ela prpria conhecedora, colocam na
cabaca algumas porches de razes comestveis, trazidas de
suas rocas, inclusive rizomas de mandioca e tubrculos
de batata-doce. No idioma ritual, representan! "o corpo"
(mujimba) da paciente. E' significativo que sejam fornecidas por mulheres, principalmente por mulheres da matrilinhagem da paciente.
Depois que o perito mais velho e seu mais importante
assistente masculino iniciaran! a escavago, passam as
enxadas para outros conhecedores masculinos, que continuara a escavar os buracos, at que atinjam a profundidade de um metro e vinte a um metro e oitenta centmetros. A entrada da toca conhecida como "o buraco do
rato gigante" (ou "tamandu"), a outra, como "o buraco
novo". O animal conhecido como "feiticeiro" (muloji)
2
Troika: palavra russa, significando: 1. veculo russo puxado por tres
cvalos emparelhados; 2. grupo de tres pessoas, ou de tres coisas, intU
mmente relacionadas. Nota do tradutor.

38

e diz-se que a entrada da toca "quente" (-tata). .O


outro buraco chamado Ju-fomwisha, ou ku-fomona, pajavras que significan!, respectivamente, "acalmar" e "domesticar". Quando atingem a profundidade apropriada,.
os peritos comecam a cavar um em directo ao outro, at
se encontraren! a meio caminho, tendo completado um
tnel (ikela dakiihanuka). Este deve ser bastante largo
para que urna pessoa possa passar por ele. Outros peritos quebram ou curvam galhos de rvores, formando um
grande crculo ao redor do cenrio inteiro da atividade
do ritual para criar un espago sagrado, que rpidamente
completa a estrutura. Cingir algo numa forma circular
um tema persistente do ritual ndembo. E' geralmente
acompanhado pelo processo de fazer urna clareira (mukombeld) com enxada. Deste modo, um pequeo reino
de ordem criado no meio disforme da floresta. O crculo conhecido como chipang'u, termo que tambm
usado para a cerca construida ao redor da residencia
do chefe e de sua choca dos remedios.
A COLETA DOS REMEDIOS

Enquanto os conhecedores mais mogos preparan! o local


sagrado, o perito mais velho e seu assistente principal
vo floresta vizinha procura de remedios. Estes sao
recolhidos de diferentes especies de rvores, cada urna
das quais tem um valor simblico derivado dos atributos
e finalidades do Isotna, Na maioria dos rituais dos ndembos ha considervel coerncia nos grupos de remedios
usados' as diferentes execugoes da mesma especie de
ritual, mas nos ritos Isoma a que assisti havia grande
variag de urna realizago a outra. A primeira rvore
da qual sao tiradas algumas partes para remedio (yitumbu) sempre chamada ishikenu, e junto dla que
e faz a invocago, seja sombra atormentadora, seja
prpria especie de rvore, cujo poder (ng'ovu) diz-se
e "acordado" (ku-tona) pelas palavras a ele dirigEm urna execugo a que assisti, o perito mais velho
39

foi at urna rvore kapwipu (Swartzia madagascariensis),


utilizada pela resistencia da madeira. A resistencia representa a sade e o vigor (wukolu) desejados para a paciente. O individuo competente mais velho limpou a base
da rvore das ervas daninhas com a enxada do ritual,
colocou em seguida os peda?os dos tubrculos comestveis, representando o corpo da paciente, no espa?o limpo
(mukombela) e falou o seguinte: "Quando esta mulher
esteve grvida antes, seus labios, olhos, palmas das maos
e solas dos ps ficaram amarelos [um sinal de anemia].
Agora ela est grvida de novo. Desta vez, fac.a com que
ela fique forte, a fim de que possa dar a luz urna crianza
viva, que crespa saudvel". O mdico, em seguida, cortou
com sua machadinha clnica pedamos da casca de urna
outra rvore da mesma especie, e os colocou em sua caba?a quebrada. Depois disto, prosseguiu cortando pedamos
de cascas de dezesseis especies de rvores.'
Urna discusso do significado de cada urna dessas rvores tomara muito tempo. E suficiente dizer que muitos
ndembos podem atribuir a elas nao sement urna nica
significado mas, em alguns casos (como musoli, museng'u
e mukombukombu), varias conota?5es a urna so especie.
Algumas destas sao usadas em muitos e diversos tipos de
rituais e na prtica do herbolario (onde, contudo, diferentes tipos de liga?es associativas sao utilizadas, desde
as empregadas no ritual, na dependencia mais do gosto
ou do cheiro do que das propriedades naturais e da etimologa). Algumas (por exemplo, kapwipu, mubang'a)
sao usadas porque tm madeira rija (de onde, "fortalecimento"), outras (por exemplo, mucha, musafwa, mufung'u, museng'u, musoli e mubulu), porque sao rvores
frutferas, representando a intenc.o do ritual de fazer com
que a paciente seja frtil ainda urna vez. Mas todas partilham da importante propriedade ritual de que dlas nao
se pode tirar cordes de casca, por isto "amarraria" a
8
Mubang'a (Afrormosia angolensis), mulumbulumbu, mucha (Parinarl mobola), muses! wehata (Erythrophloeum africanum), muses! wezenzela (Burkea
africana), mosafwa, mufung'u (Anissophyllea fruticulosa ou boehmli), katwubwang'u, musoli (Vangueriopsis lanciflora), kayiza (Strychnos stuhlmannii),
wunjimbi museng'u (Ochna pulchra), wupembi, muleng'u (Uapaca spesies),
mukombukombu (tricalysia angolensis), e mubulu.

fertilidade da paciente. Neste sentido, devem ser todas


consideradas como remedios contra-Afviveng'/, pois, como
recordar o leitor, a indumentaria dele feita de cordes
de casca, o que fatal para a procriac.o as mulheres.
Nao posso abster-me, contudo, de mencionar com mais
detalhes um conjunto menor de remedios soma referentes
a outra cerimonia, porque a interpretac.o que os nativos
Ihe dao lan?a luz sobre muirs das idias subjacentes a
esse ritual. No presente caso os mdicos foram em primeiro lugar a urna rvore chikang'anjamba ou chikoli
(Strychnos spinosa). Eles a descrevem como o mukulumpi,
"o mais velho" ou "o mais antigo" dos remedios. Depois
de invocar seus poderes, tomam urna por?o de urna das
razes e algumas folhas. Chikang'anjamba significa "o elefante fracassa" (em arranc-la) por causa de sua resistencia e dureza. O outro nome, chikoli, derivam-no de kukola, "ser forte, saudvel ou firme", designago que est
de acord com sua extrema resistencia e durabilidade.
Esta mesma rvore fornece remedio para os ritos de circunciso, acreditando-se conferir aos novic.os excepcional
virilidade. No soma, seu uso acenta a conexo entre
estes ritos e os Mukanda, os ritos de circuncisao, embora
seja tambm um remedio especfico contra a fraqueza
e em muitos casos a anemia da paciente. A comparacjo dos remedios predominantes nessas duas intervenc.oes mostra que o mesmo principio, ou idia, pode ser
expresso em diferentes smbolos. O remedio predominante da primeira intervenc.o, kapwipu, tambm urna
rvore robusta, da qual freqentemente tirado o ramo
bipartido que forma o elemento central dos santuarios
erigidos as sombras dos caladores, considerados como
"homens viris e rijos". Estas rvores dos santuarios,
quando se Ihes tiram as cascas, sao excepcionalmente
resistentes a^o dos trmites e de outros insetos. O
cozimento das folhas e da casca da kapwipu tambm
usado como afrodisaco.
O segundo remedio colhido nesta operago revela ouro
tema do ritual ndembo, o de representar o estado naoauspicioso da paciente. E' a rvore mulendi que tem urna

40

41

Superficie muito escorregada, fazendo os trepadores escorregarem com facilidade (ka-selumuka) e cair. Do mesmo modo, os filhos da paciente tiveram a tendencia a
"escorregar" prematuramente. Mas o "polimento" (ksenena) dessa rvore tambm tem valor teraputico e este
lado de sua significado importante em outros ritos e
tratamentos, porque seu uso faz com que a-"doenga"
(musong'u] escorregue da paciente.4 E', de fato, comum
que os smbolos dos ndembos, em todos os nveis de
simbolismo, expressem simultneamente um estado auspicioso e outro nao-auspicioso. Por exemplo, o prprio
nome Isoma, significando "escorregar", representa ao
mesmo tempo estado indesejvel da paciente e o ritual
para cur-lo.
Aqu encontramos outro principio ritual, expresso pelo
termo ndembo ku-solola, "fazer aparecer, ou revelar".
Aquilo que se torna sensorialmente perceptvel na forma
:de um smbolo (chijikilu) pass a ser, desse modo^ aessvel aco propositada da sociedade, operando atravs
de seus especialistas religiosos. E' o "oculto" (chamusweka) que "perigoso" ou "nocivo" (chafwana). Assim,
dizer o nome de um estado nao-auspicioso ja meiocaminho para remov-la. Corporificar a aco invisvel de
feiticeiros e sombras em um smbolo visvel ou tangvel
um grande passo no sentido de remedi-la. Isto nao
est muito longe da prtica do moderno psicanalista.
Quando algo apreendido pelo espirito, quando se torna
um objeto capaz de ser pensado, pode- ser enfrentado
e dominado. E' ineressante notar que o prprio principio da revelacao est corporificado num smbolo medicinal ndembo, usado no Isoma. E' a rvore musoli (cujo
nome deriva, segundo os informantes, de ku-solola), da
qual sao tiradas tambm as folhas e pedafos da casca.
Ela largamente usada no ritual ndembo, estando seu
nome ligado as suas propriedades naturais. Produz grande quantidade de pequeos frutos, que caem no chao
e atraem para fora do esconderijo varias especies de
animis comestveis que podem, entao, ser morios pelo
4

cacador. Ela, literalmente, "faz com que eles aparecem".


Nos cultos de cac.a, seu emprego como remedio destinase a fazer os animis aparecerem (ku-solola anyama)
ao, at ento,, infeliz calador. Nos cultos relativos as
mulheres, usada para "fazer as crianzas aparecerem"
(ku-solola anyana) a urna mulher estril. Como em tantos outros casos, ha na semntica deste smbolo a unio
da ecologa e do intelecto, cujo resultado a materializacjo de urna idia.
Voltemos coleta de remedios. Os mdicos em seguida coletam razes e folhas de tima rvore chikwata
(Zizyphus mucronata), especie em cujo significado teraputico a etimologa ainda urna vez se combina com as
caractersticas naturais. A chikwata tem "fortes espinhos"
que "pegam" (ku-k\vata) ou agarram quem passa junto
dla. Diz-se que representa tanto o "vigor" quanto, por
seus espinhos, capaz de "cortar a enfermidade". Eu
poderia, se o.tempo permitisse, estender-me sobre o tema
ritual de "pegar" ou "agarrar", expresso em muitos smbolos. Invade a linguagem do simbolismo da ca?a, como
era de esperar, mas tambm exemplificado na frase
"pegar urna crianza" (ku-kwata mwana), que significa
"dar nscimento". Mas passarei especie medicinal seguinte, da qual sao tiradas porches, a musong'a-song' 'a
(Ximenia caffra), tambm urna rvore de madeira dura,
proporcionando, assim, sade e fortaleciment, igualmente
derivada por etimologa popular de ku-song'a, "vir a dar
fruto, ou criar frutos", termo metafricamente aplicado
a dar nscimento a criancas, tal como acontece com a
ku-song1'anyana. A rvore muchotuhotu (Canthium venosum) usada como remedio "por causa de seu nome".
Os ndembos derivam-no de ku-hotomoka, "cair de rePente", como um -ramo ou fruto. O estado nao-auspicioso,
espera-se, eessar repentinamente aps a aplca?o dla.
A seguir, o remedio tirado da rvore matando, nome
derivado de- ku-tunda, significando "ser mais alta do que
as que estao em volta". No Isoma, ela representa o bom
crescimento de um embrio no tero e o desenvolvimento
exuberante e continuo da crianza da em diante. Mupa-

Veja-se tambm Turner, 1967, p. 325-326.


42

'

-'

43

pala (Anthodeista species) o nome da especie medicinal seguinte e urna vez mais temos a representado do
estado nao-auspicioso da paciente. Os ndembos derivam
seu nome de kupapang'ila, que significa "perambular confusamente", em que a pessoa saiba onde est. Um informante explica-o do seguinte modo: "Urna mulher vai,
de um lado para outro, sem ter filhos. Nao deve fazer
isto. E' por esta razo que talhamos o remedio mupapala". Por tras dessa idia e da idia de "escorregar" >'
est a nogo de que bom e apropriado que as coisas
se fixem no lugar adequado e as pessoas fac.am o que
Ihes conveniente fazer na sua fase da vida e segundo
sua posico na sociedade.
Em outra representa?o do soma, o remedio principal, ou smbolo dominante, nao foi urna rvore de especie
particular, mas qualquer rvore cujas razes estivessem
totalmente expostas a vista. Tal rvore chamada wuvumbu, derivada do verbo ku-vuntbuka, significando
"estar desenterrado e sair do esconderijo", como, por
exemplo, um animal cacado. Assim, um informante esbocou o significado dla dizendo o seguinte: "Usamos
a rvore wuvumbu para trazer qualquer coisa superficie. Do mesmo modo, tudo no soma deve ser claro"
(-lumbuluka). Trata-se de outra variante do tema da
"revelado".
Os remedios fros ou quentes
Abertura da Morte e da Vida
As vezes, urna porc.o de madeira retirada de urna
rvore podre cada. Esta, mais urna vez, representa
musong'u da paciente ou seu estado de doenga, de tormento. Equipados com esse arsenal de remedios revigorantes, fecundadores, reveladores, clarificantes, doadores
de sade e fixadores, alguns dos quais, alm disso, representam a especie de padecimento da paciente, os peritos voltam ao lugar sagrado, onde o tratamento ser
feito, Completam agora os preparativos qu cftierem
44

qele espago consagrado sua estrutura visvel. As oIhas e os fragmentos de casca medicinis sao triturados
por urna especialista do sexo 'fmininb num almofariz
destinado ao preparo de refeic.es. Sao, ern seguida, moIhados com agua e o remedio liquefeito dividido em
duas porcoes. Urna dlas colocada num grande e
grosso pedaco de csea (ifurivu), o dentro de um caco
de lou?a de barro (chizand), sendo ento aquerida no
fogo aceso exatamente do lado de fora do buraco cavado atravs da entrada da toca da ratazana gigante
ou do tamandu. A outra p o r c o derramada 'fra
dentro de um izawu, termo que se refere tanto a um
vaso de barro quanto a urna gamela para remedio, ou
dentro de urna cabaca quebrada, sendo esta colocada
perto da "nova cavidade" (veja-se a Figura 1). Segundo um informante, as cavidades representan! "sepulturas"
(iulung'a) e poder procriativo (lusemu), em outras palavras, tmulo e tero. O mesmo informante continua:
"A ikela (cavidade) do calor a ikela da morte. A ikela
ira vida. A ikela. da ratazana a ikela da desgraca
ou rancor (chisaku). A,ikela nova a ikela do, fazer
bem (kuhandish) ou da cura. Urna ikela localiza-se
|na nascente de um riacho ou perto, dla; representa
'jisemu, a capacidade de p r o c r i a r. A nova ikela deve
soprar para longe da paciente ,(muyeji). Desta maneira
as coisas ruins a abandonarao. O crculo de rvores quebradas um chipang'u, [Este um termo com mltiplos
significados que representa (1) um cercado; (2) um
cercado ritual; (3) um patio cercado, ao redor da morada do chefe e da cabana dos remedios; (4) um crculo ao redor da la]. A mulher com lufwisha [isto ,
que perdeu tres ou quatro crianzas natimortas ou por
mortalidade infantil] 'deve entrar no buraco da vida e
passar atravs do tnel para o buraco da morte. O mdico mais importante asperge-a com o remedio fri, enguanto seu assistente borrifa-a com o remedi quete".

45

Representadlo Esquemtica do Simbolismo


Espacial do Ritual soma

<><^> Mscente
<^*<^> do rio

Remedio fri

Kuhandisha

IKELA DA VIDA
OU DA SADE

Peritos
do sexo
masculino

Peritos
do sexo
feminino

Tnel

Fogueira das
mulheres

Fogueira dos
homens

Chisaku

IKELA DA MORTE
OU DA FEITIQARIA
Galo vermelho

FIGURA 1. Isoma: a cena do ritual. O casal a ser tratado sentase na cavidade "quente" de um tnel, representando a passagem da morte para a vida. Um mdico cuida do fogo medicinal
situado atrs do casal. Urna cabaca de remedios frios est
colocada em frente da cavidade "fria", podendo-se ver a entrada
do tnel. Os mdicos esperara ai os pacientes surgirem.

46

\
\

Toca
do animal
(obstruida)

Remedio quente
do outro lado do
fogo

Cerca

/
/
/

Comegams agora a ver o desenvolvimeftto de Urna


serie inteira de classifica^oes, simbolizadas em orienta9es espaciis e em diferentes tipos de objetos. Els
sao organizadas em um Conjunto que Lvi-Strauss bem
poderia chamar "discriminacoes binarias". Mas, antes
de analisarmos o padro, mais algumas variveis devem
ser introduzidas no sistema. as sessoes a que assisti,
o marido da paciente entrava na ikela "fra" com ela,
permanecendo no "lado direito", mais prximo da fogueira dos homens, enquanto ela ficava a esquerda. Ento, depois de ter sido aspergida com remedio fri e
quente, ela era a primeira a entrar no tnel de conexo,
seguida pelo marido. Numa variante, o perito mais
velho (ou "grande mdico") borrifava ambos, mulher e
marido, com remedio fri e quente. Em seguida, seu
assistente assumia a direcao durante algum tempo e
proceda da mesma maneira.

acord com um informante, tambm simboliza lusetnu, a


capacidade de procriar. "E' por isto que dada a
niulher", disse ele, "porque ela que fica grvida e da
nascimento aos filhos. Um homem um homem, e nao
pode ficar grvido. Mas o homem da poder as mulheres
para terem filhos, que podem ser vistos, que sao visveis. O galo vermelho representa o homem, talvez o
rancor esteja la" [isto , contra ele]. "Se a mulher continua a nao ter filhos depois do ritual, o rancor estara
com a mulher" [isto , nao se relacionaria com sua situafo marital, mas teria origem em outros grupos de
parentes. Por fim, provavelmente significativo, ainda,
embora isto nao seja declarado, que o galo vermelho
permaneca amarrado e imobilizado durante o ritual enquanto a galinha branca acompanha a mulher, me-

Aves brancas e vermelhas


Quando a paciente entra pela primeira vez na ikela fria,
do-lhe a franga branca para segurar. Durante os ritos
ela a estreita contra o peito esquerdo, no mesmo lugar
onde urna crianza carregada (veja-se a Figura 2). Alias
os dois, marido e mulher, estao us, usando apenas
estreitas tiras de pao na cintura. Dizem que isto representa o fato de que eles sao, ao mesmo tempo, como
bebs e cadveres. Os oficiantes, em contraste, esto
vestidos. O galo vermelho adulto deitado, atado pelos
ps, a direita da ikela quente, do lado dos homens,
pronto a ser sacrificado por degola, no fim do ritual.
Seu sangue e suas penas sao derramados dentro da
ikela, como ato final de rito, representando a anttese
da recepsao da franga branca pela paciente, com que
se inicia o ritual. Acredita-se que a franga branca representa ku-koleka, "boa sorte ou vigor", e ku-tooka,
"brancura, pureza, ou bons augurios". Mas o galo vermelho, como vimos, representa o chisaku, ou desgraca
mstica, o "sofrimento" da mulher. A franga branca, de
48

tr

2. soma: a paciente segura a franga branca de encono ao seio esquerdo, representando o lado da amamentago.

49

dida que ela se movimenta atravs do tnel da "vida"


para a "morte" e, de volta, para a "vida" outra vez.
Em outros contextos do ritual ndembo, o movimento
representa a vida e a imobilidade a morte: o galo
destinado a ser abatido.
O PROCESSO CURATIVO

Na makela os ritos seguem um padro processual. A


primeira fase consiste na passagem da ikela fria para a
quente, indo a mulher na frente e o homem atrs. Na
Ikela quente os mdicos mesclam os borrifos de remedio
com exortac.es a quaisquer feiticeiros ou imprecadores,
a fim de serem eliminadas suas influencias adversas. Depois, o casal, na mesma ordem, retorna ikela fria onde
outra vez aspergido com remedio (veja-se a Figura 3).
Cruzam ento urna vez mais na direcjo da ikela quente.
Segue-se um temporario perodo de calma, durante o
qual o marido escoltado para fora da ikela, indo

buscar um pequeo pedazo de pao para enxugar o


remedio do rosto do casal e do corpo da franga. Volta
ikela fria e, depois de nova medicaco, ha um prolongado intervalo, durante o qual trazida cerveja, que
bebida pelos assistentes e pelo marido. Quanto paciente, est proibida de beber. Aps a cerveja, iniciando-se outra vez na ikela fria, a asperso recomer.
Desta vez o marido quem toma a dianteira para a
ikela quente (veja-se a Figura 4). Voltam para a ikela
fria na mesma ordem. Depois da asperso, ha outro
intervalo para a cerveja. Ento a seqncia frio-quentefrio prossegue, a mulher frente. Finalmente, ha urna
seqncia idntica, ao fim da qual o galo vermelho
degolado e seu sangue derramado dentro da ikela quente (veja-se a Figura 5). O casal ento borrifado mais
urna vez com ambos os tipos de remedio, e agua fria
derramada sobre os dois (veja-se a Figura 6). No
todo, o casal aspergido vinte vezes, treze das quais
na ikela fria, sete na quente, urna proporcao aproximadamente de dois para um.
Enquanto a asperso continua, os peritos do sexo
masculino, direita, e as mulheres adultas esquerda,

4#:"

&;

FIGURA 3. Isotna: o mdico, ao lado da cabaga, borrifa os pacientes com remedio, enquanto os homens ficam de pe, do lado
direito do eixo longitudinal do tnel, cantando a canfo "ondulante", kupunjila.

50

*;-<;,

RA 4. Isoma: o marido prepara-se para seguir a mulher


atravs do tnel.

51

r
,f;:

FIGURA 5. soma: o galo degolado sobre o fogo, sendo o


sangue espalhado na cavidade "quente".

entoam cantos pertencentes aos rituais da grande crise


da vida e dos ritos de iniciaco dos ndembos: dos
Mukanda, circunciso dos meninos; Mung'ong'i, ritos de
iniciaco funeraria; Kayong'u, iniciaco adivinhacao;
Nkula, culto tradicional de mulheres; e Wuyangfa, iniciaco a cultos de cacadores. Peridicamente, cantam
o canto Isoma "mwanami yaya punjila", acompanhada por
urna dan?a ondulante, chamada kupunjila, que representa o estilo de danca dos Mvweng'i ikishi, e, ademis,
imita as contraces do trabalho abortivo.
ESTRUTURA CLASSIFICATRIA: AS TRADES

Temos agora dados bastantes para tentar analisar a


estrutura dos ritos. Primeiramente, ha tres series de
trades. Existe a trade invisvel feiticeiro, sombra
e Mvweng'i qual se ope a trade visvel mdico, paciente e marido da paciente. Na primeira trade,
o feiticeiro o mediador entre os mortos e os vivos,
numa hostil e letal conexo; na segunda, o mdico
o mediador entre os vivos e os mortos, numa
52

FIGURA 6. Isoma: agua fria derramada sobre o casal.

53

lif^l^il

FIGURA 7. soma: tnulher e marido acocoram-se na cabana de


recluso recentemente construida, onde a franga branca tambm ser mantida at a postura do primeiro ovo. A cabana
construida fora da aldeia. O mdico segura na mo direita a
faca com a qual degolou o galo.

conciliatoria e doadora de vida. Na primeira, a sombra


feminina e o ikishi, masculino, enquanto o feiticeiro
pode ser de qualquer sexo; na segunda a paciente
do sexo feminino e o marido, do sexo masculino. O
mdico serve de intermediario entre os sexos, ja que
trata de ambos. O mdico ndembo, na verdade, tem
muitos atributos considerados na cultura ndembo como
femininos. Pode moer remedios num almofariz utilizado
no preparo de refeices, tarefa normalmente cumprida
por mulheres e trata com as mulheres e conversa com
elas sobre assuntos particulares, de urna maneira que
nao seria permitido aos homens em fun?oes profanas.
O termo usado para designar o "mdico", chimbara,
relaciona-se, segundo os ndembos, com o termo mambanda, que representa "mulher".
Em ambas as trades ha estreitos la?os de relajees
entre dois parceiros. Na primeira, acredita-se que a
sombra e o feiticeiro sejam parentes matrilineares; na
segunda, marido e mulher sao ligados por afinidade. O

p r meiro par aflige o segundo com a infelicidade. O


terceiro parceiro, Mvweng'i, representa o modo dessa
desgraca e o outro terceiro parceiro, o mdico, representa o modo de suprimir o infortunio.
A terceira trade representada pela proporco 2:1
entre as abluces fras e quentes, que, alm disso, pojem ser consideradas um smbolo da vitria final da
vida sobre a morte. Est contida aqui urna dialtica
que passa da vida, atravs da morte, para urna vida
renovada. Talvez, no nivel da "estrutura profunda",
fosse possvel at mesmo relacionar o movimento da
paciente no tnel com seu movimento real, pelo casamento, de urna aldeia para outra, dos parentes maternos para os do marido e, novamente, de volta em caso
de morte ou divorcio daquele esposo.
ESTRUTURA CLASSIFICATRIA: AS DADES

Os outros aspectos estruturais dos ritos podem ser


organizados em termos de oposices binarias cruzadas.
Em primeiro lugar, existe a oposicao principal entre
o lugar do rito e a floresta selvagem, aproximadamente
semelhante estabelecida por Eliade, entre "cosmo" e
"caos". As outras oposices sao melhor agrupadas em
tres series, em forma de coluna, da seguinte maneira:
Longitudinal

Toca/nova
ca
vidade
Sepultura/
{
ertilidade
te/vida

Mor

es

gra?a

quente/
pnmdo fri
o/ausencia
f

an

54

Latitudinal

Altitudinal

Fogueira da
esquerda/fogueira
da direita
Mulheres/homens

superficie inferior/
superficie superior

Paciente/marido
da paciente
razes cultivadas/
remedios do mato
Franga branca/
galo vermelho

Animis/seres
humanos
us/vestidos

gO

Candidatos/peritos

Razes medicinis/
folhas medicinis
Sombras/seres vivos
Franga branca/galo
vermelho

vermelho/
8a branca

55

Estas series de pares de valores opostos situam-se


em diferentes planos no espago do ritual. A primeira
serie longitudinal, sendo polarizada pela "ikela da
vida" e pela "ikela da morte". A segunda serie latitudinal, especialmente limitada pela fogueira masculina,
direita, e pela fogueira feminina, esquerda. A terceira serie altitudinal, sendo espacialmente circunscrita pela superficie do solo e pelo chao conjunto da
makela e do tnel de conexao. Tais oposigoes sao
feitas pelos prprios ndembos na exegese, na prtica
ou em ambas. Em termos de orientago espacial as
oposges mais importantes sao: b u r a c o feito pelo
animal/buraco feito pelo homem; esquerda/direita; abai- ;
xo/acima. Corresponden! exatamente aos valores empa-i
relhados: morte/yida; feminino/masculino; candidatos/1
peritos. Mas urna vez que esses conjuntos de valores
se entrecruzem, nao devem ser considerados equivalentes.
No /soma, os ndembos nao esto afirmando, na linguagem nao-verbal dos smbolos rituais, que a morte
e a feminilidade, assim como a vida e a masculinidade
sao equivalentes; nem esto dizendp que os candidatos
representan! um papel feminino em relago aos peritos
(anda que estejam, indubtavelmente, num papel passivo). As equivalencias devem ser procuradas dentro de
cada seri (ou coluna), nao entre elas. Assim, a entrada bloqueada da toca do animal considerada semeIhante as sepulturas repletas de trra dos seres humanos
e morte, que bloqueia a vida; desgraga mstica,
que da em resultado a morte dos filhos; ao "calor",
eufemismo para designar a feitigaria e os rancores qu1
"queimam"; ao galo vermelho, cuja cor representa "|
sangu da feitigaria" (mashi awuloji) no soma (a fe'f
tigaria ndembo necrfaga, e nos ritos contra os feitl
gos o vermelho representa o sangu derramado em tai!?
festins (veja-se Turner, 1967, p. 70), e ao "sangu
como smbolo geral de agresso, perigo, e, em cer*"8
. circunstancias, impureza ritual.
A nova cavidade, feita na dirego da nascente
ro, simbolizando a fonte da fecunddade, ' f ~"
56

por outro lado, ter afinidades com a fecundidade, a


[.vida, os procedimentos de cura, frescura ou frialdade
sinnimo de libertagao dos ataques das feiticeiras
jou das sombras e, conseqentemente, de "sade" (wu[kolu); com a ausencia do "fogo" = nesse contexto
f smbolo do poder devastador e perigoso da feiti?aria;
i com a f ranga branca que neste ritual representa e
late mesmo corporifica a fertilidade da paciente e por
sua cor simboliza (como demonstrei em outro lugar
por exemplo: 1967, p. 69-70) qualidades desejveis,
tais como "bondade, sade, vigor, pureza, boa sorte,
fecundidade, alimentac.o, etc"; e, finalmente, com a agua
que tem a mesma gama de significados que "brancura",
embdra em termos de processo mais do que de estado.
Tais qualidades positivas e negativas tem urna que
supera a distingo dos sexos e, creio, seria erro igual-las muito estreitamente com as diferengas sexuais.
As ltimas estao ligadas muito mais de perto oposico lado esquerdo/lado direito. Nesta serie, difcilmente
se pode dizer que a paciente, a f ranga branca e as
razes cultivadas fornecidas pelas mulheres tem a sgtiificaclo agourenta encontrada no simbolismo sepultura
Anorte/calor, da primeira serie. Menciono isto, porque
|outros autores, como Herz Needham, Rigby e Beidelnan, analisando outras culturas, tendem a enumerar,
bomo membro da mesma serie, pares como esquerda/
iireita, feminino/masculino, desfavorvel/favorvel, impuro/puro, etc., considerando assim a ligago entre feJniinilidade e nao-prprio como um elemento freqente
quase que como elemento humano-universal - de
iplassifcelo. Nem a dicotoma abixo/acima deveria
per correlacionada na cultura ndembo com a divisao dos
|exos. A serie de termos reunidos sob esses ttulos ,
pepito, independente do sexo, ja que, por exemplo, entre
pacientes situadas abaixo e os mdicos, cima, encorn
ram-se membros de ambos os sexos.

57

SITUACAO E CLASSIFICACAO

Em outros tipos de contextos rituais, outras elassifica?6es sao aplicveis. Assim, em ritos de circunciso
masculina, as mulheres e os atributos femininos podem
ser considerados desfavorveis e maculadores. A situa930 porm se inverte nos ritos de puberdade das mocas.
O que realmente necessrio para a cultura ndembo e,
na vrdade para qualquer outra, urna tipologa das
situares culturalmente reconhecidas e estereotipadas, na
qual os smbolos utilizados sejam classificadps de acord com a estrutura visada da situacao particular, Nao
existe urna nica hierarquia de classificacao que possa
ser considerada capaz de abranger todos os tipos de
sltaces. Pelo contrario, ha diferentes planos de classificago, que se entrecruzam uns com os outros, nos
quais os pares binarios constitutivos (ou rubricas tridicas) acham-se l i g a d o s so temporariamente. Por
exemplo, em determinada situago a distinc.p vermelho/
branco pode ser homologa a masculino/feminino, em
outra, a feminino/masculino, e, ainda m, outra a carne/
frinha, sem conotacao sexual.

smbolos, isto , ao fato de possurem simultneamente


.guitas significa?oes. Urna razSo disto pode ser encontrada na sua funco "nodal", com referencia as series
Entrecruzadas d classificacoes. A oposigo binaria galo
vermelho/franga branca significativa em pelo menos
tres series de classificacSes no /soma. Se considerarmos
separadamente cada um desses smbolos, isolando-os uns
dos outros no campo simblico (de acord com a exegese nativa ou o contexto simblico), a multivocidade
a caracterstica mais saliente. Se, por outro lado, os
como
r considerarmos do ponto de vista da totalidade
classifica?oes que estruturam a semntica do rito inteiro
o qual esses smbolos ocorrem, ento cada um dos
. significados a eles atribuidos aparece corno a exemplifi?o de um; so principio. Na oposigo binaria, em cada
; plano, cada smbolo se torna unvoco.
epNHECIMENf O E EXISTENCIA
NO SIMBOLISMO RITUAL

Smbolos nicos podem, sem dvida, representar os pontos de interconexo entre planos' separados de classificaco. Deve ter sido notado que, no Isom, a posigo
galo vermelho/franga branca aparece em todas as tres
colunas. No plano vida/morte, a franga branca igualase vida e fertilidade, em oposic.o ao galo vermelho,
que se iguala morte e feitigaria; no plano direita/
esquerda, o galo masculino e a franga, feminiro; e
no plano acima/abaixo, o galo est cima, pois ser
usado como "remedio" (yitambu), derramado d cima
para baixo, enquanto a franga est abixo, urna vez
que se liga de perto com a paciente que est sendo
medicada, como a crianga me. Isto conduz ao pro- \
blema da "polissemia", ou multivocidade de muitoSi

fConcluo este captulo relacionando os resultados dele


com o ponto de vista de Lvi-Strauss, no The Savage
Mind. Lvi-Strauss, est certo quando acenta que la
~f>ense sauvage tem propriedades tais como homologas,
oposices, correlafes e transformaces, as quais sao
tambm caractersticas do pensamento requintado. No
Caso dos ndembos, contudo, os smbolos utilizados indiqu tais propriedades esto envolvidas por revestimaterial, forjado na sua experiencia da vida. A
o nao aparece como tal, mas como um confron? de o b j e t o s sensivelmente perceptveis, assim, por
^ernplo, urna franga e um galo de diferentes idades
. cores, em variveis rela?5es espaciis e com destinos
gerentes. ,Embora Lvi-Strauss dedique algurha atenl?ao ao papel dos smbolos msticos, como instigadores
e
sentimento e desejo, nao desenvolve esta linha de
Salsamento de maneira to completa como o faz em
eu
trabalho sobre os smbolos como fatores no conhe-

sa

59

Planos d classificaco

cimento. (Abordei o assnto em outra parte, com.algumas minucias por exemplo, 1967, p. 28-30, 54-55).
Como sao encontrados no Isoma, os smbolos e suas
relances nao sao somente um conjunto de classificac.5es
cognoscitivas para estabelecer a o r d e m no universo
ndembo. Sao tambm, e talvez de modo igualmente importante, um conjunto de dispositivos evocadores para
despertar, canalizar e domesticar emoc.5es poderosas
tais como odio, temor, afeic.o e tristeza. Esto tambm
imbuidos de motivac.5o e tm um aspecto "volutivo".
Numa palavra, a totalidade da pessoa e nao so o "espirito" dos ndembos, acha-se existencialmente implicada as questes da vida e da morte a que se refere
o Isoma.
Finalmente, o Isoma nao "grotesco", no sentido
de que seu simbolismo seja caricato ou incongruente.
Cada elemento simblico relaciona-se com algum elemento emprico de experiencia conforme claramente revelam as interpretac.5es indgenas dos remedios vegetis.
Do ponto de vista da ciencia do sculo XX podemos
achar estranho que os ndembos julguem que, colocando
certos objetos dentro de um crculo de espac.0 sagrado,
tragam com eles os poderes e virtudes que parecem empricamente possuir, e que, ao manipul-los da maneira
prescrita, podem a r r u m a r e concentrar tais poderes,
quase como se fossem feixes lser, para destruir forjas
malignas. Mas, dado o limitado conhecimento da idia
de causalidade natural transmitido na cultura ndembo,
qum duvidar que em circunstancias favorveis o uso
desses medicamentos pode produzir considervel beneficio psicolgico? A expresso simblica do interesse de
grupo pelo bem-estar de urna mulher infeliz, reunido
mobilizago de um conjunto de coisas "boas" em favor
dla, bem como a associac.o do destino individual corn
smbolos dos processos csmicos da vida e da morte
isto tudo, na realidade, se apresentar para nos como
algo meramente "ininteligvel"?

60

Os Paradoxos da Gemelaridade
no Ritual Ndembo
!

A GEMELARIDADE NO PARENTESCO E NA VIDA.


ALGUNS EXEMPLOS AFRICANOS

ANALISEI

NO

PRIMEIRO

CAPTULO UM TIPO

DE RITUAL

ndembo, realizado para corrigir urna deficiencia, por


exemplo, a incapacidade temporaria de urna mulher
gerar e criar, f ilhos com vida. Pretendo, agora, considerar outro ritual ndembo, cuja raison d'tre urna
desordem de natureza diferente. E' o ritual Wubwang'u,
realizado para fortalecer a mulher que espera ter, ou
ja teve, f ilhos gemeos (ampamba). Neste caso, a difieuldade consiste em um excesso, e nao em um defeito,
uma super-realizago, mais do que urna sub-realizac.'o.
Para os ndembos, o nascimento de gemeos constitu o
chamaramos de paradoxo, isto , algo que entra
|m confuto com nogoes preconcebidas a respeito do que
g razovel ou possvel. Para os ndembos ha diversos
contra-sensos no fato fisiolgico da gemelaridade. Em
!Primeiro lugar, como vimos, um alto premio cultural
fertilidade (lusemu); contudo, temos aqui urna
Exuberancia de fertilidade de que resultam dificuldades
P'siolgicas e econmicas. Numa sociedade desprovida
p gado e da nocao de que ovelhas e cabras podem ser
- r denhadas para consumo humano, torna-se difcil para
me prover filhos gemeos com urna alimentac.ao
pela amamentafao. A sobrevivencia deles, em

61

geral, depender do fato de que outra mulher que baja


perdido recentemente um filho tenha suficiente leite e
deseje amamentar um dos gmeos. E mesmo que os
gmeos sobrevivan! at o desmame, pode ser difcil que
os pas sozinhos Ihes assegurem a sobrevivencia. Por
esta razo, eles sao simblicamente representados nos
ritos como um onus para a comunidade.
Urna maneira pela qual isto se expressa numa
dan?a cerimonial onde a me dos gmeos, vestida apenas com urna tira de tecido de fibra com urna aba
frontal de couro ou de fazenda e carregando urna cesta
de joeirar redonda e achatada (Iwalu), da a volta a
todas as aldeias na vizinhan?a. A medida que danca,
levanta a cobertura anterior para mostrar a todos a
fonte de sua excessiva fecundidade e pede ofertas de
alimentos, roupas e dinheiro, fazendo circular a cesta
entre os expectadores. Esta dan?a exibe diversos motivos caractersticos de Wubwang'u. Um deles a suspenso das regras de recato que sao rigorosamente
obrigatrias para as mulheres ndembos; outro o poder ritual da vulnerabilidade ou da fraqueza, um motivo a que nos dedicaremos mais no captulo 3. Aqu
chamare! a aten?o somente para o fato de que a gemelaridade simultneamente olhada, como urna bn?ao
e urna desgraca, ambas interessando a comunidade mais
ampia no bem-estar da pessoa que objeto do ritual.
Mas o Wubwang'u revela um outro paradoxo na
ordem social. O professor Schapera (e outros estudiosos) chamaram atenso para o fato de que em toda
parte onde o parentesco tem importancia estrutural e
fornece urna moldura para os relacionamentos coletivos
e para o "status" social, o nascimento de gmeos
fonte de dificuldades de classifica^o. Isto porque na
frica e em outras partes largamente difundida a idia
de que as crianzas nascidas de um nico parto sao misticamente idnticas. Mas de acord com as regras de
atribuido ligadas aos sistemas de parentesco, ha somente urna posico na estrutura da familia ou no grupo
conjunto de parentes que elas podem ocupar. Existe a
62

suposicao classificatria de que os seres humanos do


luz somente urna crianca de cada vez, havendo nicamente um lugar a ser ocupado nos varios grupos articulados por parentesco, nos quais essa crian9a ingressa
pelo nascimento. A ordem no grupo de irmos outro
fator importante pois os irmos mais velhos exercem
direitos sobre os mais jovens, e podem, em alguns casos,
suceder a cargos polticos antes deles. A gemelaridade
contudo apresenta os paradoxos de que urna realidade
fsicamente dupla estruturalmente nica, e aquilo'que
msticamente uno ser empricamente duplo.
As sociedades africanas resolvem este dilema de variadas maneiras. Urna solujao para a contradicho estrutural produzida pela gemelaridade matar os gmeos.
Esta prtica seguida pelos boximanes do Kalahari,
sobre os quais escreveu Baumann: "L'infanticide est
frqent par suite des conditions conomiques difficiles,
mais le rneurtre1- des jumeaux ou de l'un d'entre eux est
du la croyance qu's portent malheur" * (Baumann
e Westermann, 1962, p. 100-101). O paradoxo aqu
resolvido pelo exterminio de um dos gmeos ou de
ambos, por se acreditar que trazem desgraca (mstica).
Outras sociedades nao eliminam os gmeos, mas os
afastam do sistema de parentesco ao qual pertencem
por nascimento e Ihes conferem urna situaco especial,
freqentemente com atributos sagrados. Assim, entre os
ashantis, segundo Rattray (1923), "os gmeos, se sao
ambos do mesmo sexo, pertencem por direto ao chefe,
e quando meninas se tornam suas esposas em potencial; se sao meninos tornam-se chicoteadores de cauda
de elefantes, na corte. Devem ser mostrados ao chefe
o mais cedo possvel depois do nascimento, sendo levados ao "palacio" em urna baca de lata. Os gmeos,
e
m cerimnias oficiis, vestem-se de branco, um igual
ao outro" (p. 99).
O infanticidio tregente como conseqncia das condiwes econmicas difceis, mas o assassinio de gmeos, ou de
<u deles, devido crenga de que trazem infelicidade,

63

A cor branca entre os ashantis smbolo, nter alia,


da divindade e dos fluidos "espirituais" e fertilizantes,
a agua, o semen e a saliva. O elefante tambm se relaciona com a fertilidade exuberante, como fica claro no
ritual de puberdade das mogas, durante o qual a noviga
"toca em tres pedagos de orelha assada de elefante,
enquanto as seguintes palavras sao dirigidas a ela:
Possa a elefanta dar-te um tero em que consigas
conceber dez futios'" (1925, p. 73). Os chefes ashantis
tm muitos dos atributos dos "reis divinos" e cr-se
que esto cima das divises entre grupos seccionis em
seus dominios, e que o bem-estar e a fertilidade desses
grupos esto msticamente identificados eom os dos
chefes. Assim, os gmeos sao elevados cima da estrutura secular e simbolizan! a sacralidade e a fertilidade
do chefe. Os gmeos nascidos na familia real porm
sao mortos, pois tal acontecimento considerado "detestvel" para o "Banco Dourado", insignia suprema e
expresso da realeza ashanti (1925, p. 66). Presumivelmente isso acontece porque o nascimento de gmeos introduziria urna contradigo na estrutura da matrilinhagem real, dando origem a' problemas de sucesso e
precedencia.
Segundo Evans-Pritchard (1956) os neres do Sudo
niltico afirmam ,que os gmeos sao urna so pessoa e
sao pssaros: "Sua personalidade social nica algo
que se sita cima da dualidade fsica, dualidade evidente aos sentidos e indicada pela forma plural que se
usa ao falar de gmeos, e pelo modo como sao tratados
em todas as ocasies da vida social comum, como dois
individuos inteiramente distintos. Somente em determinadas situares rituais e simblicamente que a unidade dos gmeos expressa, particularmente em cerimnias ligadas ao casamento e a morte, as quais a
personalidade sofre urna mudanga" (p. 128-129). Nesta
sociedade os gmeos nao sao retirados da estrutura
social mas, ainda assim, adquirem um valor ritual e
simblico. Sao simblicamente identificados com pssaros, nao apenas pela semelhanga entre "a mltipla in64

cubaco dos ovos e o nascimento dual de pssaros"


(p. 130) mas tambm porque os gmeos, como os pssaros, sao classificados pelos neres como "gente do
alto" e "ilhos de Deus". "Os pssaros sao filhos de
Deus porque ficam no ar, e os gmeos pertencem ao ar
porque sao filhos de Deus pelo modo de sua concepgo
e nascimento" (p. 131). Os neres, desse modo, resolvem o paradoxo da gemelaridade, relacionando a personalidade nica dos gmeos com a ordem sagrada, e
sua dualidade fsica com a ordem secular. Cada aspecto
opera em um nivel cultural distinto, e o conceito de gemelaridade serve de mediador entre os nveis.
Em muitas sociedades os gmeos tm esta fungo
mediadora entre animalidade e divindade. Sao ao mesmo
tempo mais do que humanos e menos que humanos. Em
quase todas as sociedades tribais difcil encaix-los no
| modelo ideal da estrutura social, mas um dos paradoxos
da gemelaridade que algumas vezes associada aos
rituais que revelam os principios dessa estrutura. A gemelaridade assume assim um carter de contraste anlogo relago fundo-forma' na psicologa da Gestalt.
De fato, freqente, as culturas humanas, descobrirse que contradigSes, assimetrias e anomalias estruturais.
sao recobertas por carnadas de mito, ritual e smbolo, o
que salienta o valor axiomtico dos principios estruturais bsicos, em relago quelas mesmas situages onde
parecem ser mais inoperantes.
Entre muitos povos de lngua banto, incluindo-se os
ndembos, os gmeos nem sao mortos, nem Ihes dada
urna situago especial permanente, como entre os ashantis. Mas, as .crises de vida de seu nascimento, casamento e morte, sao realizados rituas especiis e sempre
, tm um carter sagrado latente, que se torna visvel em
.*dos os ritos ligados a nascimentos de gmeos. Alm
disso, os pas de gmeos e alguns dos seus irmaos, es2 Pecialmente aquele que se segu a eles pela ordem de
n
ascimento, ficam dentro da penumbra dessa sacralie. Corno exemplo, diz Monica Wilson (1957):
| Proccsso... Ec) 2877 3

65

"O nascimento de gmeos um acontecimento temvel para


os nyakyusas. Os pais de gmeos e eles prprios sao abipasya, os temveis, considerados muito perigosos para os parentes e vizinhos mais prximos e para o gado, causando-lhe diarria, purgaco e pernas indiadas, se houver algum contato.
Os pais por conseguinte sao segregados sendo realizado um complexo ritual do qual participa um largo crculo de parentes
masculinos, vizinhos e gado domstico. As criancas sao segregadas junto com a me, mas acentua-se mais o perigo
oriundo dos pais do que o proveniente dos gmeos. Ilipasa
comumente usado para significar "gmeos", "nascimento gemelar", mas urna tradugo mais precisa "nascimento anormal",
pois usado no caso do nascimento de urna crianca em que
os ps saem primeiro (unsolola) bem como nos nascimentos
mltiplos, e o mesmo ritual realizado, qualquer que seja o
tipo de ilipasa (p. 152).

A finalidade dos ritos dos nyakyusas livrar os gmeos e seus pais do perigoso contagio de sua condicao.
Os pais devem ser tratados com remedios e ritual, a fim
de que, da por diante, gerem urna so crianza em cada
nascimento, nao podendo mais afetar os vizinhos com
a doenca mstica. Entre os nyakyusas e outras sociedades bantos, tais como os sukus, do Congo, sobre cujos
ritos de gemelaridade Van Qennep (1960) escreveu, e
os sogas, de Uganda (Roscoe, 1924, p. 123), os ritos
de gemelaridade abrangem a comunidade local inteira.
Van Gennep chama a aten?ao para o fato de que, nos
ritos de reintegra?o dos sukus, em seguida um longo
perodo "liminar" durante o qual os gmeos sao solados do= contato com a vida pblica por seis anos,
existe "urna travessia ritual do territorio pertencente
sociedade como um todo e urna (total) repartido de
alimentos" feita pelos aldees (p. 47). Ja fiz menc.ao
do modo pelo qual os ndembos consideram os gmeos
urna carga para a comunidade inteira. Isto pode ser
visto como outro exemplo de urna tendencia social amplamente predominante, seja para tornar aquilo que sai
fora da norma um assunto de interesse para o grupo
mais amplamente reconhecido seja para, destruir o ie. nmeno excepcional. No primeiro caso, o anmalo pode
ser sacralizado e considerado sagrado. Assim, na Europa
66

oriental, os idiomas costumam ser vistos como santuarios


vivos, repositorios de urna santidade que Ihes destruiu
a natural capacidade intelectual. Eles tinham o direito
de receber comida e roupa de todos. Aqui, a anomala,
a "pedra que os construtores rejeitam", removida da
ordem estruturada da sociedade e levada a representar
a simples unidade da prpria sociedade, conceitualizada
como homognea e nao como um sistema de posifes
sociais heterogneas. Entre os ndembos, tambm, a inteira biologa dos gmeos sacralizada e transformada
num assunto que interessa a todos e nao so aos parentes prximos da me. O padecimento da me com o
excesso de urna coisa boa torna-se urna responsabilidade
para a comunidade. Transforma-se tambm numa ocasio em que a comunidade pode celebrar e exaltar alguns
de seus essenciais valores e principios de organizacao.
O paradoxo de que o que bom (em teora) man
(na prtica) vem a ser o ponto mobilizador de um ritual
que intensifica a total unidade do grupo, superando suas
contradifes.
Repetindo, diremos que ha duas coisas que podem ser
feitas em relaco gemelaridade, numa sociedade bascada no parentesco. Pode-se dizer, como o menino que
viu urna girafa pela primeira vez, "nao acredito no
que estou vendo", e negar a existencia social do fato
biolgico; ou ento, tendo sido aceito o fato, pode-se
tentar control-lo. Neste ltimo caso, devemos faz-lo,
se pudermos, parecer coerente com o resto da cultura.
Pode-se, por exemplo, em algumas situacoes, focalizar
3 atenco sobre a dualidade dos gmeos e, em outras,
sobre a unidade deles. Ou pode-se refletir sobre os processos naturais e sociais em virtude dos quais o que era
O
nginalmente dos elementos separados, ou mesmo oposts, funde-se para formar algo novo e nico. Pode-se
Caminar o processo pelo qual dois se tornara um. Ou
Caminar o inverso disto, o processo pelo qual um se
torna dois, o processo de bifurca^o. E anda, pode-se
c
nsiderar o nmero Dois como sendo representativo de
to
das as formas de pluralidade, oposta unidade. O
67

numero dois representa Multos, por posic.o ao l)m,


derivando dele ou fundindo-se outra vez com ele.
Alm disso, quando se presta atenfo ao Dois, desprezando momentneamente o Um, pode-se consider-lo
ou um par de similares, um par dioscural como Castor e
Pollux, ou um par de opostos, como masculino e femi'nino, ou vida e morte, conforme se da no ritual do
Isoma. Os ndembos, no idioma simblico do ritual de
gemelaridade, preferiram acentuar o aspecto de oposi9o e de complementariedade. Anda que os gmeos, na
natureza, sejam freqentemente do mesmo sexo, e de
fato os gmeos idnticos sao sempre do mesmo sexo,
os ndembos ressaltam no Wubwang'u o aspecto igual,
mas aposto, da dualidade. Desenvolvendo mais amplamente este ponto de vista, quando expem o processo
de unio dos componentes da diada, representam-no
como urna coincidencia de opostos e nao como urna duplica?o de similares. O simbolismo sexual utilizado
para retratar esse processo, mas tentarei mostrar que
tem por finalidade muito mais do que as relances
sexuais. O idioma da sexualidade usado para representar os processos pelos quais as forjas sociais, aproximadamente iguais em poder e opostas em qualidade,
aparecem trabalhando em harmona. Neste captulo, estarei especialmente preocupado com os referentes sociais
dos smbolos que tambm representan! aspectos da sexualidade. A fuso de urna pluralidade de referentes
socioculturais com urna pluralidade de referentes orgnicos (inclusive os de c a r t e r sexual) numa nica
representado visvel, revestida pelos crentes de um
extraordinario poder e possuindo nova qualidade de comunicagao humana, urna importante caracterstica dos
smbolos religiosos. Dizer que um dos dois grupos de
referentes, os culturis ou os orgnicos, "bsico" ou
"primario", sendo o outro redutvel ao primeiro, deixar
de ver a diferen?a qualitativa de um e de outro grupo,
representada pelo padro de sua interdependencia.

68

O ENRED DO RITUAL NDEMBO DOS GMEOS


A unificaco de um par de opostos, predominantemente
expressa nos smbolos da diferenc.a masculino-feminino,
oposifo e unio, constitu o que pode ser chamado
"enredo" ritual do Wubwang'u. Proponho selecionar dois
importantes episodios no ritual e examinar cada um por
sua vez, com referencia ao simbolismo nele contido.
Como a maior parte dos cultos de calamidade dos
ndembos, a associac.o cultural do Wubwang'u formada de pessoas que foram submetidas como pacientes
ao tratamento ritual caracterstico do Wubwang'u. Acredita-se que o espirito termentador tenha sido um membro, ja falecido, do culto. Os peritos ou os mdicos
coletam remedios vegetis para a paciente, adornam-se
de maneira especial, e ento lavam a paciente com folhas
medicinis esmagadas, dando-lhe para beber um remedio misturado com agua. Um sacrrio construido perto
da porta de sua cabana, e os membros do culto executam
um certo nmero de ritos em conexo com ele. Ambos,
homens e mulheres, tm a permisso de agir como mdicos, pois os homens que foram membros de um par
de gmeos, que foram filhos ou pas de gmeos, ou
cujas esposas, maes ou irms tenham sido tratadas com
sucesso .pelo procedimento Wubwang'u, tm o direito de
aprender os remedios e as tcnicas do Wubwang'u.
Segundo minhas anotagoes, o espirito atormentador
sempre o de urna mulher e, na maioria dos casos, acredita-se que seja a prpria av materna da paciente.
O Wubwang'u pode ser executado em favor de urna
mulher que acaba de ter gmeos ou de una mulher
que espera ter gmeos. Supe-se, por exemplo, que
urna mulher cuja tne, ou cuja av materna, ou ambas
te
nham dado nascimento a gmeos ou que a mesma faca
' Parte de um par de gmeos, tambm ter gmeos. Se
^a' mulher sofre qualquer tipo de perturbaco obsttrica
; Curante a gravidez, o Wubwang'u pode ser executado
| e rn favor dla, muitas vezes sem precisar consultar um
|adivnho. Outras mulheres, sem qualquer conexo com
69

a gemelaridade, podem vir a tornar-se pacientes do


Wubwang'u, se tiverem sofrido de perturbares dos rgos reprodutores. Isto freqente porque parentes da
mulher enfermica consultaran] um adivinho, que consultou seus objetos simblicos, e decidiu que um espirito
"de forma Wubwang'u" pegou-a. Todos os rituais dos
ndembos referentes reprodugo feminina tm, duplamente, um aspecto especfico e outro geral, relacionado
de modo explcito com um disturbio particular culturalmente definido, tendo porm a capacidade de curar outros tipos de perturbaces. Assim, o Nkula empregado
adequadamente para problemas menstruais, mas tambm
para o aborto, a frigidez e a esterilidade, enquanto o
soma usado para o aborto e nos casos de criancas
natimortas, mas tambm se emprega em perturbares
menstruais. Do mesmo modo, acredita-se que o Wubwang'u, como ritual curativo genrico, beneficia as muIheres que sofrem de varias perturbares dos rgos
reprodutores. Mas sua principal importancia simblica
refere-se ao nascimento de gmeos, assim como a do
Nkula relaciona-se com a menorragia, e a do soma com
os abortos.
Sao dois os episodios (dos quais o segundo dividido
em duas fases) para os quais gostaria de chamar a
atengao: 1) os Ritos da Nascente do Rio; e 2) a construc.ao do sacrrio dos gmeos, com a Prolfica Competico dos Sexos. No primeiro, a unidade dos sexos
no casamento representada como um misterio; no segundo, os sexos sao. representados em sua divisao e
oposigo.
As Propriedades dos Smbolos Rituais
Cada um dos episodios carregado de simbolismo." Os
smbolos possuem as propriedades de condensando, unificaco de referentes dispares, e polarizado de signifi0
Veja-se Turner, 1967, para o estudo do que considero ser os tipos de
dados dos quais os raais importantes componentes semnticos e propriedadss
dos smbolos religiosos podem ser inferidos; nao repetir! aqui a argumenta3o completa.

70

cado. Um nico smbolo, de fato, representa multas


coisas ao mesmo temp'o, multvoco e nao unvoco. Seus
referentes nao sao todos da mesma ordem lgica, e sim
tirados de muitos campos da experiencia social e de
avaliaco tica. Finalmente, os referentes tendem a aglutinar-se em torno de polos semnticos opostos. Num
polo, as referentes sao feitas a fatos sociais e moris,
no outro, a fatos fisiolgicos. Assim, a rvore mudyi
(Diplorrhyncus condylocarpor), smbolo central do rito
de puberdade das mocas, significa simultneamente leite
do seio e lnhagem materna, enquanto a rvore mukula
(Pterocarpus angolensis) jepresenta"\ o sangue da circunciso e a comunidade moral dos homens adultos de
urna tribo. Tais smbolos, portante, unem a ordem orgnica com a sociomoral, proclamando a unidade religiosa suprema de ambos, cima dos conflitos entre essas
ordens e no interior dlas. No processo ritual poderosas
energas e emoces ligadas fisiologa humana, em especial da reproduco, sao despojadas da qualidade
anti-social e agregadas aos componentes da ordem normativa, fortalecendo esta ltima com urna vitalidade tomada de emprstimo, e deste modo tornando desejvel
o "obrigatrio" de Durkheim. Os smbolos sao tanto os
resultados qttanto os instigadores desse processo, e englobam sua propriedade.
OS RITOS DA NASCENTE DO RIO:
A COLETA DE REMEDIOS
Os Ritos da Nascente do Rio, no Wubwang'u, exemplificam a maioria dessas propriedades. Formam parte de
urna seqiincia de atividades rituais que constituem a
primeira fase deste ritual de gemelaridade. Como no
Isosma, e na verdade em outros rituais de calamidade dos
ndembos, a coleta de remedios (ku-hakula yiturrbu
literalmente "apoderar-se de remedios ou roub-los"
ou ku-lang'ula yitambu) a primeira atividade na seqncia. Os especialistas do mdico no Wubwang'u,
71

que a desempenham, levam para a floresta urna certa


quantidade de alimentos dentro da cesta de joeirar
(Iwalu) do mais velho profissional. Entre esses alimentos contam-se urna raiz de mandioca, feijo, amendoim,
um torro de sal, graos de milho, porches de carne de
animis domsticos e de porco selvagem, e outros comestveis. Trazem cerveja branca feita de milho ou de
sementes de junco; sua cor torna-se urna libac.5o adequada as sombras, que sao simblicamente seres "brancos" (a-tooka). Levam, tambm, argila branca numa caba?a em forma de falo (veja-se a Figura 8) e argila
vermelha em p na concha de um molusco aqutico
(nkalakala) (veja-se a Figura 17, p. 94). Segundo os
informantes "os alimentos sao trazidos para fortalecer os
corpos da mae e dos filhos", enquanto a argila branca
serve para "fazer as criacoes fortes, puras e afortunadas".
Varios informantes asseguraram que a argila vermelha
significa "m sorte (ku-yindam), falta de vigor (kubula kukoleka) e ausencia de sucesso (ku-halwa)".
Porm, como veremos adiante, a pgina 90, esta mesma
argila vermelha, nos Ritos da Nascente do Rio, representa "o sangue da mae". Este , ainda, outro exemplo
do modo pelo qual os mesmos smbolos tm variadas
significares em diferentes contextos. A^oposic.o binaria
branco/vermelho nos diferentes episodios do Wubwang'u
representa robustez/fraqueza, boa sorte/m sorte, sade
/doen?a, pureza de corac.o/rancor que causar feitic.aria, smen/sangue materno, masculinidade/feminilidade.
O grupo de conhecedores chefiado por um profissional mais idoso, do sexo masculino ou do sexo feminino.
Estes peritos sao acompanhados por seus filhos. De fato,
o Wubwang'u o nico tipo de ritual ndembo em que
as crian?as sao mandadas a participar, recolhendo "remedios" (yitumbu), empregando um termo tradicional,
mas nao inteiramente apropriado para designar as substancias vegetis. Cada crianca carrega um ramo com
folhas, tirado de toda rvore de "remedio" ou mato visitado. Durante a coleta de remedios sao cantadas canc.5es
obscenas "para tornar a paciente" forte, sendo tocado

um sino duplo de cafa (mpwambu) pelo principal mdico. A finalidade disto "abrir os ouvidos das crianzas
que ainda nao nasceram, a fim de que possam saber que
sao gmeos". O canto e o soar do sino servem tambm
para "despertar as sombras" (ku-tonisha akishi), pois
cada perito do mdico tem urna sombra guardia, que foi
outrora um membro do culto Wubwang'u. Alm disso,
sao encarregados de "despertar" as rvores medicinis,'
as especies com as quais serao preparadas as pocoes e
as loces de remedio Wubwang'u. Sem esses sons estimulantes, acredita-se que as rvores continuariam a ser
meramente rvores; com eles, e mais o acompanhamento

72

73

FIGURA 8. Cerimnia dos gmeos: urna especialista carrega a


cesta de joeirar do ritual, contendo urna cabaga de cerveja
branca e urna cabaga em forma de falo cheia de argila branca.
Ela est recebendo um ramo de remedio.

dos ritos de sacraliza?So, tornam-se poderes mgicamente eficazes, semelhantes as "virtudes" possudas pelas
ervas medicinis na teraputica ocidental.
Em um texto sobre a coleta de remedios, que cito integralmente as pginas 108-110, ha urna passagem que
diz: "Deve haver renovaco (ou urna causa de levantamento) e dispersao daquelas palavras priniitivas (ou
tradicionais) e um corte (de remedios)". Estas "palavras" sao as cancoes e as preces do Wubwang'u e afetam msticamente o corte das plantas medicinis. Encontra-se um exemplo de prece quando o remedio
simblico dominante dos ritos consagrado, isto , a
rvore kata wubkang'u. Primeramente, o profissional
mais velho danga em torno dla em crculo, porque
"deseja agradecer sombra", pois ela a grande rvore da sombra Wubwang'u "grande" no mbito do
ritual, porque todas as rvores que vi tratadas dessa
maneira eram espcimes jovens e delgados. Ento ele
cava um buraco em cima da raiz principal da rvore e
deposita nele os aumentos, enquanto profere a seguinte prece:

cortado e dado a um perito do sexo feminino para carregar. Segundo um conhecedor, "ela volta-se para o
leste, porque tudo vem do leste (kabeta kamusela], onde
o sol nasce; quando algum morre, o rosto virado na
direc,ao do leste, significando que ele nascer outra vez,
mas urna pessoa estril (nsama) ou urna feiticeira (muloji) enterrada com a face para o oeste, a fim de que
morra para sempre". Em resumo, o leste a dirego
auspiciosa e doadora de vida.

Eyi mufu wami kanang'a wading'i na Wubwang'u


Tu, minha morta (prente materna) que tiveste Wubwang'u,
neyi manta wanamwidyikili dchi muWnbwang'u
saste para encontrar algum hoje no Wubwang'u,
ifuku dalelu muktvashi chachiwahi
neste mesrno dia deves ajud-la bem,
ashakami chachiwahi nawanyana.
para que eia possa ser adequada aos filhos".

Urna libaco de cerveja entao derramada na cavidade sobre os alimentos, a fin de que "as sombras
possam vir comer e beber ali". Em seguida, o mdico
enche de agua, ou de cerveja, e de argila branca pulverizada (mpemba ou tnpeza) e sopra isto sobre os risonhos assistentes dispersos, o que eito em sinal de
bnc.ao. Depois, a paciente posta de pe, encostada
rvore, com o rosto voltado para o leste, enquanto pedacos de casca sao cortados da rvore e postos na cesta
(vejam-se as Figuras 9 e 10), e um ramo frondoso
74

FIGURA 9. Cerimnia dos gmeos: a paciente fica de pe, encostada rvore medicinal, com o rosto voltado para o leste, a
direco do renascimento. O mdico corta porges de casca, com
a machadinha do ritual e langa-as na cesta.

75

^
Iheres fazem jardins no solo rico e preto de aluvio ao
lado dos riachos, e ensopam as razes de mandioca em
poc.as formadas ali por perto. No Wubwang'u, ha urna
rvore "mais velha" separada para o mato, e outra
para o riacho. Kata wubwang'u a rvore "mais
velha" para o mato. O fruto desta rvore dividido
em duas porcSes simtricas, que os ndembos comparam
explicitamente aos gmeos (ampamba ou ampasa). Urna
quantidade de outras rvores da mata seca sao a seguir
visitadas procura de pedacos de casca e de galhos
frondosos. Passo a citar, abaixo, urna lista contendo
os nomes de cada especie, acompanhada de urna abreviada explicafo nativa sobre a razo por que a rvore
utilizada.
Explicaco Ndembo

ESPECIE

Termo Ndembo
1. Kata
Wubwang'u
2. Museng'u

FIGURA 10. Cerimnia dos gmeos: esta figura ilustra a identitificago ritual dos gmeos, neste caso de sexos opostos. O
homem de branco gmeo da paciente que est de costas para
a trepadeira fnolu-wawubwang'u da qual esto sendo cortadas
folhas medicinis. Ele deve ficar perto dla, em cada ato de
cortar medicinal.

A rvore kata wubwang'u, como no soma, conhecida como "a mais velha", ou "o lugar de saudaco",
sendo um smbolo multvoco (isto , que tem multas
acepces). Tal smbolo considerado o lugar crtico de
transico dos modos de comportamento seculares para
os sagrados. No Wubwang'u faz-se clara diferenciago
entre os remedios colhidos na floresta seca (yitumbu
ya mwisang'a) e os apanhados no mato a beira d'gua
(yitumbu yetu). O mato liga-se regularmente ao mesmo
tempo ca9a e virilidade, enquanto as moitas beira
d'gua esto relacionadas com a feminilidade. As mu76

Denominafo
Botnica

Ochna pulchra

3. Mung'indu

Swartzia
madagascariensis

4. Mucha
5. Mufung'u

Parman mobola
? Arisophyllea
boehmii
Hymenocardia
acida

6. Kapepi

- Musoli

Vangueriopsis
lanciflora

Pterocarpus
angolensis

77

"Duplos f r u t o s gmeos"
"Urna f l o r produz
muitos frutos pequeos os gmeos
sao c o m o urna so
pessoa"
"Produz f r u t o s , e
assim d a r me
muitos filhos"
Idntica de n 3
Idntica de n' 3
Idntica de n' 3
"tem f r u t o s finos,
como folhas; sao azedos (batuka), usados
como condimento"
"De ku-solola 'tornar
visvel' fazer com
que urna mulher que
nao tenha filhos possa ger-los".
"Sua resina vermelha
chamada 'sangue'
para dar mu-

9. Mudumbila
10. Muhotuhotu

Canthium venosum

11. Mudeng'ula
12. Mwanalala

Paropsia
brazzeana

Iher bastante sangue,


por ocasio do nascimento"
"Tem frutos, da fertilidade mulher"
"De ku-h oto moka,
'cair sbitamente' para que a enfermidade da mulher deslize
para f o r a do corpo
dla"
"Tem frutos" (vejase n 3)
"De ku-mwang'a, 'dispersar', significa dispersar a doenca"

A este conjunto de remedios vegetis acrescenta-se


urna porco de casas de marimbondos. "Talvez por
causa de seu grande nmero de crias", foi a supos9o
de um informante.
Fica, assim, completa a lista de remedios da mata.
Em seguida, varios remedios sao obtidos na mata
beira d'gua, que forma urna verdadeira galera. A rvore "mais velha" beira do riacho urna trepadeira
chamada molu wa Wubwang'u "a trepadeira do Wubwang'u". Os ndembos dizem: "Mola waWubwang'u
cresce dando muitos ramos diferentes e espalha-se para
formar seu prprio lugar, bem espadse. Da mesma
mneira, urna mulher deveria ter tantos filhos quantos
sao os ramos da trepadeira". Sua utilizarlo ulterior, no
Wubwang'u, ,, dupla: primeiro, ela entrelazada entre
os ramos de remedio das enancas, que foram colocados
em pe junto da cabana da paciente, para formar um
pequeo cercado duplo, semelhante letra m, que servir como santuario para a sombra atormentadora; ern
segundo lugar, ela pendurada sobre os ombros da
paciente e ao redor do busto. Este uso relembra seu
papel de remedio que dever fazer com que o leite do
peito de urna mulher fique branco, caso se torne amare'
lo ou avermelhado. O leite de cor alterada chamado
de nshidi ("pecado"). Se leite estiver avermelhado
78

ou amarelo, sabe-se que de alguma forma houve bruxaria na anomala; a prpria me pode ser urna feiticeira, ou outra pessoa estar enfeiti?ando-a. O remedio
ntolu devolye ao leite a cor normal (veja-se tambm
Turner, 1967, p. 347). Os ndembos crem que as coisas
brancas representam virtudes e valores tais como bondade, pureza, boa sade, sorte, fertilidade, franqueza,
comunho social e varias outras auspiciosas qualidades.
Assim, molu, o smbolo dominante dentre os remedios
da beira d'gua, representa maternidade, lactaco, os
seios, e fertilidade. Como Mudyi, molu representa os aspectos nutricionais da maternidade.
Os outros remedios da beira d'gua sao, ento, coIhidos. Ei-los segundo a ordem da colheita:
Expllcaco Ndembo

ESPECIE

Termo Ndembo

DenominafSo
Botnica

1. Molu
waWubwang'u

Possivelmente
urna especie das
Convolvulaciae

2. Muso'jlsoji
3. Muhotuhotu
i ' 4. Mudyi

5. Katuna

Canthium venosum
Diplorrhyncus
condylocarpon

(Uvariastrom
hexalobodies)
Harungana
madagascarienss

79

"Cresce dando muitos


e diferentes ramcs, e
forma seu prprio lugar, b e m espafoso;
ela se espalha, assim
urna mulher deveria
t e r t a n t o s filhos
quantos sao os ramos
da trepadeira".
"Tem muitos frutos,
far frtil a mulher".
Veja-se o n 10 da
lista de remedios da
floresta (p. 78).
"Porque usado no
Nkang'a, os ritos de
puberdade d a s mogas, para fazer com
que urna mulher seja
frtil e amadurecida".
"Katuna tem s e i v a
vermelha. Assim como
urna crianga n a s c e
acompanhada de san-

^
gue, assim tambero a
me deve ter muito
sangue".
"T e m muitas razes
espalhadas u m a
mulher deve ter muitos filhos. Ku-tung'ula significa 'falar de
urna p e s s o a pelas
costas", talvez o odio
(chtela) venha disto".

6. Mutung'ul

Comentario
A grande maioria dessas especies representa a fertililidade desejada pela mulher. Algumas relacionam-se
com a idia do sangue materno. Um entendido concedeu-me a informacao de que urna enanca que ainda
nao nasceu "alimenta-se atravs do sangue da me",
indicando desse modo algum conhecimento sobre a fisiologa da reproduco. De grande interesse a conexo
de remedios como muhotuhotu e mutung'ulu com dificuldade, maledicencia e rancores. Estas condices sao
como um fio vermelho que corre atravs da estrutura
ideolgica do Wubwang'u, e, de fato, associam-se ao
simbolismo do vermelho. Assim, as criancas que acompanham o mdico de seus pais na mata decoram os
restos com a argila vermelha pulverizada e trazida pelo
profissional mais idoso (veja-se a Figura 11). As que
sao gmeas desenham um crculo vermelho em volta do
olho esquerdo, e, com argila branca em p, um crculo
branco em volta do olho direito. Estes sao feitos "para
as sombras dos gmeos, ou para as mes deles", disseram-me os informantes. De acord com o que disse
um deles, o crculo vermelho "representa o sangue",
enquanto o branco representa o "vigor" ou a "sorte".
Porm outro disse explicitamente que o crculo vermelho
representa "o rancor" (chtela), e. ja que foi feito em
torno do olho esquerdo, ou olho "feminino", "talvez a
causa do ressentimento venha deste lado". Perguntado
sobre o que pretenda dizer com isto, ele prosseguiu
80

FIGURA 11. Cerimnia dos gmeos: as criangas sao marcadas


com crculos brancos e vermelhos em torno dos olhos, distinguindo-os assim em categoras de gmeos e no-gmeos.

afirmando que talvez houvesse hostilidade entre a paciente e sua av, quando esta ltima, agora urna sombra Wubwang'u atormentadora, era viva. Por outro
lado, continuou ele, a sombra pode ter ficado enraivecida por brigas dentro do grupo ligado por parentesco
matrilinear (akwamama, "aqueles que esto do lado da
me") e entao resolveu punir um dos seus membros. De
qualquer maneira, disse ele, o odio encontra-se mais
freqentemente na matrilinhagem (ivumu, ou "tero")
81

do que entre os parentes paternos, que sao benevolentes uns com os outros. Esta era urna tentativa
consciente de correlacionar as oposites binarias masculino/feminino, patrilateralidade/matrilinearidade, benevolncia/rancor, branco/vermelho, de maneira inteiramente coerente.
Nessa interpretacao acha-se implcito tambm o prprio paradoxo da gemelaridade. Os gmeos constituem
ao mesmo tempo sorte e fecundidade razovel e
quanto a isto tm afinidade com relaco ideal que deveria ligar os parentes do lado paterno e m sorte
e excessiva fecundidade. Diga-se, de passagem, que os
ndembos consideram os gmeos de sexos opostos como
sendo mais auspiciosos do que os gmeos do mesmo
sexo ponto de vista largamente difundido as sociedades africanas possivelmente pelo fato de os gmeos
do mesmo sexo ocuparem idntica posicao como irmos,
na estrutura poltica e de parentesco.
Exceto o simbolismo gmeos-fruto do kata wubwang'u
e o simbolismo dos muitos-em-um do museng'u os remedios como tais nao fazem explcita referencia gemelaridade. Ao contrario representan!, cumulativamente,
fecundidade exuberante. Mas a incisiva distinco feita
nos ritos entre remedios da selva e remedios do mato
com passagens, distinco relacionada pelos informantes
com a existente entre masculinidade e feminilidade, associa-se ao principal tema dualista do Wubwangu.

de mudyi e outra de muhotuhotu. Sao levadas para


junto da nascente de um riacho (veja-se a Figura 12).
As varas sao plantadas em cada margem do crrego,
opostas urna a outra, com as ponas encurvadas para
formar um arco, e bem amarradas. A vara de muhotuhou fica por cima da vara de mudyi. O arco completo c h a m a d o mpanza ou kuhimpa, substantivo
verbal que significa "troca".
A rvore muhotuhotu usada em varios contextos
rituais. Seu significado tende a ser associado pelos
ndembos, com algumas de suas propriedades naturais,
e tambm com dois verbos dos quais certos "peritos"
em ritual derivam alguns dos seus referentes. O hbito
de utilizaco da etimologa, conforme mencionei no Captulo I, muito caracterstico da exegese da frica
Central. Nao tm importancia saber se a explicacao
etimolgica dos nomes dos objetos e acoes do ritual
verdadeira ou falsa. Os ndembos esto apenas fazendo uso de um dos processos que enriquecem o contedo
semntico de todas as lnguas, a homonimia, que se
pode definir como um tipo de trocadilho serio. Se duas
palavras de derivaco diferente, mas que soam de mo-

OS RITOS DA NASCENTE DO RIO:


O RIACHO E O ARCO

A rvore mudyi (a "rvore de leite"), smbolo central


dos ritos de puberdade das mofas, aparece tambm no
ritual dos gmeos. De maneira caracterstica, aparece em
um episodio que retrata a unidade mstica dos opostos.
Aps a coleta dos remedios na cesta, o profissional
mais velho do sexo masculino corta urna flexvel vara

FIGURA 12. Genmnia dos gmeos: os participantes do ritual


cnegam a nascente do rio, "onde a capacidade procriativa comega", carregando ramos de rvores medicinis.

82

83

lelhante, podem emprestar urna a outra alguns de


ignificados, efetua-se ento o enriquecimento seo. A homonmia excepcionalmente til no ritual,
segundo ja disse, relativamente poucos smbolos
representar urna multiplicidade de fenmenos.
otuhotu algumas vezes derivado do verbo kuina, que significa "cair repentinamente". Diz-se
final da estaco da seca as folhas desta rvore
im a cair simultneamente, deixando os ramos
repente. Do mesmo modo, quando a muhotuhotu
a como remedio, as doencas, as desgrasas e os
da feiticaria e da bruxaria "cairo" da paciente
com ela. Todas as vezes que os ndembos usam
issoura medicinal para varrer o corpo com folhas
tedio trituradas, a muhotuhotu forma um de seus
mponentes. Esta vassoura utilizada mais tipicano ritual contra a feitigaria.
m o radical hotu - tem outro derivado, que
i influencia o significado de muhotuhotu. E' o
ku-hotomoka, cujo sentido me foi dado atravs
ormulaco perifrstica: "urna rvore que se aloja
sutra rvore e cai sbitamente quando o vento
a queda chamada ku-hotomoka. Algumas vezes
a urna rvore que cresce sobre o corpo de outra
Urna doenca est sobre o corpo de urna pessoa,
idico deseja que ela se va embora".
particular situaco encontrada no Wubwang'tt,
>, afirma-se que muhotuhotu representa "o homem"
, enquanto a vara de mudyi representa "a mulher"
inda). Todos os conhecedores a quem perguntei
am que assim, ressaltando que a muhotuhotu.
!
ocada sobre a mudyi. Alm disso, dizetn que o
amarrar as varas representa a unio sexual
nd). As vezes, urna vara de madeira da kai (especie Pseudolachnostys) usada em lugar
wtuhotu. Um galho em forquilha desta madeira
entemente usado como santuario no culto dos
es. E' urna madeira rija, resistente as trmites,
:omparada no ritual de circuncisao dos meninos
84

um falo ereto. No ritual ern questo usado como


medicamento para produzr a potencia masculina. Neste
caso a conexo com a virilidade transparece claramente.
Outro grupo de referentes dos objetos rituas relaciona-se com a forma do arco sobre o riacho. Sua
denominafo mpanza significa "a forquilha" ou a bifurcaco do corpo humano. Eis o que disse um informante: "Mpanza o lugar onde as pernas se juntam. E' o
lugar dos rgos da reproduco, no.s homens e as
mulheres". O mesmo smbolo aparece no rito de puberdade das mocas, onde um pequenino arco de madeira mudyi (kawuta) colocado na pona da cabana
de recluso da novica, exatamente onde urna vara de
madeira mudyi atada a outra vara da madeira vermelha mukula. O arco ornado de contas brancas que
simbolizam filhos representa a desejada fecundidade da
novica. O ponto de junco das varas tambm chamado mpanza. Esta bifurcafo, bsica para a continuidade biolgica e social, reaparece no simbolismo dualista da gemelaridade.
O termo mpanza empregado, na circuncisao dos
meninos, para designar um tnel formado pelas pernas
dos oficiantes e dos circuncisores mais idosos, sob o
qual os guardies mais jovens que cuidam dos novi?os
durante o retiro sao obrigados a passar. O tnel ao
mesmo tempo urna entrada para a situaco da circuncisao e tambm um modo m g i c o de fortalecer os
rgos genitais dos jovens guardies. O simbolismo do
tnel neste ritual relembra aquele ja encontrado no
soma.
O motivo mpanza torna a aparecer no prprio rito
do Wubwang'u. Durante os ritos exeeutados mais tarde
no santuario da aldeia, os mdicos do sexo masculino
passam por baixo das pernas entreabertas, uns dos
outros (veja-se Figura 19, p. 98). Mesmo a paciente tem
de passar por baixo das pernas dos mdicos. Chama-se
a isto kuhanwisha muyeji mwipanza. O tnel do I soma, o leitor deve estar lembrado, designava-se ikela daa

85

kuhanuka ou de kuhanuka tem a mesma raiz que


ku-hanwisha.
At agora, pois, o arco representa a fecundidade,
resultante da masculinidade e da feminilidade combinadas. A localizaco do mpnza junto da nascente do
riacho tambm significativa. Tal fonte (ntu ou sulu)
tida pelos ndembos'como o lugar "onde a capacidade
de procriar (lusemu). comeca". A agua classificada
pelos especialistas em ritual na categora dos smbolos
"brancos". Como tal, tem os significados genricos de
"bondade", "pureza", "sorte" e "vigor", de que participa juntamente com outros smbolos desta classe, (Urna
' das funges desse rito , segundo os informantes me
disseram, a de "afastar" as doencas lavando-as" (nyisong'u.) Os ps dos mdicos sao lavados "a fim de se
purificarem" (nakuyitookesha), ppis existe um elemento
de impureza no Wubwang'u, na sua linguagem indecente e agressividade. Porm a agua tem outras significacoes correspondentes a suas propriedades peculiares. ssim, o fato de a agua ser "fria" (atufa) ou
"fresca" (atontla) representa "estar vivo" (ku-handa),
por oposigo ao candente calor do ,fogo, que, como 'a
febre, significa " m o r t e " (ku-fwila), especialmente a
morte resultante de feitigaria. Alm disso a agua, na
forma de chuva ou de ros, representa "aumento" ou
"multiplicaco" (ku-senguka), fertilidade em geral. O
simbolismo do mpanza nos ritos de gemelaridade da
a entender que a fertilidade humana corrlaciona-se com
a fertilidade da natureza.
O motivo da "frialdade" tambm exemplif icado
quando a profissional mais idosa tira um pedaco de
solo preto de aluvio (malow) do riacho, exatamente
abaixo do arco. O pedago colocado na cesta de medicamentos e depois forma um dos componentes do
santuario da aldeia para o espirito Wubwang'u. Os
informantes afirmam que o uso de malow aqu ssemelha-se ao emprego do mesmo pedago de sol nos
ritos de puberdde das mogas. Nestes, malow representa feltcidade conjugal (wuluwi), termo relacionado

86

' - com tuwi, significando "perdao" ou "bondade". Em


niuitos outros contextos julga-se que usado porque
"fri" devido ao contato com a agua. Sendo "fri",
enfraquece as doencas, que, no ritual I soma, sao in:, terpretados como "quentes". Mas est tambm relacio[. nada, segundo os informantes; com a fecundidade, ja
que as colheitas crescem exuberantemente nesse tipo
de solo.
Depois da noite nupcial que se segu ao rito de puberdde das mogas, a instrutora das novigas (nkon^u)
coloca um pouco de trra malow em contato com a
noiva e com o nivo, espalhando em seguida fragmentos
* dla na soleira de cada cabana da aldeia que seja habitada por um casal. Os ndembos dizem que isto significa que "o casal agora se ama convenientemente e
a instrutora deseja unir todos os casis da aldeia com
amor idntico". A nogo de que o casamento deveria
ser, de maneira ideal, fecundo e pacfico, est xpressa
de maneira bastante c l a r a pelas mulheres ndembos.
Afirmam que o tipo de marido que preferem um ho:mem bem disposto, trablhador e de f ala tranquila. Um
homem assim, dizem elas, ser "pai de dez filhos".
Este tipo ideal, como visto pelas mulheres, representa
exatamente, o oposto do tipo de personalidade masculina exaltado nos cultos dos cagadores, a especie de
homem que, como diz um canto ritual dos cagadores,
"dorme com dez mulheres num so dia, e um grande
ladro". De lato, recomenda-se as mulheres, em tais
contextos, que dem os corages a esses brutais, rixentos e sensuais homens da floresta. Os dois ideis antitticos coexistem na sociedade ndembo, -como na nossa,
conforme reconhecer qualquer leitor de o Vento
(Levou. Este romance, diga-se de passagem, tambm se
baseia num tema dualista, o do Norte contra o Sul, o
do capitalismo contra os grandes proprietrios de trra.
Alm disso, nao so a unio fecunda, mas tambm o
combate dos sexos mostrado em varios episodios do
ritual dos gmeos.
Assim, o arco mpanza representa o amor fecundo e
legtimo entre o homem e a mulher. Os principios
87

masculino e feminino estabelecem urna "troca" de qua~


lidades; as margens opostas do riacho sao reunidas pelo
arco. A agua da vida flu por baixo dele, sendo a frialdade e a sade os modos predominantes.
Depois que o mpanza feito, a paciente fica de pe
sobre urna tora de madeira no meio da agua (veja-se
a Figura 13). Os peritos do sexo feminino e suas filhas
alinham-se sobre o tronco atrs dla, por ordem de
idade. O mais idoso profissional do sexo masculino traz
a cabala pequea (ichimpa), francamente comparada
pelos informantes a um falo (ilomu), sendo do tipo
usado para treinar as novicas na tcnica sexual, no rito
de puberdade das mocas, e retira da cabaa a argila
branca (mpemba) em . p. Os mdicos do sexo masculino previamente acrescentaram determinados ingredientes argila branca, pequeas porces de mpelu ou
pedamos de materia animal ou orgnica, usados como
ingredientes da magia de contagio. No Wubwang'u sao
classificados como smbolos "brancos", contando-se entre eles porces brancas, pulverizadas, do besouro gigante, tambm usado como talism nos cultos de cac.a;
alguns fios de cbelo de um albino (mwab), considerado como um ser auspicioso; penas brancas de papagaio pardo (kalong'u); e penas de pombo branco
(kapompa). Todos e s s e s elementos correlacionam-se
com a caga e a masculinidade, bem como com a brancura. A prpria argila branca refere-se explicitamente ao
semen (matekela), que, por sua vez, diz-se que o
"sangue purificado pela agua". O profissional mais velho
defronta-se com a paciente, pe-lhe o p branco na boca
e sopra-o sobre o rosto e o peito. Em seguida, a profissional feminina mais idosa, de pe logo atrs da paciente, toma um pouco de argila vermelha (mukundu)
em p da concha de um grande caracol aqutico chamado nkalakala, pe-no na boca e sopra-o sobre o rosto
e o peito da paciente.
O ato de soprar (ku-pumina ou ku-pumb) representa ao mesmo tempo o orgasmo e a bnco com as
boas coisas da vida (ku-kiswila nkisu). Proporciona
88

FIGURA 13. Cerimnia dos


'eiram-se
sobre urna troca
Pfeparam-se para soprar
dentro da

gmeos: paciente e entendidos enfide madeira, no riacho, e os mdicos


argila branca e vermelha em p
orelha da paciente.

jnda, outro exemplo da bipolaridade semntica dos


'rnbolos rituais. O sopro com a argila branca e depois
c
om a vermelha dramatiza a teora ndembo da procria?ao. Meu melhor informante, Machona, interpretou o rito
s

89

da seguinte maneira: "A argila branca representa o


semen e a argila vermelha o sangue materno. O pai primeiro da sangue a me, que o guarda no corpo e o faz
crescer. O semen este sangue, misturado e embranquecido com a agua. Origina-se do poder do pai. Permanece na me como urna sement de vida" (kabubu
kawumi). Muchona, e alguns outros, defendem o ponto
de vista de que ambas, a argila branca e a vermelha,
deveriam ficar dentro da concha do caracol, para representar a unio dos dois parceiros, o masculino e o
feminino, na concepfao de um filho. Todava, em todas
as execuc.6es do Wubwang'u a que presencie!, a argila
branca e a vermelha eram guardadas em recipientes separados. O que ha de interessante no ponto de vista
de Muchona que ele acenta o aspecto unificador
do rito.
A CONSTRUYO DO SAGRARIO
DOS GMEOS NA ALDEIA

O dualismo prevalece no rito pblico que se realiza em


seguida na aldeia da paciente. Isto significativamente
representado tanto pela estrutura binaria do sacrrio dos
gmeos, como pela explcita oposic.o dos sexos na mmica, na danc.a e nos cantos. Os mdicos retornam do
rio carregando galhos cheios de folhas, como numa
procissao de domingo de Ramos, embora constituida
principalmente de mulheres e criabas (veja-se a Figura 14). Lvi-Strauss considerara talvez a presenca
de crianzas na coleta de medicamentos, muito anmala
no ritual ndembo, como sinal de que as crianzas sao
"mediadores" entre os homens e as mulheres, porm os
ndembos julgam-nas smbolos (yinjikijilu) de gemelaridade (Wubwang'u) e de fecundidade (lusemu). Querern
tambm que "se fortalegam, pois tudo o que ca no mbito do Wubwang'u por nascimento, ou relacjo, cr-s
que se tenha enfraquecido e necessite de revigoramento
mstico.

90

i,

FIGURA 14. Cerimnia dos gmeos: os participantes do ritual


voltam do rio carregando ramos, como urna procissao de domingos de Ramos.

O sacrrio da gemelaridade na aldeia construido


acerca de cinco metros em frente da cabana da paciente. E' feito com os galhos frondosos recolhidos na
mata, um de cada especie medicinal, em forma de semicrculo, tendo mais ou menos quarenta e cinco centmetros de dimetro. Faz-se no centro urna separado
ds ramos, dividindo-o em dois compartimentos. Cada
u
m deles finalmente preenchido com grupos de objetos
r
'tuais. Mas, em diferentes execuces a que assisti, os
Viciantes mais idosos tinham diferentes opinioes sobre
I modo como os compartimentos deveriam ser consi^rados, e isto influenciava a escolha dos objetos. Urna
s
cola de pensamento afirmava que o compartimento
91

chamado do "lado esquerdo" devena conter: 1) urna


base de lama preta do rio (malowa) tirada do lugar
situado debaixo dos ps da paciente, nos Ritos da Nascente do Rio; "para enfraquecer as sombras causadoras
da condico de Wubwangu; 2) um pote de argila preta
(izawu), salpicado de argila branca e vermelha, tirada
de dentro da cabaca em forma de falo e da concha do
molusco aqutico (veja-se a Figura 15); e 3) no vaso,
devena haver agua fria misturada a lascas da casca
das rvores medicinis (vejam-se as Figuras 16 e 17).
Em contraste, o compartimento do lado direito deveria
conter urna pequea cabaa com cerveja sagrada feita

FIGURA 16. Cerimnia dos gmeos: as mos de todos os peritos


coletivamente despejam agua dentro do vaso de medicamentos,
cada um deles acrescentando sua prpria "forca".

FIGURA 15. Cerimnia dos gmeos: construgo do sacrrio dos


gmeos. O vaso de remedios decorado com pequeas pinceladas brancas e vermelhas. Na cesta ha urna roliga raiz de
mandioca, que o alimento mencionado p. 59.

de mel (kasolu), normalmente urna bebida de homens


e de catadores, usada como beberagem sagrada nos cultos de cacadores. E' muito mais inebriante do que qualquer outra das cervejas dos ndembos, e sua qualidade
"de subir cabeca" considerada apropriada brincadeira sexual que caracteriza os ritos. O mel, tambm,
um smbolo do prazer das relacoes sexuais (veja-se,
por exemplo, a canco p. 101). Nessa variante, o compartimento do lado esquerdo considerado feminino, e
0
do lado direito, masculino. Cada compartimento chafado chipang'u, o que significa "cercado" ou "sebe",
e
m geral circundando um espaco sagrado, como o lugar
^a habitado e a cabana de medicamentos de um chefe.

92

93

FIGURA 17. Cerimnia dos gmeos: o sacrrip dos gmeos esta


pronto. E' evidentemente um sacrrio binario, com dois^ compartimentos, envolvidos pela trepadeira molu waWubwang'u. No
compartimento da esquerda fica o vaso preto de medicamentos,
sob o qual se pode ver a lama preta. No da direita est a
cabaga contendo cerveja sagrada feita de mel; a cabaga
besuntada com argila vermelha e branca.

A paciente salpicada com remedio do vaso, enquanto


os peritos, homens e mulheres, bebem cerveja juntos.
Nesta forma do ritual, o principal dualismo o do sexo.
Porm, em outra variante descrita p. 108 o
compartimento da esquerda de proporcoes menores do
que o outro. Aqu a oposico entre fecundidade e esterilidade. O compartimento da direita do chipang'u representa a fecundidade e as sombras feriis e benficas;
o compartimento da esquerda considerado como o das
pessoas esteris (nsama) e das sombras de pessoas esteris e malficas (ayikodjikodji). Um grande vaso de
barro decorado com argila branca e vermelha, como na
fritos, colocado no compartimento
o como a "av" (nkaka
94

Bibliotecas

honda), e representa a sombra atormentadora que outrora foi tambm me de gmeos. O outro compartimento que tem interesse para a pesquisa antropolgica.
Ha urna frase enigmtica na narrativa dos ritos reais
(veja-se adiante, p. 109), nyisoka yachifwifwu chansama, que literalmente significa "rebentos de um feixe
de folhas de urna pessoa estril". O termo nsama representa um homnimo, na realidade um sinistro jogo
de palavras. Um dos sentidos da palavra "um feixe
de folhas, ou de capim". Quando um cacador deseja obter
mel, sobe a urna rvore at a colmeia (mwoma) e puxa
atrs dele numa corda um feixe de capim ou de folhas.
Joga a corda sobre um galho, pe fogo no feixe nsama,
e suspende-o at ficar sob a colmeia. Comeca a fumegar intensamente e a fumaca expulsa as abelhas. Os
restos enegrecidos do feixe sao t a m b m chamados
nsama. Nsama significa anda "urna pessoa estril ou
infecunda", talvez no mesmo sentido em que dizemos
"um caso sem esperanzas". O preto , com freqncia,
mas nem sempre, a cor da esterilidade no ritual ndembo.
No Wubwang'u, quando os habis conhecedores retornam da floresta com ramos frondosos, o profissiona!
mais velho arranea algumas folhas desses galhos e
amarra-as formando um feixe, conhecido como nsama
yawayikodjikodji abulanga kusema anyana, "o feixe das
sombras malvolas que nao deixam parir filhos" ou,
abreviadamente, nsama. Ento, esse chimbuki (mdico)
toma urna cabaca (chikashi ou lupanda) de cerveja de
milho ou de urna especie de sorgo e despeja-a no nsama
corno urna libacao, dizendo: "Vos todas, sombras sem
filhos, aqui est a vossa cerveja. Nao podis beber a
cerveja que ja est despejada dentro deste vaso grande"
(no compartimento do lado direito). "Aquela a cerveja
Para as sombras que tiveram filhos". Coloca ento a
Porc,ao de lama preta do rio no chipang'u e pe o feixe
em cima da lama. Acredita-se que a argila preta
sirva para "enfraquecer as sombras causadoras
doenfas".
95

Outra diferenca entre as duas formas de cercado chi~


pang'u que naquela que acenta o dualismo sexual
se insere urna flecha atrs do vaso situado, no compartimento da esquerda, com a ponta para baixo (vejase a Figura 18). A seta representa o marido da paciente.
As setas com esse significado aparecem em varios rituais dos ndembos, e o nome para a quantia paga pelo
marido para obter a noiva nsewu, "flecha". Nos ritos
que acentuara a dicotoma entre fecundidade e esterilidade a flecha nao empregada. Nos ltimos parece
haver urna igualdade entre esterilidade e gemelaridade,
pois os gmeos freqentemente morrem; o excesso a
mesma coisa que a deficiencia. Em ambos os tipos, nao
obstante, a trepadeira fluvial, molu waWubwang'u
entrelazada lateralmente atravs dos ramos verticais,
cheios de folhas, do sacrrio.
Faz-se a paciente sentar-se numa esteira diante do
sacrrio, e os ombros dla sao envolvidos em ramos da
trepadeira molu waWubwang'u, para Ihe dar fecundidade e, em especial, um bom suprimento de leite (veja-se
a Figura 19). Ela , entao, constantemente aspergida
com remedios enquanto aquilo que chamo "ritos da peleja de fecundidade entre os sexos" estrondeia alegremente no lugar das danfas, entre o sacrrio e a cabana
da paciente. Considera-se conveniente se pedamos de
folhas de remedios aderem pele da paciente. Sao os
yijikijilu, ou "smbolos" da manifestado Wubwang'u
das sombras. Fazem com que a sombra se torne visvel
para todos nesta forma de gemelaridade embora transubstanciada em folhas.
RELEJA DE FECUNDIDADE ENTRE OS SEXOS

O aspecto seguinte do Wubwang'u para o qual gostaria


de chamar a atengo a brincadeira sexual entre dois
sexos, que marca duas fases daquele rito. Temos aqu
urna expresso do paradoxo dos gmeos, apresentada
como brincadeira, ou, conforme dizem os ndembos, co-

96

'GURA 18. Cenmnia dos gmeos: urna flecha inserida no


'^partimento esquerdo do sacrrio dos gmeos. A cesta foi
colocada sobre o vaso de medicamentos.

Pf

ocesso... Ec) 2877 4

97

FIGURA 19. Cerimnia dos gmeos: os ombros da paciente sao


cobertos com a trepadeira ,molu waWubwang'u, para Ihe dar
fecundidade e urna boa quantidade de leite. V-se um mdico
do sexo masculino arrastando-se por baixo das pernas de outro
mdico, a fim de dar vigor sexual (vejam-se p. 85 e 113).

mo "urna relaco jocosa" (wusensi). A referencia especfica dos ritos dirige-se divisao da humanidade ern
homens e mulheres e ao despertar do desejo sexual
pela acentuaco da diferenca entre eles, em forma de
comportamento antagnico. As sombras dos mortos, de
certa maneira, nao tm sexo, ja que se acredita que do
seu nome e caractersticas pessoais as crianzas de ambos
os sexos, e, num determinado sentido, que nasc.am &
novo nelas. E' a sua humanidade genrica que se salienta, ou talvez, sua bissexualidade. Mas os seres vivo8
sao diferenciados pelo sexo, e as diferencas sexuais sao,
como escreve Oluckman (1955), "exageradas pelos cos-

98

turnes" (p. 61). No Wubwang'u, os ndembos estao obcecados pela alegre contradicho de que quanto mais os
sexos acentuam as diferencas entre eles e a agresso
mutua, mais desejam o encontr sexual. Cantam cancoes
obscenas e rabelaisianas, durante a coleta dos remedios
na floresta e no final da danca pblica, quando a paciente borrifada com esses remedios, sendo que algujnas cancoes pem em relevo o confuto sexual e outras
sao ditirambos em louvor da unio sexual, freqentemente especificada como adlteras. Cr-se que essas
canc.5es "revigorem" (ku-kolesha) tanto os medicamentos quanto a paciente. Acredita-se tambm que fac.am
os assistentes ficarem fortes sexual e corporalmente.
A principio, antes de cantar as cancoes obscenas, os
ndembos entoam urna frmula especial, "kaikaya wd,
kakwawu weleli" ("aqu outra coisa feita"), que tm
o efeito de tornar legtima a menco de assuntos que,
de outro modo, seriam o que chamam de "urna coisa
secreta, de vergonha ou de pudor" (chuma chakujinda
chansonyi). Idntica frmula repetida nos casos legis
concernentes a assuntos como adulterio e quebras de
exogamia, quando as irms e as filhas, ou contraparentes (aku), dos queixosos e dos defensores esto presentes. Os ndembos tm urna frase costumeira, que
explica as canfSes Wubwang'u. Este canto liberado
da vergonha, porque o despudor (urna caracterstica) do
tratamento c u r a t i v o do Wubwang'u (kamina kakadi
nsonyi mulong'a kaWubwang'u kakuuka nachu nsonyl
kwosi). Em resumo, o Wubwang'u urna ocasio de
desrespeito autorizado e de impudicia prescrita. Mas nenhuma promiscuidade sexual posta em prtica no
comportamento real deles; a indecencia expressa sbente por palavras e por gestos.
Os cnticos, em ambas as fases, decorrem segundo
Urna serie ordenada. Primeiramente, os membros de casexo depreciam os rgos sexuais e as facanhas dos
do sexo oposto, exaltando os seus prprios.
mulheres, por zombaria, asseguram a seus maridos
tm amantes secretos e os homens replicam que
99

tudo o que cnsguem das muiheres sao doenc.as venreas, conseqncia do adulterio. Posteriormente, ambos os sexos louvam, em termos lricos, os prazeres da
relafo sexual. A atmosfera alegre e agressivamente
jovial, homens e muiheres empenhando-se em apuparemse uns aos outros (veja-se a Figura 20). Julga-se que
o canto agrade poderosa e alegre manifestafo das
sombras no Wubwang'u.

II

Kakweji nafu namweki.,


A la, que se tinha ido, aparece,
Namoni iyala hakumwemweta.
Eu vi o homem para quem sorrir.
Eye iyayi eye!
Me!
Twaya sunda kushiya nyisong'a,
Venha e copule para deixar as doenc.as,
Lea tala mwitaku mwazowa
Hoje olhe para urna vulva mida
Nyelomu eyeye, nyelomu!
Me do penis! Me do penis!
Ye yuwamuzang'istia
Aquilo dar a voc muito prazer.
Nashinkaku. Nashinki dehi.
Eu nao fecho. Eu ja fechei.
Wasemang'a yami wayisema,
Voc est dando nascimento, eu sou a que da nascimento
Nimbuyi yami.
Sou o mais velho dos gmeos.
Mwitaku mweneni daloma kanyanya,
Urna vulva grande, um penis pequeo,
Tala mwitaku neyi tmvihama dachimbu,
Olhe, urna vulva como a testa de um leo,
Nafumahu ami ng'ang'a yanyisunda.
Vou-me embora, eu, um verdadeiro mgico da cpula.
Kamushindi ilomu,
Esfregarei o seu penis
Yowu iyayi, yowu iyayi!
Me, Me!

FIGURA 20. Cerimnia dos gmeos: homens e muiheres jovialmente insultam-se uns aos outros, simbolizando verbalmente a
competigo de fecundidade entre os sexos.

Mpang'a yeyi yobolong'a chalala.


Seu escroto intumescido estimula a vulva, sem dvida.
Mwitaku wakola nilomu dakola,
Urna vulva forte e um penis forte,
Komana yowana neyi matahtt, wuchi wawutowala sunji yakila.
Como comicha feito grama! A cpula como o doce mel.
Ilomu yatwahandang'a
O penis est fazendo com que eu fique forte,
Eyi welili neyi wayobolang'a, iwu mutong'a winzeshimu.
Voc fez algo quando brincou com a minha vulva, aqui est
a cesta, encha-a".

Nafuma mwifundi kumwemweta


"Vou embora para ensinar a ela como sorrir,
lyayi lela iyayi kumwemweta.
A sua me, hoje, sua me como sorrir.

100

101

A BRINCADEIRA ENTRE OS SEXOS


E ENTRE OS PRIMOS CRUZADOS

O que notvel a perfeita igualdade entre os sexos


nesta mutua e gracejadora "flyting" (disputa)", usando
um termo tomado de emprstimo aos poetas escoceses
chaucerianos, empregado para designar urna competido
de versos satricos. Nao ha indicios de que este seja
um "ritual de rebelio", no s e n t i d o de Gluckman
(1954). O que representado no Wubwang'u parece
associar-se mais ao confuto entre virilocalidade, que interliga os parentes e expulsa as parentas de suas aldeias
nativas, e matrilinearidade, que assegura a supremaca
estrutural fundamental da descendencia atravs das muIheres. Esses principios acham-se muito uniformemente
equilibrados na vida secular, como suger em Schism
and Continuity in an African Society (1957). Os ndembos explcitamente relacionan! as brincadeiras do Wubwang'u com as costumeiras brincadeiras entre primos
cruzados. As duas especies sao chamadas wusensi, e
implicam um elemento de rplica sexual.
A importancia da rela?3o entre primos cruzados (wusonyi) na sociedade ndembo deriva, em grande parte,
da oposic.o entre virilocalidade e matrilinhagem. Isto
porque as aldeias tendem a conter quase a metade, do
total de crianzas, igual ao nmero de filhos de irms
de homens da gerao mais idosa do .parentesco matrilinear (Turner, 1957, Quadro 10, p. 71). Estes sao
agrupados em conjunto, como membros de urna nica
gerac.o genealgica em oposic.o a geraco adjacente
mais velha. Mas os primos cruzados esto tambm separados uns dos outros: os filhos de homens da aldeia
entram em competidlo com seus primos cruzados pelos
favores e atenaces dos pais. A virilocalidade, numa
sociedade de descendencia matrilinear, tambm da ao
individuo duas aldeias, as quais ter fortes direitos
legtimos de residir, aquelas, respectivamente, dos pa-

rentes do pai e dos parentes da me. Na prtica, muitos


homens acham-se dilacerados entre lealdades rivais a
uns ou a outros, ao lado paterno ou ao lado materno.
Contudo, como filho de seu pai e de sua me, cada
homem representa a unio de ambos.
Julgo que a igualdade aproximada de vnculos existentes entre os lados masculino e feminino da sociedade
ndembo, sem que nnhum dos dois grupos seja considerado axiomticamente dominante, est simbolizada no
Wubwang'u pela oposifao ritual entre homens e mulheres. A relaco entre primos lafo de parentesco que
mais plenamente expressa a fecunda tenso entre esses
principios, pois exprime a unidade residencial de parentes ligados por matrilinearidade e patrilinearidade. Os
primos cruzados de sexos opostos sao encorajados a
se casarem, e, antes do casamento, podem entregar-se
a divertimentos amorosos e a brincadeiras obscenas uns
com os outros. Pois o casamento produz urna unidade
temporaria dos sexos, cujas diferencas, estereotipadas e
exageradas pelo costume, foram associadas a principios
iguais e opostos da organizaco social. Conseqentemente, nao contrario com o modo ndembo de ver as
coisas que comparem as relances sexuais jocosas com
as brincadeiras entre primos cruzados. O Wubwang'u,
tambm, apesar de toda a sua impudicicia, exalta a instituifo do casamento no simbolismo do arco mpanza e
no da flecha que representa o marido, introduzida no
sacrrio chipang'u. A flecha representa o marido da
paciente. No ritual de puberdade das moc.as, urna flecha
colocada na rvore mudyi simboliza a figura do noivo,
e
, na verdade, o termo usado para designar o principal
Pagamento de nupcias nsewu, que significa "flecha".
O impulso de procriar fica domesticado a servido da
sociedade atravs da instituicao do casamento. E' isto
, que o simbolismo sugere. E o casamento entre primos
I Buzados, quer matrilineares quer patrilineares, a fora preferida.

0
Flyting: gerundio do dlaleto ingls (fl'yte); urna disputa ou troca de
insulto pessoal, em forma de versos. Aoa do tradutor.

102

103

A CONTENDA PELA FILIACAO RESIDENCIAL


ENTRE MATRILINHAGEM E VIRILOCALIDADE

Repetindo, diremos que a sociedade ndembo regula-se


por dois principios residenciis, de poder quase igual:
a descendencia matrilinear e a virilocalidade-patrilocalidade. Esses principios tendem a entrar em confuto e
nao a se ajustar, como afirmei em Schism and Coninuiy
(1957), o que se deve, em parte, a razes ecolgicas.
Os ndembos cultivam urna especie vegetal de consumo
geral, a mandioca, que se desenvolve em muitos tipos
de solo, e cacam animis das florestas, largamente distribuidos por todo o territorio. Nao criam gado, e os
homens atribuem alto valor cac.a, que pode ser exercida em todo o pas ndembo. A agua encontra-se por
toda parte. Nada ha que obrigue as populares a se
fixarem em zonas limitadas do territorio. Dada a existencia de dois principis modos de filiago, nao existe
peso ecolgico a favor. de qualquer dos dois principios.
So quando urna comunidade africana est fixada a
reas limitadas de trra frtil, ou quando pode explorar apenas urna nica especie de, recursos movis
(como grandes rebanhos de gado), que se pode encontrar a supremaca em diversos campos de atividade
de um nico principio de organizado do parentesco,
a patrilinearidade e a matrilinearidade. as cond95es
ecolgicas dos ndembos a filiac.o residencial atravs
dos lagos masculinos (marido ou pai) entra em livre
competico com a matrilinearidade. Em certo momento,
urna determinada aldeia pode mostrar, em sua composic.o residencial, a predominancia de um modo, e, ern
outro momento, a de outro modo.
Acredito que essa competic.o estrutural entre os mais
importantes principios da filiac.o residencial um fator
decisivo para explicar (1) a maneira como os ndembos tratam os gmeos, e (2) seu conceito da dualidade,
nao em termos de um par de semelhantes, mas de um
par de opostos. A unidade de tal par a mesma de
urna unidade tensa, ou Gestalt, cuja tenso se constitu

de forc. ol fealidade inextirpveis, implacavelmente


opostas,. e cuja natureza, enquanto unidade, constituida e limitada pelas prprias forjas que lutam no Seu
ntimo. Se essas forjas irreprimveis e mutuamente implicadas sao ambas partes de um ser humano ou de
um grupo social, podem tambm constituir poderosas
unidades, anda mais se ambos os principios ou protagonistas em confuto sao conscientemente reconhecidos e
aceites. Sao unidades naturais por si mesmas devendo
ser distinguidas das unidades planas arbitrarias, que podem ser reduplicadas externamente. Pprm nao sao exatamente iguais aos pares dialticos de opostos de Hegel
ou de Marx, urna de cujas partes, depois de dominar
a outra, da origem a novas contradices no seu prprio
interior Levada em conta a persistencia da ecologa
ndembo, as partes dessa unidade tensa sao da mesma
classe e, na sua mesma oposigo, passam a model-la,
a constitu-la. Urna nao aniquila a outra; de certo
modo, estimulam-se mutuamente, como fazem em forma
simblica os sexos que escarnecem um do outro no
Wubwang'u. Somente a mudan?a socio-econmica pode
romper este tipo de Gestalt social.
Em^,Sehism 'and Continuity tentei analisar varios aspectos desse tipo de unidade, a da matrilinearidade por
oposic.ao virilocalidade; individuo ambicioso por
oposi?o ao ncadeamento mais ampio da 'familia matrilinear; a familia elementar em face do grupo de
irmaos uterinos, oposi?o que pode tambm ser considerada como tenso entre os principios patrifiliais e
matrilineares; a audacia da juventude contra a tirana
da gerago mais velha; a busca de urna posicjo social
diante da responsabilidade; a feitic.aria isto , os
sentimentos hostis, rancores e intrigas contra o amistoso respeito pelos outros, etc. Todas essas forjas e
principios podem estar c o n t i d o s dentro da unidade
ndembo, pertencem a ela, dao-lhe colorido, constituem
essa prpria unidade. O que nao pode estar incluido
nela sao as pressoes modernas e o enriquecimento.
Que acontece, portante, no decurso do ritual WubOs principios opostos nao esto permanentemen-

104

105

te concillados ou combinados. Como podem estar, se s


ndembos per.manecem no nivel da tecnologa e com a
particular ecologa que descrevi? Mas, ao invs de ficarem uns contra os outros no antagonismo ceg do
interesse material, "nao vendo nada alm de si megmps",
por assim dizer, eles se reorganizan! uns com o.s_o_ij.trSs
na unidade transcendente, consciente, reconhecida jda
sociedade ndembo, da qual constituem os princpjos.._JE
assim, em determinado sentido, por certo tempo, ejes
realmente se tornam um jogo de forcas 7 e_m viz"~de~
urna batalha implacvel. Os efeitos de tal "jogo" logcT
desaparecen!, mas o ferro venenoso temporariamente*
arrancado de certas relances perturbadas.
A GEMELARIDADE COMO MISTERIO
E ABSURDIDADE

Os episodios rituais que aprsente!, embora superficialmente os Ritos da Nascente do Rio, e do Duplo*
Sacrrio com a Luta de Fecundidade entre os Sexos
relacionam-se com dois aspectos do paradoxo da
gemelaridade. O primeiro encontra-se no fato da nogao
2 = 1 poder ser encarada como, um misterio. D fato, os
ndembos caracterizara o primeiro episodio' por um termo
que exprime amplamente este sentido. E' mpang'u, que
se aplica ao episodio central e mais esotrico de um
rito. A mesma palavra tambm significa "urna expresso secreta ou senha", tal como usada pelos novicos
e seus guardies na cabana da circunciso. Os ritos na
nascente do riacho representara un misterio religioso,
como os antigos gregos e romanos, ou os dos cristos
modernos, porquanto dizem respeito a assuntos ocultos
inexplicveis, alm da razo humana. O segundo aspecto a impresso que os ndembos tm de que,2=,l
constitu um absurdo, urna enorme e quase brutal brih-j
cadera. Embora grande parte de seus ritos seja devq-j
i
7
Minha cunhada, a Sra. Helen Bernard, da Universidade de Welllngtofl.
Nova Zelandia, chamou-me a atencSo para a semelhanc.a deste ponto de vista
com a nogao hind de um lila.

106

tada conquista da fecundidade sob varias especies, no


entanto a niae de gmeos recebe demasiada quantidade
dla de urna so vez.
O que ha de interessante a respeito tanto do misterio
qu.anto do absurdo da gemelaridade que os ndembos,
no ritual do Wubwang'u, decidiram exibir os principis
conjuntos de. dades complementares e antitticas recoj
Triieejdos__ern sua cultura. Contudo, quanto ao aspecto
| de -misterio, hStambm o evidente aparecimento do sagrado tringulo de cores, branco-vermelho-preto (veja-se
Turiier, 1967, p. 69-81). Estas cores constituem, para
o"s ndembos, rubricas, classificatrias que agrupam e orderiam -toda-.urna hierarquia de objetos, pessoas, atividades, episodios, gestos, acontecimentos, idias e valores
rituais. Na fdnte ,do rio, os dois tipos de argila, a branca
e a vermelha, renem-se com a fria lama preta do rio,
sendo o conjunto interpretado como significando a uniao
i "Idos sexos em um casamento pacfico e fecundo. Mas,
evidentemente, o tringulo, conforme se pode deduzir de
! seu aparecimento .em outros rituais, mais complexos e
fundamentis, principalmente os referentes crise da
vida, tm um significado mais profundo do que esta
especificado de situago dentro de sua total riqueza
semntica. O tringulo representa a ordem social e
csmica in-teira reconhecida pelos ndembos, n^ sua harmona e equilibrio, onde todas as contradices empricas
se resolvem msticamente. A perturbagao ocasionada
pela manifestafo das sombras no Wubwang'u aqu
ritualmente neutralizada por u m a representado de
ordem quinta-essencial, representadlo, que, acredita-se,
tm eficacia, e nao urna mera reuniao de sinais
cognoscitivos.
O ' Wubwang'u um ritual que vai, com regularidade, da xpresso de desordem jocosa de ordem
csmica, voltando desordem, para finalmente ser resolvido pela remocao da paciente, parcialmente segregada da.-.'vida- secular at que tenha sido retirada dla
arcmdieo de perigo. Esta oscilacao , at certo ponto,
homologa estrutura processual do /soma. Porm a
8

'8LOTECA

CENTRAL

UFES

107

dor diferenca entre esses ritos a constante acenico no Wubwang'u da opos9o entre os sexos e
s principios sociais de filiado, derivados dos pas
sexo oposto. No Isoma, a diada sexual ficava surdinada anttese vida/morte. No Wiibwangu a
losico social o principal tema.

WA CONCEPTO NDEMBO SOBRE O WUBWANG'U


2ceio que at aqui nao tenha permitido aos ndembos
larem suficientemente sobre o significado do Wubang'u. Para apresentar a "concepco interior" que eles
m, e oferecer ao leitor a oportunidade de comparar a
terpretaco deles com a minha, traduzirei comentarios
le gravei, feitos por peritos do Wubwang'u quer duinte as reais execuces dos ritos quer logo depois, em
bates informis.
Comecarei por um relato sucinto do processo inteiro,
.1 como foi contado por um experiente mdico do sexo
asculino:
Neyi nkaka yindi wavwalili ampamba,
"Se a av dla (da paciente) deu luz gmeos,
neyi nkaka yindi nafwi dehi
e se a av dla ja morreu,
chakuyawu nakuhong'a kutiya mukwakuhong'a
quando eles vo adivinhar o adivinho responde
nindi nkaka yeyi diyi wudi naWubwang"u
e diz: Sua av a que tem Wubwang'u,
diyi wunakukwati nakutwai,
ela a que apanhou voc,
ktilusemu IwaWubwang'u
que trouxe voc para o estado reprodutivo do Wubwang'u
dichu chochina hikukena walwa
e assim, por conseguinte, ela deseja- cerveja
nakumwimbila ng'oma yaWubwang'u
para o toque dos tambores (ou danga) do Wubwang'u.
Neyi wudinevumu akumujilika hakuvwala chachiwahi
Se voc tem um tero (isto , se est grvida), ela probe-a
e dar luz de maneira satisfatria.
Neyi eyi navwali dehi chachiwahi
Se voc ja deu luz de maneira satisfatri,

108

kunyamuna maza amakulu


deve (haver) urna renovaco e disperso daquelas palavras
primitivas
hikuyimwang'a hikutela acheng'i
e um corte (de remedios) (isto , os ritos devem ser curnpridos outra vez)
nakuwelishamu mwana mukeki.
a fim de que o beb possa ser lavado (neles).
Neyi nawa aha mumbanda navwali apipamba.
Algumas vezes quando urna mulher teve gmeos
akuya ninyana mwisang'a
eles iro com as criancas ao mato
nakumukunjika kunyitondu yakumutwala kumeji
e pem-na de pe ao lado das rvores e lvm-na at a agua
nakusenda nyolu
e carregam ramos (da trepadeira mola waWubwang'u)
yakupakata nakukosa mama yawu
para enfeit-la (por cima e por baixo dos bracos) e lavam
a me
ninyana hamu hikutwala anyana ka mltala
e as criangas exatamente da mesma maneira e transportara as criancas para a aldeia.
Kushila kuna ku mukala
Quando chegam la na aldeia,
hikutung'a chipang'u kunona yitumbu
eles constroem um (pequeo) cercado (para um sacrrio) e
apanham remedios
hikusha mu mazawu izawu dimu danyanya dakusha
e colocam-nos em gamelas de medicamentos (ou potes de
argila) urna pequea gamela (ou pote)
nyisoka yachifwifu chansama
para rebentos verdes de um feixe de folhas para urna pessoa
estril.
Hlkwinka muchipang'u china chanyanya
eles pem naquele pequeo cercado,
hikunona isawu hikwinka mu chipang'u cheneni.
eles pegam (outra) gamela de medicamentos e pem-na no
cercado grande.
Akwawu anading'i nakuhang'ana nanyoli
outros esto danzando com trepadeiras,
asabolang'a nyoli naktenteka mu chipang'u,
eles s despojan! das trepadeiras e guardam-nas no cercado.
Kushala yemweni imbe-e hakuwelisha anyana hamu
Eles ficm la cantando e lavara as criancas (com remedio)
. nakuhitisha munyendu;
e passam-nas sob (suas) pernas;
.
.
chikukwila metele hikuyihang';
.isto. f e i t o -noitin-haj quando eles os pers'eguem;

169

mwakukama nawufuku kunamani.


quando dormem noite tudo est terminado.
Mafuku ejifna anyana china kuyiwesha mu m
Todos os das devem lavar as criangas (com remedio) as
gamelas,
,
hefuku hefuku diku kukula kwawanyana ampamoa.
dia aps dia at que os gmeos cresgam.

Comentario
Este relato traduz o Wubwang'u em poucas palavras.
Mas, como natural, omite muitos dos detalhes fascinantes que, para os antroplogos, constituem as principis indica?5es do universo privado de urna cultura.
Torna claro que a sombra atormentadora no Wubwang'u
tpicamente urna me de gmeos, ja falecida (nyampasa). Ela prpria era membro do culto, pois no modo
de pensar ritual dos ndembos, conforme observei, somente um membro do culto, depois da morte, pode afligir
os vivos no modo de manifestaco tratada por aquele
culto. Mais ainda, o texto torna claro que a atribulaco
est na linha de descendencia matrilinear. Todava, comentarios, fornecidos por outros informantes insistem em
afirmar que urna sombra do sexo masculino pode "aparecer no Wubwang'u" se foi pai de gmeos (sampasa)
ou, ele mesmo, um gmeo.. No entanto, nunca encontr!
um nico caso desses. O Wubwang'u nao considerado
um espirito independente, mas representa o modo pelo
qual urna sombra de ancestrais demonstra seu desenvolvimento para com o conhecido vivo.
Segundo outros informantes, sao "as mulheres que
explicam aos homens os remedios e as tcnicas curativas do Wubwang'u. A irm de um mdico ensinou a
ele; ela era urna nyampasa, urna me de gmeos. Ento
ele disse que ambos os gmeos morreram e, de fato,
fnito comum que um deles morra, ou ambos, pois
os ndembos afirmam que a me ou favorecer um, corn
leite e alimentaso suplementar, negligenciando o outro,
ou tentar alimentar ambos igualmente com urna quan110

ldade que suficiente para un apenas. Os gmeos slo


conheeidos por meio de termos especiis: o mais velho
mbuya, o mais jovem, kapa. A crianza que se segu
a eles em ordem de nascimento chamada chikomba,
e tem por tarefa tocar os tambores rituais na execufo
do Wubwang'u. Freqentemente os ritos sao realizados
em favor do chikomba e de sua me, quando a crianca
ainda est dando os primeiros passos, para "faz-la
ficar forte". Um chikomba pode, tambm, tornar-se um
mdico Wubwang'u. Apesar de os homens aprenderem
os remedios com as mulheres conhecedoras do culto,
tornam-se os principis mdicos e chefes de cerimnias.
Um sinal de sua posico social a dupla sineta de caca
(mpwambu), que mais urna vez representa a dualidade
dos gmeos.
O SALTO COM A FLECHA

A parte final dos ritos ressalta ainda mais a diviso


sexual. Ao p6r-do-sol, o profissional mais idoso pega
a cesta de poeirar, que foi colocada sobre o pote no
compartimento "feminino", coloca-a sobre a cabeca da
paciente, em seguida levanta-a e abaixa-a varias vezes.
Ento, poe na cesta o equipamento ritual que sobrou
e mantm o conjunto todo no alto. Em seguida, toma
a flecha e coloca-a entre o dedo grande do pe e o segundo dedo, convidando1 a paciente 'a segurar-lhe na
cintura. O par sai, ento, pulando na perna direita em
direco cabana da paciente. Duas horas mais tarde,
a paciente levada para fora e lavada com a sobra
do remedio que ficou no pote de argila ou gamela de
medicamentos.
Encerr esta descrico dos ritos do Duplo Sacrrio
com um texto que descreve de maneira completa o
episodio do saltitar com a flecha.

111

)mu mumuchidika.
"Isto p que est no ritual.

v
Neyi chidika chaWubwang'u chiamani deh nameleh
Quando o ritual do Wubwang'u ja est terminado .noitinh
chimbaki wukunora nsewu
o mdico pega a flecha
wukwinka mumpasakanyi janyinu yakufnwendu wachimunswa
e coloca-a na diviso dos-dedos do pe esquerdo.
Muyeji wukwinza wukamukwata nakumakwata mumaya.
A paciente chega e segura-o pela cintura.
Chimbuki neyi wukweti mfumwindi
Se o doutor pegar o marido dla
mumbanda wukumukwata mfumwindi mumaya
a mulher segurar seu marido pela cintura
hiyakuya kanzonkwela invtala
e eles vo pulando at entrar na cabana
nakuhanuka munyendu yawakwawa adi muchisu.
e passaro por baixo das pernas das outras pessoas que
esto porta.
lyala ninodindi akusenda wuta ninsewu mwitala dawu. .
O homem e sua mulher carregaro um arco e urna flecha
para dentro da cabana.
Chimbando wayihoshang'a
O mdico diz a eles:
nindi mulimbamumba
Entrenv no curral (como um homem diz a suas ovelhas e
cabras),
ingilenu mwitala denu ingilenu /nwitala
entrem na sua cabana, entrem na sua cabana!
Chakwingilawu anta ejima hiyakudiyila kwawu kunyikala yawu.
Quando eles vo para dentro, todas as pessoasv vo embora
para suas prprias aldeias.
Tunamanishi.
""-..,
Nos terminamos".

flecha, juntos, simbolizam o c a s a m e n t o . "Saltitar"


(kzonkweld) representa o ato sexual, e tem este significado nos ritos de circunciso dos meninos, quando
Os novi?os sao obrigados a pular mima perna so, como
parte da disciplina durante a recluso. No Wubwang'u o
mdico e a paciente pulam com a perna direita, porqu
a direita o lado da forc.a. A frase "mulimbamulimba"
gritada para os animis domsticos, quando sao tocados para os- curris, noite. Expressa o aspecto bestial
da gemelaridade, que, como modo de nascimento mltiplo, considerado mais apropriado a animis do que
a homens. O tnel de pernas feito pelos entendidos, sob
qual o pai e a me de gemeos devem passar, assemelhase ao dos ritos de circunciso, pelo qual os jovens guardies dos novaos devem passar. Esse tnel, como vimos,
feito pelos homens mais velhos no Mukanda, e significa 1.) vigor sexual para os jovens guardies que passam sob ele, e 2) o rito de passagem da juventude para
a idade madura. No Wubwang'u, o tnel parece significar, por homologa, a incorporaco dos pais de gemeos
na associa?o do culto do Wubwang'u, na qual nasceram
provjndo dos corpos dos conhecedores profundos.
Conclusao
1. As Formas de Dualidade

Vale a pena chamar a atencjo para o fato de que o


termo usado para dizer "entre os dedos", mumpasakanyi,
relaciona-se etimolgicamente com o termo mpasa, a palavra ritual para designar "gemeos". No ritual ndembo
de modo geral a flecha representa o homem ou o marido,'
sendo segurada na mo direita, enquanto o arco representa a mulher, e mantido na mo esquerda. Arco e

O ritual de gemelaridade entre os ndembos poe em relevo muitos tipos de dualidade reconhecidos por eles
prprios. A separado entre hornens e mulheres, a oposico entre o rancor mesquinho e privado e o sentimento
social, e entre esterilidade e fecundidade, sao comuns
ao, Wubwang'u e ao soma. Porm o Wubwang'u tem
certos aspectos especiis, prprios dele. Mostra plenamente a animalidade e a humanidade do sexo, as formas de excessiva proliferac.o, justaposta ao misterio
do casamento, que une os dissemelhantes e reprime o
excesso. O casal ao mesmo tempo elogiado por sua

112

113

Comentario

excepcional contribui?ao a sociedade, e amaldic.oado pelo


excesso em faz-lo. Simultneamente, a profunda contradic.ao entre descendencia matrilinear e patrilateralidade emerge na turbulenta relac.o jocosa entre os sexos,
explcitamente comparada relag jocosa entre primoscruzados. Existe alm do mais urna forte disposico ao
igualitarismo nos ritos. Os sexos sao retratados como
iguais, embora opostos. Esta igualdade manifesta algo
profundo na natureza de todos os sistemas sociais, idia
que desenvolvo mais extensamente no Captulo 3. Um
acontecimento. como o nascimento de gmeos, que se
sita fora das classificaces ortodoxas da sociedade,
torna-se paradoxalmente a ocasio ritual para urna exibigo de valores que se relacionam com a comunidade
em totalidade como urna unidade homognea e no-estruturada, transcendendo as diferenciac.oes e contradices. O tema do dualismo entre "estrutura" e "communitas", e sua resolu?o final na "societas", vista como
processo e nao como entidade eterna, domina os tres
captulos seguintes deste livro.
2. .4 Obscenidade Prescrita
Julgo oportuno mencionar aqu um importante artigo,
injustamente esquecido, escrito pelo professor EvansPritchard, "Some Collective Expressions bf Obscenity in
frica", recentemente publicado pela segunda vez na
sua colelo de ensaios The Position of Women in
Primitive Society (1965a). O artigo estabelece os seguintes pontos:

O autor explica a obscenidade da seguinte maneira:


1) O cancelamento, pela sociedade, de suas proibices normis acenta de modo especial o valor social da atividade;
2) tambm canaliza a emogo humana para os cais prescritos de expresso, nos perodos de crise humana (p. 101).

O Wubwang'u inclui-se claramente na categora de


ritos de obscenidade prescrita e estereotipada, embora
contenha episodios decisivos que exaltam o casamento,
cuja rede de relafes caractersticamente inibidora de
expressoes de obscenidade. Nos ritos de gemelaridade
defrontamo7nos com o fato da domesticafao dos impulsos selvagens, s e x u a i s e agressivos, os quais os
ndembos acreditan! sejam comuns aos homens e aos
animis. As energas brutas, liberadas nos patentes simbolismos de sexualidade e de hostilidade entre os sexos,
sao canalizadas para os smbolos superiores, representativos de ordem estrutural, e para valores e virtudes de
que depende essa ordem. Cada oposico superada ou
transcendida em urna unidade restabelecida, unidade que,
alm disso, ' reforjada pelas prprias potencias que a
ameacam. Estes ritos revelam um aspecto do ritual que
um meio de colocar a servido da ordem social as prprias forcas da desordem, inerentes constituifo do
homem como mamfero. A biologa e a estrutura sao
colocadas numa correta relaco pela ativafo de urna
ordenada sucessao de smbolos, que tm as funces
gemelares de comunicacao e eficacia.

1) Ha certos tipos de comportamento obsceno (na sociedade


africana) cuja expresso sempre coletiva. Sao habitualmente
proibidos, mas permitidos ou p r e s c r i t o s em determinadas
ocasies;
2) estas ocasies sao, todas elas, de importancia social e
enquadram-se, a p r o x i m a d a m e n t e , em duas categoras,
Cerimnias Religiosas e Empreendimentos Econmicos Coletivos (p. 101);
114

115

Liminaridade e "Communitas'

jeito ritual (o "transitante") sao ambiguas; passa atra-'


vs de um dominio cultural que tem poucs, ou quase
nenhum, dos atributos do passado ou do estado futuro.
Na terceira fase (reagregaco ou reincorporac.o), consuma-se a passagem. O sujeito ritual, seja ele individual
ou coletiyo, permanece num estado relativamente estvel mais iima vez, e em virtude disto tem direitos e
pbrigafes perante os outros de tipo claramente definido
le "estrutural", esperando-se que se comporte de acord
com certas normas costumeiras e padrees ticos, que
Jvinelam "Os incumbidos de urna posifo social, num
'sistema de tais posices.

FORMA E ATRIBUTOS OJOS RITOS DE PASSAGEM

NESTE CAPTULO RETOMO UM TEMA QUE JA DISCUT


resumidamente em outra -ocasio (Turner, 1967, p. 93111); observo algumas de suas variares, e passo a
considerar-lhe as ulteriores implicares para o estudo
da cultura e da ;sociedade. Este tema , em primeiro lugar, representado pela natureza e caractersticas do que
Arnold van Oennep (1960) chamou "fase liminar" dos
rites de passage. O prpriq Van Gennep definiu os rites
de passage como "ritos que acompanham toda mudanza
de lugar, estado, posicaq social de'idade". Para indicar
o contraste entre "estado" e "transico", emprego "estado", incluindo todos os seus outros termos, E' 'um
conceito mais ampio, do que "status" ou-^func.S
refere-se a qualquer tipo de condico estvel ou recorrente, culturalmente reconhecida. Van Gennep mostrou
que todos os ritos de passagem ou de "transigi"
caracterizam-se por tres fases: separaco, margem (ou
"limen", significando "limiar" em latim) e agregarlo.
A primeira fase (de separaco) abrange o comportamento simblico que significa o afastamento do individuo " de um grupo, quer de um ponto fixo anterior
na estrutura social, quer de um conjunto deHj^ncfijjcfes
culturis (um "estado"), ou anda de ambos.J^urante,
o perodo "limiar" intermedio, as caractersticas do su-

116

Liminaridade
Os atributos de liminaridade, ou de personae (pessoas)
liminares sao hecessariamente ambiguos, urna vez que
esta condico e estas pessoas furtam-se ou escapam
rede de classificacoes que normalmente determinam a
localizarlo de estados e posicoes num espaco cultural.
As entidades liminares nao se situam aqui nem la; esto
no meio e entre as posicoes atribuidas e ordenadas pela
Bei, pelos costums, convencoes e cerimonial. Seus atrip'uta ambiguos e indeterminados exprimem-se por. urna
Ijca vaciedade d smbolos, naquelas varias sociedades
||ue rituaizam as transieses sociais e culturis. Assim,
Utoin-aridadfe-freqirentemene comparada morte, ao
!star no tero, invisibilidade, escurido, bissexuaidade, as regioes selvagens e a um eclipse do sol
u da la.
As entidades liminares, como os nefitos nos ritos
e iniciaco ou de puberdade, podem ser representadas
l*>mo se nada possussem. Podem estar disfamadas de
ft
nonstrs, usar apenas urna tira de pao como vesinnta ou aparecer simplesmente nuas, para demonstrar
|er como seres liminares, nao possuem "status", pro"Tiedade, insignias, roup mundana indicativa de classe
irj papel, social psi9 em um sistema de parentesco,

Li

em suma, nada que as possa distinguir de seus colegas


nefitos ou em processo de iniciacao. Seu comportament normalmente passivo e humilde. Devem, impli,
citamente, obedecer aos instrutores e aceitar punieres
arbitrarias, sem queixa. E' como se fossem reduzidas ou
oprimidas at a urna condico uniforme, para serem
modeladas de novo e dotadas de outros poderes, para
se capacitaren! a enfrentar sua nova situado de vida.
Os nefitos tendem a criar entre si urna' intensa camaradagem e igualitarismo. As distin?5es seculares de
classe e pos9o desaparecen!, ou sao homogeneizadas.
A condico da paciente e de seu marido no' I soma tinha'
alguns desses atributos passividade, humildade, nudez
quase completa num ambiente simblico que representava ao mesmo tempo urna sepultura e um tero.
as inicia?5es com longo perodo de recluso, tais como
os ritos de circunciso de muitas sociedades tribais ou
a entrada em sociedades secretas, ha freqentemente
urna rica proliferaco de smbolos liminares.

O que existe de interessante com relago aos fenmenos


liminares no que diz respeito aos nossos objetivos atuais ;
que eles oferecem urna mistura de submisso e santidade, de homogeneidade e camaradagem. Assistimos,
em tais ritos, a um "momento situado dentro e fora>
do tempo", dentro e fora da estrtura social profana^
que revela, embora efemeramente, certo reconhecimento
(no smbolo, quando nao mesmo na linguagem) de
vnculo social' generalizado que deixu de existir, e
contudo simultneamente tem de ser fragmentado
urna multiplicidade de lacs estruturais. Sao os Jacos1
organizados em termos ou de casta, classe ou orden5!
hierrquicas, ou de oposigoes segmentares, as soei
des onde nao existe o Estado, tao e s t i m a d a pe'05!
antroplogos polticos. E' como se houvesse neste cas<l|
dois "modelos" principis de correlacionamento huma

no, justapostos e alternantes. O primeiro o da sociedade tomada como um sistema estruturado, diferenciado
e freqentemente hierrquico de^ posicoes' poltico-jurdico-econmicas, com muitos tipos de avaliacao, separando os homens de acord com as noyes de "mais"
ou de "menos". O s e g u n d o , que surge de maneira
evidente no perodo liminar, o da sociedade considerada como um "comitatus" no-estruturado, ou rudimentarmente estruturado e relativamente indiferenciado, urna
comunidade, ou mesmo comunho, de individuos guais
que se submetem em conjunto autoridade geral dos
andaos rituais.
Prefiro a palavra latina communitas comunidade,
para qu se possa distinguir esta modalidade de rela?o social de urna "rea de vida em comum". A distinco entre estrtura e "communitas" nao apenas a
distin?o familiar entre "mundano" e "sagrado", ou a
existente por exemplo entre poltica e religiao. Certos
cargos fixos as sociedades tribais tm muitos atributos
sagrados; na realidade toda posi?ao social tem algumas
caractersticas sagradas. Porm este componente "sagrado" a d q u i r i d o pelos beneficiarios das posicoes
durante os "rites de passage", gra?as aos quais mudam de posico. Algo 'da sacralidade da transitoria
humildade e ausencia de modelo toma a dianteira e
modera o orgulho do individuo incumbido de urna posico o cargo mais^ alto. Como Fortes (1962, p. 86)
demonstrou de maneira convincente, nao se trata simplesment de dar un cnho geral de legitimidade as
posicoes estruturais de urna sociedade. E' antes urna
questo de reconhecer um laco humano essencial e genrico, sem o qual nao poderia haver sociedade. A
liminaridade implica que o alto nao poderia ser alto
sem que o baixo existisse, e quem est no alto deve
experimentar o que significa estar em baixo. Sem dvida um pensamento deste tipo esteve na base da deciso do prncipe Phillip, alguns anos atrs, de mandar
o filho, o herdeiro presuntivo do trono britnico, para

118

119

"Communitas"

Ulti escola o tho da floresta na Australia, por determinado tempo, a fim de que pudesse aprender a
"levar urna vida dura".

A Dialtica do Ciclo de Desenvolvimento


De tudo isso, concluo que, para os individuos ou para
os grupos, a vida .social um tipo de processo dialtico que abrange a experiencia sucessiva do alto e do
b.aixo, de communitas e estrutura, homogeneidade e
diferencia9o, igualdade e desigualdade. A passagem de
urna situado mais baixa para outra mais alta feita
atravs de um limbo de ausencia de "status". Em tal
processo, os opostos por assim dizer constituem-se uns
aos outros e sao mutuamente indispensveis. Anda
mais, como qualquer sociedade tribal composta de
mltiplas pessoas, grupos e categoras, cada urna das
quais tem seu prprio ciclo de deseftvolvimento, num
determinado momento coexistem muitos encargos correspondentes a posices fixas, havendo muitas passagens
entre as pos9oes. Em outras palavras, a experiencia
da vida de cada individuo o faz estar exposto alternadamente a estrutura e communitas, a estados -e a
trahsifes.
A LIMINARIDADE DE UM RITO DE INVESTIDURA

munidade total, enquanto unidade nao-estruturada. E'


tambm, simblicamente, o prprio territorio tribal e todos os seus recursos. A fecundidade e a cndilo de
nao sofrer seca, fome, doen?a e pragas de insetos estao
ligadas ao seu cargo e a seu estado fsico e moral. Entre
os ndembos os poderes rituais do chefe mais antigo eram
limitados, combinando-se com eles, pelos poderes possuidos pelo chefe mais velho de tribo do povo autctone mbwela, que so foi submetido depois de longa
luta com os conquistadores lundas, conduzida pelo primeiro Kanongesha. O c h e f e chamado Kafwama, dos
humbos, um ramo dos ndembos, foi investido de um
importante direito. Era o direito de conferir,, impregnando-o peridicamente de substancias medicinis, o
smbolo supremo da posifo de chefia entre as tribos
de origem lunda, o bracelete lukanu, feito com os rgaos
genitais e tendees humanos embebidos no sangue sacrifical de escravos e escravas, em cada investidura. O
ttulo ritual do Kafwama era Chivwikankanu, "aquele
que se veste ou se cobre com o lukanu". Possua tambm o ttulo de Mama yakanongesha> "me de Kanongesha", porque simblicamente dava nascimento a cada
novo ocupante daquele cargo. Dizia-se que o Kafwana
ensinava a cada novo Kanongesha os remedios da feiti^aria, que o faziam ser temido por seus rivais e
subordinados, talvez um indicio de fraca centralizado
poltica.

I
Um exemplo sumario de um rite de passage dos ndembos do Zmbia ser citado com utilidade aqui, porque
se refere mais alta posico social naquela tribo, a
do chefe mais velho Kanongesha. Tambm servir para
desenvolver nossos conhecimentos sobre o modo como
os ndembos se utilizam de seus smbolos rituais e os
explicara. A posic.o de chefe mais velho ou supremo entre
os ndembos, como em muitas outras sociedades africanas, paradoxal, pois ele representa ao mesmo tempo
o pice da hierarquia poltico-legal estruturada e a co-

O lukanu, primitivamente conferido pelo chefe de


todos os lundas, o Mwantiyanvwa, que governava em
Katanga, muitas milhas ao norte, era ritualmente tra.tado pelo Kafwana e oculto por ele durante os interregnos. O poder mstico do lukanu, e portante da
condico de K a n o n g e s h a , vinha conjuntamente do
Mwantiyanvwa, o chefe de quem emanava _o poder poltico, e do Kafwana, a fonte ritual. O emprego dele em
beneficio da trra e do povo estava as mos de urna
I sucessao de individuos incumbidos da chefia. A origem
f n o Mwantiyanvwa simbolizava a unidade histrica do
*'"" ndembo e sua diferenciXo poltica em^subehefias,

120

121

dominadas pelo Kanongesha. A medicado peridica do


lukanu pelo Kafwana simbolizava a trra da qual
o Kafwana era o "prOprietrio" original e a comunidade inteira que viva nela. As invoca?5es diarias
feitas a ele pelo Kanongesha, ao nascer e ao pr-dosol, visavam a f ertilidade, sade e vigor permanentes
da trra, dos animis e recursos vegetis, do povo
em resumo, ao bem pblico. Mas o lukanu tinha um
aspecto negativo, o de poder ser usado pelo Kanongesha para amaldisoar. Se o Kanongesha tocava a trra
com ele e proferia urna certa frmula, acreditava-se que
a pessoa ou o grupo amaldigoado se tornava estril, sua
trra perda a fertilidade e sua cac.a desapareca. No
lukanu, finalmente, os rundas e os mbwelas se uniam no
conceito coletivo da trra e da gente ndembo.
Na rela^o entre os undas e os mbwelas, e entre o
Kanongesha e o Kafwana, encontramos urna distinco
comum ria frica entre o povo poltica1 ou militarmente
forte e o povo autctone subjugado, entretanto ritualmente potente. lowan Lewis (1963) definiu esses inferiores estrturais como tendo "o poder ou os poderes
do fraco" (p. 111). Um exemplo bastante conhecido
na literatura encontra-se no relato de Meyer Fortes
sobre os tallensis do norte de Gana, onde a chegada
dos amos trouxe a chefia e um culto ancestral altamente desenvolvido para os autctones tales, que, por
sua vez, julga-se terem importantes poderes rituais relativos trra e as cavernas. No grande festival Golib,
realizado anualmente, a uniao dos poderes de chefia e
de sacerdocio simbolizada pelo casamento mstico entre
o chefe de Tongo, lder dos amos, e o sumo-sacerdote
da trra, o Golibdaana, dos tales, retratados, respectivamente, como "marido" e "mulher.". Entre os ndembos,
Kafwana tambm considerado, como vimos, simblicamente feminino em relaeo ao Kanongesha. Pedera
multiplicar os exemplos deste tipo de dicotoma, retirados apenas de fontes africanas, e seu mbito abrang^
o mundo inteiro. O ponto que gestara de acentuar aquj
a existencia de certa homologa entre a "fraqueza"

e a "passividade" da liminaridade as transieses diacrnicas entre urna posigo^ social e outr, e a inferioridade "estrutural" ou sincrnica de certas pessoas, grupos
e categoras sociais nos sistemas polticos, legis e econmicos; As cpndices "liminares" e "inferiores" esto
freqerttmente associadas aos poderes rituais e comunidade, inteira, considerada como indiferenciada.
V oiremos aos ritos de investidura do Kanongesha dos
ndembos. O componente liminar de tais ritos comec.a
com a construyo de um pequeo abrigo de folhas, distante mais ou menos um quilmetro e meio da aldeia
principal. Esta cabana conhecida por ka\w ou kafwi,
termo ndembo derivado de ku-fwa, "morrer", porque
ai que o chefe eleito morre para o seu estado de homem
comum. As imagens da mpr-te proliferam na liminaridade dos ndembos. Por exemplo, o lugar secreto e sagrado
onde os novicos sao circuncisados, conhecido como
ifwilu ou ' chifwilu, termo tambm derivado de ku-fwa.
O chefe eleito, vestido apenas com um pao esfarrapado na cintura e urna esposa ritual, que ou sua
esposa mais idosa (mwadyi) ou urna mulher escrava
especial, conhecida como lukanu (em conformidade com
o bracelete real), nessa ocasio, vestida da mesma maneira, sao convocados pelo Kafwana a entrar no abrigo
kafu, logo depois do pr-do-sol. Diga-se de passagem
que o prprio chefe tambm conhecido como mwadyi
ou lukanu, nesses ritos. O casal conduzido para a
cabana cmo se fossem invlidos. La, o homem e a
mulher se sentam agachados numa postura indicativa de
vergonha (nsonyi) ou de recato, enquanto sao lavados
com remedios misturados com agua trazida do Katukang'onyi, o local do rio onde os chefes ancestrais da
dispora lunda meridional h a b i t a r a m .durante algum
tempo, , na viagem iniciada na capital Mwantiyanvwa,
;
antes de se separarem para conquistar reinos para si.
;A madeira para o fogo nao deve ser cortada com um
; Cachado, mas deve ser encontrada cada no solo. Isto
[significa que produto da trra e nao artefato. Urna

122

123

vez mais vemos a conexo do carter ancestral de pertencer aos lundas com os poderes ctnicos.
Em seguida cometa o rito de Kumukindyita, que quer
dizer literalmente "falar palavras ms ou insultantes
contra ele". Podemos denominar este rito "O Insulto ao
Chefe Eleito". Cometa quand o Kafwana faz um corte
no lado inferior do bra?o esquerdo do chefe no qual
o bracelete lukanu ser colocado no dia seguinte -
espreme um remedio na inciso, e aperta urna esteira
sobre a parte superior do bra?o. O chefe e sua mulher
sao, ento, forjados rudemente a se sentarem na esteira. A mulher nao deve estar grvida, pois os ritos
que se seguem sao considerados destruidores^ da fecundidade. Alm do mais, o par soberano deve ter-se abstido
de relances sexuais por varios dias antes dos ritos.
O Kafwana cometa a fazer urna homilia, transcrita
a seguir:
"Silencio! Tu es um tolo egosta e desprezvel, alm de ter
mau genio! Nao amas teus companheiros, so te zangas com
eles! Baixeza e ladroeira tudo o que tens! No entanto, chamamos-te aqui e te dizemos que deves ser o sucessor na chefia.
Pe de lado a mesquinhez, pe de lado a clera, renuncia as
relages adlteras, renuncia a elas mediatamente! Nos te outorgamos a chefia. Deves comer junto com teus companheiros,
deves viver bem com eles. Nao prepares remedios de feiticaria
a fim de poderes destruir teus companheiros as cabanas deles
isto proibido! Desejamos que tu e so tu sejas nosso chefe.
Que tua mulher prepare alimento para as pessoas que vffl
aqui, a aldeia principal. Nao sejas. egosta, nao conserves a
chefia somente para ti! Deves rir junto com .o povo, deves
abster-te de praticar feiticaria, se porventura ja a realizaste!
Nao devers matar gente! Nao deves deixar de ser generoso
para com o povo!
Mas tu, Chefe Kanongesha, Chifwanakenu ['filho que se parece com o pai'] de Mwanyanvwa, danzaste para obter a
chefia porque teu predecessor morreu [isto , porque tu mataste]. Mas hoje tu nasceste como um novo chefe. Deves conhecer o povo, Chifwanakenu. Se eras mesquinho, e costumavas comer teu piro de mandioca, ou tua carne sozinho, hoje
ests na chefia. Deves abandonar tuas maneiras egostas, devfi8
saudar amavelmente a todos, es o chefe! Deves deixar de se*
adltero e briguento. Nao deves fazer julgamentos parciais oftl
nenhum caso legal que envolva teu povo, especialmente se

124

prprios filhos estiverem implicados. Deves dizer: 'Se algum


dormiu com minha mulher, ou me fez algum mal, no dia de
hoje nao devo julgar seu caso injustamente. Nao devo guardar
ressentimento no corago'".

Depois de toda esta arenga, qualquer pessoa que


julgue ter sido prejudicada pelo chefe eleito, no passado, est autorizada a insult-lo e a exprssar plenamente seu ressentimento, entrando em detalhes conforme
desejar. O chefe eleito, durante tudo isso, deve ficar
sentado silenciosamente, com a cabera inclinada, "o modelo de paciencia" e da humildade. Entrementes, o
Kafwana borrifa o chefe eom remedio, de vez em quand
batendo com o traseiro contra ele (kumubayish) de
modo insultuoso. Muitos informantes me disseram que
"um chefe como um escravo (ndung'u) na noite antes
de subir ao trono". Fica proibido de dormir, em parte
como ordlio, env parte porque se acredita que se ele
cochilar ter maus sonhos com as sombras dos chefes
morios, "quem dir que nao tem razo em suceder a
eles, pois ele nao os matou?" O Kafwana, seus assistentes, e outros homens importantes, como os chefes da
aldeia, maltratam o chefe e sua mulher que igualmente insultada e Ihes ordenam que apanhem lenha
e realizem outras tarefas servs. O chefe nao pode ofender-se com isto ou reter a lembranga do que Ihe fizeram
e us-la no futuro contra os que pra;ticaram tais ac.6es.
OS ATRIBUTOS DAS ENTIDADES LUMINARES

A~fasL_de, reagregacao. neste caso, compreende a investidura ~pubTlca~o* Kanongesha, com toda a pompa e
cerimnia. Apesar deste ato ter o mximo interesse para
o estudo da chefia dos ndembos e para urna importante
tendencia da antropologa social britnica da atualidade,
nao nos ocuparemos aqui do assunto. Nossa atengo
prende-se agora a questo da Hminaridade e dos po. deres rituais dos fracos. Estes aparecem sob dois as[ pecios. Primeiramente, o Kafwana e as outras pessoas
125

comuns do povo ndembo revelam-se privilegiados, ao


exercer autoridade sobre a figura da suprema figura
da tribo. Na liminaridade o subordinado torna-se o
predominante. Em segundo lugar, a suprema autoridade
poltica retratada "como um escravo", lembrando o
aspecto da coroa?o do papa na cristandade ocidental
em que ele chamado "servus servorum Dei". Sem
dvida, urna parte do rito tem aquilo que Monica
Wilson (1957, p. 46-57) chamou "urna fungo profiltica". O chefe precisa exercer o autocontrole nos ritos
para ser capaz de autodominio depois, diante das tentacoes do poder. Mas o papel de chefe humilhado
somente um exemplo extremo de um tema repetido das
situacoes liminares. Este tema consiste no despojamento
dos atributos pr-liminares e ps-liminares.
Vejamos os principis ingredientes dos ritos Kumukindyila. O chefe e sua mulher vestem-se da mesma
maneira, com urna tira de pao esfarrapada na cintura, e
partilham do mesmo nome, mwadyi. O termo tambm
aplicado a: meninos submetidos iniciaco e primeira
esposa de m homem, na ordem cronolgica do casamento. E' um sinal do estado annimo do "iniciando".
Esses atributos de ausencia de sexualidade e de anonimia sao inteiramente caractersticos da liminaridade.
Em muitas especies de iniciaco, as quais os nefitos
sao de ambos os sexos, homens e muiheres veslem-se
do mesmo modo e sao denominados pelo mesmo termo.
E' o que acontece por exemplo em muitas cerimnias
batismais as seitas cristas, ou sincrticas da frica,
assim as do culto Bwiti no Oabo (James Fernandez,
comunicaco pessoal). Tambm verdade na iniciaco
para a entrada na associacao funeraria dos ndembos de
Chiwila. Simblicamente, todos os atributos que distinguem categoras e grupos na ordem social estruturada
ficam aqui temporariamente suspensos. Os nefitos sao
meramente entidades em transic.3o, nao tendo anda
lugar ou posi?o.
Outras caractersticas sao a submisso e o silencio.
Nao somente o chefe, nos ritos agora examinados, mas
tambm os nefitos, em muitos rites de passage, deveifl

126

submeter-se a uma autoridade que nada mais senao a


da comunidade total. Esta comunidade a depositara
da gama completa dos valores da cultura, normas, atitudes, sentimentos e relaces. Seus representantes nos
diversos ritos e podem variar, de ritual a ritual
representara a autoridade genrica da tradico. as sociedades tribais, tambm, a fala nao apenas comunicaco, mas poder e sabedoria. A sabedoria transmitida na liminaridade sagrada nao consiste somente num
aglomerado de palavras e de sentencas; tem valor ontolgico, remodela o ser do nefito. E' por isto que, nos
ritos Chisungu, dos bembas, tao bem descrito por
Audrey Richards (1956), as muiheres mais velhas dizem
que a 111053 reclusa "cresceu e se tornou mulher",
cresceu em virtude das instrucoes verbais e no-verbais
que recebeu medante os preceitos e os smbolos, especialmente pela revelafo, que Ihe feita, dos sacra
tribais em forma de imagens de barro.
O nefito na liminaridade deve ser uma tabula rasa,
urna lousa em branco, na qual se inscreve o conhecimento e a sabedoria do grupo, nos aspectos pertinentes
ao novo "status". Os ordlios e humilhaces, com freqnca de, carter grosseiramente fisiolgico, a que os
nefitos sao submetidos, representan! em parte a destruicot de uma condicao anterior e, em parte, a tempera
da essncia deles, a f i m , de prepar-los para enfrentar
as novas responsabilidades e refre-los de antemo,
para nao abusarem de seus novos privilegios. E' preciso mostrar-lhes que, por si mesmos, sao barro ou
p, simples materia, cuja forma Ihes ' impressa pela
sociedade.
Outro tema liminar, exemplificado nos ritos de investidura dos ndembos, a continencia sexual. E' um
tema difundido no ritual ndembo. De fato, o reatamento das rela9es sexuais usualmente uma marca
cerimonial de retorno sociedade como estrutura de
posices. Embora este seja um traco de certos tipos
de comportamento religioso em quase todas as sociedades, na sociedade pr-industrial, com sua forte acen-

127

tuao do parentesco como" base de muitos tipos de


filiao ao grupo, a continncia sexual tem alm disso
fora religiosa. Tal acontece porque o parentesco, ou
as relaes configuradas pela linguagem do parentesco,
constitui um dos principais f a t o r e s da diferenciao
estrutural. O carter indif erencrado da liminaridade reflete-se na descontinuidade das relaes sexuais e na
ausncia de uma marcada polaridade sexual.
E' instrutiva a anlise do sermo do Kafwana, para
se procurar apreender o significado de liminaridade. O
leitor certamente se lembrar de que ele repreendeu o
chefe eleito por seu egosmo, mesquinharia, roubo, clera,
feitiaria e avareza. Todos esses vcios representam o
desejo, de possuir para si mesmo aquilo que deveria
ser repartido para o bem comum. Uma pessoa incumbida de um alto cargo fica especialmente tentada a usar
a autoridade de que foi revestida pela sociedade para
satisfazer desejos particulares e exclusivos. Mas deveria ,
encarar seus privilgios como ddivas da Comunidade
inteira, que em ltima anlise tem um direito supremo
sobre todas as suas aes. A estrutura e os altos cargos
providos pela estrutura so assim considerados como
meios para o bem-estar pblico, e no como recursos
de engrandecimento pessoal. O chefe no deve "conservar a chefia s para si". Deve rir junto com o povo,
e o riso (ku-seha) pra os ndembos uma qualidade
"branca", participando da definio da "brancura" ou
das "coisas brancas". A brancura representa a teia
inconstil de conexo, que dever idealmente incluir ao J
mesmo tempo os vivos e os mortos. E' a relao certa
entre as pessoas, apenas enquanto seres humanos, e
seus frutos so a sade, vigor, e os outros bens. O
riso "branco", por exemplo, que visivelmente manifestado pelo brilho dos dentes, representa camaradagem
e companhia agradvel. E" o reverso do orgulho (winyi),
da inveja, da cobia, e dos rancores secretos- que do
em resultado comportamentos de feitiria
(wulojfy,
roubo (wukombi), a d u l t r i o (kushmbana), baixeza
(chifwa) e homicdio .(wtbahji). Mesmo quando um
128

homem se tenha tornado chefe, continua sendo ainda


inembro da comunidade inteira das pessoas (antu), e
demonstra isto "rindo junto com elas", respeitando-lhes
os direitos, "saudando amavelmente a todos", e partilhando do alimento com elas. A funo purificadora
exercida pela liminaridade no est confinada a esse
tipo de iniciao, mas forma um componente de muitos
outros tipos, em vrias culturas. Um exemplo bastante
conhecido o da viglia medieval, feita pelo cavaleiro,
durante a noite que precede a sua investidura, quando
promete empenhar-se em servir aos fracos e aflitos e
a meditar em sua prpria indignidade. Acredita-se que
o poder subseqente que possui deriva parcialmente
desta profunda imerso na humildade.
A pedagogia da liminaridade, portanto, representa a
condenao de duas espcies de separao do vnculo
comum da "communitas". A primeira espcie consiste
em agir somente de acordo com os direitos conferidos
ao indivduo pelo exerccio do cargo na estrutura social.
A segunda consiste em seguir os impulsos psicolgicos
do indivduo, custa de seus companheiros. Atribui-se
um carter mstico ao sentimento de bondade humana
em muitos tipos de liminaridade, e em vrias culturas
este estgio de transio relaciona-se estreitamente com
as crenas nos poderes protetores e punitivos de seres
e potncias divinas ou sobrenaturais. Por exemplo, quando o chefe eleito ndembo sai da recluso, um dos subchefes cjue desempenha um papel sacerdotal nos ritos
de investidura constri uma cerca ritual em redor da
nova morada do chefe, e reza da seguinte maneira,
dirigindo-se s sombras dos antigos chefes, diante do
povo que se reuniu para assistir posse no cargo:
"Ouvi, vs, todo o povo. O Kanongesha nasceu para a chefia
hoje. Esta argila branca (mpemba), com a qual o chefe, os
sacrrios dos ancestrais e os oficiantes sero ungidos, significa
Para vs todos os antigos Kanongeshas, reunidos aqui. [Neste
Ponto os antigos chefes so mencionados pelo nome.] Portanto,
todos vs que morrestes, olhai para vosso amigo que vos sucedeu [no banco da chefia], para que ele possa ser forte. Ele
deve continuar a orar a vs. Deve tomar conta das crianas,
O Processo... Ec) 2877 5

129

cuidar de todo o povo, homens e mulheres, para que sejam


fortes e para que ele prprio seja vigoroso. Eis aqui a argila
branca. Eu vos entronizei, chefe. Que o povo lance sons de
louvor. Surgiu a chefia".

Os poderes que modelam os nefitos na liminaridade


para a entrada em uma nova "condio", nos ritos em
todas as partes do mundo, so considerados poderes
sobre-humanos, embora sejam invocados e canalizados
pelos representantes da comunidade.

.Referncia contnua aos poderes msticos/referncia intermitente aos poderes msticos


Insensatez/sagacidade
Simplicidade/complexidade
Aceitao de dores e sofrimentos/evitao de dores e sofrimentos
Heteronomia/graus de autonomia
t

Transio/estado
Totalidade/parcialidade
Homogeneidade/heterogeneidade
"Communitas" /estrutura
Igualdade/desigualdade
Anonmia/sistemas de nomenclatura
Ausncia de propriedade/propriedade
Ausncia de "status"/"status"
Nudez ou ^uniformidade de vesturio/variedade de vesturio
Continncia sexual/sexualidade
Subestimao das distines sexuais/Alta importncia das distines sexuais
Ausncia de classe/distines de classe
Humildade/justo orgulho da posio
Descuido com a aparncia pessoal/cuidado com a aparncia
pessoal
Nenhuma distino de riqueza/distines de riqueza
Altrusmo/egosmo
Obedincia total/obedincia apenas classe superior
Sacralidade/secularidade
Silncio/fala
Suspenso dos direitos e obrigaes de parentesco/obrigaes
e direitos de parentesco

Esta lista poderia ser consideravelmente aumentada


se amplissemos a extenso das situaes liminares
consideradas. Ainda, os smbolos em que essas propriedades se manifestam e corporificam so vrios e mltiplos, e freqentemente se relacionam com os processos
fisiolgicos de morte e de nascimento, de anabolismo
e de catabolismo. O leitor ter notado, de imediato, que
muitas dessas propriedades constituem aquilo que julgamos serem caractersticas da vida religiosa na tradio crist. Indubitavelmente, tambm os muulmanos,
os budistas, os hindus e os judeus enumerariam muitas
delas entre as suas caractersticas religiosas. O que
parece ter acontecido que, com o incremento da especializao da sociedade e da cultura, com a progressiva
complexidade na diviso social do trabalho, aquilo que
era na sociedade tribal principalmente um conjunto de
qualidades transitrias "entre" e s t a d o s definidos da
cultura e da sociedade, transformou-se num estado institucionalizado. Mas traos da qualidade de passage da
vida religiosa permanecem em vrias formulaes, tais
como: "O cristo um estranho no mundo, um peregrino, um viajante, sem nenhum lugar para descansar
a cabea". A transio tornou-se, neste caso, numa condio .permanente. Em parte alguma esta institucionalizao da liminaridade foi mais claramente marcada e
definida do que nos estados monstico e mendicante,
nas grandes religies mundiais.
Por exemplo, a regra crist ocidental de So Bento
"prove a subsistncia de homens que desejam viver em
comunidade e devotar-se inteiramente ao servio de Deus
pela autodisciplina, a orao e o trabalho. Devem formar essencialmente famlias, sob os cuidados e o controle absoluto de um pai (o abade); individualmente, so

130

131

A LIMINARIDADE CONFRONTADA COM O


SISTEMA DE POSIES SOCIAIS
Expressemos, agora, maneira de Lvi-Strauss, a diferena entre as propriedades da liminaridade e as do
sistema de posies sociais, em termos de uma srie
de oposies, ou discriminaes binrias. Estas podem
ser ordenadas do modo seguinte:

obrigados pobreza pessoal, abstenido fio casamento


e obediencia aos superiores, bem como pelos votos de
estabilidade e converso de conduta [sendo originariamente sinnimo de "vida em comum", "a vida monstica" distinguia-se da vida secular]; um grau moderado
de austeridade imposto pelo oficio noturno, o jejum,
pela abstinencia de carne e restrico na conversa"
(Attwater, 1961, p. 51 grifos meus). Acentu! os
traeos que denotam urna notvel semelhanc.a com a
condi?o do chefe eleito durante a transiso para os
ritos pblicos de tomada de posse, quando inicia seu
reinado. Os ritos de circunciso dos ndembos (Mukanda) -apresentam novos paralelos entre os nefitos e os
monges beneditinos. Erving Ooffman (Asylums, 1962)
estuda aquilo que chama "caractersticas de instituic,oes
totais". Entre essas i n c l u os mosteiros, devotando
grande aten?ao "aos processos de despojamento e de
nivelamento que ... diretamente atravessam as varias
distin?5es sociais com que os recrutas chegam". Em
seguida, cita um conselho de Sao Bento ao abade:
"Que ele nao faca distinti de pessoas no mosteiro.
Que urna nao seja mais amada que outra, a menos que
se distinga em boas obras e em obediencia. Que o individuo de origem nobre nao seja elevado cima do que
era antes um escravo, exceto se intervier alguma outra
causa justa" (p. 119).
Neste ponto, os paralelos com o Mukanda sao surpreendentes. Os novicos sao "despojados" das roupas
seculares quandp passam atravs de um porto simblico; sao "nivelados" pelo fato de abandonaren! seus
antigos nomes, dando-se a todos a designado comurn
de mwadyi, ou "novico", e tratados da mesma maneira.
Um dos cantos entoados pelos circuncisores dirigindo-se
as maes dos novi?os na noite antes da circunciso
contm a seguinte frase: "Mesmo que seu filho seja o
filho de um chefe, amanh ele ser igual a um escravo",
exatamente como um chefe eleito tratado como escravo antes da sua -investidura. Alm do mais, na
cabana de reclusao o instrutor mais idoso escolhido

132

em parte por ser pai de varios meninos submetidos aos


ritos, e porque se torna um pai para o grupo inteiro,
urna especie de "abade", embora seu titulo Mfumwa
ubwiku signifique literalmente "marido dos novicos",
para acentuar o papel passivo destes ltimos.
O PERICO MSTICO E OS PODERES DOS FRACOS

Pode-se perguntar por que em quase toda parte se


atribuem as situacoes e papis liminares propriedades
mgico-religiosas, ou por que to freqentemente estas
sao consideradas perigosas, de mau agouro, ou contaminadoras para pessoas, objetos, acontecimentos e relajees que nao foram ritualmente incorporados ao contexto
liminar. Minha opinio, em resumo, que na perspectiva
daqueles aos quais incumbe a manutenco da "estrutura", todas as manifestares continuadas da "communitas" devem aparecer como perigosas e anrquicas, e
precisam ser rodeadas por prescribes, proibices e condices. EL como afirmou recentemente Mary Douglas^
(1966), aquilo que nao pode, com clareza, ser classificado segundo os criterios tradicionais de classificac.o,
ou se situ entre fronteiras classificadoras quase em
toda parte considerado "contaminador" e "perigoso"
(passim).
Repito o que disse anteriormente: a liminaridade nao
a nica manifestago cultural da "communitas". Na
maioria das sociedades ha outras reas de manifesta9ao,
fcilmente reconhecidas pelos smbolos que se agrupam
em torno dlas e pelas crencas a elas vinculadas, tais
como "os poderes dos fracos", ou, em outras palavras,
os atributos permanente ou transitoriamente sagrados,
relativos a um "status" ou posicao baixa. Nos sistemas
estruturais estveis ha muitas dimensoes de organizacao.
Ja mencionamos que os poderes msticos e moris sao
mantidos pelos autctones subjugados sobre o total
bem-estar de sociedades cuja estrutura poltica constituida pela linhagem ou pela organizado territorial de
133

conquistadores invasores. Em outras sociedades a


ndembo e a lamba, de Zmbia, por exemplo podemos indicar associages de culto, cujos membros, devido
a um infortunio comum ou circunstancias debilitantes,
conseguiram acesso a poderes teraputicos relativos a
certos bens gerais da humanidade, como a sade, a fecundidade e o clima. Essas associa?5es seccionan! importantes componentes do sistema poltico secular, como
linhagens, aldeias, subchefias e chefias. Pederamos
tambm mencionar o papel de na?5es estruturalmente
pequeas e politicamente insignificantes dentro de sistemas de nac.5es como sustentculos de valores religiosos
e moris, tais como os hebreus no antigo Oriente
Prximo, os irlandeses na primitiva cristandade medieval e os SUC.QS na Europa moderna.
Muitos escritores chamaram a atenc.o para o papel
do bobo da corte. Max Gluckman (1965), por exemplo,
escreve: "O bobo da corte operava como arbitro privilegiado dos costumes, dada a permisso que tinha de
zombar de res e cortesos, ou do senhor do solar". Os
bobos da corte eram "comumente homens da classe
baixa algumas vezes no Continente europeu eram
sacerdotes que claramente saam do seu estado habitual ... Em um sistema onde era difcil para outros
censurar o chefe de urna unidade poltica, podamos ter
aqu um trocista institucionalizado, atuando no ponto
rilis alto da unidade... um galhofeiro capaz de expressar os sentimentos da moralidade ofendida". Menciona anda que os bobos da corte ligados a muitos
monarcas africanos eram "freqentemente anes e outros
individuos estranhos". Semelhantes a esses pela func.o
eram os tamborileiros da barcaga real dos barotses, na
qual o rei e sua corte se deslocavam de urna capital na
planicie aluvial do rio Zambezi para urna das margens,
durante as cheias anuais. Eles tinham o privilegio de
atirar na agua qualquer dos grandes nobres "que tivesse
ofendido a eles e a seu sentido de Justina durante o
ano anterior" (p. 102-104). Estas figuras, representando os pobres e os deformados, simbolizam os valores
134

moris da "communitas" contrapondo-se ao poder coercitivo dos dirigentes polticos supremos.


A literatura popular rica em figuras simblicas,
como os "mendigos santos", "terceiro filho", "pequeos
alfaiates" e "simplrios", que arrancara as pretenses
dos detentores de categoras e cargos elevados e reduzem-nos ao nivel da humanidade e dos morais comuns.
Anda, nos tradicionais filmes de "faroeste", vemos o
misterioso "estranho" sem lar, sem riqueza ou nome, e
que restaura o equilibrio legal e tico num grupo local
de relacoes p'olticas de poder, eliminando os "chefqes"
profanos injustos que oprimem os pequeos proprietrios. Os membros de grupos tnicos e culturis desprezados ou proscritos desempenham importantes papis
nos mitos e nos contos populares, como representantes
ou expressoes de valores humanos univefsais. Sao famosos entre estes o Bom Samaritano, o violinista judeu
Rothschild, no c o n t de Tchekhov "O Violino de
Rothschild", o escravo negro fugitivo Jim, em Huckleberry Finn, de Mark Twain, e Sonya, a prostituta que
redime o imaginario "super-homem" nietzscheano Raskolnikov, em Crime e Castigo de Dostoievski.
Todos esses tipos msticos sao estruturalmente inferiores ou "marginis", nao obstante representen! o que
Henri Bergson chamaria de "moralidade aberta", opondo-se "moralidade fechada", sendo a ltima essencialmente o sistema normativo de g r u p o s limitados,
estruturados, particularistas. Bergson fala do modo como
um grupo fechado preserva sua identidade contra os
membros de grupos abertos, protege-se contra as ameaC.as ao seu modo de vida, e renova o desejo de manter
as normas de que depende o comportamento rotineiro
necessrio sua vida social. as sociedades fechadas
ou estruturadas, a pessoa marginal ou "inferior", ou
o "estranho" que freqentemente chega a simbolizar o
que David Hume chamou "o sentimento com relac.o
humanidade", o qual por sua vez se liga ao modelo
que denominamos "communitas".

135

OS MOV1MENTOS MILENARISTAS

Entre as mais extraordinarias manifestares da "communitas" encontram-se os movimentos religiosos, chamados milenaristas, que surgem na meio das massas
que Norman Cohn (1961) denominou "massas desarraigadas e desesperadas, na cidade e no campo... vivendo
a margem da sociedade" (p. 31-32) (isto , da sociedade estruturada), ou onde sociedades anteriormente
tribais sao postas sob o dominio estranho e absoluto
de sociedades complexas e industriis. Os atributos de
tais movimentos devem ser bastante conhecidos dos
leitores. Somente lembrarei aqui algumas das propriedades da liminaridade nos rituais tribais que mencionei
antes. Muitos desses corresponden! bem de perto aos
dos movimentos milenaristas: Jipmogeneidade, igualdade, anonmia, ausencia de propriedade (muitos movimentps__ realmente ordenam aos seus membros a destruicjp^ de qualquer propriedade que possuam, a fin
de_ tqrnarem mais prximos o advento do estado perfeito
de harmona e comunho que desejam, pois os direitos
djQpropriedade estao ligados a distingoes estruturais,
tanto verticais quanto horizntais); redugo de todos
ao mesmo nivel de "condi^o social"; uso de vestuario
uniforme (as vezes para ambos os sexos); continencia
sexual (ou a anttese desta, a comunidade sexual, pois
tanto a continencia quanto a comunidade sexual liquidam com o casamento e com a familia, que legitiman!
o estado da estrutura); redu9o ao mnimo das distinces de sexo (todos sao "iguais vista de Deus" ou
dos ancestrais); aboligo de categoras, humildade, descuido pela aparncia pessoal, altruismo, obediencia total
ao profeta ou lder, instru?ao sagrada; levar ao mximo
as atitudes e o cornportamento religioso, por oposic.o
ao secular; suspenso dos direitos e obrigac.5es de parentesco (todos sao irmos ou camaradas uns dos outros,
quaisquer que tenham sido os lagos mundanos anteriores) ; simplicidade de fala e de maneiras, loucura sagrada, aceitado da dor e do sof rmente (at o ponto,
de se submeter ao martirio), e assim por diante.
136

E' digno de nota que muitos desses movmentos permeiam, seccionando-as, as divises tribais e nacionais
durante o impulso inicial. A "communitas", ou "sociedade aberta", difere neste ponto da estrutura ou da
sociedade fechada, pelo fato de ser potencial ou idealmente extensiva aos limites da humanidade. Na prtica,
naturalmente, o mpeto logo se exaure, e o prprio
"movimento" se torna urna instituido entre outras instituicoes, freqentemente mais fantico e militante que
os restantes, por julgar-se o nico possuidor das verdades humanas universais. Muitas vezes, tais movimentos oco'rrem durante fases da historia que sob varios
aspectos sao "homologas" a perodos liminares de importantes rituais em sociedades estveis e rotineiras,
quando os mais importantes grupos ou categoras sociais
naquels sociedades estao passando de um estado cul- tural para outro. Sao essencialmente fenmenos de transi?ao. Talvez seja esta a razo pela qual em tantos
desses movimentos muito da mitologa e do simbolismo
que possuem tomado de emprstimo dos mitos e smbolos de tradicionais rites de passage, quer as culturas
em que se originam, quer as culturas com as quais estao
em contato dramtico.
OS "HIPPIES", A "COMMUNITAS"
E OS PODERES DOS FRACOS

Na moderna sociedade ocidental, os valores da "communitas" estao surpreendentemente presentes na litera tura e no cornportamento do fenmeno que veio a ser
conhecido como a "gera?o 'beat'", a que se sucederam
os "hippies", os quais, por sua vez, tm urna jovem
diviso conhecida como o "teeny-boppers". Sao os membros "audaciosos" das c a t e g o r a s de adolescentes e
jovens adultos que nao tm as vantagens dos rites
de passage nacionais que "optaram" fugir da ordem
social ligada ao "status" e adquirirn! os estigmas dos
mais humildes, vestindo-se como "vagabundos", ambu-

137

lantes m seus hbitos, "populares" no gosto musical e


subalternos em qualquer ocupago casual de que se incumbam. Valorizan! mais as relances pessoais do que as
obrigagoes sociais, e consideram a sexualidade instrumento polimrfico da "communitas" imediata, ao invs
de tom-la por base para um vnculo social estruturado
e duradouro. O poeta Alien Ginsberg , em particular,
eloqente sobre a fun?o da liberdade sexual. Tambm
as propriedades "sagradas", com freqncia atribuidas
"communitas", nao esto ausentes aqui. Comprova-se
isto pelo uso habitual de termos religiosos, como "santo"
e "anjo", para definir seus congneres, e pelo interesse
no zembudismo. A frmula zen "tudo um, um nada,
nada tudo" expressa bem o carter nao estruturado e
global primitivamente aplicado "communitas". A acentuac.o dada pelos "hippies" espontaneidade, ao imediatismo e "existencia" poe em relevo um dos sentidos
em que "communitas" contrasta com a estrutura. A
"communitas" pertence ao momento atual; a estrutura
' est enraigada no passado e se estende para o futuro
pela linguagem, a le e os costumes. Embora nosso
interesse se centralize aqui as sociedades pr-industriais tradicionais, torna-se claro que as dimenses coletivas, a "communitas" e a estrutura, devem encontrarse com todos os estadios e nveis da cultura e da
sociedade.

ou segmentariamente e como totalidade homognea. Em


muitas sociedades, feita a distincao terminolgica entre
parentes do lado materno e os do lado paterno, sendo
os ltimos vistos como pessoas de especie completamente diferente. E' o que acontece especialmente com
relaco ao irmo do pai e ao da me. Onde existe descendencia unilinear, a propriedade e a posico social
passam ou de pai para filho ou do irmo da .me
para o filho da irm. Em certas sociedades, ambas
as linhas de descendencia sao usadas para fins de
heranca. Mas mesmo neste caso os tipos de propriedade e posico social que passam em cada linha sao
muito diferentes.
Consideremos de inicio urna sociedade na qual existe
descendencia unilinear s o m e n t e na linha paterna. O
exemplo tirado mais urna vez do povo talensi, de
Gana, do qual temos grande quantidade de informafes. Nosso problema consiste em descubrir se, numa
discriminacjo binaria em um nivel estrutural do tipo
"superioridade estrutural-inferioridade estrutural", podemos encontrar algo que se aproxime do "poder do
fraco", no ritual, que, por sua vez, demonstra-se estar
relacionado com o modelo "communitas". Fortes (1949)
escreve:

Ha algumas outras manifestares desta distin9o encontradas as sociedades mais simples. Sero consideradas por mim nao como passagens entre estados, mas
antes como estados binarios opostos, que, sob certos
aspectos, expressam a distincao entre a sociedade considerada como estrutura de partes opostas hierrquica

"A linha dominante de descendencia confere os atributos


claramente significativos da personalidade social, o estado jurdico, os direitos de heranga e de sucesso quanto propriedade
e ao cargo a fidelidade poltica, privilegios obrigages rituais.
A linha subjacente [constituida por matrifiliaco; eu preferira
dizer o "lado subjacente" ja que o vnculo pessoal 'entre o
individuo e sua me, e atravs desta chega tanto aos parentes
patrilineares dla quanto aos seus cognatos] confere certas
caractersticas espirituais. Entre os talensis fcil observar-se
que isso um reflexo do fato de o elo da descendencia uterina
ser mantido como vnculo puramente pessoal. Nao favorece os
interesses comuns de especie material, jurdica ou ritual; une
os individuos apenas por lagos de " interesses e preocupafdes
mutuos, semelhantes aos que prevalecen! entre parentes colaterais prximos, em nossa cultura. Embora constitua um dos
fatores que contrabalangam a exclusividade da linha agnatcia,
nao cra grupos associados, em competigp com a linhagem

138

139

A ESTRUTURA E A "COMMUNITAS"
AS SOCIEDADES BASEADAS NO PARENTESCO

1. Os Talensis

"Isto , os ancestrais relacionados com ele derivam, por definigo, de urna linhagem matrilinear do adivinho, e a figura
dominante entre eles geralmente urna mulher, "urna me".
O bakologo... a autntica encarnago do aspecto vingativo
e invejoso dos ancestrais. Persegue o homem em cuja vida
intervm inexoravelmente, at que o homem afinal se submeta
e o "aceite, isto , se encarregue de montar um sacrrio para
os espritos [matrilaterais] bokologo em sua prpria casa, a
fim de poder oferecer-lhes sacrificios com regularidade. Todo
homem., e nao apenas aqueles que sofrenan infortunios excepcionais, levado pelo sistema religioso dos talensis a projetar
seus mais ntimos sentimentos de culpa e de inseguranga amplamente sobre a imagem da me, corporificada no complexo
bakologo. Em geral, tambm, um homem nao se sujeita, mediatamente, as exigencias dos ancestrais bakologo. Contemporiza, foge, resiste, as .vezes durante anos, at ,ser por fim foreado a submeter-se e a aceitar o bakologo. Nove de cada grup
de dez homens cima de quarenta anos tm sacrrios bakologo,
mas nem todo homem tem talento para ser adivinho, e por isso
a maioria dos homens simplesmente possuem sacrrio mas nao
o usam para a adivinhago" (p. 325 grifos sao meus).

Transcrevi mais tongamente o relato de Fortes, por


achar que demonstra claramente nao so a oposic.o e
a tenso entre os vnculos de parentesco matrilinear e
patrilinear, mas tambm a tenso produzida no psiquismo dos individuos, medida que alcangam a idade
madura, entre o modo estrutural e o comunitario de
considerar a sociedade talensi. Devemos lembrar-nos de
que o d o g m a da patrilinearidade, que Homans e
Schneider chamariam de linha de descendencia "rigorosa" atravs da qual sao transmitidos os direitos sobre
a propriedade e a posi?ao social, dominante e da
colorido aos valores dos talensis em muitos nveis da
sociedade e da cultura. Do ponto de vista e da perspectiva des pessoas ocupantes de posic.5es de autoridade
na estrutura patrilinear os vnculos sociais estabelecidos
atravs das mulheres, simbolizando a comunidade tale
mais ampia, onde secciona os estreitos lac.os grupais de
descendencia e localidade, parecem necessariamente ter
um aspecto destruidor. E' por isso que, segundo minha
opinio, (os talensis tm a "imagem da me" bakologo,
que "persegue" o homem maduro e "intervm" na vida
dele, at que a "aceite". Porque, medida que os homens
se desenvolvem e passam a influenciar uns aos outros
em crculos mais e mais ampios de relac.6es sociais,
tornam-se cada vez mais conscientes de que sua patrilinhagqm meramente parte da totalidade dos talensis.
Para eles, de maneira rigorosamente literal, a comunidade maior intervm, destruindo a auto-suficincia e a
relativa autonoma da linhagem setorial e dos assuntos
do ca. Os sentimentos globais, anualmente acentuados
nos grandes festivais de integrago, como o do Golib,
onde, conforme mencionei, se realiza urna especie de
casamento mstico entre representantes dos invasores
amos e dos tales autctones, tornam-se cada vez mais
significativos para os "homens cima dos quarenta
anos" que participam das festas como chefes de familia
e de sublinhagens, e nao mais como menores, sob a
autridade paterna. As normas e os valores "prve-

140

141

agnatcia e com o ca. Transportando apenas utn atributo


espiritual, o lago uterino nao pode enfraquecer a solidariedade
jurdica e poltico-ritual da linhagem patrilinear" (p. 32
os grifos sao meus).

Temos aqu a oposic.o patrilinear/matrilinear, que


tem func.oes de dominante/subjacente. O la?o patrilinear
relaciona-se com a propriedade, o cargo, a fidelidade
poltica, a exclusividade, podendo ainda dizer-se incluidos os interesses setoriais e particulares. E' o vnculo
"estrutural" por excelencia. O lago uterino refere-se as
caractersticas espirituais, i n t e r e s s e s e preocupages
mutuos, e colatpralidade. Contrap5e-se exclusividades
o que presumivelmente significa que contribu para a
inclusividade, e nao est a servido de interesses materiais. Em resumo, a matrilateralidade representa, na
dimenso do parentesco, a nogo d "communitas".
Um exemplo, tomado dos talensis, do carter "espiritual" e "comunitario" da matrilateralidade encontra-se
nos ritos de consagrado do chamado bakologo, ou do
sacrrio do adivinho. Por definigo, este sacrrio, quem
o diz Fortes (1949), "feminino":

nientes de fora" rompem o exclusivismo da lealdade


linhagem.
E' perfeitamente adequado que a "communitas" seja
aqu simbolizada pelos ancestrais matrilaterais, em especial pelas imagens da me, ja que nesta sociedade
patrilinear e virilical as mulheres penetram de fora nos
patrissegmentos da linhagem, e, como o demonstrou
Fortes, os paren tes matrilaterais, na maioria, habitam
fora do "campo do ca" de um homem. E' compreensvel
tambm que tais espirites ^sejam considerados "vingativos" e "invejosos": sao as "mes" (as instituidoras das
tetas, ou matrissegmentos) que introduzem divisoes na
unidade ideal da patrilinhagem. Resumindo, diremos que
em determinadas crises da vida, a adolescencia, a chegada da velhice e a morte, variando em significaso de
cultura para cultura, a passagem de urna condico estrutural para outra pode ser acompanhada por um forte
sentimento de "bondade humana", um sentido do laco
social genrico entre todos os membros da sociedade
em alguns casos transcendendo do mesmo as fronteiras tribais ou nacionais independentemente das
afiliaces subgrupais ou da ocupago de posices estruturais. Em casos extremos, como a aceitaco da vocaco para xam entre os saoras, da India Central (Elwin,
1955), isto pode dar em resultado a transformagao do
que essencialmente urna fase liminar ou extra-estrutural em urna condi?o permanente de "estrangeirice"
sagrada. O xam, ou profeta, assume urna condigo
sem "status", exterior estrutura social secular, que
Ihe da o direito de criticar todas as pessoas ligadas
estrutura segundo urna ordem moral que envolve a
todos, e tambm de servir de intermediario entre todos
os segmentos ou componentes do sistema estruturdo.
as sociedades em que o parentesco constitu o que
Fortes chama um "principio irredutvel" de organizado
social "e onde a patrilinearidade a base da estrutura
social, a ligago de um individuo aos outros membros
da sociedade atravs da me e, conseqentemente, por
extenso e abstracao, atravs das "mulheres" e da "fe-

minilidade", t e n d e a simbolizar a comunidade mas


ampia e seu sistema tico, que abrange e invade o
sistema poltico-legal. Pode-se mostrar a existencia de
fascinantes correlagoes em varias sociedades entre esta
converso perspectiva da "communitas" e a afirmago
da individualidade por oposico ao desempenho de urna
posico social. Por exemplo, Fortes (1949) demonstronos as funces individualizantes do vnculo entre o filho
da irma e o irmo da me entre os talerisis. Isto, diz
ele, " urna importante brecha na cerca genealgica que
circunda a linhagem agnatcia; urna das aberturas
mais importantes para as relaces sociais de um individuo com os membros de outros cas que nao o seu"
(p. 31). Pela matrilateralidade, o individuo, em seu
carter integral, fica emancipado dos encargos da posico segmentar, determinados pela patrilinhagem, entrando na vida mais ampia de urna comunidade que se
estende alm dos talensis, propriamente ditos, alcan9ando grupos tribais de cultura religiosa semelhante.
Vejamos agora um exemplo concreto do modo pelo
qual a consagraco de um sacrrio bakologo torna visvel e explcita a comunidade talensi mais ampia, atravs
dos lagos matrilaterais. Todos os rituais tm esse carter exemplar, modelar. Em certo sentido, pode dizerse que "criam" a sociedade, mais ou menos da mesma
maneira pela qual Osear Wilde considerou a vida
"urna imitaco da, arte". No caso citado (Fortes, 1949),
um homem chamado Nabdiya "aceitou" como seus
ancestrais bakologo o pai de sua me, a me do pai
de sua me, e a me da me do pai de sua me. Foram
os membros do ca destes ltimos que vieram instalar
o sacrrio para o seu "neto por classificaco, Nabdiya.
Mas para chegar a eles, Nabdiya primeiramente teve
de ir ao povo do irmo de sua me; este o escoltou
at a linhagem do irmo da me de sua me, vinte quilmetros distante do seu prprio povoado. Em cada
localidade, ele devia sacrificar urna galinha e urna gaUnha-d'angola isto , urna ave domesticada e urna
nao-domesticada ao "bogar" da linhagem, ou ao
sacrrio do ancestral fundador.

142

143

ilnhgem do ancestral dominante, ou mais freqentemente urna ancestral do complexo bakologo, quase
sempre urna ancestral matrilateral, tem a responsabilidade de instalar o sacrrio para a pessoa aflita. O
chefe da linhagem sacrifica as duas aves trazidas pelo
paciente no sacrrio de sua linhagem, explicando aos
ancestrais a natureza da ocasio que trouxe o filho de
sua irm ou neto matrilateral a fazer-lhes splicas.
Pede-lhes que abenc.oem o estabelecimento de um novo
sacrrio, que ajudem o candidato a tornar-se um adivinho bem sucedido, e que Ihe conc^dam prosperidade,
filhos e sade isto , as coisas boas em geral. Em
seguida, a p a n h a alguns sedimentos que f icaram no
fundo do pote, que o mais importante componente
de um sacrrio bogar, e coloca-os num pequenino pote
que o candidato deve levar para casa e acrescent-lo
ao seu novo sacrrio. "Deste modo", diz Fortes, a "continuidade direta do novo .sacrrio bakologo com o bogar
da linhagem matrilateral fica tangivelmente simbolizada"
(p. 326).
Assim, dois sacrrios separados por mais de trinta
quilmetros e p r e c i s o lembrar que a prpria
Talelndia "quase nao tem trinta quilmetros de extensao" e diversos outros sacrrios intermediarios sao
direta e "tangivelmente" ligados pelos ritos. O fato de
ser quase impossvel o contato fsico continuo' entre as
linhagens em questo, nao ideolgicamente importante
no caso, porque os sacrrios bakologo sao smbolos e
expresoes da comunidade tale. "Nove entre dez" dos
homens maduros tem urna quantidade de ancestrais
bakologo cada um. Todos esses homens esto ritualmente interligados atravs deles a urna pluralidade de povoados, inversamente, cada bogar- de l i n h a g e m tem
ligado a si um certo nmero de sacrrios bakologo, mediante conexes sororais ou de irms. Tais encadeamentos, nos seus conjuntos e secc.oes transversas, sa
mais do que vnculos meramente pessoais ou espirituais!
representan! os lac.os da "communitas" opondo-se s
divisoes da estrutura. Sao, alm de tudo, vnculos cria144

dos partir do lado "subjacente" do parentesco, o lado


jurdicamente mais fraco ou inferior. Mais urna vez
pudetnos manifestar a ntima conexo existente entre
"communitas" e os poderes dos fracos.
2. Os Neres
E' a tensa oposito permanente entre "communitas" e
estrutura que, para mim, est situada por detrs dos
aspectos sagrados e "afetivos" da relago irmo da
me/filho da irm, em muitas sociedades patrilineares.
Nessas sociedades, como n u m e r o s o s estudiosos do
assunto o demonstraran!, o irmo da me, que tem
fraca autoridade jurdica sobre o sobrinho, pode ter
contudo um estreito vnculo pessoal de amizade com
ele, pode dar-lhe refugio contra a rispidez paterna, e
muito freqentemente tem poderes msticos de aben^olo e amaldic.o-lo. Neste caso a fraca autoridade legal
no mbito de ,um grupo unido sofre a oposic.ao de
fortes influencias pessoais e msticas.
Entre os neres do Sudo o papel de "sacerdote de
pele de leopardo" une, de maneira bastante interessante,
o valor simblico do irmo da me na sociedade patrilinear com alguns dos qutros atributos de figuras liminares, marginis e politicamente iracas, que ja examinamos. Segundo Evans-Pritchard (1956) "em certos
mitos das tribos jikany [dos neres] a pele do leopardo
[insignia da fungo sacerdotal] foi concedida pelos ancestrais das linhagens [agnatcias], dominantes [territorialfflente], a seus tos maternos, a fim de que estes
pudessem desempenhar o papel de sacerdotes tribais.
As linhagens do ca, estruturalmente opostas, estavam
ento na relago comum dos filhos das irms com a
linha dos sacerdotes, que deste modo possua urna
posic.o mediadora entre elas" (p. 293 os grifos sao
meus). Tanto quanto absolutos irmos da me para os
setores polticos, os sacerdotes com pele de leopardo
acham-se "na categora de ral, estrangeiros, e nao na
145

de diet, membrs do ca que possuem os territorios


tribais... Nao possuem territorios tribais prprios, mas
vivem formando familias e p e q u e a s linhagens, na
maioria dos territorios possudos por outros cas, ou
em quase todos. Sao como membrs da tribo de Levi,
divididas na de Jaco e dispersos em Israel" (p. 292).
(Algo desse carter sacerdotal se encontra as linhagens
dispersas dos circuncisadores e dos fazedores de chuva
entre os gisus, de Uganda.) Os sacerdotes neres revestidos de pele de leopardo tm "urna rela?o mstica...
com a trra, em virtude da qual se julga que suas maldi?5es possuem urna potencia especial, pois... pode
afetar nao so as colheitas de um homem, mas o seu
bem-estar em geral, ja que todas as atividades humanas
se realizem na trra" (p. 291). O principal papel do sacerdote est em conexo com o homicidio, pois da abrigo
ao assassino, negocia um acord, realiza sacrificios para
que as relances sociais sejam retomadas e reabilita o
assassino. Esse tipo generalizado de irmo da me possui assim muitos dos atributos de "communitas" com os
quais nos estamos familiarizando: ele um estrangeiro,
um mediador, age em favor da comunidade inteira, tem
urna relac.ao mstica com a totalidade da trra em que
habita, representa a paz contra a discordia e nao est
vinculado em nenhum segmento poltico especfico.

3. Os Ashantis
Para que nao se julgue que a estrutura est umversalmente associada patrilinearidade e masculinidade,
e que a "communitas" est associada matrilateralidade
e feminilidade as sociedades articuladas segundo o
principio da descendencia unilinear, vale a pena examinar-se brevemente urna sociedade matrilinear bastante
conhecida, a dos ashantis, de Gana. Os ashantis pertencem a um grupo de sociedades da frica Ocidental,
que possuem sistemas polticos e religiosos muito desenvolvidos. Todava, o parentesco unilinear ainda tem
<.
146

Iconsidervel importancia estrutural. A matrilinhagem


localizada, estabelecendo a descendencia a partir de urna
ancestral comum conhecida, durante um perodo de dez
|a doze gerafoes, a unidade fundamental para as finallidades polticas, rituais e legis. Fortes (1950) descre|veu assim o carter segmentar da linhagem: "cada
I segmento definido em rela9o aos outros da mesma
lordem pela referencia a ancestrais (femininas) comuns
|e discriminadoras" (p. 255). A sucesso nos cargos e a
|heran9a da propriedade sao matrilineares, e os bairros
Idas divises das aldeias dos ashantis sao, cada um
deles, habitados por urna matrilinhagem central, envollyida por urna franja de cognatos e de afins.
O nome para designar a matrilinhagem abusua, que,
tsegundo Rattray (1923), "sinnimo de mogya, sangue"
(p. 35), como se verifica no proverbio abusua bako
mogya bako, "um ca, um sangue". Discute-se as vezes
se o parentesco ashanti nao deveria ser classificado
como um sistema de "dupla descendencia". Este ponto
de vista deriva das referencias de Rattray (1923, p. 4546) a um modo de categorizaco social conhecido pelos
ashantis como ntoro (literalmente "semen"), que aquele
lautor considerava urna diviso exgama, baseada na
jjtransmisso pelos homens, exclusivamente. Fortes (1950,
Jp. 266) pos em relevo a significaco mnima desse
lelemente patrilinear para o sistema de parentesco e
Ipara a ordem poltico-legal. Refere-se ao ntoro como
"divises especificadas semi-rituais", porm estas nao sao
|nem exgamas nem g r u p o s organizados, em qualquer
| sentido. Entretanto, do ponto de vista do presente arftigo, as divises ntoro sao da maior importancia. Urna
f das razes para o olvido da dimenso da "communitas"
| na sociedade, com suas profundas implicacoes para a
fcotnpreenso de muitos fenmenos e processos rituais
ticos, estticos e, na verdade, polticos e legis, tem
Pido a propenso a igualar o "social" com o "scio|estrutural". Sigamos, ent, o indici do ntoro em muis rcantos obscuros da cultura ashanti.

147

Em primeiro lugar, o vnculo pai-filho, base da diviso ntoro, o vnculo estruturalment inferior. No
entanto, os smbolos com os qais se associa delineiam
um quadro de enorme valor para compreenso da
"communitas". De a c o r d com Rattray (1923) os
ashantis acreditam que o "ntoro ou o semen, transmitido pelo homem, misturado ao sangue [um smbolo
de matrilinhagem] na mulher, que explica os misterios
fisiolgicos da concepco... ntoro... . . . empregado
as vezes como sinnimo de sunsum, o elemento espiritual, no homem ou na mulher, do qual depende... a
for?a, o magnetismo pessol, o carter, personalidade,
poder, alma, chamem-no como quiserem, de que dependem a sade, a riqueza, o poder da palavra, o sucesso em qualquer empreendimento, enfim, tudo aquilo
que faz valer a pena viver" (p. 46). Mais urna vez,
' deparamo-nos com as particulares correlces entre personalidade e valores universais, de um lado, e "espirito"
ou "alma", de outro, que parecem ser os sinais caractersticos da "communitas".
Rattray (1923) enumerou .nove divises ntoro, embora
afirme poder haver mais. Essas divises, naturalmente,
permeiam o conjunto dos membros das matrilinhagens
segmentares abusaa. Um dos ntoro considerado tradicionalmente, como "o primeiro ntoro ja outorgado aos
homens, o ntoro Bosommuru" (p. 48). O mito correlacionado_ com o estabelecimento dele, segundo o modo
de ver de Rattray, esclarece o modo de pensar dos
ashantis sobre o ntoro em geral:
i

ventres, com as palavras kus kus (usadas na maioria das cerirtinias em conexo com ntoro e Onyame), e ento ordenouIhes que voltassem para casa e se deitassem juntos.
As mulheres conceberam e deram luz as primeiras enancas
no mundo, qu tomaram o Bosommuru como seu ntoro, passando cada homem adiante este ntoro a seus filhos.
Se um homem ntoro Bosommuru, ou mulher, v urna serpente morta (nunca matam urna serpente) espalha argila branca
sobre ela e a enterra (p. 48-49).

Ha muito tempo atrs, um homem e urna mulher descerarn


do cu, e urna mulher subiu da trra.
Do Deus do Cu (Onyame), tambm veio urna serpente
(onini), que fez sua casa no rio chamado Bosammuru.
No principio, esses homens e essas mulheres nao tiverafli
filhos, nao sentiam desejo, e a concepco e o nascimento nao
eram conhecidos naquele tempo.
Um dia, a serpente perguntou-lhes se nao tinham filhos, e
sendo-lhe dito que nao, ela disse que faria com que a mulher
pudsse coriceber. Mandou que os casis se defrontassem, &~
pois mergulhou no ri e, a emergir, borrifbu-lhes de agua s

Esse mito simblicamente relaciona o ntoro, ao mesmo tempo semen e divisao social, com o Deus do Cu
(que tambm m deus da chuva e da agua) com a
agua, um rio e a fecundado das mulheres. Outras divises '
ntoro como o Bosomtwe, grande lago na parte central
dos ashantis, e o Bosompra, rio que nasce.no territorio
dos ashantis, associam-se com corpos de agua. Os principis deuses ashantis sao divindades masculinas, filhos
de Onyame, o supremo Deus masculino. Alm disso,
todos se relacionam com a agua, o smbolo dominante
da fecundidade, e, por extensao, de todas as coisas boas
que os ashantis possuem em comum, independentemente
das filiales subgrupais. Rattray (1923) cita os ashantis,
que dizem: "Onyame decidiu mandar os seus prprios
filhos trra, a fim de que pudessem receber beneficios
da humanidade e tambm conferi-ls a ela. Todos esses
filhos traziarh os nmes do que sao agora rios e lagos...
ou todo outro rio ou agua d alguma importancia. Os
tributarios desses sao tambm seus filhos" (p. 145146). Acrescenta.: "O que foi dito at aqui suficiente para demonstrar que as aguas para os ashantis...
so consideradas possuidoras do poder ou do espirito
do diyino Criador, sendo poftanto urna grande for?a
doadora de vida. Assim como urna mulher, da nascimento
a urna crianca, do mesmo modo possa a agua fazer
nascer um deus, diss-me certa vez um sacerdote"
(p. 146).
Outros lquidos corpreos ligam-se simblicamente
com "o elemenfo ntoro no homem", diz Rattray (1923,
P. 54), por exemplo, a saliva; e a agua borrifada pela
boca do rei ashanti durante os ritos relativos ao rio

148

149

Bosommuru, acompanhados pelas seguintes palavras:


"Vida para mim, e que esta naco prospere". O simbolismo branco no mito Bosommuru reaparece em muitos contextos rituais, onde os deuses aquticos sao
venerados, enquanto os sacerdotes do supremo Deus e
de outras divindades regularmente usam vestimentas
brancas. Ja examinei o simbolismo branco e suas conotacCes de semen, saliva, sade, vigor e bom augurio
em muitas sociedades africanas e outras, em varios trabalhos publicados (Turner, 1961; 1962; 1967). O simbolismo branco dos ashantis nao difere, em sua semntica, do simbolismo branco dos ndembos.
Facamos o resumo de nossas descobertas sobre os
ashantis at agora. Parecera haver um nexo entre a
ligaco pai-filho, ntoro (como semen, espirito e diviso
social com um conjunto de membros grandemente dispersos), a masculinidade (representada pela imagem do
pai, Onyame, seus filhos e a serpente mtica, smbolo
masculino, a saliva, a agua, a bngo com a agua borrifada, os lagos, os rios, o mar, o simbolismo branco e
o sacerdocio. Alem disso, os chefes, especialmente o re,
esto claramente associados, no Adae e em outras cerimonias, com o Deus do Cu e com os rios, especialmente o Tao, conforme sugerem as mensagens do
tambor de comunicaco tocado nos ritos Adae (Rattray,
1923, p. 101). [O principio feminin e o abusua esto
relacionados, como vimos, com o sangue e, por meio
deste, a urna rica variedade de smbolos vermelhos. Em
quase toda parte o sangue e o vermelho tm significados
ao mesmo tempo auspiciosos e inauspiciosos. Para os
ashantis, o vermelho est associado a guerra (Rattray>
1927, p. 134), feiticaria (p. 29, 30, 32, 34), aos espritos vingadores das vtimas (p. 22), e aos funerais
(p. 150). Em alguns casos, ha direta oposifo entre
o simbolismo branco (masculino) e o simbolismo vermelho (feminin). Por exemplo, deus do rio Tao
ou Ta kora, segundo Rattray (1923) "parece ser particularmente indiferente, e at hostil, as mulheres. Sao
criaturas ingratas (bonniye), declara ele. Nenhurna

?tmilher tem permisso para tocar no seu santuario e


tno tem akomfo (sacerdotes) do sexo feminin. As
'tnulheres na poca da menstruaco sao um de seus
!
tabus" (p. 183). Deve ser lembrado que o rio Tao
desempenha importante papel nos ritos Adae do asanttehene, supremo chefe da naco. A feit9aria e o simibolismo vermelho do ritual funerario tm relaco com a
|qualidade de membros do abusua, ja que sao os prenles matrilineares que se acusam uns aos outros de feiti|caria, sendo muitas mortes atribuidas feiticaria. Existe
|utro significado sinistro escondido aqui na no?o do
vnculo do sangue. O simbolismo vermelho liga-se tamfbm ao culto da trra, Asase Ya, julgada "divindade
Ifeminina" (Rattray, 1929). De acord com Rattray, "ela
nao tornou tab a menstruacao (kyiri bara); ela gosta
|de sangue humano" (p. 342).
Poderia fazer numeras cita?5es retiradas dos magInficos e minuciosos dados de Rattray (1927) sobre o
simbolismo vermelho, com a finalidade de demonstrar a
Irela9b que os ashantis estabelecem entre feminilidade,
tmorte, assassinato, feiticaria, mau agouro, polufo mensJtrual e o sacrificio de homens e animis. Por exemplo,
los ashantis possuem um "vermelho" suman, ou "fetiche",
Ique "tem a natureza de m bode expiatorio, ou algo
que toma sobre si os males e pecados do mundo" (p.
13). E' embebido em tinta esono vermelha (feita de
asea pulverizada da rvore adwino, provavelmente urna
especie de Pterocarpus), que "um substituto do sangue
humano", utilizado no culto da trra. O esono tambm
|representa sangue menstrual. Esse fetiche, chamado
kunkuma, ainda "colorido com sangue coagulado de
carneiros e de aves que foram sacrificados sobre ele",
nele se "esconde um pedaco de fibra (baa) que
enha sido usada por urna mulher na menstruaco" (p.
13). Vejamos aqui o sangue sacrifical e a menstruaco
Postos em relaco com rupturas das ordens natural e
cial "males e pecados". Um exemplo final, talvez
mais interessante de todos, ser suficiente. Urna vez
Por ano ha urna violaco ritual do sacrrio ntoro origi-

150

51

Chegou o momento de fazermos o cuidadoso exame de


urna hiptese que procura explicar os atributos de fenmenos aparentemente diversos, tais como os nefitos
na fase liminar do ritual, os autctones subjugados, as
nagoes pequeas, os bufes da corte, os mendigo8
santos, os bons samaritanos, os movimentos quilisticos,
os "vagabundos darma", a matrilateralidade nos sistemas patrilineares, a patrilateralidade nos sistemas matrilineares e as ordens monsticas. Trata-se sem dvida
de um feixe de fenmenos sociais que nao combina111
bem! No. entanto, todos tm a seguinte caracterstic3
comum: sao pessoas ou principios que (1) se sitan1
nos intersticios da estrutura social, (2) esto

dla, ou (3) ocupam os degraus mais baixos. Isto lvanos de volta ao problema da definifo da estrutura
social. Urna fonte autorizada de defini?o A Dictionary
of the Social Sciences (Gould e Kolb, 1964) no qual
A. W. Eister examina algumas das principis formulaf6es dessa concepto. Spencer e muitos socilogos modernos consideram a estrutura social como "a combinafo mais ou menos distintiva (da qual pode haver mais
de um tipo) de instiiuices especializadas e mutuamente
dependentes [a acentua9o de Eister] e as organizafes institucionais de posi^es e de atores que implicam,
todas originadas no curso natural dos acontecimentos,
medida que os grupos de seres humanos com determinadas necessidades e capacidades atuaram uns sobre
os outros (em varios tipos ou modos de interac.o) e
procuraram enfrentar o meio ambiente" (p. 668-669).
concepto de Raymond Firth (1951), mais analtica,
exprime-se da seguinte maneira: "Nos tipos de sociedades comumente estudadas pelos antroplogos, a estrutura social pode incluir relac.es crticas ou fundamentis
provenientes de modo semelhante de um sistema de
classes bascado as relac.5es com o solo. Outros aspectos da estrutura social surgem mediante a participaco
em outros tipos de grupos persistentes, os cas, castas,
grupos etrios ou sociedades secretas. Outras relac.5es
bsicas devem-se tambm pos9o no sistema de parentesco" (p. 32).
A maioria das definieres contm a 'nocao de urna
cornbinac.o de posi?5es ou de situafes sociais. Muitas
implicam a institucionalizagao e a persistencia de grupos
e de rela?5es. A mecnica clssica, a morfologa e a
fisiologa dos animis e das plantas, e, mais recentemente, com Lvi-Strauss, a lingstica estrutural, foram
exploradas pelos dentistas sociais procura de conceitos, modelos e formas homologas. Todos tm, em comum, a no9o de urna combinado superorgnica de
Partes ou de posi?5es, a qual persiste, com modificac.5es
r^ais ou menos gradativas, atravs do tempo. O conceito de "confuto" passou a relacionar-se com o conceito

152

153

nal, o ntoro Bosommuru anteriormente mencionado. Este


ntoro freqentemente o do prprio Asantehene. N0
da dos ritos "o rei lambuzado com a tinta esono
vermelha" (p. 136). Oeste modo, a brancura do ntoro
e do rio Bosommuru violada. Quando, mais tarde, 0
santuario purificado, a agua de determinado nmero
de rios sagrados misturada argila branca em urna
tigela, sendo o sacrrio borrifado com ela.
Em muitas sociedades patrilineares, especialmente as
que cultivam a vendeta, a descendencia atravs dos
homens que se associa ao simbolismo ambivalente do
sangue. Mas, entre os ashantis, onde a matrilinhagem
o principio organizador dominante, o vnculo de descendencia de homem para homem considerado quase
inteiramente auspicioso e correlacionado com o Deus do
Cu e com os grandes deuses dos rios, que decidem
sobre a fertilidade, a sade, o vigor e todos os valores
da vida compartilhados por todos. Mais urna vez, encontrarnos os seres estruturalmente inferiores considerados moral e ritualmente superiores, e a fraqueza mundana, como poder sagrado.
A LIMINARIDADE, A BAIXA CONDICAO
SOCIAL, E A "COMMUNITAS"

de "estrutura social", desde que a diferenciaco das p ar j


tes se torna oposico entre as partes, e a situa^o ins
ficiente se torna objeto de lutas entre pessoas e grup0si
que pretendem alguma cois.
A outra dimenso de "sociedade" pela qual me n,
teressei menos fcil de definir. O. A. Hillery (1955)
examinou noventa e quatro definicoes do termo "comu,
nidade" e chegou a concluso de que "alm do conceito
de que as pessoas esto incluidas na comunidade, nao
ha completo acord quanto natureza da comunidade"
(p. 119). O campo parecera, pois, estar anda aberto
a novas tentativas! Procurei fugir noco de que a
"communitas" tem urna localizaco territorial especfica,
geralmente de carter limitado, que permeia multas defini^oes. Para mim, a "communitas" surge onde nao
existe estrutura social. Talvez o melhor modo de traduzir em palavrs este difcil conceito seja o de Martin
Buber, embora julgue que ele deveria ser considerado
mais um talentoso informante nativo do que um cientista
sociall Buber (1961) usa t termo "comunidade" para
designar "communitas": "A comunidade consiste em urna
multidao de pessoas que nao esto mais lado a lado (e,
acrescente-se, cima e abaixo), mas urnas com as outras.
E esta multidao, embora se movimente na dirego de um
objetivo, experimenta no entanto por toda parte urna
virada para os outros, o enfrentamento dinmico com os
outros, urna fluencia do Eu para o Tu. A comunidade
existe onde a comunidade acontece" (p. 51).
Buber_chama_a_atenco para a^ajureza espontnea,
*
Contudo, a "communitas" so
torna evidente ou acessvel, por assim dizer, por sua
justaposico a aspectos da estrutura social ou pela h1'
bridizafo com estes. A s s i m como na psicologa da
Qestalt a figura e o fundo sao mutuamente determinan'
tes ou como certos elementos raros nunca sao encontra'
dos na natureza em estado de pureza mas apenas
quanto componentes de compostos qumicos, do

modo a "communitas" nicamente pode ser apreendida


por alguma de suas relacoes com a estrutura. Se o comIponente constituido p e l a "communitas" impreciso,
difcil de fixar, isto nao quer dizer que seja sem imIportncia. Aqu a historia da roda do carro de Lao-ts
[pode vir a propsito. Os raios da roda e o cubo (isto
|, o bloco central da roda que segura o eixo e os raios)
|ao qual esto presos nao teriam utilidade se nao fosse
buraco, a abertura, o vazio do centro. A "communitas",
com seu carter nao estruturado, representando o "nIgulo" do correlacinamelo humano, aquilo que Buber
Ichamou das Zwischenmenschliche, pode bem ser reprefsentada pelo "vazio do centro", que entretanto indisIpensvel ao funcionamento da estrutura da roda.
Nao por acaso nem por falta de preciso cientfica
Ique, juntamente com outros que estudaram o conceito
Ide "communitas", sinto-me forcado a recorrer met|fora e analoga.. Porque a "communitas" tem urna
qualjdade existencia!, abrange a totalidade do homem,,
em sua relaco com outros homens inteiros. A estrutura,
|por seu lado, tem q u a 1 i d a d e cognoscitiva conforme
observou Lvi-Strauss, a estrutura consiste essencialmen,te num conjunto de classificaces, num modelo para
Ipensar a respeito da cultura e da natureza, e para brSdenar a vida pblica de algum. A "communitas" tem
ftambm' um aspecto de potencialidade; est freqenteIniente no modo subjuntivo. As relacoes entre os seres
Jtotais sao geradoras de smbolos de metforas, de comiparacoes. A arte e a religio sao produtos dlas, mais
|do que estruturas legis e polticas. Bergson viu as
palavrs e nos escritos dos profetas e dos grandes arpistas a cria?o de ma "moral aberta", expresso ela
3
rpria do que chamou lan vital ou "for?a vital" evoPtiva. Os profetas e os artistas tendem a ser pessoas
minares ou marginis, "fronteiri^os" que se esfor?am
c
orn veemente sinceridade por libertar-se dos clichs
ligados as incumbencias da posi?o social e represeno de papis,,^ e entrar em relacoes vitis com os
Putros homens, de fato ou na imaginafo. Em suas pro-

154

155

dugoes podemos vislumbrar por momentos o extraordi


nrio potencial evolutivo do gnero humano, anda nao
exteriorizado e fixado na estrutura.
A "communitas" irrompe nos intersticios da estrutura,
na liminaridade; as bordas da estrutura, na marginalidade; e por baixo da estrutura, na inferioridade. Em
quase toda parte a "communitas" considerada sagrada
ou "santificada", possivelmente p o r q u e transgride ou
anula as normas que governam as relances estruturadas
e institucionalizadas, sendo companhada por experiencia
de um podero seni precedentes. Os processos de "nivelamento" e de "despojamento" para os quais Goffman
chamou nossa atengo, freqentemente parecem inundar
de sentimento os que esto sujeitos a eles. Esses processos libertam seguramente energas instintivas, porm
estou agora inclinado a pensar que a "communitas" nao
apenas produto de impulsos biolgicamente herdados,
liberados das coages culturis. Sao antes produtos de
faculdades peculiarmente humanas, incluindo a racionalidade, a voligo e a memoria, desenvolvidas pela experiencia da vida em sociedade, do mesmo modo como,
entre os talensis, sao so os homens maduros que sofrem
as experiencias que os induzem a receber os sacrrios
bokologo.
A nogao de haver um vnculo genrico entre os homens, e o correlato sentimento de "bondade humana",
nao sao epifenmenos de certa especie de instinto gregario, mas produtos de "homens inteiramente dedicados
em sua totalidade".^A liminaridadei--a--mar.Efinalidade
_ _ _
ente^^se^, geram os mjtos,=smbolos~,r,ituais, sistemas,
porcionam , aQs^ho.mens^um conjunto de padres ou
modelos que constituem, em determinado nivel, jgcl
sif icagoes peridicas da reaHdade^e 4jo_jreladonameii^
doHomem com a socieda(e,"~a natureza~e~lTcifltura. Todava, sao mais que classificages, visto incitarem s
homens ago, tanto quanto ao pensamento. Cada um a
dessas produces tem carter multvoco, possui varia5

significagoes, sendo capaz de mover os homens simultneamente em muitos nveis psicobiolgicos.


Existe, aqu, uma dialtica, pois a imediatidade da
"communitas" abre caminho para a mediagao da estrutura, enquanto nos rifes de passage os homens sao libertados_da estrutura e entram na "communitas" apenas
para retornar estrutura, revitalizdos pela experiencia
"da "communitas". Certo que nenhuma sociedade pode
funcionar adequadamente sem esta dialtica. O exagero
da estrutura pode levar a manifestares patolgicas da
"communitas", fora da "lei" ou contra ela. O exagero
[da "communitas", em alguns movimentos polticos ou
| religiosos do tipo nivelador, pode rpidamente ser seguido pelo despotismo, o excesso de burocratizago ou
outros modos de enrijecimento estrutural. Pois, tal como
os nefitos, na frica, na cabana da circunciso ou os
monges beneditinos, os membros de movimentos milenaristas, aqueles que vivem em comunidade parecem
exigir, mais cedo ou mais tarde, uma autoridade absoluta, seja sob a forma de um mandamento religioso, de
um lder inspirado pela divindade ou de um ditador. A
"communitas" nao pode ficar solada, se as necessidades
materiais e de organizagao dos seres humanos tm de
ser adequadamente satisfcitas. A maxjmizago da "communitas" provoca a maximizago da estrutura, a qual
por sua vez produz esforc.cs revolucionarios pela renovagao da "communitas". A historia de toda grande sociedade fornece provas dessa oscilacjo no nivel poltico.
O prximo captulo trata de dois importantes exemplos.
Ja fiz mengao da ntima conexo existente entre estrutura e propriedade, quer esta seja possuda, herdada
ou administrada de maneira privada ou coletiva. Assim,
muitos movimentos milenaristas procuram abolir a proPriedade ou possuir todas as coisas em comum. Geralmente isto so possvel por um pequeo perodo de
tempo at a data fixada para o advento do milenio ou
s cargas ancestrais. Quando a profeca falha, a proPriedade e a estrutura retornan! e o movimento se torna
institucionalizado ou se desintegra, dissolvendo-se setis

156

157

rnembros na ordem estruturada circunstante. Suspeito que


Lewis Henry Morgan (1877) terina desejado ardntemente o advento da "communitas" para o mundo inteiro.
Por exemplo, nos ltimos e sonoros pargrafos de
Ancient Society diz o seguinte: "Um modo de vida bascado meramente na propriedade nao o destino final
da humanidade, se o progresso tem de ser a lei do fu,
turo como foi a do passado... a dissoluc.o da sociedade
promete vir a ser o trmino de um modo de vida do qual
a propriedade o fim e o objetivo; porque essa existencia contm os elementos de sua prpria destruico.
A democracia no governo, a fraternidade na sociedade,
a igualdade de direitos e privilegios e a educaco universal pressagiam o prximo plano mais elevado da
sociedade, para o qual tendem continuamente a experiencia, a inteligencia e o conhecimento" (p. 552).
Que significa este "plano mais elevado"? Neste ponto
Morgan aparentemente sucumbe ao erro cometido por
: pensadores como Rousseau e Marx: a confusao entre
"communitas", que urna dimenso de todas as sociedades passadas e presentes e a sociedade .arcaica ou
primitiva. "Ser o renascimento", continua ele, "numa
forma superior, da liberdade, igualdade e fraternidade
das antigs gentes". No entanto, como a maioria dos
antroplogos confirmara agora, as normas consuetudinarias e as diferencas de "situaco" e de prestigio as
sociedades pr-letradas so permitem pequeo alcance
para a liberdade e a escolha individuis. individualista freqentemente considerado um feiticeiro. So permitem pequea extens para a verdadeira igualdade
entre homens e mulheres, por exemplo, entre velhos e
mogos, entre chefes e subordinados, nquanto a fraternidade muitas vezes sucumbe a urna aguda distin?
de situaces sociais entre irmos mais velhos e nias
mocos. O fato de pertencerem a segmentos rivais de
sociedades tais como a> dos talensis, neres e Uves n
permite nem mesmo a fraternidade tribal. A condico
de membro de um grupo submete o individuo estrutura e aos conflitos inseparveis da diferenciasao estrU'

158

tural. Contudo, m e s m o as sociedades mais simples


existe a distinco entre estrutura e "communitas", encontrando expresso simblica nos atributos culturis de
liminaridade, marginalidade e inferioridade. Em diferentes sociedades, e em perodos diferentes em cada sociedade, um ou outro desses "antagonistas imortais" (fazendo uso de termos que Freud empregou em sentido
diverso) assume a supremaca. Mas, juntos, constitueni
a "condico humana", no que diz respeito as relacoes
do homem com seus semelhantes.

159

A "Communitas"
Modelo e Processo
MODALIDADES DA "COMMUNITAS"

ESTE CAPTULO RESULTA MUITO NATURALMENTE DE UM


seminario realizado na Universidade de Cornell com um
grupo interdisciplinar de estudantes e do corpo docente,
sobre varios pontos daquilo que se pode chamar aspectos meta-estruturais das relaces sociais. Fui educado
na tradicao social:estruturalista ortodoxa da antropologa britnica, a qual para expressar um raciocinio
complexo com crua simplicidade considera urna "sociedade" como um sistema de posic,5es sociais. Tal sistema pode ter urna estrutura segmentaria ou hierrquica,
ou ambas. O que desejo acentuar aqui que as unidades
da estrutura social sao retacees existentes entre "posi5es", fun^es e cargos. (Naturalmente nao estou empregando, neste caso, o termo "estrutura" no sentido
preconizado por Lvi-Strauss.) A utilizado de modelos
scio-estruturais tem sido extremamente til para trazer
clareza a muitas reas obscuras da cultura e da: sociedade, mas, conforme acontece com outras principis maneras de compreender, o ponto de vista estrutural tefflse transformado, com o correr do tempo, num grilho e
num fetiche. As experiencias de campo e as leitura5
gerais sobre artes e humanidades levaram-me convic?o de que o "social" nao se identifica com o "socio'
estrutural". Existem o u t r a s modalidades de rela8eS
sociais.
160

Alm do estrutural encontra-se nao apenas o conceito


de Hobbes de "guerra de todos contra todos", ma's tambm a "communitas", modo de relacionamento ja recnhecido como tal pelo nosso seminario. Essencialmerite,
a "communitas" consiste em urna rela?o entre individuos concretos, histricos, idiossincrsicos. Estes individuos nao esto segmentados em fungao e posioes
sociais, porm defrontam-se uns com os outros mais
propriamente maneira do "Eu e Tu", de Martin Buber.
Juntamente com este confronto direto, mediato e total
de identidades humanas, existe a tendencia a ocorrer um
modelo de sociedade como urna "communitas" homognea e nao estruturada, cujas fronteiras coincidem idealmente com as da especie humana. A "communitas", sob
este aspecto, acentuadamente diferente da "solidariedade" de Durkheim, cuja for?a depende do contraste
entre "interior ao grupo" e "exterior ao grupo". At
certo ponto a "communitas" est para a solidariedade
como a "moral aberta" de Henri Bergson est para sua
"moral fechada". No entanto, a espontaneidade e a imediatidade da "communitas", opondo-se ao carter jurdico e poltico da estrutura, podem raramente ser mantidas por muito tempo. A "communitas" em pouco tempo
se transforma em estrutura, na qual as livres relac.es
entre os individuos convertem-se em relances, governadas por normas, entre pessoas sociais. Assim, necessrio que se distinga: 1) a "communitas" existencia! ou
espontnea .aproximadamente aquilo que os "hippies"
hoje chamariam "happening", e que William Blake chamou "o fugaz momento que passa", ou, posteriormente,
"perdo mutuo dos defeitos de cada um"; 2) "communitas" normativa, na qual, sob a influencia do tempo, da
necessidade de mobilizar e organizar recursos e da exigencia de controle social entre os membros do grupo na
consecueao dessas finalidades, a "communitas" existencial passa a organizar-se em um sistema social duradouro; 3) a "communitas" ideolgica, rtulo que se pode
aplicar a urna multiplicidade de modelos utpicos de
sociedades, bascados na "communitas" existencial.
O Processo... Ec) 2877 6

161

"communitas" ideolgica consiste simultneamente


numa tentativa de descric,3o de efeitos externos e visveis a forma exterior, poder-se-ia dizer de urna
experiencia interior da "communitas" existencia!, e numa tentativa de enunciar claramente as condi?5es sociais
timas as quaip seria lcito esperar que essas experiencias florescam e se multipliquen!. A "communitas" ideolgica e a normativa ja se situam ambas dentro do
dominio da estrutura. E' o destino de toda "communitas"
espontanea na historia sofrer aquilo que muitas pessoas
consideram um "declno e queda" na estrutura e na lei.
Nos movimentos religiosos do tipo da "communitas" nao
apenas o carisma dos lderes que se "rotiniza", mas
tambm a "communitas" de seus primeiros discpulos
e seguidores. Tenho a intenc.o de trabar um ampio
esbo?o deste processo largamente difundido, fazendo referencia a dois exemplos histricos muito conhecidos:
os primitivos franciscanos da Europa medieval e os
Sahajlys dos sculos XV e XVI, na india.
Anda mais, a estrutura tende a ser pragmtica e
mundana, enquanto a "communitas" com freqncia
especulativa e geradora de imagens e idias filosficas.
Um exemplo desse contraste, ao qual nosso seminario
dedicou muita aten?o, a especie de "communitas"
normativa que caracteriza a fase liminr dos ritos tribais de iniciac.o. Existe aqui em geral urna grande simplifica?3o da estrutura social, no sentido antropolgico
britnico, acompanhada por urna rica proliferac.ao de
estrutura ideolgica, sob a forma de mitos e de sacra,
na acepc.3o de Lvi-Strauss. As regras que abolem as
minucias de diferencia?^ estrtural, por exemplo nos
dominios do parentesco, da economa e da estrutura
poltica, liberam a propenso humana para a estrutura
dando-lhe livr predominio no campo cultural do mito,
do ritual e do smbolo. Nao inicia9o tribal, no entanto, mas a gnese dos movimentos religiosos que nos
interessa neste momento, embora possa dizer-se de ambas que revelam um carter "liminr" no fato de surg'
rem em pocas d radical trans?o social, quando a pr-

162

pria sociedade parece estar passando de um estado fixo


para outro, quer se julgue que o terminas ad quem esteja
na trra quer no cu.
Em nosso seminario, tambm, freqentemente deparamo-nos com casos, na religio e na literatura, nos
quais a "communitas" ideolgica e a normativa sao simbolizadas por categoras, grupos, tipos ou individuos
estruturalment inferiores, estendendo-se do irmo da
me as sociedades patrilineares at os povos autctones conquistados, os camponeses de Tolstoi, os harijans
de Gandhi e os "pobres santos" ou os "pobres de Deus"
da Europa medieval. Por exemplo, os "hippies" de hoje,
como os franciscanos de ontem, assumem os atributos
dos individuos estruturalment inferiores, a fim de alcanc.ar a "communitas".
A "COMMUNITAS" IDEOLGICA E A ESPONTANEA

Os indicios que encontramos, as sociedades pr-Ietrads e pr-industriais, da existencia em suas culturas,


principalmente na liminaridade e na inferioridade estrtural, do modelo igualitario a que chamamos "communitas" normativa, tornam-se em sociedades complexas e
letradas, antigs e modernas, urna torrente positiva de
conceptees explicitamente formuladas sobre o modo
pelo qual os homens podem viver mellior, juntos, em
harmona e camaradagem. Estas concep$5es podem ser
chamadas, conforme acabamos de mencionar, "communitas" ideolgica. A fim de exprimir a ampia generalidade dessas formulares do dominio ideal no-estruturado, gostaria de acrescentar, quase ao acaso, testemunhos provenientes de fontes muito afastadas unas das
outras no espado e no tempo. Nestas fontes, tanto religiosas quanto seculares, mantm-se urna conexo bastante regular entre limnaridade, inferioridade estrtural,
a mais baixa posigao social e estrangeirice estrtural,
de um lado, e, de outro, valores humanos universais,
como paz, harmona entre todos os homens, fecundidade,
163

sade do espirito e do corpo, Justina universal, camaradagem e fraternidade entre todos os homens, igualdade
diante de Deus, da lei, ou a forc,a da vida de homens
e mulheres, jovens e velhos, e de pessoas de todas as
rafas e grupos tnicos. Em todas essas fprmulac.oes
utpicas tem especial importancia a permanente conexao
entre igualdade e ausencia de propriedade. Tomemos,
por exemplo, a repblica ideal de Gonzalo, na Tempestade de Shakespeare (ato II, cena I, linhas 141163), em que Gonzalo se dirige aos infames Antonio
e Sebastio da seguinte maneira: (Reproduzimos aqu a
verso brasileira do trecho citado e tomada da traduc.o
do teatro completo de Shakespeare por Carlos Alberto
Nunes, Clssicos de Bolso, vol. I, p. 68-69. Nota do
tradutor).

pela natura. Espadas, espingardas,


facas, chugos, traiges, felonas,
eu nao admitira. A natureza
produziria tudo por si mesma,
so para alimentar meu povo ingenuo.
Sebastio:
E casamento, haveria entre eles?
Antonio:
Nao, meu caro senhor, vadios todos; viles e prostitutas.
Gonzalo :

Governaria de tal modo que deitara sombra prpria idade


de ouro.
i

Gonzalo:
Na repblica
Paria tudo peles sus contrarios,
Pois nao admitira especie alguma
de comercio; de magistrado, nada,
netn mesmo o nome; o estudo ficaria
ignorado de todo; suprimira,
de vez, ricos e pobres e os servigos;
Contratos, sucesses, questSes de trra,
demarcages, cuidados da lavoura,
plantago de vinhedos, nada, nada.
Nenhum uso tambm de leo e de vinho,
Trigo e metal. Ocupago nenhuma.
Todos os homens ociosos, todos.
E as mulheres tambm mas inocentes e puras.
Faltara, de igual modo, sobrariam...
Sebastio:
Mas o rei era ele.

Antonio:
Da repblica o fim esquece o inicio.
Gonzalo:
Todas as coisas em comum seriam
Sem suor nem esforgo produzidas

164

A repblica de Gonzalo tem muitos atributos da


"communitas". A sociedade considerada como um todo
inconstil e sem entranhas, rejeitando ao mesmo tempo
a posic.o social e o contrato os polos evolucionrios
de todo o sistema de desenvolvimento social de Sir
Henry Maine evitando a propriedade privada, com
suas fontes e suas demarcares de trra, lavouras e
vinhedos, entregando generosidade da natureza o suprimento de todas as necessidades. Aqui, ele est sem
dvida falsamente adaptado situado do Caribe; em
circunstancias mai.s espartanas, os homens seriam obrigados a trabalhar, ao menos para se conservaren! aquecidos. Ele evita assim a dificuldade crucial de todas as
utopias a de que os homens teriam de prover as necessidades da vida mediante o trabalho, ou, no jargao
dos economistas, deveriam mobizar recursos. Mobilizar
recursos significa tambm mobilizar pessoas. Isto implica urna organizado social, com seus "fins" e "meios"
e a necessria "demora das recompensas", tudo isto
acarretando o estabelecimento, mesmo transitorio, de relacoes estruturais ordenadas entre os homens. Desde que,
nessas condigoes, alguns devem ter a iniciativa e comandar, e outros responder e obedecer, um sistema para
a producto e a distribuifo de recursos contm em si

165

as sementes da segmentado e da herarquia estruturais.


Gonzalo contorna este fato embarazoso supondo urna
incrvel fertilidade da natureza mostrando com isso
o absurdo de todo seu nobre sonho. Shakespeare, tambm, como freqente em suas obras, poe argumentos
vlidos na boca de personagens menos dignos, quando,
por exemplo, faz Sebastio dizer: "Mas o rei era ele".
Podemos descobrir aqu a intuico de que sempre que
se supunha urna perfeita igualdade em certa dimenso
social, ele provocar urna perfeita desigualdade em outra
dimenso.
Um valor final da "communitas" acentuado por Gonzalo o da inocencia e pureza daqueles que vivem sem
o dominio de um soberano. Encontramos aqui a supos9ao, que ser mais tarde desenvolvida de maneira mais
elaborada por Rousseau, da bondade natural dos seres
humanos, vivendo num estado de absoluta igualdade,
sem propriedades, sem estrutura. De fato Gonzalo sugere que em seu povo inocente nao haveria trai?oes,
felonas, espadas, chucas, facas, espingardas, as quais
parece igualar a necessidade de alguma mquina, como
se a guerra, o conflito e, na verdade, qualquer especie de
"atividade poltica" estivessem necessariamente relacionadas com a tecnologa, mesmo do tipo mais rudimentar.
A repblica de Gonzalo aproxima-se mais do que
qualquer outro tipo de "communitas" ideolgica daquilo
que Buber (1959-1961) chamou das Zwischenmenschliche, ou "communitas" espontnea. Quando Buber utiliza
o termo "comunidade", nao est se referindo, em primeiro lugar, a grupos sociais duradouros com estruturas
institucionalizadas. Acredita, sem dvida, que esses grupos podem ser encontrados em comunidade, e que alguns
tipos de grupos, como os kvuzoth ,e os kibbutzim de
Israel, sao os que melhor Ihe preservam o espirito.
Contudo, para Buber a comunidade essencialmente um
modo de relacionamento entre pessoas em totalidade e
pessoas concretas, entre o "Eu" e o "Tu". Esta relagao
sempre um "happening", algo que surge numa reciprocidade mediata, quando cada pessoa experimenta

plenamente o ser de outra. Diz Buber (1961): "Somente quando tenho de tratar com outro essencialmente, ou
seja, de modo tal que ele nao mais um fenmeno do
meu Eu, mas ao invs o meu Tu, que experimento
a realidade da fala com o outro na incontestvel autenticidade da reciprocidade" (p. 72). Porm Buber nao
restringe a comunidade a relacionamentos didicos. Fala
tambm de um "Nos essencial", com o que significa
"urna comunidade de varias pessoas independentes, que
tm um ego e auto-responsabilidade... O Nos inclui
o Tu. So os homens que sao capazes, vefdadeiramente,
de dizer Tu a um outro podem verdadeiramente dizer
Nos com um outro... Nenhum tipo particular de forma?ao de grupo enquanto tal pode ser mencionado
como exemplo do Nos essencial, mas em muiros deles
a variedade favorvel ao surgimento do Nos pode ser
vista claramente.. . Para impedir o aparecimento do
Nos, ou sua conserva?o, basta que seja aceito um nico
homem vido de poder, capaz de utilizar-se dos outros
como meios para seus prprios fins, ou que almeje ter
importancia e fafa exibico de si mesmo" (p. 213-214).
Nesta e em outras formulaces semelhantes, Buber
deixa claro que o "Nos essencial" um modo transitorio, embora muito poderoso, de relacionamento entre
pessoas integris. Para mim, o "Nos essencial" tem
carter liminar, pois a duraco implica institucionaliza9o e repetifo, enquanto a comunidade (que, aproximadamente, equivale "communitas" espontnea) sempre completamente nica, e por conseguinte socialmente
transitoria. As vezes Buber parece desorientado sobre a
possibilidade de converter esta experiencia de reciprocidade em formas estruturais. A "communitas" espontnea nao pode n u n c a ser expressa adequadamente
numa forma estrutural, mas pode surgir de modo imprevisvel em qualquer tempo entre os seres humanos que
sao institucionalmente contados ou definidos como membros de algum tipo, ou de todos os tipos, de agrupamento social, ou de nenhum. Assim, como na sociedade
pr-letrada, os ciclos de desenvolvimento individuis e

166

167

sociais sao entrecortados por instantes mais ou menos


prolongados de liminaridade ritualmente guardada e estimulada, cada um com seu ncleo de "communitas"
potencial, assim tambm estrutura de fases da vida social as sociedades complexas tambm entrecortada
por nmeros instantes de "communitas" espontnea,
mas sem motivos provocadores institucionalizados e sem
salvaguardas.
,
as sociedades pr-industriais e as primeiras sociedades industriis com m l t i p l a s relaces sociais, a
"communitas" espontnea parece estar freqentemente
associada ao poder mstico, sendo considerada como um
carisma ou gra?a, enviado pelas divindades ou pelos
ancestrais. Nao obstante, por meio de splicas rituais,
sao feitas tentativas, na maioria das vezes as fases de
recluso liminar, para levar as divindades ou os ancestrais a concederem o carisma da "communitas"- aos
homens. Nao ha, porm, forma social especfica que seja
mantida para expressar a "communitas" espontnea. Ao
contrario, espera-se mais que surja nos intervalos entre
os encargos das posicoes e condeces sociais, naquilo
que se costuma conhecer como "os intersticios da estrutura social". as sociedades industrializadas complexas, anda encontramos traeos, as liturgias das
igrejas e em outras organizares religiosas, de tentativas institucionalizadas de prepara?o para o advento
da "communitas" espontnea. Esta modalidade de relacao, no entanto, parece florescer melhor em situac.5es
liminares espontneas fases entre estados em que o
desempenho do papel scio-estrutural dominante, e em
especial entre pessoas iguais quanto a categora social.
Foram feitas recentemente algumas tentativas nos
Estados Unidos e na Europa Ocidental, no sentido de
criarem-se novamente as condicoes rituais as quais,
poder-se-ia afirmar, a "communitas" espontnea viria a
ser invocada. Os "beats" e os "hippies", mediante a
utilizacao de smbolos eclticos e sincrticos e ages H~
trgicas extradas do repertorio de muitas religies, de
drogas empregadas para a "expanso do pensamento")
168

da msica "rock" e de luzes falseantes, tentam estabelecer a "total" comunho de uns com os outros. Esperam
e acreditam que isto os torne capazes de atingir uns aos
outros pelo drglement ordonn de toas les sens, numa
reciprocidade terna, silenciosa, cognoscitiva e numa completa concretidade. O tipo de "communitas" desejado
pelos homens tribais nos seus ritos e pelos "hippies"
nos seus "happenings" nao a camaradagem aprazvel
e sem esforco, que pode surgir entre amigos, colaboradores e colegas de profisso, em qualquer tempo. O que
buscam urna experiencia transformadora, que vai at
as razes do ser de cada pessoa, e encontra nessas
razes algo profundamente comunal e compartilhado.
A homologa etimolgica freqentemente estabelecida
entre as palavras "existencia" e "xtase" tem cabimento
neste caso; existir "estar fora", isto , estar fora da
totalidade das posicoes estruturais que normalmente una
pessoa ocupa num sistema social. Existir estar em
xtase. Porm para os "hippies" como tambm para
muitos "movimentos mlenaristas e "entusisticos" o
xtase da "communitas" espontnea considerado o fin
do esforc.o humano. Na religio das sociedades pr-industriais, este estado considerado mais como um meio
para o individuo atingir o fim que consiste em tornar-se
mais plenamente envolvido na rica multiplicidade do desempenho estrutural de funcoes. Nisto existe, talvez,
maior sabedoria, pois os seres humanos sao responsveis uns peirante os outros no provimento das necessidades modestas, tais como alimentaeao, bebida, roupa,
cuidadoso ensino das tcnicas materiais e sociais. Essas
responsabilidades implicam urna cuidada ordenaco dos
relacionamentos h u m a n o s e do conhecimento que o
homem tem da natureza. Ha um misterio de distancia
mutua, aquilo que o poeta Rilke chamou "a circunspecto
do gesto humano", que to humanamente importante,
quanto o misterio da intimidade.
Mais urna vez volvemos necessidade de visualizar a
vida social do homem como um processo, ou antes,
como urna multiplicidade de processos, no qual o car-

169

ter de um tipo de fase onde suprema a "communitas" difere profundamente, at de modo abissal, do
carter de todos os outros. A grande tentago humana,
encontrada de maneira preeminente entre os utopistas,
est em resistir a renunciar as boas e aprazveis qualidades daquela fase a fim de abrir caminho para aquilo
que pode ser os necessrios sofrimentos e perigos da
fase seguinte. A "communitas" espontnea ricamente
carregada de sentimentos, principalmente os prazerosos.
A vida na "estrutura" est cheia de dificuldades objetivas: devem ser tomadas decises, as inclinages precisam ser sacrificadas aos desejos e necessidades do
grupo e os obstculos fsicos e sociais so sao superados
a custa de esforgos pessoais. A "communitas" espontnea tem algo de "mgico". Subjetivamente, ha nela o
sentimento de poder infinito. Mas este poder nao transformado difcilmente pode ser aplicado aos detalhes de
organizado da existencia social. Nao sucedneo para
o pensamento lcido e para a vontade firme. Por outro
lado, a ago estrutural prontamente se torna rida e
mecnica se a q u e l e s que nela esto envolvidos nao
forem peridicamente imersos no abismo regenerador da
"communitas". A sabedoria consiste sempre em achar a
relacao adequada entre estrutura e "communitas", as
circunstancias dadas de tempo e lugar, em aceitar cada
modalidade quando dominante sem rejeitar a outra,
e em nao se apegar a urna quando seu mpeto atual
est esgotado.
A repblica de Gonzalo, como Shakespeare parece
irnicamente indicar, urna fantasa ednica. A "communitas" espontnea urna fase, um momento, nao
urna condigno permanente. No momento em que um pau
de cavar fincado na trra, em que um potro domado,
em que se procura proteco contra urna alcatia de
lobos ou um inimigo do homem posto em fuga, temos
os grmes de urna estrutura social. Esta nao apenas
o conjunto de grilhes em que os homens por toda
parte estao, mas os prprios meios culturis que preservam a dignidade e a liberdade, bem como a exis-

Entre a repblica de Gonzalo e os modelos de sistemas


estruturais estreitamente integrados situa-se urna grande
quantidade de formas socais ideis. As atitudes relativas propriedade distinguen! o conjunto de modelos
da "communitas" dos modelos mais empiricamente orientados, os quais combinam, em proporgoes variadas, os
componentes do tipo "communitas" com o claro reconhecimento das vantagens da organizago das estruturas
institucionalizadas. E' essencial que se distinga entre os
modelos ideis de "communitas" apresentados na literatura ou proclamados pelos fundadores de movimentos ou
de efetivas comunidades, e o processo social resultante
das tentativas entusisticas do fundador e de seus discpulos de viverem de acord com esses modelos. Somente pelo estudo dos campos sociais, de qualquer
carter dominante, ao longo do tempo que urna pessoa
poder tornar-se conscia das nuangas esclarecedoras do
comportamento e da deciso que langam luz sobre a
estrutura de desenvolvimento da relagao entre ideal e
praxis, entre "communitas" existencia! e "communitas"
normativa.
Um dos grandes exemplos clssicos desse desenvolvimento pode ser encontrado na historia da ordem dos
franciscanos, da Igreja Catlica. M. D. Lambert, em

170

171

tncia fsica de cada homem, mulher e crianza. Pode


haver numeras imperfeiges nos meios estruturais empregados e nos modos em que sao utilizados, porm,
desde os primordios da pr-histria, os fatos indicam que
tais meios sao o que torna o homem mais evidentemente
homem. Nao queremos afirmar que a "communitas" espontnea seja meramente "natureza". A "communitas"
espontnea natureza em dilogo com a estrutura,
casada com ela, como urna mulher se liga a um homem.
Juntos, criam um fluxo de vida, como um rio, um
afluente fornecendo a energa e o outro a fertilidade
aluvial.
A POBREZA FRANCISCANA E A "COMMUNITAS"

seu recente livro Franciscan Poverty (1961) derivado


das principis fontes primarias e secundarias da historia
e da doutrina franciscanas, faz urna reconstrueo admiravelmente lcida do curso dos acontecimentos que emanaram da tentativa de S. Francisco de viver, e encorajar
os outros a viverem, de acord com determinada concepco da pobreza. Examina as vicissitudes, ao longo
do tempo, do grupo fundado por S. Francisco, em sua
relago com a Igreja estruturada e, implcitamente, com
a sociedade secular circunstante. Assim fazendo, revela
um paradigma processual do destino da "communitas"
espontnea, quando passa a fazer parte da historia
social. Os movimentos subseqentes, religiosos e seculares, tendem a seguir, em ritmos variveis, o modelo do
franciscanismo em suas relacoes com o mundo.

A essncia das cautelosas deduc.oes de Lambert sobre


o modo de pensar de S. Francisco e suas idias sobre a
pobreza o que tentaremos reproduzir. Em primeiro
lugar e neste ponto S. Francisco equipara-se a muitos
outros fundadores de grupos do tipo "communitas"
"seu pensamento foi sempre mediato, pessoal e concreto. As idias apareciam-lhe como imagens. Urna seqncia de pensamento, para ele, . . . consiste em saltar
de urna imagem para o u t r a . . . Quando, por exemplo,
deseja explicar seu modo de vida ao papa Inocencio III,
transforma seu apelo numa parbola; em outras ocasies,
quando deseja que os irmos Ihe compfeendam as intengoes, escolhe fazer isso por meio de smbolos. O fausto
da mesa de seu irmo demonstrado por S. Francisco
disfarcado em um pobre estrangeiro. A iniqidade de
tocar em dinheiro expressa em una parbola representada, imposta a um ofensor por S. Francisco como penitencia" (p. 33). Este modo concreto, pessoal, de pensar
por imagens muito caracterstico dos que amam a
"communitas" existencial com a rela?o direta entre um

homem e outro, e entre o homem e a natureza. As abstraces parecem como hostis ao contato vivo. William
Blake, por exemplo, um grande expoente literario da
"communitas" em Prophetic Books, escreveu que "quem
quiser fazer o bem aos outros deve faz-lo em diminutos
pormenores; o bem geral o pretexto dos hipcritas
e dos velhacos".
Porm, como outros videntes de antigs e modernas
"communitas", S. Francisco tomou muitas decises essenciais com base no simbolismo dos sonhos. Por exemplo, antes de decidir demitir-se da directo oficial da
Ordem em 1220, "sonhou com urna pequea galinha
preta que, apesar de tentar o mais possvel, era demasiado pequea para cobrir com as asas toda a ninhada".
Pouco mais tarde, suas deficiencias c o m o legislador
foram-lhe reveladas em outro sonho, no qual "tentava
em vo alimentar seus irmos famintos com migalhas
de pao que Ihe escorregavam por entre os dedos" (p.
34). Foi sem dvida o prprio carter concreto de seu
pensamento e, se conhecssemos os fatos relativos ao
seu ambiente social, a multivocidade do seu simbolismo
que fizeram de S. Francisco um mediocre legislador. A
criacjo de urna estrutura social, especialmente dentro da
moldura protoburocrtica da Igreja Romana, tria exigido urna tendencia abstraco e a generalizarlo, urna
capacidade de produco de conceitos unvocos e urna
perspicacia generalizadora; e estas se oporiam ao imediatismo, espontaneidade e, sem dvida, direta
mundanidade da nogo da "communitas" de S. Francisco. Alm disso, S. Francisco, como outros antes e depois
dele, nunca foi capaz de superar as limita^oes numricas que parecem atacar os grupos que levam ao mximo a "communitas" existencial. "S. Francisco foi um
chefe espiritual supremo de pequeos grupos. Mas era
incapaz de prover a organizado impessoal requerida
para a manutenco de urna rdem que se espalhou pelo
mundo inteiro" (p. 36).
Recentemente, Martin Buber (1966) examinou o problema e afirmou que "urna comunidade orgnica e
sement essas comunidades podem reunir-se para for-

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173

A "COMMUNITAS" E O PENSAMENTO SIMBLICO

O vocabulario de Buber, qu siirpreendentemente relembra o de muitos lderes africanos de Estados de urn


so partido, pertence ao discurso perene da "communitas", nao rejeitando a possibilidde da estrutura, mas
concbendo-a apenas como urna conseqncia de rela56es diretas e imediatas entre individuos integris.

Diferentemente de Buber, S. Francisco, como membr


da Igreja Catlica, tinha a obrigaco de fazer urna
Regra para sua nova fraternidade. E, como disse Sabatier (1905): "Nunca houve um homem menos capaz de
fazer urna Regra do que S. Francisco'' (p. 253). Sua
Regra nao era, em nenhum sentido, um conjunto de prescrices e prob5es ticas e legis; era, ao contrario,
um modelo concreto daquilo que achava deveria ser a
total "vita frafrum minorum". Em outra parte (veja-se
Turner, 1967, p. 98-99), acentuei a importancia para os
liminares palavra com que se pod denominar as
pessoas que se submetem a transieses ritualizadas
de abrir mo das propriedades, da situaco estrutural,
dos privilegios, dos prazeres materiais de varias especies, e at mesmo, freqentemente, do vestuario. S. Francisco, que imaginava seus frades como liminares em
urna vida que era meramente a passagem para o imutvel estado do cu, deu grande destaque as implicaces do estar "sem" ou do "nao ter". Isto foi expresso
da melhor maneira na sucinta formulac/So de Lambert
sobre a posifo de S. Francisco . "desnudamente
espiritual".
O prprio S. Francisco pensava em termos de pobreza, celebrada por ele, moda dos trovadores, como
"Minh Senhora Pobreza". Conforme escreve Lambert:
"Podemos aceitar como m axioma que quanto mais
radical for a verso de pobreza a nos presentada, mais
provavelmente refletir os verdadiros desejos de S.
Francisco". Continua dizendo "que a Regra de 1221,
tomada em totalidade, da a impressao de que S. Francisco desejava que seus frades cortassem inteiramente as
amarras com o sistema comercial do mundo. Insiste, por
exemplo, em que a necessidade de aconselhar os postulantes sobre o destino a dar aos seus bens nao deve
.envolver os irmos em negocios seculares" (p. 38).
No captulo 9 da Regra diz aos irmos que deveriam
regozijar-se "quando se encontrassem entre pessoas humildes e desprezadas, entre os pobres, os fracos, os
doentes, os leprosos e aqueles que esmolam as ras"

174

175

mar urna ra?a de homens configurada e bem organizada


nunca se construir a partir de individuos, porrn
apenas de pequeas e mesmo muito pequeas comunidades; urna naco urna comunidade na medida em
que urna comunidade de comunidades" (p. 136). Prop6e, por conseguinte, contornar o problema imposto a
S. Francisco, e que foi o de estabelecer previamente
urna constituico detalhada, permitindo sua comunidade de comunidades lutar at alcancar progressivamente a coerncia. Isto ter de ser conseguido por um
"profundo tato espiritual" dando formas relac.o entre
centralismo e descentralizaco, e entre idi'a e realidade,
"com a constante e infatigvel pesagem e medicao da
exata proporcSo entre elas" (p. 137).
Buber, em resumo, deseja preservar o carter concreto da "communitas", mesmo as maiores unidades
sociais, num processo que considera anlogo ao crescimento orgnico, ou ao que chamou "a vida do dilogo".
Centralizado, mas apenas tanto quanto seja indispensve!
as condices dadas de tempo e lugar. E se as autoridades
responsveis pelo tragado e retrasado das linhas de demarcaco mantiverem a conscincia alerta, as relages entre a base
e o vrtice da pirmide do poder sero bem diferentes do que
eo agora, mesmo em Estados que se chamam communitas,
iato , que lutam pela comunidade. E' preciso que haja um
sistema de representado, tambm, do tipo de modelo social
que tenho em mente. Mas nao ser, como agora, composto de
pseudo-rpresentantes de massas amorfas de eleitores, mas de
representantes bem experimentados na vida e no trabalho das
comunas. Os representados nao estaro, como hoje, ligados a
seus representantes por urna vazia abstraco, pela mera fraseologa de um programa de partido, mas concretamente, por meio
da acao e da experiencia comuns (p. 137).

(Boehmer, 1904, p. .10). S. Francisco, de fat, afirma


sistemticamente que a pobreza dos franciscanos deveria
ser levada at os limites da necessidade,
Um exemplo detalhado deste principio pode ser encontrado na proibiclo do dinheiro aos frades. "E se
encontrarmos moedas em qualquer lugar, nao Ibes demos
maior atengo do que poeira que pisamos sob nossos
ps" (Boehmer, 1904, p. 9). Embora S, Francisco use
aqui o termo donaras, urna moeda entao existente para
designar "dinheiro", em outra ocasio equipara denarius
pecunia, "rudo aquilo que faz o papel de dinheiro".
Esta equivalencia implica a radical retirada do mundo,
da compra e da venda. Foi mais longe do que "pobreza"
recomendada pelas ordens religiosas mais antigs, pois
estas anda man.tinh.am suas comunidades,, sob certo
aspecto, dentro dos limites do s i s t e m a econmico
secular. S. Francisco, pela sua Regra, assegurava que,
.corno disse Lambert, "as fontes normis para a manutenfo da vida eram de natureza deliberadamente transitoria e incerta: consistiam em recompensas em especie
por trabalho servil fora dos estabelecimentos, supridos
com os produtos das expedices de mendicncia". [Surgiro sem dvida no espirito dos modernos leitores
americanos paralelos com o comportamento dos "hippies"
da comunidade de Haight-Ashbury, em S. Francisco!]
"A Regra de 1221 probe aos frades ocuparen! postos
de autoridade... Os primeiros discpulos, como o irmo
Gil, sempre desempenharam tarefas irregulares, como a
de cavar sepulturas, tecer cestos, carregar agua, nenhuma dlas oferecendo seguranca em tempos de escassez.
O mtodo prescrito de esmolar, passando de porta ern
porta, indiscriminadamente... impossibilitava o abrandamento da instabilidade mediante o recurso a ricos protetores regulares" (p. 41-42).
S. FRANCISCO E A LIMINARIDADE PERMANENTE

Em tudo quanto dissemos, S. Francisco parece deliberadamente ter compelido os frades a habitarem as
176

margens e nos intersticios da estrutura social de seu


tempo, conservando-os permanentemente em um estado
liminar, onde, conforme indicada a tese deste livro,
existiriam as condi?5es timas para a realizado da
"communitas". Mas, de acord com seu hbito de pensar
por "imagens primarias- visuais", S. Francisco em nenhuma parte definiu em termos jurdicos destituidos de
ambigidade o que entenda por pobreza e o que esta
acarretava com relaco propriedade. Para ele, o modelo ideal da pobreza era Cristo. Por exemplo, na Regra
de 1221 disse referindo-se aos frades:
"E que eles nao se envergonhem, mas se lembrem de que
Ncsso Senhor Jess Cristo, o Filho de Deus vivo onipotente,
enrijeceu o rosto como a mais dura pedra, e nao ficou envergonhado de tornar-se um homem pobre e um estranho para
nos, vivendo de esmolas, ele prprio e a Santfssima Virgem e
seus discpulos" (Boehmer, p. 10-11, linhas 6-10).

Segundo Lambert:
A figura principal no espirito'de S. Francisco... a imagem
do Cristo n . . . A nudez era um smbolo de grande importancia para S. Francisco. Usava-o para marcar o comec,o e o
fim de sua vida convertida. Quando quis repudiar os bens de
seu pai entrar para a religio, ele o fez despindo-se e cando
n no palacio do bispo, em Assis. No fim da vida, quando
morria em Porcincula, obrigou seus companheiros a despi-lo,
a fim de que pudesse enfrentar a morte sem roupas, no chao
da cabana .. Quando dorma, era sobre a trra n u a . . . Por
duas vezes, preferiu abandonar a mesa dos frades e sentar-se
na trra nua para comer sua refeigo, impelido, em cada urna
dessas ocasies, pelo pensamento da pobreza de Cristo (p. 61).

A nudez representava a pobreza, e a pobreza, a


ausencia literal da propriedade. S. Francisco declarou
que assim como Cristo e os Apostlos tinham renunciado
aos bens materiais, com o fim de se entregarem as
mos da Providencia e viverem de donativos, o mesmo
deveriam fazer os frades. Conforme Lambert indica, "o
nico apostlo que nao fez isto, e guardou urna reserva
na bolsa, foi o traidor, Judas" (p. 66).
177

A pobreza de Cristo, claramente, tinha "imensa significago emocional" para S. Francisco, que considerava
a nudez como o principal smbolo da emancipado da
sujeigo econmica e estrutural, assim como das coac.es
exercidas sobre ele por seu pai terreno, o rico negociante de Assis. Para ele a religiao era a "communitas",
entre o homem e Deus e entre os homens uns com os
outros, vertical e horizontalmente por assim dizer, e a
pobreza e a nudez constituan! ambas smbolos exprssivos da "communitas" e instrumentos para alcanc.-la.
Mas sua noc.5o imaginativa da pobreza, como sendo a
absoluta pobreza de Cristo, era difcil de ser posta eni
prtica por um grupo social forjado pela Igreja a institucionalizar sua organizado, a rotinizar nao apenas o
carisma do fundador mas tambm a "communitas" de
seu comego espontneo, e a formular em termos legis
precisos sua relago coletiva com a pobreza. A propriedade e a estrutura esto indissoluvelmente entrelazadas,
e a constitui?o de unidades sociais duradouras incorpora ambas as dimensoes, bem como os valores centris
que legitimizam e a forma de ambas.
A medida que a Ordem Franciscana perdurava no
tempo, desenvolveu-se no sentido de tornar-se um sistema estrutural, e quando isto aconteceu a sincera simplicidade das f o r m u l a c . 5 e s de S. Francisco sobre a
propriedade, na Regra original, deram lugar a defini?5es mais legalistas. De fato ele dera apenas duas lacnicas instruyes, na primeira Regra de 1221 e na
Regra revista, de 1223. Na primeira, diz indiretamente,
em um captulo referente primordialmente ao trabalho
manual dos frades e posse de seus estabelecimentos:
"Que os irmos sejam cuidadosos, onde quer que estejam, nos eremitrios ou em outras residencias, a fim
de que nao se apropriem de um estabelecimento para
si mesmos ou o mantenham contra algum" (Boehnier,
p. 8-11, linhas 5-7). Em 1223, houve urna ampliafo
deste preceito: "Que os irmos nao se apropriem de
nada para si mesmos, nem de urna casa, nem de um
estabelecimento, nem de qualquer coisa". Poder-se-ia

Desde o inicio a Ordem dos Franciscanos lanc.ou rebentos, e dentro de algumas dcadas aps a morte do
fundador encontramos os irmos em militas partes da
Italia, Sicilia, Franga, Espanha e at mesmo empreendendo viagens missionrias Armenia e Palestina.
Desde o principio, tambm, a pobreza e a vida errante
na realidade, o entusiasmo dos frades levou-os a
serem olhados com suspeita pelo clero secular, organizado em divisSes locis, as ss e as parquias. Nestas
circunstancias, segundo ressalta Lambert, a idia de S.
Francisco sobre a pobreza que, como vimos, associase "communitas" existencia! "to extremada que
tena de causar imensas dificuldades logo que devesse
ser aplicada nao a um bando de frades errantes, mas
a urna ordem em desenvolvimento, com problemas de
local para morar, aprendizagem, irmos doentes e outros
semelhantes" (p. 68). Mais dificis ainda eram os problemas de continuidade estrutural, concernentes manipula?o de recursos, que punham em agudo relevo a
questo da natureza da propriedade. Esta ltima questo tornou-se quase urna obsesso na Ordem, durante
o sculo que se seguiu morte de S. Francisco, e teve
cmo conseqncia a divisao dlas em dois ramos prin-

178

179

pensar que estas expressoes sao absolutamente inequvocas, porm toda estrutura em desenvolvimento gera
problemas de organiza?o e valores que provocam a
redefinico dos conceitos centris. Freqentemente isto
interpretado como contemporiza?o e hipocrisia, ou
perda de fe, mas na realidade nada seno a resposta
racional a urna alterac.o na escala e na complexidade
das relac.oes sociais e, juntamente com aquelas, a urna
mudanza na localizafo do grupo no campo social que
ocupa, com as concomitantes transformares de suas
principis finalidades e dos meios para atingi-las.
OS ESPIRITUAIS CONTRA OS CONVENTUAIS.
CONCEITUALIZACAO E ESTRUTURA

cipais, que se poderia chamar de campos ou faces: os


conventuais, que na prtica relaxavam o rigor do ideal
de S. Francisco, e os espirituais que, com a doutrina
do usus pauper, praticavam a bem dizer uma observncia mais severa do que a do fundador.
Antecipando um pouco, significativo que muitos
dirigentes dos espirituais tiveram ntimos contatos com
o joaquinismo, um movimento milenrista baseado nas
obras genunas e esprias de um abade cisterciense do
sculo XII, Joaquim de Flora. E' curioso notar-se quo
freqentemente na histria as noes de catstrofe e de
crise se r e l a c i o n a m com o que poderamos chamar
"communitas imediata". Talvez no seja realmente to
curioso, pois evidentemente se algum espera o breve
advento do fim do mundo, no h razo para estabelecer uma legislao que cria um detalhado sistema de
instituies sociais, destinadas a resistir aos embates do
tempo. Chega-se a ter a tentao de especular sobre a
relao entre os "hippies" e a bomba de hidrognio.
Mas a princpio essa diviso na Ordem no se tinha
tornado visvel, embora tudo favorecesse um desenvolvimento que se afastava da pobreza original de S. Francisco, conforme escreve Lambert:
_j

"A influncia de sucessivos papas era muito naturalmente dirigida no Sentido de fazer dos franciscanos, tal como da Ordem
rival dos dominicanos, um instrumento adequado de seus planos
de ao, tanto espiritual quanto poltica. Para esta finalidade,
a pobreza extrema tendia a ser, geralmente, um estorvo. Os
benfeitores pertencentes ao mundo exterior, que se sentiam
atrados pela austeridade da pobreza francisana, tiveram um
papel no enfraquecimento desta, ao fazerem donativos difceis
de serem recusados. Os prprios frades, os nicos verdadeiros
guardies de sua observncia, demasiadas vezes no se interessavam suficientemente por proteger sua pobreza contra 'pessoas
do mundo exterior que, movidas por altos propsitos, desejavam aliviar-lhes a carga. De fato, foram sobretudo os membros
da ordem, e no quaisquer personagens do mundo exterior por
exaltadas que fossem, cs responsveis pela evoluo do idea'
franciscano que, nos primeiros vinte anos, levou os irmos
com tanta rapidez a um ponto to distante da vida primitiva
de S. Francisco e de seus companheiros" (p. 70).

E' interessante observar que, vrios anos antes de sua


morte, S. Francisco tinha abandonado o governo da
Ordem e passava grande parte do tempo em companhia
de um pequeno grupo de companheiros em eremitrios
na mbria e na Toscana. Sendo um homem de relaes
diretas e imediatas, a "communitas" para ele deveria ser
sempre concreta e espontnea. E' possvel que tenha fiicado desalentado com o sucesso do seu prprio movi>mento, que comeara, j durante a sua vida, a dar sinais
jda estruturao e rotinizao que iria sofrer sob a in[fluncia de sucessivos "gerais" e sob a fora configural;dora externa de uma srie de bulas papais. O prprio
[primeiro s u c e s s o r de S. Francisco, Elias, foi o que
f Lambert chama "figura essencialmente organizadora que,
iem tantas sociedades religiosas, traduziu os sublimes
[ideais de seus fundadores em termos aceitveis para os
{discpulos que vieram depois" (p. 74). E' significativo
J dizer que foi Elias a fora propulsora oculta atrs da
J construo da grande baslica de Assis, para abrigar o
[corpo de S. Francisco, e cujos bons ofcios levaram a
[municipalidade de Assis em 1937 a erigir-lhe um moInumento. Segundo Lambert, "ele deu uma contribuio
mais duradoura ao desenvolvimento da cidade do que
l evoluo do ideal franciscano" (p. 74). Com Elias, a
lestrutura, tanto material quanto abstrata, comeou a
fsubstituir a "communitas".
medida que a nova Ordem crescia em nmero e
Ise espalhava pela Europa desenvolveu todo o aparelho
[tcnico de votos e de superiores, juntamente com a estrutura semipoltica, caracterstica das ordens religiosas
Ida poca, e, na verdade, de tempos posteriores. Assim,
fno governo centralizado, os frades tinham um ministro
igeral no posto mais alto e abaixo dele um certo nmero
Ide provinciais, cada um dos quais era o superior de
|uma provncia, isto , a diviso de uma ordem religiosa
compreende todas as. casas e os membros num defterminado distrito. Suas fronteiras territoriais coincidiam
com freqncia, mas no necessariamente, com as de
Estado civil. O provincial era responsvel perante o

180

181

superior geral pela administrao da sua provncia e


pela manuteno da religio nela, principalmente p0r
meio de visitaes. Ele convocava o captulo provincial
e era membro do captulo geral da ordem. Os dois tip0s
de captulo tinham funes legislativas, disciplinares e
eletivas. Entre os franciscanos, algumas das provncias
eram, por exemplo, a Provena, a marca de Ancona,
Gnova, Arago, Toscana e Inglaterra. Os antroplogos
que estudaram os sistemas polticos centralizados, tanto
em sociedade pr-letradas quanto nas feudais, tero
pouca dificuldade em compreender as possibilidades de
oposio estrutural, inerentes a tal hierarquia. Alm disso
os franciscanos eram religiosos isentos, sujeitos apenas
a seus superiores, e no aos bispos locais (isto , aos
eclesisticos com jurisdio ordinria no foro externo
sobre determinado territrio, como os bispos em suas
dioceses). Na realidade eram responsveis diretamente,
e no indiretamente, ao papado. Tornou-se ento possvel o conflito estrutural entre a Ordem e o clero secular.
Existiam tambm rivalidades com outras ordens, e
as controvrsias entre franciscanos e dominicanos sobre
pontos de teologia e de organizao, assim como a luta
pela influncia sobre o papado, foram aspectos proeminentes da histria da Igreja medieval. E, naturalmente,
o campo social efetivo da Ordem Franciscana.no estava
limitado Igreja, mas continha muitas influncias polticas e profanas. Por exemplo, ao ler-se a narrativa de
Lambert, fica-se chocado com a importncia do apoio
recebido pela faco espiritual, entre os franciscanos,
oriundo de monarcas como Jaime II de Arago e Frederico II da SicHa, bem como da parte de rainhas corno
Esclarmunda de Foix e de Sancha, sua filha, que se
tornou esposa de Roberto, o Sbio, de Npoles. Em
certa poca, quando a faco conventual da ordem teve
maior influncia junto do papado e foi encorajada, Pr
isto, a perseguir e a aprisionar muitos dos espiritual5'
aqueles monarcas deram refgio e proteo aos lidere5
do grupo espiritual.
182

"DOMINIUM" E "USUS"
Algum dia os antroplogos daro plena ateno ao domnio, com freqncia esplendidamente documentado, da
poltica religiosa medieval, onde podero acompanhar os
processos polticos atravs dos tempos com alguns de^
talhes durante sculos. Neste ponto desejaria apenas
acentuar que o primitivo grupo de livres companheiros
de S. Francisco grupo no qual a "communitas" normativa mal se desvencilhara da "communitas" existencial
no poderia ter perdurado se no se organizasse
para se manter em um campo poltico complexo. Contudo, a memria da "communitas" original, exemplificada pela vida, vises e palavras de S. Francisco, conservou-se sempre viva na ordem, especialmente pelos
espirituais, e de maneira notvel por homens como Joo
de Parm, ngelo da Clareno, Olivi e Libertino. Mas,
desde que pr sucessivas bulas papais e pelas obras de
So Boaventura, a doutrina da pobreza absoluta foi
[jurdica e teologicamente definida, os espirituais viramse forados a uma atitude "estrutural" em relao
pobreza.
Na definio formal, a noo de propriedade tinha
t sido separada em dois aspectos: dominium (ou propriel/as) e usus. O dominium significa essencialmente os diireitos sobre a propriedade, o usus, o efetivo manuseio
;e o consumo da propriedade. Ora, o papa Gregrio IX
l declarou que os franciscanos deveriam conservar o usus,
[mas renunciar ao dominium, de qualquer espcie. A prin cpio os franciscanos pediram a seus benfeitores o
[direito de conservar o dominium, mas logo depois com preenderam que seria mais conveniente chegar a um
acordo completo, e colocar o dominium sobre todos os
seus bens nas mos do papado. Foi a respeito das conseqncias prticas do usus que pela primeira vez o
componente ideolgico da ruptura entre conventuais e
espirituais se configurou tornando-se finalmente um smbolo diacrtico da oposio entre ambos. Pois os con[ventuais, orientados mais no sentido da estrutura, to-

183

maram plena conscincia das necessidades da ordem em


um ambiente poltico complexo. Assim, para realizar eficientemente o trabalho evanglico e caritativo, sentiram
que precisavam construir slidos edifcios, igrejas e habitaes. Para defender a posio religiosa peculiar de
S. Francisco, deveriam exercitar os irmos mais intelectuais na filosofia e na teologia, porque tinham de sustentar suas prprias idias nas requintadas arenas de
Paris e Florena contra os sutis dominicanos e em face
da crescente ameaa da Inquisio. Precisavam portanto
de recursos, inclusive de recursos pecunirios, at mesmo moedas, a serem gastos em tijolos e em livros.
Entre os conventuais, ficou cada vez mais ao arbtrio
do superior local decidir at que ponto os frades poderiam ir no exerccio do usus. Segundo os espirituais
e tudo isto veio luz durante a famosa investigao
papal sobre os negcios da ordem em 1309, oitenta
e trs anos depois da morte do fundador o "uso" dos
conventuais tornara-se "abuso". Ubertino, intrprete deles, apresentou muitas provas documentais concernentes
prtica do cultivo para lucro, ao uso de adegas e de
celeiros para o vinho, o recebimento de legados constitudos por cavalos e armas. Acusa-os mesmo de exercerem dominium:
"Ainda, da mesma maneira, aqueles que podem levam consigo bursar, que so seus servos, e de tal modo gastam por
ordem dos irmos, que sob todos os aspectos os irmos parecem
ter domnio no s sobre o dinheiro mas tambm sobre os
servos que o gastam. E algumas vezes os irmos carregam uma
caixa com o dinheiro dentro; e nas ocasies em que esta e
carregada pelos meninos, freqentemente eles nada sabem do
contedo, sendo irmos que levam as chaves. E contudo s
servos podem algumas vezes ser chamados nunt (um nuntiu5
era um oficial, agente dos doadores de esmolas, na primitiva
definio papal) daquelas pessoas que deram o dinheiro pa ra
os irmos; no entanto, nem os servos nem aqueles que o &'
positam sabem que o dinheiro no est sob o domnio Jr
ningum, a no ser os irmos..." (Citado por Lambe1"
1961, p. 190).

Mas a atitude dos espirituais com relao ao usus foi


melhor expressa na doutrina do usus pauper, que sustentava com efeito que a utilizao dos bens pelos frades
deveria de fato restringir-se ao puro mnimo suficiente
para o sustento da vida. Na verdade, alguns espirituais
morreram por motivo da sua austeridade. Diziam eles
que estavam deste modo mantendo-se fiis ao esprito
da concepo da pobreza de seu grande fundador. Um
aspecto dessa atitude aparentemente admirvel tornou-a,
enfim, intolervel para a Igreja estruturada. Foi o relevo,
dado pelos espirituais, conscincia do indivduo, como
rbitro supremo a respeito do que constitua a pobreza,
embora esta conscincia agisse com referncia aos religiosos padres do usus pauper. Alguns espirituais foram
ao ponto de admitir que qualquer abrandamento deste
rigor opunha-se ao voto professo de pobreza, e sendo
portanto um pecado mortal. Se esta posio fosse vlida,
poder-se-ia considerar que muitos conventuais vivem em
permanente estado de pecado mortal. Eis a as armadilhas do legalismo excessivo!
Por outro lado, a doutrina do usus pauper impugnava
claramente a concepo da Igreja sobre a autoridade
legtima possuda por um superior religioso. Se o chefe
de uma casa franciscana, ou mesmo de uma provncia,
aplicasse seu critrio individual e permitisse, por motivos
estruturais e pragmticos, o uso de quantidades considerveis de bens, os frades espirituais, nos termos de sua
i prpria doutrina do usus pauper, poderiam sentir-se desobrigados de obedecer ao superior, colocando assim o
voto de pobreza em conflito com o voto de obedincia.
De fato, este tcito desafio estrutura hierrquica da
Igreja constituiu em um dos principais fatores da extirpao final dos espirituais da Ordem, em virtude das
medidas severas do Papa Joo XXII, numa srie de bulas
;
apoiadas pelo poder sancionador da Inquisio. Todavia,
| seu zelo no foi inteiramente vo, p o r q u e reformas
^posteriores da Ordem Franciscana foram inspiradas pelo
esprito de p o b r e z a que eles to obstinadamente
defenderam.

184

185

A "COMMUNITAS" APOCALPTICA

Ao considerarmos a histria dos primrdios da Ordem


Franciscana, torna-se claro que a estrutura social est
intimamente relacionada com a histria, porque este
o modo pelo qual um grupo mantm sua forma atravs
dos tempos. A "communitas" sem estrutura pode unir e
manter as pessoas juntas apenas momentaneamente. Na
histria das religies interessante observar quo freqentemente os movimentos do tipo "communitas" do
origem a uma mitologia apocalptica, uma teologia ou
uma ideologia. Entre os franciscanos espirituais, por
exemplo, at mesmo o rido telogo Olivi, designado
leitor, em Santa Croce, em Florena, era ferrenho adepto do milenarismo dos joaquimistas. Realmente, Olivi
comparou a Babilnia, a grande prostituta, com o papado, que deveria ser destrudo na sexta idade do
mundo, enquanto os franciscanos espirituais, em sua
absoluta pobreza, constituam a verdadeira igreja fundada por S. Francisco e seus doze companheiros. Se
procurarmos a estrutura na "communitas" de crise ou
de catstrofe, cremos encontr-la no no nvel de interao social, mas, no sentido de Lvi-Strauss, subjacentes
aos sinistros e coloridos produtos da imaginao dos
mitos apocalpticos, gerados no ambiente da "communitas" existencial. Encontra-se, tambm, uma polarizao
caracterstica em movimentos desse tipo, por um lado,
a rigorosa simplicidade e a pobreza do comportamento
eleito "o homem nu e privado de tudo" e, por
outro lado, uma poesia quase febril, visionria e proftica, que o seu principal gnero de expresso culturalO tempo e a histria introduzem porm a estrutura na
vida social daqueles movimentos e o legalismo em sua
produo cultural. Com freqncia, aquilo que foi outrora considerado literal e universalmente como eminente catstrofe passa a ser interpretado alegrica ou misti"
camente como o drama da alma individual ou corno
destino espiritual da verdadeira Igreja na terra, ou e
adiado para o mais remido futuro.

As noes da "communitas" no esto sempre asso[ ciadas a vises ou teorias de uma catstrofe universal.
[Nas iniciaes tribais, por exemplo, encontramos, pelo
[menos implicitamente, a noo da absoluta pobreza colmo sinal de comportamento liminar. Mas no encontrarmos as idias escatolgicas dos movimentos quilisticos.
l Todavia, muito freqentemente descobrimos que o conJceito de ameaa ou de perigo para o .grupo e de fato
[existe habitualmente um real perigo na faca do circunfcisor ou do cicatrizador, nos muitos ordlios e na disJciplina severa est presente de modo muito relevante.
|E este perigo um dos principais ingredientes na profduo da "communitas" existencial, como a possibiliIdade de .uma "viagem m", para a "communitas" das
idrogas de determinados habitantes de uma moderna ciidade que tem o nome de S. Francisco. Nas iniciaes
jtribais, t a m b m, encontramos mitos e suas sanes
Irituais na liminardade, que se relacionam com catstrofes e crises divinas, como a matana ou auto-imolao
Ide importantes divindades para o bem da comunidade
ihumana, e que localizam a crise no passado vivo ou no
jfuturo iminente. Mas, quando a crise tende a ser coloJcada preferentemente antes, e no depois ou dentro da
experincia social contempornea, j comeamos a entrar
|na ordem da estrutura e a considerar a "communitas"
como um momento de transio e no como um modo
stabelecido de ser ou um ideal que ser em breve perImanentemente atingido.
O MOVIMENTO SAHAJIYA DE BENGALA

em toda "communitas", porm, uma "communitas"


crise. Existe tambm a "communitas" do afastamen[to e do retiro. Algumas vezes esses gneros convergem
Jns para os outros e se sobrepem, mas em geral malifestam estilos distintos. A "communitas" do afastaIniento no est to estreitamente ligada crena em
irn fim iminente do m u n d o , ao contrrio, implica a
187

O trabalho de Dimock trata de um movimento que foi


em certos aspectos complementar, e em outros divergente, do grande movimento religioso bhakti (devocional) que "se estendeu pelo Norte da ndia, dos sculos
XIV ao XVII, e dos movimentos bhakti mais antigos
do sul" (1966b, p. 41). Como j consideramos um
movimento cristo do tipo "communitas" relacionando-o
com um notvel fundador, valeria a pena repetir o mesmo mtodo de exame no caso dos vaisnavas de Bengala
e comear nossa histria pela p e s s o a de Caitanya
(1486-1533), "a mais significativa figura do movimento
de Bengala". Assim como no caso anterior comparam08
a doutrina franciscana com a respectiva prtica, consideremos em primeiro lugar os ensinamentos de Caitany2
e em seguida a histria do movimento que ele inspir011'
Dimock conta-nos que Caitanya foi quem "reavivou" e.

no quem criou o Krishna-bhakti (devoo intensa) na


ndia Oriental. Os movimentos vaisnavitas eram conhecidos em Bengala desde o sculo XI ou XII de nossa
era, isto , pelo menos trs sculos antes da poca de
Caitanya. Tal como S. Francisco, Caitanya no era um
telogo. Deixou um total de oito versos, durante sua
vida, versos de natureza devocional e no teolgica.
Ainda aqui, o paralelo com o cntico de S. Francisco
ao "Irmo Sol" surpreendente. A devoo de Caitanya,
tambm, como a de S. Francisco, alimentava-se de imagens e identificaes; no caso, com os principais atores
dos grandes textos sagrados vaisnava, especialmente o
Bhgavata. O tema principal desses textos a infncia,
a meninice, e a juventude de Krishna, considerado um
avatra (encarnao) do deus Vishnu. Por sua vez, Caitanya era julgado por muitos um avatra de Krishna, ou
antes, uma encarnao conjunta de Krishna e de sua
bem-amada ordenhadora Rdh, sendo a totalidade humana representada em forma bissexual, transcendendo
todas as distines culturais e sociais de sexo.
O episdio central do incio da carreira de Krishna
foi seu amor por um grupo de gopls, as vaqueiras de
Vrndvana. Ele prprio foi criado como vaqueiro neste
lugar sagrado, e depois de realizar todas as espcies
i de travessuras ternas e erticas com as gopls, quando
| atingiu a idade adulta, encantou-as com o som de sua
flauta na floresta, de tal modo que elas deixavam os
lares, os maridos, as famlias e corriam para ele, durante
a noite. Em clebre incidente, Krishna dana com todas
as gopls de maneira tal que cada uma considera-o como
; seu amante particular. Algumas vezes este fato representado na arte indiana por um anel formado por moas,
aparecendo entre cada par delas a forma azul e bela
do divino amante. Numa elaborao bengali posterior,
Rdh torna-se o objeto particular do amor de Krishna,
e em certo sentido ela condensa todo o resto.
Caitanya ficou extasiado com a dana de Krishna e
com a corte subseqente s gopls. Em suas prdicas ele
inspirou um to poderoso renascimento da religio de-

188

189

renncia, total ou parcial, participao nas relaes


estruturais do mundo, que , neste caso, concebido como
uma espcie de permanente "rea de desgraa". Este
tipo de "communitas" tem a tendncia a ser mais exclusivista na constituio de seus membros, mais disciplinado nos hbitos discreto nas prticas do que o
gnero apocalptico que acabamos de examinar. Embora
possam ser encontrados exemplos na religio crist e em
movimentos utpicos seculares que de muitos modos derivam da tradio cultural judaico-crist, talvez seja no
hindusmo que se verifiquem os mais claros exemplos
de "communitas" de retiro. Limitar-me-ei, uma vez mais,
ao estudo de um nico movimento, o dos vaisnavas de
Bengala, descrito por Edward C. Dimock, Jr. (1966a,
1966b). Dimock um estudioso bengali, muito competente e de grande acuidade, que publicou elegantes tradues de "contos bengalis" da corte e da aldeia, e seus
dados e concluses devem ser olhados com respeito.
OS POETAS DA RELIGIO.
CAITANYA E S. FRANCISCO

vocional que "durante sua vida e pouco depois da morte


abrangeu a maior parte da ndia Oriental" (Dimock,
1966b, p. 43). Uma das principais prticas entusisticas
que acentuou foi uma meditao ardente na qual o adorador se identificava sucessivamente com os vrios parentes, amigos e amantes de Krishna. Por exemplo, seus
pais adotivos, que lhe tinham afeio paterna; seu irmo,
que o considerava com amor fraterno e lealdade de camarada; e, principalmente, as gopls, das quais Krishna
foi amante e amado. Neste caso as relaes sociais eram
julgadas naturais pontos de partida para uma devoo
considerada de carter sobrenatural. O teor altamente
ertico dos textos e das devoes, ao que parece, apresenta aos telogos vaisnavitas posteriores problemas semelhantes aos que os exegetas judeus e cristos do Cntico dos Cnticos de Salomo tiveram de enfrentar. Mas
a soluo ritual do Sahajlys, como era chamado o movimento da Caitanya, era bem diferente da adotada pelos
msticos cristos, como S. Joo da Cruz e S. Teresa
de vila, que julgavam a linguagem ertica dos Cnticos
de Salomo puramente metafrica. O rito central do
Sahajlys era uma srie complicada e prolongada de
aes litrgicas, entremeada com a recitao repetida de
mantras, que culminavam no ato de relao sexual entre
os devotos plenamente iniciados do culto, um homem e
uma mulher, os quais simulavam em seu comportamento
a corte amorosa de Krishna e Rdh. No era um ato
meramente de prazer sensual, porque tinha de ser precedido por toda espcie de prticas ascticas, meditaes e por ensinamentos feitos por gurus autorizados.
Era um ato essencialmente religioso quanto natureza,
que tratava a prtica da relao sexual como um tipo
de sacramento, "sinal visvel e exterior de uma graa
espiritual e interior".
O que sociologicamente interessante a respeito deste
ritual que, exatamente como as gops, as companheiras
dos iniciados do Sahajlys deviam ser casadas com outros homens (veja-se tambm De, 1961, p. 204-205)Este fato no era julgado adultrio mas, conforme de190

monstra D . m o c k, assemelhava-se mais s Cortes de


Amor na Europa medieval, nas quais o verdadeiro amor
era considerado como "amor separado, (do qual) a
extenso loglca o amor parte do casamento, (porque)
no casamento h sempre um trao de sensualidade. O
descendente do trovador, diz De Rougement, estimula
com nobres emoes o amor fora do casamento- pois o
casamento implica apenas unio fsica, mas o '(Amor)
- o supremo_Eros - o transporte da alma para o
alto, ate a unio final com a luz" (1966 p 8) S Francisco cantou a Senhora Pobreza mais ou menos da mesma maneira, diga-se de passagem, como um trovador
cantava a sua senhora distante, casada com outro cnjuge mundano.
Segundo meu ponto de vista, aquilo que estamos
agora tratando, no sculo XVI, em Bengala, e no sculo XII, na Europa, como um amor ao mesmo tempo
divino e timidamente ilcito - por oposi o ao amor
mantal, licito - um smbolo da "communitas". A
commumtas" e o elo entre as gopSr 0 deus azul e ntre
cada par de ordenhadoras. A "communitas" tambm
a relao do frade com a Minha Senhora Pobreza Em
termos da oposio simblica entre amor romntico e
casamento, o casamento homlogo propriedade,
assim como o amor em separao homlogo pobreza.
O casamento, portanto, representa a estrutura nessa linguagem ertico-teolgica. A noo de posse ou de propriedade pessoal tambm antittica espcie de "comj mumtas", o amor resumido na relao entre Krishna e
' as gops. Dimock, por exemplo, cita um texto bengali
ulterior que "embeleza uma histria do Bhgavata".
Parece que as gopls contaram a Krishna que estavam
cheias de amor por ele, e ento comearam a danar.
'Mas, durante a dana, Krishna desapareceu para elas,
! porque no esprito de todas as gopls tinha surgido o
pensamento 'ele meu', e no pensamento 'ele meu',
o parakly (isto , o verdadeiro amor em separao),
l no pode permanecer. Porm, quando o desejo outra
vez surgiu no esprito das gopls, Krishna apareceu-lhes
[novamente" (1966a, p. 12).

191

A doutrina do Sahajly difere da ortodoxia do Vaisnava pelo fato de que esta ltima prescrevia a unio
sacramentai entre cnjuges, enquanto que os discpulos
de Caitanya, conforme vimos, preceituavam as relaes
sexuais rituais entre um devoto e a mulher de outro.
O prprio Caitanya tinha uma companheira ritual deste
tipo, "a filha de Sathi, cujo pensamento e corpo eram
devotados a Caitanya"! Convm observar que os parceiros rituais dos Gosvmins, os primitivos companheiros de Caitanya e os expositores da teologia Sahajy,
eram "mulheres de ... grupos sem castas, lavadeiras
ou mulheres de outras castas baixas" (1966a, p. 127).
De fato, as prprias gopls eram vaqueiras e, por conseguinte, no pertenciam casta mais alta. Esta qualidade da "communitas" de no reconhecer as distines
hierrquicas estruturais efetivamente de todo tpica do
Sahajly e do Vaisnavismo, como uma totalidade.
A DIVISO ENTRE DEVOCIONAIS E
CONSERVADORES

Caitanya, pois, como S. Francisco, era um poeta da


religio devocional, humilde e simples, vivendo sua f
mais do que pensando a respeito dela. No entanto, seus
seis Gosvmins eram telogos e filsofos, que estabeleceram uma rama (escola de instruo religiosa) para
vaisnavas, onde a doutrina formal de sua seita poderia
ser elegantemente forjada. Trs desses Gosvmins eram
membros de uma nica famlia. Esta famlia, embora tivesse a reputao de ser de origem brmane, tinha perdido a casta em virtude das altas posies ocupadas na
corte do monarca muulmano de Bengala, na poca. Continuaram, de fato, a manter dilogo com alguns Sfs>
grupo de msticos e de poetas muulmanos, que tinham
profundas afinidades com os prprios Sahajys. Esse5
seis eruditos escreveram em snscrito e "desempenhava^
o principal papel na codificao da doutrina e do ritu^'
da seita" (1966, p. 45). Mas, uma vez mais, um rnv''
192

mento devocional estava predestinado a soobrar nos


escolhos da formulao doutrinai. Aps a morte de
Caitanya, seus adeptos em Bengala dividiram-se em
dois ramos. Um ramo seguiu o exemplo do amigo e
companheiro ntimo de Caitanya, Nitynanda, conhecido
como o "Avadhta sem casta" (os Avadhtas eram ascetas) ; o outro ramo seguiu advaita-crya um dos
primeiros e principais devotos de Caitanya, brmane de
Santapur.
Existem certas afinidades entre Nitynanda e os franciscanos espirituais. No s ele no possua casta, embora "permanecesse entre os sdras" (I966b p. 53),
e fosse "apstolo dos bnyas" (ambos, sdras e bnyas!
eram hindus de baixa casta), mas permitia tambm a milhares de monges e de freiras budistas entrarem para
o redil vaisnava. Um dos bigrafos de Caitanya conta
que ele dissera a Nitynanda: "Esta minha promessa,
feita com a minha prpria boca, que as pessoas humildes, ignorantes e de baixa casta flutuaro sobre o mar
do prema (amor)... podeis libert-los pelo bhakti"
(1966, p. 54). Bhakti ou a salvao mediante a devoo
pessoal a uma divindade, no se recomendava a Advaitacrya, que voltou ao "caminho do conhecimento" dos
monistas ortodoxos, que na ndia sempre tinham aceito
mukti, a libertao do ciclo de renascimentos, como sua
preocupao fundamental. Advaita, sendo brmane, no
esclareceu este fato. Era um fato .coerente com esta filiao de casta que ele devesse voltar doutrina do mukti,
porque a libertao do renascimento, no hindusmo ortodoxo, depende muito do cumprimento regular, por parte
de uma pessoa, dos deveres de sua casta. Se cumpre
esses deveres, poder ter a esperana de renascer numa
casta mais elevada; se alm disso vive uma vida santa
e de auto-sacrifcio, pode finalmente escapar do sofrimento e do poder da my, ou mundo ilusrio dos fenmenos.
Os monistas, como Advaita, acreditavam que a melhor
maneira de assegurar a libertao final seria dissipar a
iluso, mediante o conhecimento da realidade nica, co0 Processo... Ec) 2877 7

193

nhecida como "tman-brahman". Em outras palavras,


para eles a salvao operava-se pela gnose, no pela
devoo, e implicava a aceitao da estrutura social na
forma presente, pois todas as formas externas eram
igualmente ilusrias e destitudas da realidade ltima.
No entanto, Nitynanda no compartilhava desse conservadorismo social passivo. Acreditando que todo homem,
independentemente de casta e de crena, poderia obter
a salvao pela devoo pessoal a Krishna e a Rdh,
acentuava o aspecto missionrio do vaisnavismo.
Caitanya e Nitynanda converteram muitos muulmanos e assim hostilizaram o poder muulmano dominante e deliberadamente quebraram um certo nmero
de leis religiosas e ortodoxas dos hindus. Por exemplo,
"Caitanya regozijou-se quando conseguiu persuadir Vsudeva a comer prosada restos de alimentos ofertados divindade sem ter antes lavado as mos. 'Agora',
disse Caitanya, partistes realmente os vnculos1 com vosso
corpo" (1966, p. 55). Esta frase lembra-nos muitas das
de Jesus, por exemplo, que o sbado foi feito pra o
homem e no o homem para o sbado, e que a verdade
libertar homem. Para Caitanya e para o ramo Nitynanda de seus discpulos, bhakti emancipava-os das leis
e das convenes: "eles danavam em xtase, e cantavam; pareciam loucos" (1966b, p. 65). E' difcil pensar
que no h nada em comum entre a "communitas" exttica de Dionsio e a de Krishna. Com efeito, o puer
aeternus de Ovidio veio da adusque decolor extremo qua
cingitur ndia Oange ("escura fndia cingida pelo longnquo Ganges", Metamorfose, IV, linha 21).

Nitynanda e seu rival Advaita representaram, respectivamente, os princpios da "communitas" normativa e


da estrutura ao nvel da organizao de grupo; seus
-ramos, eram homlogos dos franisanos espirituais e

dos conventuais. Em ambas as circunstncias, tanto na


Europa como na ndia, os sucessores do fundador tiveram de enfrentar problemas de continuidade do grupo
e de definio teolgica. Os fundadores, S. Francisco e
Caitanya, eram poetas da religio, viviam das coloridas
fantasias religiosas que povoavam suas meditaes. No
caso dos Vaisnava-Sahajys, foi o grupo dos Gosvmiris que tomou a si a tarefa de definir os conceitos
centrais da seita. Enquanto os franisanos tinham localizado seu ponto de rquimedes na noo de pobreza, e
da partido para a discriminao entre dominium e usas
com relao propriedade, sendo finalmente levados ao
divisionismo em torno da doutrina do usus pauper, os
Sahajlys centralizaram suas c o n t r o v r s i a s sobre
outro aspecto da posse, no caso, posse sexual, pois,
como vimos, para eles a unio sexual tinha carter
sacramentai.
Os livros sagrados dos Vaisnavas, o "Bhgavata" e
o "Glta Govinda", esto plenos de imagens de paixo;
contam o amor das gopls por Krishna. Mas, como o
demonstra Dimock, "a idia de encontro amoroso com
esposas de outros homens no aceitvel para a maioria
da sociedade indiana" (1966b, p. 55), apesar, poder-seia acrescentar, de sua tradicional tolerncia religiosa,
mesmo quando esta tolerncia no depende de uma Segunda Regenerao! Assim os exegetas vaisnavas, e
especialmente os Sahajlys, tinham muitos problemas. A
doutrina Vaisnava tinha sempre feito livremente emprstimos da teoria potica snscrita, e uma das principais
distines desta teoria era dividir as mulheres em duas
classes: sva/y ou svly, aquela que a prpria de
algum, e parakly, aquela que de outro. As mulheres
parakly podem ser as que no so casadas e as que
so de outro, pelo casamento. No texto do Bhgavata,
as vaqueiras eram claramente da segunda espcie. A primeira tentativa exegtica feita por Gosvmin, chamado
Jlva, foi negar que isto poderia ter um significado literal. Em primeiro lugar, a teoria potica padro no
reconhecia que as mulheres parakly pudessem ter pa-

194

195

AS HOMOLOGIAS ENTRE SAHAJIYA


E O FRANCISCANISMO

pis principais no drama; por conseguinte, as gps,


que eram heronas, no poderiam ser realmente parakiy.
Alm disso, as gopis, na realidade, nunca consumaram
seu casamento. "Pelo poder da maya de Krishna [o
poder de fabricar iluses], figuras semelhantes s gopis,
mas no as prprias gops, tinham dormido com seus
maridos. Mais ainda, as gops so realmente ktis
[isto , poderes emanados de uma divindade concebida
como uma deusa, por exemplo, a kti do deus Chiva
a deusa Kali ou Durga] de Krishna, participam de
sua essncia e, sob certo aspecto, so idnticas a ele"
(1966b, p. 56). Portanto, p e r t e n c e m classe das
svakly, so realmente suas mulheres e s aparentemente parakiy, mulheres de outros.
O parente do Gosvmin Jva, Rpa, aceitou a interpretao parakiy, que deturpa menos o sentido original dos textos, ms argumentava que as medidas ticas
humanas comuns "dificilmente poderiam ser aplicadas ao
dirigente de tudo que deve ser dirigido". Tem-se recorrido a este argumento na exegese judaico-crist, a fim
de explicar alguns dos mais estranhos atos e ordens de
Jeov, como a ordem dada a Abrao para sacrificar
Isaac. No prprio Bhgavata, algum pergunta como
Krishna, declarado "sustentculo da devoo", poderia
ter-se deixado levar a um jogo amoroso com as mulheres
de outros homens; a resposta dada a seguinte: "Para
aqueles que esto libertos do egosmo, no existe aqui
vantagem pessoal no comportamento correto, nem qualquer desvantagem no oposto". Este ponto de vista est
bem de acordo com as atitudes de uma seita que se
sentia situada alm dos limites e padres da sociedade
comum, estruturada. Uma liberdade semelhante impregna as crenas de muitos outros movimentos e seitas, que
acentuam a "communitas" devociona ou entusistica como princpio bsico. Poderamos mencionar os hussitas,
de Praga, ou a Comunidade de Oneida, do Estado de
Nova Iorque.

196

RADHA, "MINHA SENHORA POBREZA"


E "COMMUNITAS"
Mas os exegetas posteriores chegaram a aceitar como
ortodoxa a concepo literal de que o amor das gops
por Krishna era compatvel com sua condio de parakiy, e que esta condio tornava-o mais puro e real.
Pois, como nota Dimock, "svakiy leva a ktra, ao desejo de satisfao da personalidade; s a parakiy tem
como conseqncia o prema, o desejo intenso de satisfao do amado, que a caracterstica a ser imitada
pelos bhakta [os devotos], do amor das gops. Exatamente porque o amor das gops um amor parakiy
revela-se to intenso. A dor da separao, somente possvel na parakiy, e a resultante permanncia constante
do esprito das gops em Krishna so a salvao delas"
(1966b, p. 56-57). Lembramo-nos ainda uma vez de
certas passagens dos Cnticos dos Cnticos e dos versos de S. Joo da Cruz, nos quais a alma anseia pelo
amado ausente, no caso, Deus. No entanto, na seita
Sahajy, este desejo no eterno; depois da "disciplina dos sessenta e quatro atos devocionais", que compreendem "atividade, repetio dos mantras, disciplina
fsica, conhecimento intelectual, ascetismo, meditao"
(1966a, p. 195), os Sahajiys afastam-se da ortodoxia
Vaisnava, entrando no estgio do rito sexual de vidhibhakti. Neste, os participantes so ambos iniciados, considerados como gurus, mestres ou guias espirituais um
do outro, e sendo neste caso expresses sacramentais
dos prprios Krishna e Rdh. O casal considerado
"de um nico tipo" (1966a, p. 220) e, assim sendo,
"pode haver unio" (p. 219); esse tipo o mais elevado
de seus respectivos sexos. Evidentemente, os motivos
deste ato no so predominantemente sensuais, porquanto uma rica literatura ertica atesta a abundncia das
prticas seculares utilizveis pelos sibaritas indianos da
poca, sem qualquer necessidade de um longo exerccio
preliminar, mediante a ascese.
197

Na era da psicologia profunda, devemos naturalmente


estar atentos aos sinais do complexo de dipo num
amor que se apresenta poderosamente idealizado e tanto
mais nobre quanto mais distante. Ademais os adeptos
de Jung muito teriam a dizer sobre uma unio com um
arqutipo da Grande Me como smbolo da unio entre
o componente consciente e inconsciente do esprito humano, precedendo a totalidade da "individualizao".
Mas essas "profundezas" podem ser social e culturalmente "superficiais" se nossa ateno se concentra sobre
as modalidades de relaes sociais. Parece que os sahajys intentam utilizar vrios meios culturais e biolgicos para atingir um estado sem estrutura de autntica
"communitas" social. Mesmo no rito sexual, a finalidade
unir simplesmente um macho com uma fmea, mas
o macho e a fmea no ntimo 'de cada indivduo. Assim,
conforme se afirma que o prprio Caitanya era, cada
devoto seria uma encarnao simultnea de Krishna e
de Rdh, um ser humano completo. Simbolicamente,
pois, o lao do casamento e com ele a famlia, a
clula bsica da estrutura social ficava dissolvida
pelo amor parakly. Por conseguinte, em sua prpria
fonte, numa sociedade em grande parte estruturada por
parentesco e por casta, a estrutura tornou-se inoperante,
porque os amantes quebraram tambm todas as regras
de casta. Os franciscanos recusaram a propriedade, um .
dos pilares da estrutura social, e os sahajlys negaram
o casamento e a famlia, outro principal pilar. E' significativo que o antroplogo Edmund Leach, que proferiu as influentes "Conferncias Reith", no. Terceiro
Programa da BBC, em 1967, tenha tambm voltado a
atacar a famlia considerando-a fonte de todas as
neuroses e deformidades mentais apenas com a finalidade de louvar as coletividades e as 'comunidades, como
as fazendas coletivas de Israel ("kibbutzim"), com suas
creches. O Dr. Leach conhece bem as literaturas cingalesa e do sul da ndia.-Talvez haja um eco tntrico em
seus ataques. De qualquer forma, ele parece estar assestando um golpe em favor da "communitas"!

i
Os sucessores de Caitanya malograram porque o grupo
de Advaita foi absorvido pelo sistema de castas e o
grupo de Nitynanda, exclusivista e cheio de fervor
missionrio, foi muito perseguido e gradualmente perdeu o
nimo da luta. Historicamente, o fluxo do sahajynismo
parece ter lentamente declinado nos sculos XVII e
XVIII, apesar do vaisnavismo ser ainda uma fora ativa
em Bengala, segundo Dimock. Por exemplo, a seita de
msicos conhecidos como baules, que tocam um "instrumento primitivo, mas obsessivo, de uma s corda, chamado 'ek-tara'", e que cantam "canes suaves emocionantes como o vento, que o seu lar", esta seita
afirma estar "enlouquecida plo som da flauta de Krishna
e, tal uma gopi, no dando nenhuma importncia ao
lar nem tendo respeito para com o mundo, segue o som
da flauta" (1966a, p. 252). Um fascinante exemplo da
convergncia, nas modernas condies de transporte e
de comunicao, dos liminares ocidentais e orientais, e
dos portadores da "communitas" pode ser encontrado
atualmente em muitas lojas de discos. A capa de um
recente disco de canes de Bob Dyjan mostra o popular cantor americano, porta-voz dos indivduos estru-.
turalmente inferiores, ladeado por baules, esses msicos
errantes de Bengala. O violo e o ek-tara se reuniram.
E' ainda mais fascinante considerar a freqncia com
que as xpreses da "communitas" esto culturalmente
ligadas aos instrumentos simples de sopro (flautas e
gaitas) e aos instrumentos de corda. Talvez, alm de
serem facilmente transportveis, seja a capacidade de
traduzir em msica a qualidade da "communitas" humana espontnea, o que justifica o amplo uso de tais
instrumentos. Os baules, como S. Francisco, eram "trovadores de Deus". Seria adequado encerrar este captulo
com uma de suas canes, que claramente indica como
o esprito da "communitas" vaisnava tem persistido no
mundo de hoje:

198

199

BOB DYLAN E OS BAULES

Hindu, muulmano no existe diferena,


Nem h diferenas de casta
Kabir, o bhakta (devoto) era, por casta, um Jol,
porm, embriagado com o prema-bhak [o verdadeiro amor
melhor expresso, conforme vimos, pelo amor extramarital]
agarrou-se aos ps da Jia Negra [isto , aos ps de Krishna]
Uma nica lua lanterna para este mundo,
e de'uma semente brotou a criao inteira (1966a, p. 264).

Eis a autntica voz da "communitas" espontnea.

Humildade e Hierarquia.
A Liminaridade de Elevao
e de Reverso de Status
OS RITUAIS DE ELEVAO
E DE REVERSO DE "STATUS"

i
VAN GENNEP, o PAI DA ANLISE PROCESSUAL FORMAL,
utilizava-se de dois grupos de termos para descrever as
trs fases da passagem de um estudo ou condio, culturalmente definido, para outro. No apenas empregou
com referncia primeira ao ritual, os termos em srie
separao, margem e reagregao, mas tambm com
referncia primeira a transies espaciais, empregou os
termos pr-liminar, liminar e ps-liminar. Quando discute o primeiro conjunto de termos e os aplica aos
dados, Van Qennep insiste no que eu chamaria de aspectos "estruturais" da passagem. Por outro lado o uso
que faz do segundo conjunto indica seu interesse fundamental pelas unidades de espao e de tempo, nas quais
o comportamento e o simbolismo se acham momentaneamente libertados das normas e valores que governam
a vida pblica dos ocupantes de posies estruturais.
Neste ponto a liminaridade torna-se central e ele fez
emprego de prefixos unidos ao adjetivo "liminar", para
indicar a posio perifrica da estrutura. Quero significar por "estrutura", tal como antes, a "estrutura social",
conforme tem sido usada pela maioria dos antroplogos
sociais britnicos, isto , como uma disposio mais ou
menos caracterstica de instituies especializadas mutua-

200

201

mente dependentes e a organizao institucional de posies e de atores que elas implicam. No me refiro
"estrutura" no sentido tornado popular por Lvi-Strauss,
ou seja, concernente a categorias lgicas e forma das
relaes entre elas. Na realidade, nas fases liminares
do ritual costuma-se muitas vezes encontrar a simplificao, at mesmo chegando a ser eliminao, da estrutura social no sentido britnico e a ampHficao da
estrutura no sentido de Lvi-Strauss. Encontramos relaes sociais simplificadas, enquanto o mito e o ritual
so complexos. A razo disto muito simples de ser
compreendida: se a liminaridade considerada como um
tempo e um lugar de retiro dos modos normais de ao
social, pode ser encarada como sendo potencialmente um
perodo de exame dos valores e axiomas centrais da
cultura em que ocorre.
Neste captulo, focalizaremos principalmente a liminaridade, como fase e como estado. Nas grandes e
complexas sociedades a liminaridade, resultando da
progressiva diviso do trabalho, tornou-se freqentemente um e s t a d o religioso ou semi-religioso e, em
virtude desta cristalizao, mostrou-se propensa a reingressar na estrutura e a receber um inteiro suplemento
de papis e posies estruturais. Em lugar da cabana
de recluso temos a igreja. Mais que isto, desejo distinguir dois tipos principais de liminaridade embora
muitos outros venham a ser sem dvida descobertos
primeiro , a liminaridade que caracteriza os ritos de
elevao de "status" nos quais o sujeito do ritual, ou o
novio, conduzido irreversivelmente de posio mais
baixa para outra mais alta, em um sistema institucionalizado de tais posies. Em segundo lugar, a liminaridade encontrada com freqncia .no ritual cclico e
ligado ao calendrio, em geral de tipo coletivo, no qual,
em determinados pontos culturalmente definidos do ciclo
das estaes, grupos ou categorias de pessoas que habitualmente ocupam baixas posies na estrutura social,
so positivamente obrigadas a exercer uma autoridade
ritual sobre seus superiores, devendo estes, por sua vez,

Agora que, por assim dizer, pus as cartas na mesa,


apresentarei alguns fatos em apoio dessas afirmaes,
comeando com a tradicional distino antropolgica entre os ritos de crises da vida e os ritos estacionais ou
fixados pelo calendrio. Os ritos de crises da vida so
aqueles em que o sujeito, ou os sujeitos rituais marcados por um certo nmero de momentos crticos de
transio, que todas as sociedades ritualizam e assinalam publicamente com prticas adequadas para gravar
a significao do indivduo e do grupo nos membros
vivos da comunidade se movem, como diz Lloyd Warner

202

203

aceitar de boa vontade a degradao ritual. Estes ritos


podem ser denominados ritos de inverso de "status".
So com freqncia acompanhados por vigoroso comportamento verbal e no-verbal, em que os inferiores
insultam e at maltratam fisicamente os superiores.
Uma variante comum desse tipo de ritual aquela
em que os inferiores simulam a posio e o estilo de
vida dos superiores, chegando algumas vezes ao ponto
de se organizarem numa hierarquia que uma imitao
da hierarquia secular dos seus chamados superiores.
Resumindo, pode-se contrastar a liminaridade dos fortes
(e dos que se esto tornando mais fortes) com a dos
permanentemente fracos. A liminaridade dos que sobem
em geral implica o rebaixamento ou humilhao do novio como principal componente cultural; ao mesmo
tempo, a liminaridade das pessoas permanentemente inferiores na estrutura contm como principal elemento
social a elevao simblica, ou fictcia, dos sujeitos ao
ritual a posies de autoridade eminente. Os mais fortes
tornam-se mais fracos; os fracos agem como se fossem
fortes. A liminaridade dos fortes socialmente no estruturada ou estruturada de maneira simples; a dos fracos
representa uma fantasia de superioridade estrutural.
OS RITOS DE CRISE DA VIDA E OS RITOS
FIXADOS PELO CALENDRIO

(1959), de "uma localizao placentria fixa dentro do


tero da me para a morte e o ponto final fixo de sua
pedra tumular e definitivo encerramento na sepultura
como organismo morto. So eles os importantes momentos do nascimento, puberdade, casamento e morte"
(p. 303). Acrescentaria a esses os ritos que dizem respeito ao ingresso em um "status" perfeito mais alto,
quer seja um cargo poltico quer a participao em um
clube exclusivista ou numa sociedade secreta. Esses ritos
podem ser de natureza individual ou coletiva, porm
existe a tendncia para que sejam mais freqentemente
cumpridos por indivduos. Os ritos marcados pelo calendrio, por outro lado, quase sempre se referem a
grandes grupos e em geral abrangem sociedades inteiras.
Com freqncia, tambm, so realizados em momentos
bem assinalados dentro do ciclo produtivo anual, e atestam a passagem da escassez para a abundncia (como
na poca dos primeiros frutos e nas grandes festas das
colheitas) ou da fartura para a escassez (como quando
os sofrimentos do inverno c h e g a m antecipadamente,
obrigando a precaver-se magicamente contra eles). Poderamos ainda acrescentar a esses todos os "rites de
passage", que acompanham qualquer mudana de tipo
coletivo de um estado para outro, conforme acontece
quando uma tribo inteira entra em guerra ou uma grande comunidade local executa um rito a fim de anular
os efeitos da fome, da seca ou de uma praga. Os ritos
de crises da vida e os rituais de investidura num cargo
so quase sempre ritos de elevao de "status". Os ritos
regidos pelo calendrio e os ritos de crise do grupo
podem algumas vezes ser ritos de inverso de posio
social.
Escrevi alhures (1967, p. 93-111)-a respeito dos smbolos de liminaridade que indicam a invisibilidade estrutural dos novios submetidos a rituais de crise de
vida assim por exemplo quando so segregados das
esferas da vida diria, quando se disfaram com mscaras e corantes ou se tornam mudos pela imposio
das regras do silncio. Mostrei, anteriormente, como apli-

cando. os termos de Goffman (1962, p. 14), eles so !


"nivelados" e "despojados" de todas as distines profanas de posio social e de direitos sobre a propriedade. Alm disso so s u b m e t i d o s a julgamentos e
ordlios para aprenderem a ser humildes. Um s exemplo de tal tratamento ser suficiente. Nos ritos de circircunciso dos meninos tsongas, descritos por Henry
Junod (1962, vol. I, p. 82-85), os meninos so "surrados severamente pelos pastores... ao menor pretexto"
(p. 84). Submetidos ao frio, devem dormir nus, de
costas, toda a noite, durante os frios meses de junho
a agosto; so proibidos de beber uma gota de gua
sequer durante toda a iniciao; devem comer alimentos
inspidos que "lhes causam nuseas a princpio" a ponto
,de faz-los vomitar; so severamente punidos, sendoIhes introduzidos pedaos de pau separando os dedos
de ambas as mos, enquanto um homem forte, tomando
as pontas dos paus em suas mos, aperta-os e suspende
os pobres meninos, espremendo e quase esmagandolhes os dedos; finalmente, o circuncisado deve estar tambm preparado para morrer, se a ferida no cicatrizar
de maneira adequada. Essas provaes no tm por finalidade apenas, como o sups Junod, ensinar resistncia, obedincia e virilidade aos meninos. Numerosos
documentos oferecidos por outras sociedades indicam
que tm a significao social de rebaix-los a uma
espcie de "prima matria" humana, despojada de forma
especfica e reduzida a uma condio que, apesar de
ainda ser social, no possui nenhuma das formas admitidas de condio social, ou est abaixo de todas elas.
A explicao destes ritos que para um indivduo subir !
na escada social, deve descer s posies mais baixas.

204

205

A ELEVAO DE "STATUS"

A liminaridade da crise da vida, portanto, humilha e


generaliza aquele que aspira a uma posio estrutural
mais alta. Os mesmos processos so encontrados, de

maneira particularmente vivida, em muitos rituais africanos de investidura. O futuro ocupante da chefia ou
do comando primeiramente separado da vida comum,
devendo em seguida submeter-se a ritos liminares que
o rebaixem rudemente antes de, nas cerimnias de readmisso, ser instalado em seu trono na glria final. J
tratei dos ritos de investidura dos ndembos (cap. 3),
onde o futuro chefe e sua esposa ritual so rebaixados
e repreendidos durante uma noite de recluso numa
pequena cabana por muitos de seus futuros sditos.
Outro exemplo africano do mesmo padro vivamente
contado no relato de Du Chaillu (1868) sobre a eleio
de "um rei de Gabo". Depois da descrio dos ritos
funerrios pelo velho rei, Du Chaillu descreve como os
ancios "da aldeia" escolhem secretamente um novo rei,
o qual " mantido ignorante de sua boa sorte at o
ltimo momento".
"Aconteceu que Njogoni, um bom amigo meu, foi eleito. A
escolha recaiu nele em parte porque provinha de boa famlia,
mas principalmente porque era o favorito do povo e poderia
conseguir a maioria dos votos. No creio que Njogoni tivesse
a menor suspeita sobre a sua elevao. Quando andava pela
praia, na manh do stimo dia (aps a morte do rei precedente),
o povo inteiro caiu sobre ele, de repente, dando incio a uma
cerimnia que antecede cproao (e, deve ser considerada
liminar no complexo de ritos funerrios totais de investiduras)
e que tem a finalidade de dissuadir at o mais ambicioso dos
homens a aspirar coroa. Cercaram-no numa densa multido,
e ento comearam a cobri-lo com todas as espcies de maus
tratos que a pior das plebes possa imaginar. Alguns cuspiamlhe no rosto, davam-lhe socos; outros, ainda, davam-lhe pontaps, lanavam-lhe objetos repugnantes, enquanto os infelizes
que estavam a distncia e no podiam alcanar o coitado seno
com a ivoz, permanentemente amaldioavam a ele e o pai, a
me, as irms e os irmos, e todos os ancestrais dele at a
mais remota gerao. Um estranho no daria um Centavo pela
vida daquele homem que estava para ser coroado.
N meio de todo o barulho e de toda luta, apreendi as palavras qu me derajn a explicao de tudo isto. Com intervalos
de poucos .minutos, um indivduo dava-lhe um soco ou um
pontap, .gritando: "No s ainda nosso rei; durante alguni
tempo faremos o que quisermos contigo. Dentro em breve, ns
que teremos de fazer a tua vontade".

206

Njogcni criiportou-se cf um homem e um rei rii


pectiva. Manteve a calma e aceitou todas as injrias com um
sorriso nos lbios. Depois de cerca de meia hora, levaraW-no
para a casa do antigo rei. L ele se sentou e, durante puco
tempo, continuou a ser vtima dos insultos de seu povo.
Em seguida, todos ficaram silenciosos e os ancies do Povo
levantaram-se e disseram solenemente (com o povo repetindo
depois deles): "Agora escolhemcs-te para nosso rei. Cofflprmetemo-nos a ouvir-te e a prestar-te obedincia".
Seguiu-se um momento de silncio. Logo depois o chapu
de seda, que o emblema da realeza, foi trazido e colocado
na cabea de Njogoni. Foi ento vestido com uma toga vermelha, recebendo as maiores p r o v a s de respeito de todos
aqueles que, at poucos momentos antes, tinham-no insultado"
(p. 43-44).

Esta narrao no s ilustra a humilhao de um


candidato em um rito de elevao de "status". Exemplifica tambm o poder dos indivduos estruturalmente
inferiores no rito de reverso de "status" num ciclo de
rituais polticos. E' um ds rituais complexos que contm
aspectos de elevao juntamente com aspectos de rebaixamento de "status". No primeiro aspecto, acentua-se
a permanente elevao estrutural do indivduo; no segundo, salienta-se a reverso temporria de "status" de
governantes e governandos. O "status" de um indivduo
mudado irreversivelmente mas o "status" coletivo de
seus sditos p e r m a n e c e imutvel. As provaes nos
rituais de elevao de "status" so aspectos de nossa
prpria sociedade, conforme atestam os trotes nos calouros.-e as iniciaes nas academias militares. Lembrme pelo menos de um moderno ritual de reverso s
"status", No exrcito ingls, no dia de Natal, os soldados rasos so servidos ao jantar pelos oficiais graduados e oficiais subalternos. Depois d e s t e rito, o
"status" dos.soldados permanece imutvel. De fato, o
sargento-ajudante poder berrar com eles da maneira
mais spera, por ter sido, obrigado a correr de um lado
para o outro com peru assado, obedecendo s ordens
deles. O ritual, na verdade, tem o efeito a longo prazo
de salientar de maneira mais decisiva as definies sociais do grupo.
207

A REVERSO DE "STATUS". A FUNO


DA MSCARA
Na sociedade ocidental persistem traos de ritos de rverso de idade e de papel sexual em alguns costumes
como, nos Estados Unidos, a festa de Halloween, quando os poderes dos indivduos estruturalmente inferiores
manifestam-se na predominncia liminar de crianas pradolescentes. As monstruosas mscaras que freqentemente usam como disfarces representam principalmente
poderes ctnicos ou demonacos terrestres feiticeiras
que destroem a fecundidade; cadveres ou esqueletos
tirados da terra; povos indgenas, como os ndios; trogloditas, como os anes e os gnomos; vagabundos ou
figuras contrrias s autoridades constitudas, como os
piratas ou os tradicionais pistoleiros do oeste. Esses minsculos poderes terrestres, se no forem aplacados com
festas e guloseimas, pregaro peas fantsticas e caprichosas gerao de chefes de famlia encarregada de
manter a autoridade, travessuras semelhantes s que se
acreditava outrora serem obra de espritos terrenos, os
duendes, os fantasmas, os gnomos, as fadas os anes.
Em certo sentido, tambm, essas crianas servem de
mediadores entre os mortos e os vivos; no esto muito
longe do tero da me, que em muitas culturas equiparado tumba, assim como ambos se associam terra,
fonte dos frutos e o receptculo dos resduos. As crianas de Halloween (vspera do dia de Todos os Santos)
exemplificam vrios motivos liminares: as mscaras asseguram-lhes o anonimato, pois ningum sabe ao certo
de quem so filhas. Mas, como na maioria dos ritos
de reverso, o anonimato aqui tem finalidades agressivas, no de humilhao. A mscara da criana como
a mscara do salteador de estrada e, com freqncia,
as crianas no dia da festa de Halloween usam mscaras
representando ladres ou carrascos. O mascaramento
confere-lhes poderes de seres selvagens, criminosos, autctones e sobrenaturais.

Relacionado a tudo isto, h algo de carter dos seres


terantrpicos dos mitos primitivos, por exemplo, os jaguares macho e fmea dos mitos do "fogo" dos povos
de lngua j, da Amaznia, descritos por Lvi-Strauss
em L Cru et l Cuit (1964). Terence Turner, da Universidade de Chicago, voltou a analisar recentemente os
mitos j s (no prelo). Partindo de anlise precisa e complexa dos mitos dos caiaps sobre a origem do fogo
domstico, conclui que a forma do jaguar uma espcie
de mscara que ao mesmo tempo revela e esconde um
processo de realinhamento estrutural. O processo referese ao movimento de um menino que vai da famlia
nuclear para a casa dos homens. As figuras do jaguar
representam aqui no apenas o "status" de pai e me,
mas tambm as mudanas nas relaes do menino com
os pais, mudanas que implicam, alm disso, a possibilidade de penoso conflito social e psquico. Assim, o
jaguar macho do mito comea por ser genuinamente
terrificante e termina benvolo, ao passo que o jaguar
fmea, s e m p r e ambivalente, termina malvolo, sendo
morto pelo menino a conselho do jaguar macho.
Cada um dos jaguares um smbolo multvoco: enquanto o jaguar macho representa tanto as dores quanto
as alegrias de definida paternidade, representa tambm
a paternidade em geral. Existe, de fato, entre os caiaps, o papel ritual do "pai substituto", que retira o
menino da esfera domstica, mais ou menos na idade
de sete anos, para assimil-lo dentro de uma mais
vasta comunidade moral masculina. Simbolicamente, isto
parece relacionado com a "morte" ou com a extirpao
de um importante aspecto da relao me-filho, que
corresponde explicao mtica da matana do jaguar
fmea pelo, menino, cujo desejo de matar foi fortalecido
pelo jaguar macho. Nota-se com clareza que a explicao mtica no se refere a indivduos concretos, mas a
pessoas sociais. Contudo, as consideraes estruturais e
histricas entrelaam-se de maneira to delicada que a
representao direta, sob forma humana, da me e do
pai no mito e no ritual poder ser circunstancialmente

208

209

bloqueada por sentimentos poderosos que sempre surgem nas transies sociais decisivas.
Pode haver outro aspecto da funo do mascaramento
nas festas norte-americanas de Halloween e nos mitos
e rituais dos caiaps, assim como em outras manifestaes
culturais. Anna Freud teve muitas coisas esclarecedoras
a dizer sobre a freqente identificao das crianas, nos
jogos, com os animais, ferozes e outros seres ameaadores e monstruosos. O argumento da Srta. Freud
cuja fora, reconhecidamente, provm da posio terica
de seu famoso pai complexo mas coerente. Na fantasia infantil, o que toma a forma animal o poder
agressivo e punitivo dos pais, em particular o pai, especialmente com referncia ameaa paterna, bastante conhecida, de castrao. Ela chama a ateno para o terror
quase irracional que as crianas pequenas sentem pelos
animais ces, cavalos e porcos, por exemplo - medo
normal, explica ela, aumentado pelo medo inconsciente
do aspecto ameaador dos pais. Declara ento que um
dos mecanismos de defesa mais eficaz utilizado pelo
"ego" contra tal temor inconsciente consiste na identificao coni o objeto aterrorizador. Desta maneira, sentese que lhe foi roubado o poder, talvez, at que o poder
possa ser retirado dele.
Para muitos psiclogos adeptos da psicologia profunda, tambm, a identificao significa substituio.
Retirar o poder de um ser forte enfraqec-o. Desse
modo, as crianas, com freqncia, brincam fingindo-se
de tigres, lees, onas, salteadores, ndios ou monstros.
Elas esto assim, segundo Anna Freud, identificando-se
inconscientemente com os prprios poderes que as ameaam profundamente e, numa espcie de jiu-jitsu, fortalecendo seus prprios poderes pessoais, por meio do
poder que ameaa enfraquec-las. H em tudo isto, naturalmente, uma qualidade traioeira inconscientemente, a pessoa visa a "matar a coisa que ama" e esta
precisamente o tipo de comportamento que os pais
generalizados devem esperar de crianas 1 generalizadas,
dentro dos costumes do Halloween norte-americano. Fa-

zem-se travessuras e a propriedade danificada, ou


procura-se dar a aparncia de ter sido danificada. Do
mesmo modo, a identificao com a figura do jaguar
no mito pode indicar a paternidade em potencial do iniciando e, por conseguinte, sua capacidade de substituir
estruturalmente seu prprio pai.
E' interessante que esta relao entre entidades e
mscaras terantrpicas, de um lado, e aspectos da funo
determinada pelo parentesco, de outro lado, surjam tanto
nos rituais de elevao de "status" quanto em pontos
de mudana culturalmente definidos no ciclo anual. Poder-se-ia conjecturar que a representao feroz dos pais
refere-se somente queles aspectos da relao total entre
pais e filhos; em sua plena expanso longitudinal, que
provoca fortes sentimentos e desejos de carter libidinoso ilcito e particularmente agressivo. E' provvel que
tais aspectos sejam estruturalmente determinados; podem
estabelecer o desacordo entre a percepo, pela criana,
da natureza individual dos pais e o comportamento que
deve ter para com eles, e deles esperar, em termos de
prescrio cultural. "Meu pai", pensar ela, "no est
agindo como um ser humano", quando ele age segundo
normas autoritrias, e no segundo aquilo que habitualmente se chama "humanidade". Portanto, de acordo com
a apreciao, subliminar das classificaes culturais, podese pensar que esteja agindo como algo situado fora da
humanidade, mais freqentemente como um animal. "E
se ele exerce poder sobre mim como animal e no como
a.pessoa,que conheo, ento posso apropriar-me daquele
poder, ou esvazi-lo se eu tambm assumir os atributos,
definidos culturalmente, do animal que sinto que ele ".
As crises da vida proporcionam os ritos nos quais,
ou por meio dos quais so reestruturadas, s vezes
drasticamente, as relaes entre posies estruturais e
ocupantes de tais posies. Os mais velhos assumem a
responsabilidade de realizar efetivamente as mudanas
prescritas pelos costumes; eles, pelo menos, tm a satisfao de tomar uma iniciativa. Mas os jovens, com
menos compreenso da racionalidade social de tais rnu-

210

211

danas, julgam que sua expectativa com relao ao


comportamento dos mais velhos para com eles so falseadas pela realidade, durante as pocas de mudana.
Considerada do ponto de vista de sua perspectiva estrutural, por conseguinte, a mudana de comportamento
dos pais e de outras pessoas mais idosas parece-lhes
ameaadora e mesmo embusteira, revivendo talvez at
temores inconscientes de mutilao fsica e outras punies por um comportamento que no est de acordo com
a vontade dos pais. Assim, enquanto o comportamento
dos mais velhos se situa dentro do poder daquele grupo
etrio e, de alguma forma, s mudanas estruturais
que promovem so previsveis, para eles os mesmos
comportamentos e mudanas esto fora do alcance dos
jovens, seja para compreend-los seja para evit-los.
Para compensar essas deficincias cognoscitivas, os
jovens e os inferiores, nas situaes rituais, podem mobilizar smbolos de grande poder, carregados de sentimentos. Os ritos de reverso de "status", segundo este
princpio, mascaram os fracos com a fora e pedem aos
fortes que sejam passivos e suportem pacientemente a
agresso simblica, ou mesmo real, praticada contra
eles pelos estruturalmente inferiores. Entretanto, necessrio voltar aqui distino, anteriormente estabelecida,
entre rituais de elevao de "status" e rituais de reverso.
Nos primeiros, o comportamento agressivo demonstrado
por candidatos a um "status" mais alto, embora se encontre com freqncia, tende a ser abafado e refreado;
afinal de contas, o candidato "est se elevando" simbolicamente, e, terminado o ritual, gozar de maiores privilgios e direitos do que at ento. Porm, nos rituais
de reverso, o grupo ou a categoria a que se permit6
agir como se fosse estruturalmente, superior e, nesse
papel, repreender e mesmo espancar os seus superiores
dogmticos est de fato situado perpetuamente eifl
um "status" mais baixo.
E' claro que ambos os modos de explicao, tanto
sociolgico quanto psicolgico, tm cabimento no casoAquilo que estruturalmente "visvel" para um observa'

dor capacitado em antropologia psicologicamente "inconsciente" para o m e m b r o individual da sociedade


observada. Contudo, suas respostas apetitivas s modificaes e regularidades estruturais, multiplicadas pelo
nmero de membros expostos a mudanas, de gerao
a gerao, devem ser levadas em considerao, do ponto
de vista cultural, e principalmente ritual, para que a
sociedade sobreviva sem uma tenso de ruptura. Os ritos
das crises da vida e os rituais de reverso levam essas
respostas em considerao de maneiras diferentes. Os
indivduos elevam-se estruturalmente atravs de sucessivas crises de vida e ritos de elevao de "status". Mas
os rituais de reverso de "status" tornam visveis, em
seus padres simblicos e de comportamento, as categorias e formas de agrupamentos sociais, consideradas
axiomticas e imutveis, tanto em essncia quanto na
relao de umas com as outras.
Do ponto de vista cognoscitivo, nada reala melhor
a regularidade que o absurdo ou o paradoxo. Emocionalmente, nada satisfaz tanto como o comportamento
extravagante ou ilcito temporariamente permitido. Os
rituais de reverso de "status" conciliam ambos os aspectos. Tornando o baixo alto e o alto baixo, reafirmam
o princpio hierrquico. Fazendo o inferior imitar o comportamento do superior (chegando at a caricatura)* e
restringindo as iniciativas dos orgulhosos, acentuam a
racionalidade do comportamento d i r i o , culturalmente
previsvel, entre os diversos estamentos da sociedade. A
este respeito, adequado que os rituais de reverso de
"status" se localizem, freqentemente, ou em pontos
fixos no ciclo anual ou em relao com festas mveis,
que variam dentro de um perodo limitado de tempo,
porque a regularidade estrutural se reflete na ordem
temporal. Poder-s-ia argumentar que os rituais de reverso de "status" podem verificar-se com carter contingente, quando uma calamidade ameaa a comunidade
inteira. Mas pode-se replicar, convincentemente, que
precisamente porque a comunidade inteira est ameaada que se executam tais ritos de compensao. E

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213

porque se acredita que as irregularidades histricas concretas alteram o equilbrio natural entre as categorias
estruturais julgadas permanentes.
A "COMMUNITAS" E A ESTRUTURA, NOS
RITUAIS DE REVERSO DE "STATUS"

"communits". Isto particularmente verdadeiro nas felaes entre categorias e grupos sociais ordenados em
posies muito altas e muito baixas, embora seja vlido
para as relaes entre os ocupantes de qualquer classe
ou posio social. Os homens usam a autoridade de que
seu cargo se reveste para abusar dos ocupante de
posies mais inferiores, prejudic-los confundindo a posio com a pessoa dela incumbida. Os rituais de reverso de "status", quer estejam colocados em pontos
estratgicos no ciclo anual, quer sejam provocados por
calamidades consideradas como o resultado de graves
pecados sociais, so tidos como restabelecedores da estrutura social e da "communits", mais uma vez, em sua
correta relao mtua.

Voltemos aos rituais de reverso de "status". Eles no


apenas reafirmam a ordem da estrutura, como tambm
restauram as relaes entre os indivduos histricos reais
que ocupam posies em tal estrutura. Todas as sociedades humanas implcita ou explicitamente referem-se a
dois modelos sociais contrastantes. \jm deles, como vimos, o da sociedade como uma estrutura de posies,
cargos, "status" e funes jurdicas, polticas e econmicas, na qual o indivduo s pode ser ambiguamente
apreendido atrs da personalidade social. O outro modelo , o da sociedade enquanto "communits" formada
de indivduos concretos e idiossincrsicos que, apesar
de diferirem quanto .aos dotes fsicos e mentais, so
contudo considerados iguais do ponto de vista da humanidade comum a todos. O primeiro modelo o de
um sistema de posies institucionalizadas diferenciado,
culturalmente estruturado, segmentado e freqentemente
hierrquico. O segundo apresenta a sociedade com uni
todo indiferenciado e homogneo, no qual os indivduos
se defrontam uns com os outros integralmente, e no
como "status" e funes "segmentarizados".
No processo da vida social, o comportamento de.
acordo com um modelo tende a "afastar-se" do comportamento representado pelo outro modelo. O objetivo
final, todavia, consiste em agir em termos de valores
da "communits", mesmo quando o que uma pessoa
realiza culturalmente, no desempenho de papis estruturais, concebido como um mero instrumento para a
aquisio e manuteno da "communits". Desta perspectiva, o ciclo das estaes pode ser considerado como medida do grau de deslocamento da estrutura a partir da

Para servir de ilustrao, cito. um exemplo bem conhecido, tirado da l i t e r a t u r a antropolgica, referente
cerimnia Apo, dos ashantis do norte de Gana. Esta
cerimnia, que Rattray (1923) pde observar entre os
povos tekimans, realiza-se durante os oito dias que precedem imediatamente o ano novo dos tekimans, o qual
comea a dezoito de abril. Bosman (1705), o, antigo
historiador holands da Costa da Quine, descreve o que
Rattray chama "indubitavelmente uma mesma cerimnia"
(p. 151), nos seguintes termos: h "... uma festa de
oito dias, acompanhada de toda espcie de cantos, saltos, danas, jbilo e alegria,; nesta poca permitida
uma perfeita liberdade de stira, e o escndalo to
altamente exaltado que podem falar livremente de todas
as faltas, vilanias e fraudes de seus superiores e dos
inferiores, sem que haja punies e mesmo a mnima
interrupo" :(Bosman, Carta X).
As observaes de Rattray confirmam com abundncia
de pormenores a caracterizao de Bosman. Ele deriva
o termo Apo de uma raiz que significa "falar rude ou
asperamente a algum", e indica que existe um outro

214

215

A CERIMNIA "APO", DOS ASHANTIS ,

V-se imediatamente, por esta interpretao nativa,


que o nivelamento uma das principais funes dos ritos
Apo. O superior deve _submeter-se a ser humilhado; os
humildes so exaltados graas ao privilgio da linguagem
franca. H, porm, muito mais no ritual do que isto.
A diferenciao estrutural, tanto vertical quanto horizontal, o fundamento do conflito, do f acciosismo e das
lutas nas relaes didicas, entre ocupantes de posies
ou rivais que as ambicionam. Nos sistemas religiosos estruturados mais comumente pelas segmentaes intercaladas do ano solar e lunar, e pelos pontos nodais
climticos de mudana as brigas e dissenses n
so tratadas ad hoc, logo que surgem, mas de maneir3

genrica, abrangendo vrios assuntos, em algum ponto


regularmente recorrente no ciclo ritual. A cerimnia Apo
realiza-se, como dizem os ashantis, "quando o ciclo do
ano deu a volta" ou quando "os limites do ano se encontraram". A cerimnia proporciona com efeito uma
descarga de todos os maus sentimentos acumulados nas
relaes estruturais durante o ano anterior. Expurgar ou
purificar a estrutura mediante a linguagem franca significa reanimar o esprito da "communitas". Aqui a crena
largamente difundida no sub-Saara africano, de que
os rancores alimentados na cabea e no corao fazem
mal fisicamente tanto aos que os conservam quanto queles contra quem so dirigidos, opera no sentido de
assegurar que as injustias sejam expostas e os malfeitores se abstenham de tomar represlias contra quem
proclamar suas ms aes. Sendo mais provvel que as
pessoas da classe alta prejudiquem as de categoria inferior do que o contrrio, no de surpreender que os
chefes e os aristocratas sejam considerados como alvos
tpicos para as acusaes pblicas.
Paradoxalmente, a reduo ritual da estrutura "communitas", mediante o poder purificador da honestidade
mtua, tem por efeito regenerar os princpios de classificao e ordenao sobre os quais repousa a estrutura
social. No ltimo dia do ritual Apo, por exemplo, pouco
antes do comeo do ano novo, os sacrrios de todos os
deuses locais dos ashantis, e alguns nacionais, so carregados em procisso de seus templos locais, cada qual
com um cortejo de sacerdotes, sacerdotisas e outros funcionrios religiosos, at o rio sagrado Tano. L os
santurios e os bancos enegrecidos dos sacerdotes j
falecidos so borrifados e purificados com uma mistura de gua e- de argila branca em p. O chefe poltico
de Tekiman no est presente em pessoa. A Rainha-Me
porm assiste, porque este um assunto de deuses e
de sacerdotes, representando os aspectos universais da
cultura e da sociedade ashanti, e no da chefia, em seu
aspecto mais estreitamente estrutural. Esta qualidade universal exprime-se na prece do porta-voz saerdotal de

216

217

termo para a cerimnia ahorohorua, possivelmente derivado do verbo horo, que quer dizer "lavar", "limpar".
Os ashantis estabelecem uma conexo positiva entre a
linguagem franca, rude e a purificao, conforme fica
demonstrado pelas palavras do velho sumo sacerdote do
deus Ta Kese, ditas em tekiman, a Rattray e literalmente
traduzidas por ele:
"Sabeis que cada um de ns tem uma sunsum (alma) que
pode ferir-se, ser tratada com violncia ou adoecer, tornando
deste modo o corpo doente. Com muita freqncia, apesar de
existirem outras causas, por exemplo a feitiaria, a m sade
causada pelo mal e pelo dio que outra pessoa tem no pensamento contra vs. Por outro lado, vs tambm podeis ter
dio no corao contra outro indivduo, por algo que este
lhe tenha feito, e isto tambm faz com que sua sunsum fique
atormentada e adoea. Nossos antepassados sabiam que isto
o que acontece, e assim estabeleceram uma poca, uma vez
por ano, em/que homem e mulher, livre ou escravo, teria liberdade de falar em voz alta tudo o que tivesse na cabea,
de dizer aos vizinhos o que pensava deles e de suas aes, e
no somente aos vizinhos mas tambm ao rei ou ao chefe.
Quando um homem falou assim livremente, sentir a sunsum
tranqila e acalmada, e a sunsum da outra pessoa contra
quem ele acabou de falar abertamente tambm se sentir acalmada. O rei dos ashantis pode ter morto vossos filhos e por
esta razo o odiais. Isto o faz ficar doente e vs tambm.
Se vos foi permitido dizer-lhe na cara o que pensais, ambos
se sentiro beneficiados" (p. 153).

um dos deuses, ao aspergir o sacrrio de Ta Kesi, 0


maior dos deuses locais: "Ns te suplicamos a vidaquando os caadores forem floresta, permite-lhes matar carne; possam as mulheres grvidas ter filhos; vida
para Yao Kramo (o chefe), vida para todos os caadores,
vida para todos os sacerdotes, tomamos o apo deste ano
e o colocamos no rio" (p. 164-166). Asperge-se gua
sobre todos os bancos e todos os presentes e, depois
da purificao dos santurios, o povo retorna aldeia,
enquanto os santurios so recolocados nos templos que
constituem seu lar. Essa prtica solene, com que finaliza
este rito saturnal, na realidade uma; manifestao muito
complexa da cosmologia dos ashantis de Tekiman, pois
cada um dos deuses representa uma completa constelao de valores e de idias e est associado a um lugar
num ciclo de mitos. Ainda mais, o crculo de cada um
deles uma rplica da roda do chefe, e corporif ica o
conceito ashanti de hierarquia estrutural. E' como se a
estrutura, purgada e purificada pela "communitas", fosse
ostentada branca e brilhante outra vez, para iniciar uni
novo ciclo de tempo estrutural.
E' significativo que o primeiro ritual do novo ano,
realizado no dia seguinte, seja oficiado pelo chefe, e
que a nenhuma mulher, nem mesmo Rainha-Me,
tenha permisso para estar presente. Os ritos so executados no interior do templo de Ta Kesi, o deus local;
o chefe faz suas preces a ele sozinho e depois sacrifica
uma ovelha. Isto estabelece um acentuado contraste com
os ritos do dia anterior, aos quais, membros de ambos os
sexos assistem; tais ritos so efetuados ao ar livre,
junto s guas do Tano (de importncia para todos os
ashantis), no incluem sacrifcio sangrento algum e exig e m - a excluso do chefe. A "communitas" a no'a
solene com a qual o ano velho" termina; a estruturai
purificada pela "communitas" e nutrida pelo sangue do
sacrifcio, renasce no primeiro dia do ano novo. Assin1'
aquilo que , sob vrios aspectos, um ritual"de reverso
parece ter o efeito no .s de inverter temporariamente
a "ordem do poleiro" ms segregar primordialmente

princpio da unidade grupai, a partir dos princpios de


f hierarquia e segmentao, e em seguida indicar drama1
ticamente que a unidade de Tekiman e, mais do que
a de Tekiman, a do prprio estado dos ashantis consiste numa unidade hierrquica e segmentada.

218

219

SAMHAIN, DIA DE FINADOS


E DIA DE TODOS OS SANTOS

Como podemos notar, a acentuao dada aos poderes


purificativos das pessoas estruturalmente inferiores e a
conexo de tais poderes com a fecundidade e outros
interesses e valores h u m a n o s universais, precedem a
acentuao da estrutura fixa e particular, no caso Apo.
De modo semelhante, a festa Halloween na cultura ocidental, com a importncia dada aos poderes das crianas
e dos espritos da Terra, precede duas festas crists
tradicionais, que representam nveis estruturais da cosmologia crist, isto/, o dia de Todos os Santos e o
de Finados. Sobre o dia de Todos os. Santos disse o
telogo francs M. Olier (citado em Attwater, 1961):
"E', sob certa forma, maior do que a festa da Pscoa
ou a da Ascenso, (pois) Cristo completado nesse
mistrio, porque, como nossa Cabea, ele somente
perfeito e plenamente realizado quando se une a todos
os seus membros, os santos (canonizados ou no, conhecidos e desconhecidos)".
Deparamos aqui, ainda uma vez, com a noo de uma
sntese perfeita da "communitas" e da estrutura hierrquica. No foram apenas Dante.e Toms de Aquino que
retrataram o cu como uma estrutura hierrquica, com
muitos nveis de santidade e ao mesmo tempo como uma
unidade luminosa ou "communitas", na qual nenhum
santo menor sente inveja de um maior, nem o maior
santo tem orgulho de sua posio. Igualdade e hierarquia so l misteriosamente uma s coisa. O dia de
Pinados, que vem a seguir, c o m e m o r a as almas no
purgatrio, sublinhando simultaneamente sua posio

hierrquica mais baixa do que a das almas no cu, e


a ativa "communitas" dos vivos, que pede aos santos
para intercederem por aqueles que sofrem a provao
liminar no purgatrio e pelos mortos j salvos, tanto
no cu como no purgatrio. Pareceria que, tal como na
"liberdade de satirizar e nas reverses de "status" da
cerimnia Apo, o rude poder que d energia tanto
hierarquia virtuosa quanto boa "communitas" dos
Santos e das almas do ciclo do calendrio deriva de
fontes pr-crists e autctones, sendo-lhes dada freqentemente um "status" ao nvel da cristandade popular.
Somente aps o sculo VII que o dia primeiro de
novembro comeou a ser observado como festa crist,
enquanto o Dia de Finados foi introduzido no rito
romano s no sculo X. Em regies clticas, alguns aspectos da festa paga de inverno de Samhain (para ns,
primeiro de novembro) ligavam-se a essas festas crists.
Samhain, que significa "fim do vero" de acordo
com J. A. MacCulloch (1948), "naturalmente indica o
fato de que os poderes das influncias malficas, simbolizados pelo inverno, comeavam seu reinado. Mas poderia ter sido em parte um festival das colheitas, porquanto tinha conexes com as atividades pastoris, pois
a morte e preservao de animais para alimentao durante o inverno estavam associadas festa... Acendiase uma fogueira, que representava o sol, cujo poder
estava agora declinando, e o fogo deveria revigor-lo
magicamente... Nas casas os fogos eram apagados,
prtica ligada talvez expulso estacionai dos infortnios. Ramos lanados fogueira eram levados para
as casas a fim de acender novos fogos. Existem certos
sinais de que um sacrifcio, possivelmente humano, fosse
realizado no Samhain, sendo a vtima carregada cotn
os males da comunidade, como o bode expiatrio dos
hebreus" (p. 58-59).
Nesse ponto, tambm, pareceria que, como na cerimnia Apo, o Samhain representava uma expulso estacionai dos males e uma r e n o v a o de fertilidade,
associadas a poderes csmicos e ctnicos. Nas crena8

220

populares europias, a meia-noite do dia 31 de outubro


veio a associar-se com reunies de poderes infernais de
teitiana e do demnio, como na Walpurgisnacht e no
Halloween quase fatal de Tam o'Shanter [principal figura do poema de Robert Burns]. * Posteriormente, uma
estranha aliana formou-se entre os inocentes e os malvados, entre as crianas e as bruxas, que expurgam a
comunidade mediante uma piedade fingida e o terror
de artimanhas e-regatos, e preparam o caminho para
as festas, prprias da "communitas", da torta de
abbora com o feitio do sol, pelo menos nos Estados
Unidos. De qualquer modo, os dramaturgos e novelistas
bem o sabem, um toque de pecado e de maldade parece
ser a fasca necessria para a c e n d e r os fogos da
"communitas", embora complicados mecanismos rituais
tenham de ser postos em prtica para transmutar esses
togos dos usos devoradores para os usos domsticos.
Existe sempre uma feix culpa no corao de todo sistema religioso que esteja estreitamente ligado aos ciclos
humanos estruturais de desenvolvimento.
OS SEXOS, A REVERSO DE "STATUS"
E A "COMMUNITAS"
H outros rituais de reverso de "status" que compreendem a supremacia das mulheres sobre a autoridade e
as funes masculinas. Podem ser realizadas alteraes
em certos pontos nodais do calendrio como no caso
da cerimnia zulu Nornkubuhvana, analisada por Max
Gluckman (1954), onde "era atribudo s mulheres um
papel dominante e aos homens um papel subordinado
nos ritos executados em distritos locais da Zululndia,
quando os cereais comeavam a crescer" (p. 4-11).
(Em vrias sociedades dos bantos, do centro e do sul,
encontram-se ritos semelhantes, nos quais as moas
usam roupas de h o m e n s , pastoreiam e ordenham o
gado). Mais freqentemente, executam-se rituais desse
Nota do Tradutor.

221

tipo quando uma grande rea territorial de uma sociedade tribal ameaada por alguma calamidade natural,
como uma praga de insetos, a fome ou a seca. O Dr.
Peter Rigby (1968) publicou recentemente uma descrio detalhada de ritos femininos deste gnero, entre os
gogs da Tanznia. Estes ritos foram cuidadosamente
discutidos em outros trabalhos por autoridades como
Eileen Krige, Gluckman, e Junod. Assim, indicarei apenas
que em todas as situaes nas quais se verificam existe
a crena de que os homens, alguns dos quais ocupando
posies importantes na, estrutura social, de algum modo
incorreram no desagrado dos deuses ou dos ancestrais,
ou, noutra interpretao, alteraram tanto o equilbrio
mstico entre a sociedade e a natureza, que as perturbaes da primeira provocaram anormalidades na ltima.
Resumindo, os superiores estruturais, por suas dissenses sobre interesses particulares ou setoriais, trouxeram
a desgraa para a comunidade local. Compete ento aos
indivduos estruturalmente inferiores (no exemplo zulu,
s mulheres jovens, normalmente sob a ptria potestas
dos pais ,ou a manas dos maridos), representando a
"communitas" ou a comunidade global que transcende
todas as divises internas restabelecer as coisas em
seu devido lugar. Para tal fim usurpam simbolicamente
por um curto perodo de tempo as armas, as vestimentas, os atavios e o estilo de comportamento de superiores
estruturais, isto , os homens. Mas uma velha forma tem
agora um novo contedo. A autoridade agora exercida
pela prpria "communitas", mascarada de estrutura. A
forma estrutural despoja-se dos atributos egostas e se
purifica pela associao com os valores da "communitas". A. unidade que fora q u e b r a d a pela discrdia
egosta e por ocultos maus sentimentos restaurada por
aqueles que so normalmente considerados estarem situados abaixo da batalha pelas posies jurdicas e
polticas. Mas a palavra "abaixo" tem dois sentidos:
no significa somente o que estruturalmente inferior;
significa tambm a base comum de toda vida social

222

a terra e seus frutos. Em outras palavras, o que lei


em determinada dimenso social pode ser fundamento
em outra.
Talvez seja significativo que as jovens solteiras desempenhem com freqncia o papel de principais protagonistas: que elas ainda no se tornaram .mes de
filhos,, cujas posies estruturais fornecero, mais uma
vez, as bases para a oposio e a competio. No entanto, inevitavelmente, a reverso efmera e transitria
("liminar", se quisermos), pois os dois modos de correlaciohamento social esto neste caso culturalmente polarizados. As moas pastoreando o gado um paradoxo
na ordem da classificao, um desses paradoxos que s
pode existir na liminaridade do ritual. A "communitas"
no pode manejar recursos ou exercer controle social
sem alterar sua prpria natureza e deixar de ser "communitas". Mas pode, mediante uma curta manifestao,
"queimar" ou "lavar" seja qual for a metfora usada
para indicar a purificao os pecados e as ruturas
acumuladas da estrutura.

REVERSO DE "STATUS" NA
"FESTA DO AMOR" NA ALDEIA INDIANA
Resumindo nossas descobertas at agora feitas sobre os
rituais de reverso de "status", podemos dizer o seguinte: o mascaramento dos fracos com uni poder agressivo
e o concomitante mascaramento dos fortes com humildade e passividade so estratagemas que purificam a
sociedade de seus "pecados" produzidos estruturalmente, o que os "hippies" chamariam de "hang-up" [problema ou dificuldade, especialmente de natureza pessoal
ou emocional e primeira vista sem soluo].* Fica
assim constitudo o palco para uma experincia exttica
da "communitas", seguida do sbrio retorno a uma estrutura agora e x p u r g a d a e reanimada. Uma das
melhores descries "por dentro" deste processo ritual
Nota do Tradutor.

223

encontra-se em um artigo escrito pelo sbrio e desapaixonado analista da sociedade da aldeia indiana, Professor McKim Marriott (1966). Estuda o festival Holi,
na aldeia de Kishan Garhi, "localizada do lado oposto
do Juman, para quem vem de Mathura e Vrindaban,
distante um dia de caminhada da terra lendria de Vraja
do jovem Krishna. "Realmente, a divindade que preside
os ritos Krishna, e os ritos narrados a Marriott como
"festas de amor" eram um festival da primavera, a
"maior celebrao religiosa do ano". Como um inexperiente pesquisador de campo, Marriott tinha sido mergulhado nos ritos no ano anterior, fora levado com
engodos a beber uma mistura contendo maconha, foi
untado com ocre e jovialmente espancado. No ano seguinte, refletiu sobre qual seria a funo social desses
turbulentos ritos, maneira de Radcliffe-Brown:
"Passei agora um ano inteiro em minhas investigaes, e o
Festival do Amor se aproximava outra vez. Mas uma vez eu
ficava apreensivo pela minha pessoa fsica, mas estava prevenido com o conhecimento da estrutura social que podia produzir uma melhor compreenso dos acontecimentos que iriam
ocorrer. Desta vez, sem a dose de maconha, comecei a ver
o pandemnio de Holi encaixando^se numa ordenao social
extraordinariamente regular. -Era porm uma ordem exatamente
inversa dos princpios rituais e sociais da vida rotineira. Cada
ato tumultuoso no Holi implicava alguma regra ou fato positivos e opostos da organizao social diria na aldeia.
Quem eram aqueles homens sorridentes, cujas canelas estavam sendo impiedosamente espancadas pelas mulheres? Eram
os mais ricos fazendeiros brmanes e jts da aldeia, e as espancadoras eram as ardentes Rdhs locais, as "esposas da
aldeia", representando ao mesmo tempo o sistema de parentesco real e o fictcio existente entre as castas. A esposa de um
"irmo mais velho" era devidamente a companheira de pilhrias
de um homem, enquanto a esposa de um "irmo mais moo"
era devidamente apartada dele por regras de extremo respeito,
mas ambas estavam amalgamadas aqui com as substitutas da
me de um homem, as esposas dos "irmos mais moos de seu
pai", numa trama revolucionria de "esposas" que cruzavam
todas as linhas e laos menores. As mais intrpidas espancadoras desse batalho disfarado eram muitas vezes de fato as
esposas dos lavradores, artesos e criados, de baixa casta, dos
fazendeiros as concubinas e as ajudantes da cozinha d*s

224

vitimas. "V fazer po!", zombava insistentemente um fazendeiro


instigando uma atacante. "Voc quer um pouco do meu esperma?", gritava uma vtima lisonjeada, sofrendo a dor das pancadas, mas mantendo-se firme. Seis homens da casta dos brmanes, com mais de cinqenta anos de idade, pilares da sociedade da aldeia, manquejavam apressadamente fugindo arquejantes do porrete brandido por uma jovem possante bhangin,
encarregado de limpar-lhes as latrinas. Todas as moas da
aldeia mantinham-se parte dessa carnificina sofrida por seus
irmos de aldeia, mas estavam prontas a atacar qualquer marido em potencial que pudesse passar, vindo de outra aldeia,
onde elas poderiam casar, a fim de atender a um convite para
a festa.
Quem era aquele "rei do Holi", cavalgando de costas um
jumento? Era um rapaz mais velho de alta casta, um valento
famoso, posto nessa posio por suas vtimas organizadas (mas
parecendo deleitar-se com a notoriedade de sua desgraa).
Quem fazia parte daquele coro que cantava to sensualmente
na viela do oleiro? No eram os companheiros de casta do
morador, mas seis homens que se dedicavam lavagem de
roupa, um alfaiate e trs brmanes, que se reuniam somente
nesse dia todos os anos, num conjunto musical idealista, imitando a amizade entre os deuses.
Quem eram aqueles indivduos transfigurados em "vaqueiros",
a jogar lama e p sobre todos os cidados importantes? Eram
os carregadores de gua, dois jovens sacerdotes brmanes e o
filho de um barbeiro, ansiosos especialistas nas rotinas dirias
de purificao.
De quem era o templo domstico que foi todo enfeitado com
ossos de cabra, por folies desconhecidos? Era o templo da
viva brmane, que importunara constantemente os vizinhos e
os parentes com aes de demandas.
Em frente da casa de quem estava sendo cantada uma pardia de cano fnebre por uma asceta profissional da aldeia?
Era a casa de um agiota, cheio de vida, notrio pelas cobranas
pontuais e pelas insuficientes beneficncias.
Quem era aquele que teve a cabea carinhosamente besuntada no s com punhados dos sublimes ps vermelhos, mas
tambm com um galo de leo diesel? Era o proprietrio da
aldeia, e foi seu sobrinho e principal rival que o untou, o chefe
de .polcia de Kishan Garhi.
Quem foi levado a danar nas ruas, tocando flauta como o
deus Krishna, com uma guirlanda de sapatos velhos em torno
do pescoo? Fui eu, o antroplogo visitante, que tinha feito um
nmero demasiado grande de perguntas, e sempre recebera
respostas respeitosas.
Na verdade, aqui estavam as vrias espcies de amor da
aldeia, todas elas confundidas a respeitosa considerao para
O Processo... Ec) 2877 8

225

com pais e patres, a afeio idealizada para com irmos, irms,


e camaradas, O anelo do homem pela unio com o divino e a
grosseira concupiscncia dos parceiros sexuais tudo isto
transbordando repentinamente de seus canais estreitos e habituais,
por um aumento simultneo de intensidade. O amor ilimitado e
unilateral, de todos os. tipos, inundava a comum compartimentao e indiferena entre castas e famlias separadas. A libido
insubordinada alagava todas as hierarquias estabelecidas, d
idade, sexo, casta riqueza e poder.
O significado social da doutrina de Krishna,' em sua verso
rural no norte da ndia, no diverso de uma implicao social
conservadora do Sermo da Montanha, feito por Jesus. O Sermo adverte severamente da destruio da ordem secular social,
mas ao mesmo tempo adia-a para um futuro distante. Krishna
no protela o ajuste de contas dos poderosos at o dia do Juzo
Final, mas programa-o regularmente em forma de um baile de
mscaras, a ser efetuado na lua-cheia d cada ms de maro. O
Holi de Krishna no .uma simples doutrina de amor, , antes,
o texto de um drama que deve ser representado por todos os
devotos, .apaixonada e alegremente.
O balano dramtico do Holi a destruio do mundo e a
renovao do mundo, a poluio do mundo seguida pela purificao do mundo no ocorre s no nvel abstrato dos princpios estruturais, mas tambm na pessoa de cada participante.
Sob a tutela de Krishna, cada pessoa representa e, por um momento, experimenta o papel de seu oposto; a esposa servil atua
como o marido dominador, e vice-versa; o raptor passa a representar o papel da raptada; o criado age como patro; o
inimigo desempenha o papel de amigo; os jovens censurados
agem como os dirigentes da repblica. O antroplogo observador, que indaga e reflete sobre as foras que movimentam
os nomens em suas rbitas, v-se compelido a representar o
papel de matuto ignorante. Cada ator jocosamente assume o
.papel de outros com relao sua prpria personalidade habitual. Cada um pode, assim, aprender a desempenhar de novo
seus prprios papis rotineiros, certamente com renovada compreenso, possivelmente com maior benevolncia, talvez, com
amor recproco" (p. 210-212).
!

Tenho um ou dois pequenos reparos a fazer ao relato


de Marriott, alis admirvel e emptico. No o impulso biolgico da "libido" que "inunda todas as hierarquias estabelecidas, de idade, sexo, casta, riqueza ou
poder", mas a experincia liberada da "communitas",
que, como Blake poderia ter dito, "algo intelectual"
isto , implica o conhecimento total da totalidade hu-

mana do outro. A "communitas" no meramente instintiva; inclui a conscincia e a volio. A reverso de


"status" no festival Holi liberta o homem (e a mulher)
do "status" que ocupa. Em certas condies, isto pode
ser uma experincia ."exttica", no sentido etimolgico
de o indivduo "estar fora" de seu "status" estrutural.
"xtase" = "existncia". Alm disso, eu no derivaria
inteiramente o "amor recproco", como foi interpretado
por Marriott, do fato de o ator tomar o papel de um
outro. Ao contrrio, eu consideraria essa imitao na
execuo de um papel meramente como um artifcio
para destruir iodos os papis e preparar terreno para a
emergncia da "communitas". No entanto, Marriott descreveu bem e apreendeu as caractersticas distintivas de
um ritual de reverso de posies: a supremacia ritual
dos inferiores estruturais, sua linguagem indelicada e
aes rudes; a humildade simblica e a verdadeira humilhao dos indivduos de "status" superior; a maneira pela qual os que esto situados estruturalmente
"abaixo" representa uma "communitas" que transborda
os limites estruturais, comeando com a fora e terminando com amor; e finalmente a acentuao, no a
destruio, do princpio de hierarquia (isto , de organizao escalonada), individualmente purificado embora paradoxalmente pela violao de muitas regras
hindus de profanao mediante a reverso, processo
graas ao qual permanece sendo a vrtebra estrutural
da vida da aldeia.

AS RELIGIES DE HUMILDADE
E DE REVERSO DE "STATUS"
Examinamos at aqui os ritos liminares em sistemas
religiosos pertencentes a sociedades altamente estruturadas, cclicas e caracterizadas pela repetio. Gostaria
de prosseguir tentando indicar que possvel encontrar
uma distino semelhante que estabelecemos entre a
liminaridade dos ritos de elevao de "status" e a limi-

226
227

naridade dos ritos de reverso, pelo menos nos estgios


iniciais, em religies de mbito mais vasto do que o
tribal, especialmente durante os perodos de rpida e
indita mudana social, as quais por si mesmas tm
atributos liminares. Em outras palavras, algumas religies assemelham-se liminaridade da e l e v a o de
"status": encarecem a humildade, a pacincia e a falta
de importncia das distines de situao, propriedade,
idade, sexo e outras diferenas naturais e culturais.
Alm disso, acentuam a unio mstica, numinosidade e
a "communitas" indiferenciada. Tal se d porque muitas
delas consideram que esta vida representa uma fase
liminar, sendo os ritos funerrios a preparao para o
reagrupamento dos iniciantes a um nvel mais .alto, ou
a um plano mais elevado de existncia, como o cu ou
o nirvana. Outros movimentos religiosos, pelo contrrio,
revelam muitos dos atributos dos rituais rsticos e tribais de reverso de "status". A liminaridade da reverso
no tem tanto por efeito eliminar quanto sublinhar as
distines estruturais, chegando at ao ponto (em geral
inconsciente) de caricaturar. Igualmente, essas religies
distinguem-se pela acentuao dada diferenciao funcional na esfera religiosa, e a reverso religiosa do
"status" secular.
A REVERSO DE "STATUS" NO
NO SEPARATISMO SUL-AFRICANO
Um exemplo bastante claro de uma religio de reverso
de "status" pode ser encontrado no estudo de Sundkler
sobre o separatismo banto na frica do Sul (1961).
Como sabido, existem atualmente acima de mil igrejas
e seitas africanas organizadas, mais ou menos pequenas, na frica do Sul, que romperam com as igrejas
missionrias dos brancos ou que resultaram do rompimento de umas com as outras. Sundkler, que estudou as
igrejas independentes africanas na Zululndia, diz o seguinte sobre "a cor como uma barreira de reverso
para o cu":

228

"Em um pas onde alguns brancos irresponsveis dizem aos


africanos que Jesus existe s para os homens brancos, os africanos vingam-se projetando a barreira da cor diretamente para
o cu: O complexo da cor-pintou seu cu de preto, e o Cristo
negro tem de tratar disto. Shembe [um famoso profeta zulu],
s portas do cu, manda embora os brancos, porque eles, como
o homem rico, j receberam as coisas boas durante a Vida na
terra, e abre as portas apenas a seus fiis seguidores. O destino dos africanos que pertenceram a igrejas missionrias dos
brancos lamentvel: "Uma raa no pode entrar pelas portas
de outra raa", quando chegam s portas dos brancos, so
mandados de volta... O complexo da cor pe a seu servio
as parbolas de Jesus. Eis aqui uma qual ouvi referncias
em algumas igrejas sionistas: "Havia dez virgens. Cinco dentre
elas eram brancas e cinco eram negras. As cinco brancas eram
insensatas, mas as cinco negras eram sbias, tinham leo nas
lmpadas. As dez chegaram s portas do cu. Mas as cinco
virgens brancas receberam a mesma resposta que o homem
rico recebeu. E porque os brancos dominam na terra, os negros
dominam no cu. Os branccs seguiro implorando mergulhar
as pontas dos dedos na gua fria. Mas obtero como resposta:
'Hhayyi (no) ningum pode dominar duas vezes'" (p. 290).

Deve notar-se no presente caso que a reverso de


"status" no faz parte de um sistema total de ritos, cujo
efeito final seja promover a reconciliao entre os diferentes estratos da hierarquia estrutural. No estamos
lidando com um sistema social integrado, no qual a
estrutura penetrada pela "communitas". Por isso, vemos
apenas acentuado o aspecto da reverso, com a esperana de que esse ser o estado ltimo do homem. No
obstante, o exemplo instrutivo pelo fato de indicar
que as religies que do importncia hierarquia, direta
ou invertida, como atributo g e r a l da vida religiosa,
geram-se nas camadas estruturalmente inferiores, num
sistema scio-poltico que se baseia tanto na fora como
no consenso. Seria conveniente tambm que se salientasse neste ponto que muitas dessas seitas sul-africanas,
por pequenas que sejam, elaboraram hierarquias sacerdotais, e que com freqncia as mulheres ocupam importantes papis rituais.

229

AS PSEUDO-HIERARQUIAS
NO MILENARIANISMO DA MELANSIA
Apesar de a literatura sobre os movimentos religiosos e
semi-religiosos no apoiar completamente o ponto de
vista que venho defendendo, persistindo muitos problemas e dificuldades, h todavia fortes indcios de que as
formas religiosas que podem ser claramente atribudas
s atividades inventivas de grupos ou categorias estruturalmente inferiores em pouco tempo assumam muitas
das caractersticas externas das hierarquias. Tais hierarquias podem simplesmente inverter um escalonamento
secular, ou substituir inteiramente o arcabouo secular,
quer na estrutura eclesistica do movimento quer em
suas crenas escatolgicas. Bom exemplo de um movimento que tentou copiar na forma de sua organizao,
a estrutura social europia, pode ser encontrado em
Road Belong Cargo (1964), de Peter Lawrence. Eis o
que se encontra no programa de Yali, um dos profetas
madang da Melansia:
"O povo devia renunciar a viver em vilarejos e reunir-se em
grandes 'acampamentos', que teriam as casas construdas ao
longo de ruas enfeitadas de flores e de arbustos. Cada 'acampamento' devia ter uma nova 'Casa de Repouso', que j no
seria chamada haus kiap, mas haus yali. Seria utilizada por
Yali, quando visitasse o povo na qualidade de Oficial de Administrao. Cada 'acampamento' deveria ter latrinas adequadas,
e novas estradas seriam abertas, por toda a rea... Os velhos
chefes deveriam ficar sob a direo de 'patrezinhos', os quais
supervisionariam o trabalho de reconstruo e fiscalizariam a
execuo das ordens de Yali. A monogamia seria imposta, as
segundas esposas se divorciariam e se casariam com os homens
solteiros" (p. 160).

Outros aspectos de limitao da estrutura administrativa e da cultura material e religiosa europia foram
introduzidas neste "culto importado como carga". Muitos outros cultos importados tm caractersticas semelhantes de organizao e, em acrscimo, mantm a
crena de que os europeus sero expulsos ou destrudos, e seus prprios ancestrais e profetas vivos os go-

vernaro dentro de uma estrutura pseudoburocrtica. No


se pode garantir, porm, que a relao liminar religiosa
de pseudo-hierarquias seja unicamente conseqncia da
inferioridade estrutural. Estou convencido que o fator
reverso de "status" sociais se correlaciona com a permanente inferioridade estrutural. Mas pode bem acontecer que hierarquias cerimoniais ou rituais complicadamente escalonadas representem a liminaridade de grupos
seculares igualitrios, independentemente da categoria
desses grupos na sociedade mais vasta. Podemos citar
os maes, os rosa-cruzes, a mfia siciliana e outras
espcies de sociedades e irmandades secretas, que possuem um cerimonial e um ritual complicado, geralmente
com forte tonalidade religiosa. Os membros desses grupos, com freqncia, provm de comunidades scio-polticas formadas de pessoas de categoria semelhante, com
valores igualitrios comuns e o nvel similar de consumo econmico.
E' verdade que tambm nesses casos h um aspecto
de reverso, pois a igualdade profana entra em contradio com a hierarquia liminar, mas isto no tanto
uma reverso de ordem das categorias dentro de um
sistema estrutural particular quanto a substituio de
um tipo de sistema (um sistema hierrquico) por outro
(um sistema igualitrio). Em alguns casos, como acontece com a mfia, a Ku Klux Klan e algumas sociedades
secretas chinesas, a hierarquia liminar adquire valores e
funes polticas instrumentais, e perde a qualidade fantasista de "representao teatral". Quando isto acontece,
o carter dirigido e intencional de ao poltica ou quase
militar poder encontrar a forma hierrquica adequada
a suas necessidades de organizao. Eis por que se
torna to importante, quando estudamos grupos como
os maes e os bandos de motociclistas "Anjos do Inferno", da Califrnia, e os comparamos uns com os outros, especificar que fase alcanaram em seu ciclo de
desenvolvimento e em que condies de ambiente social
eles geralmente existem.

231
230

ALGUNS EXEMPLOS MODERNOS DE REVERSO


E DE PSEUDO-HIERARQUIA

Poder-se-ia objetar que nesses movimentos liminares se


cria necessariamente a organizao hierrquica, medida que o nmero de membros aumenta. Contudo, vrios
exemplos demonstram que esses movimentos possuem
uma multiplicidade de funes mas pequeno nmero de
membros. Por exemplo, Allan C. Speirs, da Universidade de Cornell (tese indita, 1966), descrevendo a
comunidade dos aaronitas de Utah, seita separatista
mrmon contando com pouco mais de duzentos membros, mostra como no entanto possuem "uma complicada
estrutura hierrquica, um tanto semelhante do mormonismo.. . tendo posies como primeiro sumo sacerdote, segundo surno s a c e r d o t e , presidente, primeiro
vice-presidente, segundo vice-presidente, sacerdotes das
seces, bispos dos concilies, mestres e diconos" (p.
22). Uma outra espcie diferente de grupo, estudada
em vrios artigos publicados e em manuscritos no publicados de autoria de Lincoln Keyser, da Universidade
de R o c h e s t e r , so os Vice-Lordes conservadores um
bando, "clube" ou "nao" de jovens negros adolescentes, de Chicago. O autor generosamente permitiu-me ter
acesso pitoresca autobiografia de "Teddy", um dos
lderes dos Vice-Lordes. Estes tm uma grande quantidade de atividades cerimoniais, com a "Cerimnia do
Vinho", em lembrana de seus mortos e pelos que esto
nas penitencirias. Nessas e noutras ocasies usam capas pretas e vermelhas, como vestimentas cerimoniais.
O que particularmente surpreendente nos Vice-Lordes
e outros bandos, como os Cobras Egpcias e os Capeles Imperiais, a natureza complexa e hierrquica de
sua organizao. Por exemplo, os' Vice-Lordes dividemse em "velhos", "moos" e "pirralhos", dependendo do
tempo de incorporao, e em ramos territoriais, cuja
soma constitui a "Nao Vice-Lorde". "Teddy" descreve
da seguinte maneira a estrutura da organizao do ramo
de Santo Toms: "Todos, no grupo de Santo Toms,

232

quando comearam, tinham um tipo de posio. Os


oiiciais eram presidente, vice-presidente, secretrio-tesoureiro, supremo conselheiro da guerra, conselheiro da
guerra, e tambm tinham bedis" (p. 17). Em geral, o
comportamento dos membros do bando era mais ou
menos ocasional e igualitrio, quando no estavam brigando entre si pelo domnio do territrio. Mas sua estrutura nas situaes formais e de cerimnia constitua
o oposto da igualitria. Havia uma ordem estrita de
censura e os ramos que procuravam tornar-se indepen"ClUbe" r

P rontamente Pstos

na

Outro exemplo contemporneo da tendncia, demonstrada, por c a te g o r i a s estruturalmente inferiores para


possuir liminaridade hierrquica, dado pelos jovens
motociclistas da Califrnia, conhecidos como os "Anjos
do Inferno". Hunter S. Thompson (1966) julga que a
maioria de seus membros so filhos de pessoas que
chegaram Califrnia antes da Segunda Guerra Mundial, montanheses do sul dos Estados Unidos, trabalhadores agrcolas itinerantes de Oklahoma, do Arizona
e habitantes das montanhas Appalaches (p. 202). Atualmente, os homens so "estivadores, empregados de armazns, choferes de caminhes, mecnicos, caixeiros e
trabalhadores ocasionais em qualquer tipo de trabalho
que pague e no requeira dedicao. Talvez um em dez
tenha emprego fixo e salrio digno" (p. 73-74). Chamam-se a si mesmos os um-por-cento, "o um-por-eento
que no se ajusta e no liga" (p. 13). Referem-se aos
membros do mundo "direito" como "cidados", o que
implica que eles no so. Eles fizeram a opo de situarse fora do sistema estrutural. No entanto, como os ViceLordes negros, constituem uma organizao formal, com
cerimnias complexas de iniciao e graus de confraria
simbolizados por e m b l e m a s . Tm um conjunto de
estatutos, um comit executivo, formado por presidente,
vice-presidente, secretrio, tesoureiro, bedis e reumoes
formais, todas as semanas.
i O Processo... Ec) 2877 9

233

Entre os "Anjos do Inferno", encontramos uma rplica da estrutura da organizao associativa secular,
mais do que uma reverso de "status". Entretanto,
existem elementos de reverso de "status" em suas
cerimnias de iniciao, durante as quais os Anjos novatos devem trazer para o ritual calas e jaquetas
novas e limpas, com a nica finalidade de mergulhlas em excrementos, urina e leo. Sua condio de sujos
e de maltrapilhos, "amadurecida" at ao ponto da desintegrao, um sinal de "status", que inverte o padro
"asseado e limpo" dos "cidados", aprisionados pelo
"status" e pela estrutura. Mas, apesar das pseudo-hierarquias, tanto os Vice-Lordes quanto os Anjos sublinham
os valores da "communitas". O Vice-Lorde "Teddy",
por exemplo, disse a respeito do pblico em geral: "E
ento eles logo disseram que tnhamos uma organizao. Mas tudo o que pensamos que somos apenas
camaradas" (Keyser, 1966). Thompson tambm insiste
com freqncia no carter da "unidade grupai" dos
"Anjos do Inferno". Assim, a pseudo-estrutura no parece ser incomparvel com a real "communitas". Esses
grupos brincam de estrutura e no se empenham seriamente na estrutura scio-econmica. Sua estrutura
principalmente "expressiva", embora tenha aspectos instrumentais, Mas as estruturas expressivas desse tipo
podem, em certas circunstncias, converter-se em estruturas pragmticas, como no caso das sociedades secretas
chinesas, tal a sociedade Trade estudada no livro The
Hung League (1866), de Gustave Schlegel. Igualmente,
a estrutura cerimonial da sociedade Povo da Serra Leoa
foi utilizada como base de uma organizao politicamente rebelde, na insurreio dos mendes, em 1898
(Little, 1965, passim).
AS RELIGIES DE HUMILDADE FUNDADAS
POR PERSONALIDADES COM ALTO "STATUS"

Existem muitos exemplos de religies e de movimentos


ideolgicos e ticos que foram fundados por pessoas de
234

alto "status" estrutural, ou, quando no, pelo menos


solidarnente respeitvel. De maneira bastante significativa, os ensinamentos bsicos desses fundadores esto
cheios de referncias ao despojamento das distines
mundanas, renncia propriedade, ao "status", etc.,
e muitos deles acentuam a identidade "espiritual" e
"substancial" do homem e da mulher. Nesses e em vrios outros aspectos, a condio religiosa liminar que
eles procuram realizar, em virtude da qual seus adeptos
so apartados do mundo, tem pronunciadas afinidades
com a que encontramos na liminaridade da recluso nos
ritos tribais de crises da vida e, na verdade, em outros
rituais de a s c e n s o de posio social. A degradao e a humildade no so consideradas a finalidade
ltima dessas religies, mas simplesmente atributos da
fase liminar pela qual os crentes devem passar na sua
caminhada para os estados absolutos e finais do cu,
do nirvana ou da utopia. Trata-se de um caso de "recouler pour mliux sautef". Quando as religies desse tipo
se tornam populares e abrangem as massas estruturalmente inferiores, acontece freqentemente um significativo desligamento na direo da organizao hierrquica.
Em certo sentido, essas hierarquias so "invertidas"
pelo menos nos termos do sistema de crenas predominante pois o lder ou lderes so representados, tal
o caso do papa, como "servo dos servos de Deus", e
no como tiranos ou dspotas: O "status" adquirido
mediante o despojamento da autoridade mundana possuda pela pessoa incumbida de um cargo, a qual se
reveste de brandura, humildade e desvelo responsvel
para com os membros da religio e at mesmo com
relao a todos os homens. Entretanto, tal como acontece com as seitas separatistas sul-africanas, os cultos
importados da Melansia, a Ordem de Aaro, os bandos
de negros adolescentes e os "Anjos do Inferno", a expanso popular de uma religio ou de um grupo cerimonial leva-o com freqncia a tornar-se hierrquico.
Em primeiro lugar, h o problema de organizar grande
nmero de pessoas. Em segundo lugar e isto pode
235

ser visto em pequenas seitas com hierarquias complexas


a liminaridade dos pobres e dos fracos assume a
exterioridade da estrutura secular e se mascara de poder
de parentesco, conforme pudemos notar anteriormente,
ao estudar os disfarces animais e monstruosos.

Buda
Como exemplos de fundadores religiosos estruturalmente
superiores ou bem estabelecidos, que pregaram os valores da humildade e da "communitas", poder-se-ia citar
Buda, So Francisco, Tolstoi e Gandhi. O caso de Jesus
menos ntido: enquanto Mateus e Lucas traam a
genealogia de seu pai Jos at o rei Davi, embora a
importncia e a posio social de um carpinteiro sejam
elevadas em muitas sociedades rsticas, Jesus habitualmente tido como "um homem do povo". Conta-se
que o pai de Buda era um importante chefe da tribo
dos sakiyas, e sua me Maha Maya era filha de um
rei vizinho numa regio ao sudeste do Himalaia. De
acordo com o relato admitido, Siddhrta, nome pelo qual
era o prncipe conhecido, viveu uma vida abrigada
durante vinte e nove anos atrs das paredes protetoras
do palcio real, espera de suceder ao pai. Em seguida, encontramos a clebre narrativa de suas trs
aventuras no mundo alm dos portes do palcio, com
o cocheir Channa, durante as quais deparou sucessivamente com um velho consumido pelo trabalho, um
leproso e um cadver em decomposio, e viu pela primeira vez a sina dos indivduos estruturalmente inferiores. Aps sua primeira experincia com a morte, quando
voltou ao palcio, ouviu o som de msica, celebrando
a chegada de seu primognito -e herdeiro, segurana
da continuidade estrutural da linhagem. Longe de ficar
satisfeito, sentiu-se perturbado por esta nova obrigao
no domnio da autoridade e do poder. Juntamente com
Channa, ele saiu s escondidas do palcio e vagueou
por muitos anos entre o povo comum da ndia, apren-

236

dendo muito sobre a realidade do sistema de castas.


Durante algum tempo tornou-se um severo asceta, com
cinco discpulos. Mas esta modalidade de estrutura tambm no o satisfez. Quando comeou sua clebre meditao de quarenta dias sob a rvore Bo, j havia
modificado consideravelmente os rigores da vida religiosa. Tendo alcanado a iluminao, passou os ltimos
quarenta e cinco anos de vida ensinando aquilo que
era realmente uma simples lio de submisso e de humildade, pregada a todas as pessoas, sem distino de
raa, classe, sexo ou idade. No pregou sua doutrina
para benefcio de uma nica classe ou casta, e mesmo
o mais baixo dos prias poderia considerar-se seu discpulo, conforme s vezes aconteceu.
Em Buda, temos um caso clssico de um fundador
religioso "estruturalmente" bem d o t a d o que sofreu a
iniciao na "communitas" mediante o despojamento, e
nivelamento, e a aceitao do comportamento dos fraeos
e dos pobres. Na prpria ndia, podem ser citados muitos exemplos mais de superiores na ordem da estrutura
que renunciaram riqueza e posio e pregaram a
pobreza santa, como Caitanya (veja-se o captulo 4),
Mahavira, o fundador do jainismo, contemporneo mais
velho de Buda, e Nanak, o fundador do siquismo.
Gandhi
Na poca atual, tivemos o comovente espetculo da
vida e do martrio de Mohandas Karamchand Gandhi,
que foi tanto um lder religioso quanto um lder poltico.
Com os demais j mencionados, Gandhi provinha de um
setor respeitvel da hierarquia social. Ele prprio menciona em sua autobiografia (1948): "Os Gandhis... por
trs geraes desde meu av... tm sido primeiros ministros em diversos Estados Kathiawad" (p. 11). Seu
pai Kaba Gandhi foi, durante algum tempo, primeiro
ministro em Rajkot e, em seguida, em Vankaner. Gandhi
estudou Direito em Londres e depois foi para a frica
O Processo... Ec) 2877 10

237

do Sul exercer a profisso. Mas bem cedo renunciou


riqueza e posio para liderar os indianos da frica
do Sul na luta pela obteno de mais justia, transformando a doutrina da no-violncia e da "fora da verdade" num poderoso instrumento econmico e poltico,
A carreira posterior de Gandhi como principal lder
do movimento pela independncia nacional da ndia
bem conhecido de todos. Aqui gostaria apenas de citar
alguns pensamentos r e t i r a d o s de sua autobiografia
(1948) sobre as virtudes do despojamento da propriedade e da deciso do indivduo tornar-se igual a todos.
Gandhi foi sempre devotado ao grande guia espiritual
do hindusmo, o Bhagavad Gita, e em suas crises
espirituais costumava r e c o r r e r a "este dicionrio de
conduta", procura de solues para as dificuldades
interiores.
"Palavras como aparigraha (ausncia de propriedade) e
sambhava (equanimidade) me atormentavam. Como preservar
e cultivar a equanimidade, eis a questo. Como se poderia tratar da mesma maneira oficiais insultadores, insolentes e corruptos, colaboradores de ontem promovendo uma oposio sem
sentido, e homens que sempre tinham sido bons? Como poderia
algum despojar-se de todas as posses? No seria o prprio
corpo uma posse suficiente? No seriam posses a esposa e os
filhos? Deveria eu destruir todas as estantes de livros que
possua? Deveria renunciar a tudo o que possua e segui-FO?
Imediata veio a resposta: no poderia segui-FO a no ser que
renunciasse a tudo o que eu tinha" (p. 323).

Finalmente, e em parte devido ao estudo da lei inglesa (principalmente as anlises de Snell sobre as
mximas da eqidade), Gandhi chegou a compreender
que o ensinamento mais profundo da no-possesso
significava que todos quantos desejavam a salvao
"deveriam agir como um depositrio de bens, o qual,
mesmo dirigindo grandes riquezas, no considera como
sua nem a parcela mais nfima delas" (p. 324). Foi
assim, embora por um caminho diferente, que Gandhi
chegou mesma concluso da Igreja Catlica no exame
do problema da pobreza franciscana: foi feita uma distino jurdica entre dominium (posse) e usus (admi238

nistrao). Gandhi, fiel sua nova convico, deixou


que sua aplice de seguro caducasse, desde o momento
em que se certificou de que "Deus, que criou minha
mulher e meus fhos, assim como eu prprio, tomaria
conta deles" (p. 324).

Os Lderes Cristos
Na tradio crist, tambm houve inumerveis fundadores de ordens e seitas religiosas originrias da metade
superior do cone social e no entanto pregavam o estilo
de liminaridade das crises da vida como a via de salvao. Numa lista mnima, poder-se-ia citar os santos
Bento, Francisco, Domingos, Clara e Teresa de vila,
na esfera catlica; os wesleys, com a sua "vida modesta e pensamento elevado", George Fox, fundador dos
ququeres, e (para citar um exemplo norte-americano)
Alexandre Campbell, lder dos Discpulos de Cristo, que
procurou restaurar a primitiva cristandade e, em especial, as primitivas condies da fraternidade crist, na
esfera protestante. Esses lderes protestantes procediam
de slidas origens de classe mdia; apesar disto, procuraram desenvolver em seus adeptos um estilo de vida
simples, despretensiosa, sem distino de posies sociais mundanas. O fato desses movimentos posteriormente terem sucumbido ao "mundo" e na realidade,
conforme demonstra Weber, terem nele prosperado de
nenhum modo lhes impugna as intenes originais. Efetivamente, segundo vimos, o curso regular de tais movimentos consiste em reduzir a "communitas" de um
estado a uma fase entre exerccios de posies, numa
estrutura sempre em desenvolvimento.
Tolstoi
Gandhi foi fortemente influenciado no s por alguns
aspectos do hindusmo, mas tambm pelas palavras e
pela obra do grande anarquista e romancista cristo
239

Leo Tolstoi. "The Kingdon of God is Within You" escreveu Gandhi (1948), "dominou-me, deixando uma impresso duradoura em mim" (p. 172). Tolstoi, que era
um nobre rico e um famoso romancista, atravessou uma
crise religiosa quando tinha cerca de cinqenta anos.
Durante esta crise chegou mesmo a considerar o suicdio
uma fuga da falta de sentido e da superficialidade da
vida entre a classe alta, os intelectuais e os estetas. Foi
levado ento a pensar que "a fim de compreender a
vida, preciso compreender no uma vida excepcional
como a nossa, que somos parasitas na vida, mas a vida
do povo simples e trabalhador aqueles que fazem
a vida e o significado que eles lhe atribuem. O povo
trabalhador mais simples ao redor de mim era o povo
russo, e eu me voltei para ele e para o significado que
davam vida. Este significado, se possvel traduzilo em palavras, o seguinte: Todo homem veio a este
mundo pela vontade de Deus. E Deus fez o homem de
tal maneira que todo homem pode destruir sua alma
ou salv-la. A finalidade do homem na vida salvar
a alma, e para salvar a alma deve viver 'religiosamente'
e para viver 'religiosamente' deve renunciar a todos os
prazeres da vida, trabalhar, humilhar-se, sofrer e ser
compassivo" (1940, p. 67). Como todos sabem, Tolstoi fez
ingentes esforos para reproduzir suas crenas em sua
vida, e viveu como um campons at o fim de seus dias.
ALGUNS PROBLEMAS DE ELEVAO
E DE REVERSO
J foi dito o bastante para sublinhar, por um lado, a
afinidade existente entre a liminaridade dos rituais de
elevao de "status" e os ensinamentos religiosos dos
profetas, santos e mestres estruturalmente superiores, e
por outro lado a afinidade existente entre a liminaridade
dos rituais de reverso de "status", tanto os determinados pelo calendrio quanto os ligados a crises naturais,
e as crenas e prticas religiosas de movimentos domi-

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nados pelos indivduos estruturalmente inferiores. Sem


rebuos, podemos dizer que a liminaridade dos fortes
a fraqueza, e a dos fracos a fora. Ou ainda, a
liminaridade dos ricos e da nobreza a pobreza e o
pauperismo, a da pobreza a ostentao e a pseudohierarquia. Evidentemente h aqui muitos problemas a
serem considerados. Por que ser, por exemplo, que
por intervalos durante a ocupao de suas posies e
situaes scio-econmicas culturalmente definidas, os
homens, as mulheres e as crianas devem em alguns
casos ser obrigados, e em outros casos escolher, agir e
sentir de modo oposto, ou diferente, dos seus comportamentos padronizados? Sofreriam eles todas estas penitncias e reverses a p e n a s por tdio, como uma
variegada alterao das rotinas dirias, ou o fazem em
resposta a impulsos sexuais reprimidos ou agressivos
ressurgentes, ou ainda para satisfazer certas necessidades cognoscitivas de discriminao binaria, ou enfim
por algum outro conjunto de razes?
Como todos os rituais, os de humildade e os de
hierarquia so imensamente complexos e repercutem em
muitas dimenses. Contudo, talvez um importante indcio
para compreend-los se encontre na distino, anteriormente feita entre as duas modalidades de correlao
social, denominadas "communitas" e estrutura. Aqueles
que sentem o peso dos cargos, que por nascimento ou
por conquista vieram a ocupar posies de mando na
estrutura, podem achar que os rituais e as crenas religiosas que insistem no despojamento ou na dissoluo
dos laos e obrigaes estruturais constituem o que
muitas religies chamam "libertao". Pode acontecer
que tal libertao seja contrabalanada por provocaes,
penitncias e outros sofrimentos. No entanto, tais nus
fsicos podem ser preferveis aos nus mentais de dar
e de receber ordens, e de ter de agir sempre sob a
mscara de uma funo ou de uma posio social. Por
outro lado, essa liminaridade pode tambm, quando
aparece nos "rifes de passage", humilhar o nefito exatamente porque ele ser exaltado, na ordem da estrutura,

241

ao final dos ritos. As provaes e as penitncias podem


portanto servir a f u n e s antitticas, ou punindo o
nefito pelo regozijo com a liberdade liminar ou temperando-o para as incumbncias de um cargo ainda mais
mais alto, que confere maiores privilgios, mas tambm
obrigaes mais severas. Tal ambigidade no deve
agora surpreender-nos, porque uma propriedade de
todos os processos e instituies predominantemente liminares. Mas, enquanto os indivduos estruturalmente
bem dotados buscam a libertao, os inferiores na estrutura podem procurar, em sua liminaridade, um envolvimento mais profundo numa estrutura que, mesmo
sendo apenas fantstica e fictcia, lhes possibilita entretanto experimentar, por um breve perodo de tempo legitimada, uma espcie diferente de "libertao" de um
diferente tipo de destino. Podem agora passar por senhores, "pavonear-se e encarar os outros de face, alm
do mais". Muito freqentemente o alvo de seus golpes
e descomposturas so as prprias pessoas a quem devem
normalmente deferncia e obedincia.
Esses dois tipos de rituais reforam a estrutura. No
primeiro caso, o sistema de posies sociais no contestado. Os hiatos entre as posies, os interstcios so
necesrios estrutura. Se no houvesse intervalos no
existiria estrutura, sendo precisamente os hiatos que se
reafirmam nesse tipo de liminaridade. A estrutura da
equao inteira depende dos sinais positivos e dos negativos. Assim, a humildade refora um orgulho legtimo
da posio, a pobreza afirma a riqueza e a pacincia
mantm a virilidade e a sade. Vimos, por outro lado,
como a reverso das posies sociais no significa
"anomia", mas simplesmente uma nova perspectiva a
partir da qual se pode observar a estrutura. A desordem
da reverso pode mesmo dar uma cmica vivacidade
a este ponto de vista ritual. Se a liminaridade dos ritos
de crises da vida pode ser, talvez audaciosamente, comparada tragdia pois ambas encerram situaes
de humilhao, despojamento e dor a liminaridade
de reverso de posies pode ser comparada comdia,
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porquanto ambas implicam zombaria e inverso, mas


no destruio, das regras estruturais dos fervorosos
adeptos delas. Alm disso, poderamos considerar a psicopatologia desses tipos rituais, a qual conteria, no
primeiro caso, um conjunto masoquista de atitudes para
os nefitos, e no segundo um componente sdico.
Quanto conexo com a "communitas", existem pessoas que, no exerccio da autoridade diria ou como
representante dos principais agrupamentos estruturais,
tm poucas oportunidades de lidar com os companheiros
como indivduos concretos e como iguais. Talvez na
liminaridade das crises da vida e nas mudanas de
posio social, encontrem oportunidade de despojar-se de
todos os sinais externos e sentimentos internos de distino de situao social e fundir-se com as massas,
ou, mesmo ser, pelo menos simbolicamente, considerados como servos das massas. Quanto aos que se encontram normalmente no fundo da organizao social
em que a posio determinada pela conscincia da
categoria da renda, etc., e que experimentam a camaradagem e a igualdade dos subordinados reunidos, a
liminaridade de reverso das posies pode oferecer-lhe
uma oportunidade de escaparem da "communitas" da
necessidade (que por conseguinte inautntica), entrando numa pseudo-estrutura, onde todas as extravagncias
de comportamento so possveis. Contudo, curiosamente
esses falsos portadores da "communitas" so capazes,
por meio de pilhrias e da zombaria, de infundir a
"communitas" na sociedade inteira. Pois tambm aqui
no h somente reverso, mas nivelamento, uma vez que
o ocupante de cada posio social com excesso de direitos intimidado por outro indivduo com deficincia
de direitos. Chega-se a uma espcie de termo mdio
social, ou algo como o ponto-morto na caixa de mudana, a partir do qual possvel tomar diferentes direes, em diferentes velocidades, numa .nova partida de
movimento.
Ambos os tipos de ritos que consideramos parecem
estar ligados a sistemas cclicos repetidos de relaes
sociais mltiplas. Afigura-se-nos haver aqui uma ntima

243

relao entre uma estrutura institucionalizada e com lenta variao e um modo particular de "communitas", que
tende a ser localizado nesse tipo determinado de estrutura. Sem dvida, nas grandes e complexas sociedades,
com alto grau de especializao e de diviso de trabalho, com muitos elos associativos dos interesses individuais e geral enfraquecimento dos estreitos laos entre
grupos, a situao provavelmente ser muito diferente.
Num esforo para sentir a "communitas", os indivduos
procuraro tornar-se membros de pretensos movimentos
ideolgicos universais, cuja divisa bem poderia ser a
frase de Tom Paine: "o mundo a minha aldeia". Ou
ento iro coincidir com os pequenos grupos de "marginalizados", como as comunidades dos "hippies" ou
dos "diggers", de So Francisco e de Nova Iorque,
onde "a aldeia [de Greenwich ou que outro nome tenha]
o meu mundo". A dificuldade que esses grupos at
agora no conseguiram resolver que a "communitas"
tribal representa o complemento e o reverso da estrutura
tribal, e, ao contrrio dos utopistas do Novo Mundo,
dos sculos XVIII e XIX, no criaram ainda uma estrutura capaz de manter a ordem social e econmica por
longos perodos de tempo. A flexibilidade e a mobilidade das relaes sociais nas modernas sociedades industriais, entretanto, podero oferecer melhores condies para o surgimento da "communitas" existencial,
quanto mais no seja, somente em encontros transitrios
e inumerveis, do que qualquer forma anterior de ordem
social. E' provvel que seja isto que Walt Whitman quis
dizer, quando escreveu:

termo to controvertido - uma "necessidade humana


de participar de ambas as modalidades As pessoa.^ faminfas de" uma delas em suas atmdades funooa

a penitncias para conquist-la.

Eu canto um algum, uma simples pessoa separada,


No entanto pronuncio a palavra Democrtico, a palavra EnMasse.

Um comentrio final: a sociedade (societas) parece


ser mais um processo do que urna coisa, um processo
dialtico com sucessivas fases de estrutura e de "communitas". Pareceria haver se lcito empregar um
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