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Eleonor Marx

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U ma histria de amor trado: o compa-

nheiro da filha caula de Karl Marx se


casa em segredo com outra mulher e pre-
tende levar a mesma vida domstica, enue
uma viagem mal-explicada e outra, como se
nada de anormal houvesse acontecido.
Como pano de fundo da infelicidade
domstica, durante os dez meses em que
decorre a histria narrada no livro at seu
desfecho tngico, Eleanor Marx relembra
os principais fatos de um momento capital
para a compreenso de nosso mundo: a
organizao dos movimentos operrios e
socialistas do sculo XIX. Em meio s
recordaes da "menina que cresceu com O
mpital, avultam as figuras histricas de Karl
Marx e Friedrich Engels, os formuladores
do comunismo moderno.
Em Ele1mor Marx, filha de Kod, Maria
Jos Silveira cativa o leitor ao apresentar,
de forma romanceada, a histria de uma
personalidade calorosa e afetiva, intelec-
tual de vanguarda, defensora das mulheres
e militante vigorosa da causa prolet<ria.
No entanto, essa mulher, to brilhante e
preparada, com um nvel ele educao aci-
ma cio comum, tambm se veria, como
qualquer um de ns, enredada nas tramas
cio amor infeliz.
Este o segundo romance de J\ifaria
Jos Silveira, escritora de raro talento que
estreou com ,-J. miie dn mie de sua miic e stws
filhas (obra de fundo histrico que narra a
evoluo ela sociedade brasileira por meio
de uma linhagem feminina, desde a incliazi-
nha que engravidou do portugus vindo nas
caravelas at a jovem esfuziante de hoje).
Alm cios romances, Maria Jos tambm
publicou ensaios sobre camponeses e o uni-
verso ideolgico.
FERi\.'A;-..'])() NUT\()
ELEANOR MARX,
FILHA DE KARL
Outras obras da autora:

Fico
A ME DA ME DE SUA ME E SUAS FILHAS

Ensaios
PRODUCC!N, PARCELARIA Y UNIVERSO IDEOLGICO - EL CASO DE PUQU!O

CAMPESINATO Y lDEOLOGA
MARIA] OS SILVEIRA

Avelino da Rosa Oliveira


Neiva Afonso Oliveira
BIBLI OTECA

ELEANOR MARX,
FILHA DE KARL
Um romance
Copyright 2002 by Maria Jos Silveira

Todos os direitos reservados. Impresso no Brasil. Nenhuma parte deste livro pode ser
utilizada, reproduzida ou armazenada em qualquer forma ou meio, seja mecnico ou
eletrnico, fotocpia , gravao etc. sem a permisso por escrito da editora.

Coordenao editorial: Fernando Nuno (Porto da Palavra)


Preparao: Silvana Salerno
Reviso: Naiara Raggiotti e Diego Salerno Rodrigues
Servios editoiiais: Area design
Capa: inc.design

1' edio brasileira, 2002

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)


(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Silveira, Maria Jos


Eleanor Marx, filha de Karl : romance / Maria
Jos Silveira. - So Paulo : Francis, 2002.

ISB N 85-89362-01-9

!. Romance brasileiro I. Ttulo.

02-6118 CDD-869.93
ndice para catlogo sistemtico:
!. Romances: Literatura brasileira 869.93

Direitos desta edio reservados para


Wl l EDITORES LTDA.
Rua Vupabussu, 29 - 05429-040 - So Paulo - SP
Fone (011) 3812-3812
wll@wl leditores.com.br
Avelino da Rosa Oliveira
Neiva Afonso Oliveira
BIBLIOTE CA

PARA OS QUERIDOS COMPANHEIROS


DOS VELHOS TEMPOS DE ALA.
PARA FELIPE.
"Um ato como este preparado no silncio do corao
como se prepara uma grande obra de arte. "
CAMUS, SOBRE O SUICDIO.

"Morrer uma arte, como tudo o mais.


Fao-o excepcionalmente bem."
SYLVIA PLATH
Auel~no
da Rosa Oliveira
Newa Afonso Oliveira
BIBLIOTECA

Sumrio

Nota ao leitor, 11

JUNHO
A menina d'O capital, 13

JULHO
A crise anunciada, 37

AGOSTO E SETEMBRO
O belo heri, 49

OUTUBRO
O dedo enluvado, 67

NOVEMBRO
Um casamento verdadeiro, 83

DEZEMBRO
Os domingos no parque, 99
JANEIRO
O comeo do pesadelo, 115

FEVEREIRO
O leo sem juba, 123

MARo
A morte branca, 141

Eplogo, 155

ANEXOS
Como se cria um erro histrico, 161
Pequena cronologia da famlia Marx, 169
As fontes, 173
Agradecimentos, 175
No ta ao leitor

Este livro est baseado em fatos relatados nas vrias biografias de


Marx e de sua filha Eleanor, sobretudo na abrangente biografia Elenno1
Jvfarx, escrita por Yvonne Kapp. No entanto, a maneira como esses fatos
so narrados, a ordem em que aparecem, a linguagem utilizada e as emo-
es e sentimentos, enfatizados ou no, fazem dele um romance de exclu-
siva responsabilidade da autora.
As citaes que aparecem neste livro esto grafadas entre aspas; foram
tiradas de textos de Eleanor e de Shakespeare - que a famlia adorava -,
enue outros.
Para facilitar a leitura, til saber que os Marx tinham mania de ape-
lidos. Trataram-se por apelidos diferentes, em vrias pocas de suas vidas.
Os que ficaram e sero usados neste livro so:
Mouro para Marx
Mohme para J enny (me)
Jennychen paraJenny (filha)
General para Engels
Lenchen para Helen Demuth (a governanta e amiga fiel da famlia)
Library para Liebknecht
Freddy para Hemy Frederik Demuth (o filho de Lenchen)
Tussy para Eleanor.

Outros nomes constantemente citados so Edward Aveling, o compa-


nheiro de Eleanor, e Olive Schreiner, escritora sul-africana e sua grande
amiga na juventude.

11
Junho
A MENINA D' "0 CAPITAL"

1.

O dia 8 de junho de 1897.

Faz muito calor naquele entardecer de vero em Londres.


Eleanor passou todo o dia no 8. Congresso Internacio-
nal dos Trabalhadores das Minas.
Quando saiu de casa, ainda no havia amanhecido. Ed-
ward estava dormindo. Enquanto preparava o caf-da-ma-
nh, ela chamou Gertrude, a empregada, e lhe deu as instru-
es para o dia. Que nada deixasse faltar a Edward, que
aparecera outra vez com um abcesso nas costas, do lado di-
reito. Que, por favor, cuidasse muito bem dos dois hspedes,
seus sobrinhos, Johnny e Edgar. Que no deixasse os gatos e
os cachorros sarem para a rua, sobretudo Vin, que andava
meio arredio. E que tivesse um bom dia que, tudo indicava,
ia ser de grande abafamento e calor.
Agora, ao voltar para casa, sua Toca, em Sydenham,
tranqilo subrbio londrino, Eleanor est cansada, mas cheia

13
Eleanor Mmx , filha de Karl

de expectativas: o Congresso, apesar de tudo, est sendo


produtivo e continuar por toda a semana; amanh ela ter
que se levantar com os pssaros outra vez. Edward, embora
doente, com certeza foi a Londres e, como de costume, cer-
tamente chegar tarde, mas esta noite ela no se importar
com isso. Est feliz, pois tem a companhia dos meninos.
Eleanor adora esses sobrinhos, os filhos de J ennychen.
sempre uma alegria ter os jovens em casa, ainda que
ultimamente ela ande um pouco apreensiva com Johnny, o
mais velho, seu favorito desde beb. Fosse pelos vinte anos
ou fosse pelo que fosse, ele no dava mostras de se interes-
sar seriamente por nada. Indiferente, talvez um pouco cni-
co. Era uma preocupao ver o sobrinho assim e no saber o
que fazer. Deve ser a derradeira fase da adolescncia, ela
pensa. Vai passar.
Conversar com eles, descobrir o que anda fermentando
naquelas cabeas irrequietas em formao, tentar esclarecer
uma ou outra idia, o que pensa que pode fazer. O que no
lhe nada difcil, pois conversar com os jovens sobrinhos
seu grande prazer dos ltimos dias.

noite, depois da ceia, sentam-se os trs na grande sala


da Toca, e Jolumy solta um dos seus comentrios cidos da-
queles dias:
- Minha tia, me diga uma coisa: para voc o meu av
era assim uma espcie de deus, no verdade?
Eleanor no se surpreende. De uns tempos para c, o
sobrinho quer saber cada vez mais do av e dos velhos tem-
pos, mas, sempre que possvel, usa esse tom questionador, s
vezes abertamente crtico. Influncia do pai, certamente, que
depois da morte de J ennychen se afastou dos M arx e evita,
tanto quanto pode, o contato de Eleanor com os sobrinhos.

14
Maria Jos Silveha

-No, Johnny, no verdade- ela responde, con-


tente por poder falar sobre o pai.- Seu av foi um pai ma-
ravilhoso e um homem extraordinrio. Foi possivelmente o
homem mais genial de sua poca e deixou uma obra que
mudar o caminho da humanidade. Os homens sero mais
felizes por causa de seu av. Reconhecer isso no conside-
r-lo deus.
-Mas voc nunca se desentendeu com ele? Vocs nun-
ca brigaram?
Eleanor afaga o plo castanho-avermelhado de Vin, o
gato que dorme em seu colo. To discreto que chega a se
confundir com a blusa de organdi bege-escuro, de gola fe-
chada, que ela est usando e a faz parecer mais austera do
que .
Como os jovens de hoje so diretos!, ela pensa. Ser
que na idade deles eu tambm era assim? Talvez. Foi justo
nessa idade, no foi?, que pela nica vez na vida enfrentei
meu pai. Ser que devo contar a eles? No, isso uma coisa
to ntima, to minha, e no foi briga, realmente. No foi.
Foi terrvel mas no foi uma briga. E foi h tanto tempo ...
-No, realmente nunca brigamos, Johnny. Seu av
era o mais afvel e generoso dos pais. No se lembra de co-
mo ele adorava vocs, os netos? Como ia a Paris e proibia
sua me de avisar a quem quer que fosse que ele havia che-
gado porque queria se dedicar completamente a vocs, "ao
mundo microscpico de suas crianas", como dizia.
- E quando voc era criana?
- Quando eu era criana, o Mouro jamais me deu se-
quer uma bronca. Mohme era um pouco mais disciplinadora,
mais exigente, talvez, e mesmo assim no me lembro tampou-
co de nenhuma vez que ela tenha levantado a voz para ne-
nhuma de ns. Quando via que estava perdendo a pacincia,

15
Eleanor Marx, filha de Km!

ia para o quarto e l ficava at se sentir mais calma. Apesar


das dificuldades financeiras, nossa famlia era feliz, isso no se
pode negar. Bem pequenina, eu me sentava nos ombros do
Mouro, segurava com fora sua exuberante cabeleira negra, e
ele perguntava: "Est pronta?" Eu respondia: "Shh, cavalos
no falam! Eia!" E l ia ele, o grande homem, o terror da bur-
guesia e da aristocracia da Europa, brincando de cavalgar pe-
lo minsculo jardim da nossa casa em Grafton Terrace. Eu
adorava essa brincadeira, e essa uma das primeiras lembran-
as que tenho de mim mesma e da vida. Ou ento, sou eu
acordando no meio da noite para dormir na cama dos dois, e,
ao passar pela sala, vejo o Mouro sentado mesa de trabalho,
a fumaa de cachimbo subindo na nuvem densa que o envol-
via como um halo de formidvel concentrao. Em vez de se-
guir at o quarto, eu me deitava no sof, para ficar mais per-
to e sentir o calor de sua presena poderosa, e ali adormecia
at a manh seguinte quando ele se levantava, ao perceber os
barulhos da rua comeando a se agitar, me descobria enrodi-
lhada no sof e me carregava de volta para cama.
- Ele no ralhava com voc?
- Seu av no ralhava com crianas. Achava que as
crianas deveriam educar os pais e mergulhava com entu-
siasmo em nossas fantasias. Sempre nos estimulava. De noi-
te, beira da nossa cama, era um grande contador de hist-
rias que lia ou inventava. Lia em voz alta os irmos Grimm,
Homero, Dom Quixote, As mil e uma noites e Shakespeare,
nosso Shakespeare, a Bblia da nossa casa.
- Mas meu pai diz que ele brigava muito. Que no ti-
nha pacincia com ningum, que dava medo em muita gen-
te - contesta Johhny. - Quando no gostava de algum,
era terrvel! Fosse quem fosse, podia desistir, que meu av
no deixava que ele abrisse a boca.

16
Ma ria Jos Silveim

- Quando brigava com algum, ele era assim mesmo.


Se alguma pessoa dizia uma besteira ou defendia idias que
ele achava prejudiciais ao movimento, virava uma fera. Nas
reunies polticas, verdade que muita gente tinha medo de-
le. O Mouro era duro nas crticas, rigoroso e, tambm - e
era isso que muita gente no lhe perdoava- muito sarcsti-
co. Demolia os argumentos de qualquer um, e ainda ironiza-
va a vtima. No era fcil se opor a ele, no era mesmo, e ele
acabava criando muitos desafetos. Mas conosco era outra coi-
sa. Nossa casa vivia cheia de amigos e companheiros, e ele
passava horas com a maior pacincia, explicando o que pen-
sava sobre isso ou aquilo. Ficavam conversando at de ma-
drugada, em torno de garrafas de vinho e da fumaa do taba-
co dos cachimbos. Ele e o grupo de amigos liam, bebiam,
conversavam, escreviam, riam muito, discutiam. Faziam pia-
das, fofocas, jogavam cartas e xadrez. Era uma casa cheia de
vida e entusiasmo, onde a paixo pelas idias e pelo ideal re-
volucionrio animava as discusses e as conversas acaloradas,
e deixavava aceso o lampio at o sol nascer. Foi nesse clima
de paixo revolucionria, de paixo pelas idias que sua me,
Laura e eu crescemos, como se fosse o jeito mais natural de
crescer. ramos tratadas como pessoas inteligentes, parte in-
tegrante e natural desse clima de conversas e discusses. Te-
mas que seriam proibidos em outros lares eram incentivados
no nosso e ns, as trs filhas, aprendemos com naturalidade
a questionar a sociedade e a pensar por ns mesmas.
-Mas vocs tinham que pensar como o vov queria -
diz]ohnny.
- No que tnhamos que pensar como seu av queria.
Voc faz a coisa parecer uma obrigao, meu querido, e no
era nada disso. Ele nos ensinava a ver e refletir, a discutir o
que vamos.

17
Elermor Marx, filha de Karl

- Meu pai diz que ningum podia discordar do vov e


do General; quem tivesse uma idia diferente estava errado.
- Seu pai pensava diferente do Mouro em muitas coisas,
mas foi ele quem se afastou de ns, para seguir outro caminho
poltico. Seu av discutia muito com ele, verdade, mas nun-
ca o vi recha-lo nem fechar as portas. Nunca mesmo.
Edgar, que no queria entrar nesse terreno das desa- .
venas polticas entre o pai e o av, quer saber mais sobre o
acontecimento que marcou a vida de todos eles, a Comuna
de Paris.
- verdade que voc e a mame foram presas?
- Ah, sim, mas j no ramos crianas. Na poca da
Comuna, aqueles dois meses que mudaram o mundo, Laura
j estava casada com Paul Lafargue, um dos lderes dos conz-
nzunards, como o pai de vocs, e viviam em Paris. Paul corria
perigo de vida, mas os dois conseguiram escapar para Bor-
deaux, antes que as tropas prussianas cercassem e invadissem
a cidade. Laura estava muito doente, acabara de dar luz ao
segundo beb, que tambm estava mal. Paul teve que voltar
a Paris em misso e no retornou no prazo combinado nem
enviara notcias - as comunicaes da capital com as provn-
cias estavam cortadas. Era um homem marcado, e Laura,
tendo que cuidar dos dois bebs, sentia-se cada vez pior. Foi
ento que sua me e eu embarcamos para Bordeaux, para aju-
d-la. Quando chegamos, Paul j havia retornado, mas as coi-
sas se complicavam e se aproximava o que depois ficou co-
nhecido como a Semana de Sangue, quando cerca de vinte
mil proletrios parisienses foram fuzilados e quarenta mil fei-
tos prisioneiros. O horror dessa represso brutal contra o po-
vo de Paris indescritvel. Naqueles dias de fuga e tenso,
Paul teve que se refugiar sozinho na Espanha e o beb fa-
leceu. Tentando ajudar no que podamos, Jennychen e eu

18
Mal"ia Jos Silveim

acompanhamos Laura at uma aldeia nos Pirineus, do lado


espanhol, para um encontro com Paul. Quando voltamos -
felizmente sem Laura - ns duas fomos presas na fronteira
francesa e levadas por vinte e quatro gendarmes at a casa on-
de estivramos hospedadas e que j havia sido completamen-
te revistada. Do alto dos meus dezesseis anos, e sem querer
me gabar, hlas!, devo lhes dizer que no tive medo. Estava
perplexa com o absurdo da situao mas no assustada. De fa-
to, era ridculo e bizarro, se no pattico, ver aqueles grossei-
ros gendarmes procurando bombas debaixo dos colches e
combustvel no fogareiro onde aquecamos a mamadeira do
beb falecido. E saber que faziam isso apenas porque ramos
filhas, e Paul, genro de Marx, que, naquele momento - co-
mo ele prprio dizia- "tinha a honra de ser o mais calunia-
do e perigoso homem de Londres", acusado de instigar e
controlar a Comuna, imagine! Como se isso fosse possvel ou
necessrio! Sua me foi interrogada primeiro, por mais de
duas horas. Depois foi minha vez. Um interrogatrio sem ra-
zo nem objetivos. Ficamos em priso familiar por dois dias,
depois fomos levadas gendanne1"e onde passamos uma noi-
te; no dia seguinte, fomos soltas. Para nos intimidar, os gen-
darnzes nos disseram que ramos acusadas de ser emissrias
internacionais dos revolucionrios! E a ironia que Jenny-
chen realmente levava consigo uma carta de Gustave Flou-
rens, um dos lderes da Comuna, muito amigo dela, que fora
assassinado naqueles dias em Paris. Mas sua presena de es-
prito a salvou. Quando ficou por um momento a ss, na sa-
la do posto da fronteira, Jennychen enfiou rapidamente a car-
ta entre as folhas de um velho livro-razo. Se a encontrassem,
muito provavelmente ns duas teramos de fato sido levadas
prisioneiras, sem apelao. Naqueles dias terrveis, foram
mais de cem mil vtimas entre mortos, presos e deportados.

19
Eleanor Marx, filha de Karl

Edgar pergunta:
- Ser que algum achou essa carta? Ou ser que at
hoje ela est no livro-razo abandonado?
- Isso nunca vamos saber - diz Eleanor, sorrindo. -
E, agora, para a cama que trop tard.
- Mas tio Edward ainda no chegou - diz J ohnny.
- J deve estar chegando. Ele sempre chega no trem
das onze e vinte. hora de subir para os quartos, vamos.
Eleanor se prepara para dormir.
Ela no quis admitir, quando Johnny perguntou, mas
Edward no deveria ficar at to tarde fora de casa, com seu
problema de sade! Que temeridade a sua! Na ltima visita,
o mdico dissera que o caso era grave, de cirurgia, e ele pa-
rece no levar isso a srio! Mas, no, ela no vai ficar pensan-
do nisso agora nem brigar com ele mais uma vez. Hoje no.
Hoje, a conversa com os sobrinhos a transportara para
um tempo distante e to querido, o tempo que, ela sabe, foi
o melhor de sua vida. E l ela quer permanecer um pouco
mais, com as lembranas da infncia para sempre envolvidas
no cristal brilhante de uma alegria incorruptvel.
Eleanor veste a camisola e se deita, deixando a cortina
da janela aberta. Olha a noite l fora. uma bela noite, cla-
ra: lua, estrelas de junho. Ar fresco sem ventos.
Fecha os olhos e v a menininha de cabelos presos, cor-
rendo e chamando, eufrica:
- Mame, papai, chegaram! Os envelopes chegaram!
Tussy foi esperar o carteiro a meio caminho, e agora
voltava, correndo, sacudindo os dois envelopes na mo. Es-
ses envelopes sobrescritos com a elegante letra do General
geralmente chegavam aos pares, ou um imediatamente se-
guido do outro, cada qual com a metade de uma nota de uma
ou cinco libras.

20
Mmin Jos Silveim

Era ela quem dava constncia desses recebimentos, es-


crevendo a Engels e, portanto, sabia bem o que continham.
Ia correndo lev-los.
Encontrava o pai sentado sua mesa de trabalho, onde
passava o dia e entrava pela madrugada, cheia de manuscri-
tos, livros, jornais. Ao lado de brinquedos, retalhos e fitas da
cesta de costura de Jenny, xcaras de caf, canivete, abajur,
tinteiro, copos, cachimbos, cinzeiro.
A extraordinria organizao do Mouro estava toda
dentro de sua cabea. Por fora, o mundo podia vir abaixo
que nada atrapalhava sua concentrao formidvel.
Eleanor v, perfeita e ntida, a figura do pai ainda jo-
vem: a densa barba e as suas, a juba preta que ela adorava.
Seus cabelos pareciam nascer de todos os poros e se espalhar
pelas bochechas, pescoo, orelhas e nariz. Era um homem
completamente hirsuto, seu pai.
Ela se deixa envolver por essa figura amada, sua au-
toconfiana e genialidade. Seus olhos escuros, brilhantes e
afetuosos, sua exuberncia, a capacidade de lhe tomar a mo
e dizer: "Minha gatinha, sente-se aqui. Vou lhe mostrar
uma coisa".
O apelido, Tussy, foi ele quem lhe deu. Pussy, gati-
nha, Tussy.
O dele era Moohr, o Mouro, porque tinha a tez more-
na e se comparava ao Mouro de Veneza, em seu amor por
Jenny, para quem uma vez escreveu:
"Eis que assomas diante de mim, grande como a vida, e
eu te ergo nos braos e te beijo dos ps cabea, e me pros-
tro de joelhos diante de ti e exclamo: 'Senhora, eu te amo. E
amo mesmo, com um amor maior do que jamais sentiu o
Mouro de Veneza"'.
Romntico assim, inigualvel. Esse era o seu pai.

21
Elemzor Marx, filha de Karl

Se ela o endeusava, como queria saber Johnny? Mon


dieu! O que responder!
Eleanor percebe os rudos abafados de Edward chegan-
do no ltimo horrio do trem, o de sempre, mas prefere se-
guir dormitando, sem nada dizer. Era reconfortante conti-
nuar mergulhada nas lembranas, continuar revivendo uma
felicidade cada vez mais rara em sua vida.
No suspeitava - e nem se tivesse a mais frtil imagi-
nao da Inglaterra poderia suspeitar - que ao se deitar ao
seu lado naquela noite Edward era um outro homem.
Uma mudana clandestina mas radical acabara de ocor-
rer em seu estado civil.
Na manh daquele dia 8 de junho de 1897, em Lon-
dres, com o pseudnimo de Alec Nelson (que adotava como
dramaturgo), falsificando a idade para trs anos menos e
dando um endereo inexistente, ele se casara s escondidas
com Eva Frye, jovem de vinte e dois anos, aspirante a atriz.

To temerrio e absurdo fato em nada alterou a rotina


da vida de Edward com Eleanor.
Naquela noite, a noite de seu inimaginvel casamen-
to com outra, ele nem sequer chegou mais tarde do que
de costume.

2.
Nos dias que se seguiram, a vida na Toca continuou ab-
solutamente a mesma.
Edward no mudou em nada os seus hbitos. No se
tornou nem menos nem mais coisa alguma. O mundo per-
maneceu exatamente igual.

22
Mmia Jos Silvei1a

Ao chegar em casa, na noite seguinte, voltando do


Congresso, Eleanor - como estava fazendo todos aqueles
dias - jantou s com os sobrinhos, sem ele, que, como em
todas aquelas noites, fora a Londres e ainda no voltara.
Acomodados nos sofs da ampla sala, Tussy conta aos
jovens como a famlia adorava as comemoraes de Natal
quando as filhas eram crianas. Tendo ou no dinheiro, En-
gels lhes enviava champanhe e vinho tinto e eles comemora-
vam, de alguma maneira. Como aconteceu em 1867, um ano
muito especial, ano em que foi publicado o primeiro volume
d'O capital.

No quarto, o Mouro agitava-se na cama, sem poder se


deitar de costas. Os furnculos ardiam como brasas vivas e o
mal-estar que ele sentia era imenso. De tempos em tempos,
seus resmungos chegavam at o andar de baixo, na cozinha,
onde Mohme, Jennychen, Laura e eu estvamos ajudando
Lenchen a fazer o pudim de NataL
Seu av sempre sofreu muito com os furnculos, mas
era outra coisa o que o deixava irascvel e impaciente naque-
le dia: era o pesado silncio com que foi recebida sua obra de
tantos anos de sacrifcios, sua magnum opus, publicada pela
primeira vez na Alemanha poucos meses antes.
Nenhum comentrio de ningum. Nada.
Os furnculos ardiam, a cabea estalava. Seus proble-
mas de sade comeavam sempre na cabea, ele costuma-
va dizer.
Mas o clima l embaixo, na cozinha, era de animao.
Ns todas adorvamos o Natal e ramos e fazamos brincadei-
ras, procurando desanuviar Mohme, imersa em pensamentos
lgubres demais para a ocasio e atenta aos rudos que vinham
do andar de cima.

23
Eleanor Ma rx, filh a de Ka rl

] ennychen batia os ovos, Laura picava as amndoas e a pe-


le cristalizada das laranjas. Eu tirava os carocinhos das passas.
Mohme, no entanto, estava mais preocupada do que o
usual. E tinha seus motivos. Endividados com todo mundo,
naquela manhzinha mesma Lenchen despachara um cre-
dor pensando que ela no tivesse visto, mas ela vira. S que,
tampouco a ela, no era isso realmente o que a preocupava;
aos credores batendo em sua porta, de certa forma, Mohme
j estava habituada. Naquele dia, o que a abatia era tambm
o silncio frio e inadmissvel em torno da obra do Mouro;
era, como ela dizia, essa forma de aplauso preferida dos ale-
mes: o absoluto e completo silncio.
A batida na porta a fez estremecer (mais um credor?!) e
nos alvoroou. Eu deixei a tigela de passas e corri para abrir
a porta. Lenchen, limpando as mos no avental, veio logo
atrs, pronta a dar um jeito se fosse preciso.
Felizmente, no foi .
O jovem entregador ao lado da porta retribuiu meu
sorriso radiante e eu lhe abri completamente a porta. "Feliz
Natal para a famlia Marx", ele disse, e entregou um enorme
pacote para Lenchen, Jennychen e Laura, que tambm vie-
ram ver o que era.
Todas ajudamos a levar o pacote at o saguo. Subi ou-
t:ra vez correndo as escadas para avisar o Mouro, enquanto
Mohme se aproximava, curiosa: "O que ser isso?"
"Com certeza, no vinho nem champanhe, nem foi o
General quem mandou, mame", disseram as meninas.
"Nem caixa de livros. muito m aior e veio do senhor Ku-
gelman, de Hamburgo! Podemos abrir?"
"Abram, abram. Vamos ver logo o que ."
E seu av, de pijamas, segurando minha mo, pra no
topo da escada e d sua ruidosa gargalhada ao ver o presente

24
Mrwia Jos Silveim

do amigo de Hamburgo: um enorme busto de Zeus, pareci-


dssimo com ele.
"Olhe a testa da esttua", exclamei, admirada, " igual-
zinha do Mouro."
Eu tinha doze anos nessa poca, quando saiu a primei-
ra edio do livro que consumiu mais de quinze anos de tra-
balho do Mouro e todo tipo de sacrifcios financeiros da fa-
mlia. Foi porque seu av se dedicou completamente ao
trabalho terico e poltico no remunerado que vivemos em
grande penria durante aqueles anos.
Mas, para mim, o fato de meu pai passar todos aqueles
anos, desde que nasci, escrevendo durante o dia no Museu
Britnico e noite adentro em casa era to natural como qual-
quer atividade de qualquer pai. Eu certamente no poderia
imaginar que esse trabalho, cujo produto final mudaria o
mundo, estava custando tantos sacrifcios a todos que eu
amava. Nem tinha como suspeitar que minha infncia fosse
muito diferente da infncia das meninas da minha idade.
Sua av disse uma vez: "Deve haver poucos livros que
foram escritos em circunstncias to difceis, e eu poderia
escrever a histria secreta desse perodo, contando os in-
meros, extremamente inmeros problemas e sofrimentos. Se
os trabalhadores tivessem uma idia dos sacrifcios que fo-
ram necessrios para que este livro, que foi escrito s para
eles e para o bem deles, fosse completado, talvez mostrassem
um pouco mais de apreo".
E seu av tambm costumava brincar: "Acho que nin-
gum nunca escreveu sobre dinheiro, tendo to pouco assim ...
O capital no pagar nem os charutos que fumei ao escrev-lo".

Os dois jovens riem alto. Tussy vai at sua escrivaninha,


abre uma das gavetas e pega uma carta. uma carta de 1850

2S
Eleanor lVIaix, filha de Kad

- explica- um ano depois que o Mouro e Mohme chega-


ram a Londres, em um exlio que se arrastou pela Frana,
Blgica e Alemanha. Foi provavelmente o perodo mais du-
ro da vida dos dois, cheio de crianas pequenas. Jennychen,
a primeira filha, nascera em Paris, Laura e Edgar em Berlim.
Logo depois da chegada a Londres, nasceu Guida, que mor-
reria no ano seguinte. E depois, Franciska, que tambm
morreu beb.
Ela l para os sobrinhos a carta que sua me escreveu a
um armgo:

"Permita que eu lhe descreva, tal como realmente trans-


correu, apenas um dia de nossa vida, e o senhor ver que pou-
cos refugiados passaram por experincia semelhante.
Como as amas-de-leite daqui so exorbitantemente ca-
ras, eu estava decidida a amamentar meu filho pessoalmente,
por mais pavorosas que fossem as dores em meus seios e cos-
tas. Mas o pobre anjinho absorvia meu leite com tantas an-
gstias e tristezas silenciadas, que estava sempre gemendo e
sofrendo dores agudas, dia e noite. Desde que veio ao mun-
do, ele nunca dormiu uma noite inteira - no mximo, duas
ou trs horas. Ultimamente, alm disso, tem tido convulses
violentas, e oscila constantemente entre a morte e uma vida
miservel. Em sua dor, ele suga com tanta fora que fiquei
com uma ferida no seio - uma ferida aberta; muitas vezes, o
sangue jorra em sua boquinha trmula.
Um dia, estava eu sentada quando, de repente, chegou
nossa senhoria, a quem pagramos mais de duzentas e cin-
qenta Reichstahlers no inverno, e com quem tnhamos feito
um acordo contratual de pagar posteriormente no a ela, mas
a seu locador, que a submetera antes ao arresto de seus bens;
pois ela negou a existncia desse contrato, exigiu as cinco libras

26
Mtl?"in Jos S ilveim

que ainda lhe devamos e, como essa soma no estava dispo-


nvel, dois meirinhos entraram na casa e determinaram o ar-
resto do pouco que possuamos - camas, roupas de cama e
mesa, roupas pessoais, tudo, at o bero do meu pobre beb e
os melhores brinquedos das meninas, que prorromperam em
lgrimas. Eles ameaaram levar tudo em duas horas - dei-
xando-me deitada no soalho frio, com meus filhos enregela-
dos e meu seio ferido. Nosso amigo Schramm partiu s pres-
sas para o centro da cidade, em busca de ajuda. Subiu num
tlburi de aluguel, os cavalos empinaram, ele pulou do vecu-
lo e, ensangentado, trouxeram-no para casa, onde eu me la-
mentava em companhia de meus pobres filhos trmulos.
No dia seguinte, tnhamos que deixar a casa; o tempo
estava frio, mido e nublado, e meu marido saiu procura
de acomodaes; quando ele mencionava quatro crianas,
ningum queria nos aceitar. Por fim, um amigo veio nos so-
correr, fizemos o pagamento, e vendi s pressas todas as nos-
sas camas, para acertar as contas com os boticrios, padeiros,
aougueiros e leiteiros, que, assustados com o escndalo fei-
to pelos meirinhos, de repente me sitiaram com suas contas.
As camas que eu tinha vendido foram levadas para a calada
e postas numa carreta- e ento, o que acontece? J passa-
va muito do pr-do-sol, a lei inglesa probe isso, o senhorio
apareceu para nos pressionar, acompanhado de policiais, de-
clarou que talvez houvssemos includo parte das coisas de-
le entre as nossas, e disse que estvamos saindo de fininho e
indo para o exterior. Em menos de cinco minutos, havia uma
multido de duzentas ou uezentas pessoas boquiabertas
nossa porta, toda a ral de Chelsea. L se foram as camas ou-
tra vez para dentro; s poderiam ser entregues ao compra-
dor na manh seguinte, depois do nascer do sol; assim habi-
litada a pagar cada vintm, mediante a venda de tudo o que

27
Elerm or M arx, filh a de Karl

possuamos, retirei-me com meus amorzinhos para os dois


pequenos quartos que agora ocupamos no German Hotel..."

J ohnny est emocionado:


-Nunca imaginei que meus avs tivessem passado por
uma misria to grande.
Edgar, de p, est com os olhos cheios de lgrimas.
Tussy consola os dois:
- Meus queridos, no fiquem assim.J passou. No foi
fcil mas eles conseguiram enfrentar tudo isso sem se deixar
alquebrar. E depois, seu av sempre teve a amizade de En-
gels, que nos ajudou a vida inteira. Foi mais ou menos por
essa poca que Engels viu que a nica maneira de garantir
condies financeiras para que o Mouro pudesse se dedicar
a escrever sua obra terica era ele - nosso General- abdi-
car de suas ambies como jornalista e militante em Londres
e assumir o emprego na firma do pai, em Manchester. Isso
lhe daria uma renda mais estvel, parte da qual passou a en-
viar regularmente a nossa famlia.
Foi tambm por esse tempo que seu av comeou a ir
regularmente ao Museu Britnico, dedicando-se de maneira
quase integral ao projeto de expor as profundezas e contra-
dies do capitalismo.
Eles conseguiram fazer o que tinham que fazer, apesar
das circunstncias. E isso que importa.
E agora, bonne nuit, todos para a cama. Amanh ainda
tenho mais um dia de Congresso.

28
Mmin Jos Silv eim

3.

A noite est quente e clara, a janela aberta, o outro la-


do da cama vazio. No quarto, Tussy outra vez no consegue
dormir. Seus pensamentos continuam l, no tempo que pas-
sou ao lado dos pais.
As dificuldades que o casal Marx teve que enfrentar pa-
reciam no chegar s filhas - ou, se chegavam, eram j di-
ludas pela extraordinria fora de vida que flua do casal.
Certamente, elas deveriam perceber o que acontecia: afinal,
muitas vezes ficavam sem sair no inverno porque suas rou-
pas estavam penhoradas; no podiam ir s aulas porque a
mensalidade no fora paga; e aglomeravam-se todas em vol-
ta do pai e da me nas noites mais frias, porque muitas vezes
no havia carvo para o aquecimento.
Mas alguma coisa com certeza acontecia ali, alguma coi-
sa maior do que tudo aquilo, porque essas desventuras no fo-
ram sentidas de maneira amarga por nenhuma delas. Era co-
mo se esses momentos - quando representavam juntos um
drama favorito de Shakespeare, ou escutavam as histrias que
o pai contava, ou alguma delas lia um romance em voz alta -
perdessem sua sombra negra e adquirissem uma outra quali-
dade, gravassem nelas um outro significado, mais completo.
Este, sim, capaz de deixar sua marca pelo resto de suas vidas.
Impossvel imaginar famlia mais unida e mais visce-
ralmente contente por estar um ao lado do outro. Imposs-
vel imaginar criana mais feliz do que Eleanor, a menma
que cresceu com O capital.

Quando Edward chega, ela tenta conversar. H dias es-


t preocupada com ele, com seu abcesso que no sara, ele
no deveria sair assim.

29
Elermor !Vlnrx , filha de Kai-1

Mas ele responde com resmungas, foi um dia pesado,


Eleanor. Deixe-me dormir.
Por que faz tanta questo de passar tantas horas em
Londres? O que no pode esperar at que sua sade seres-
tabelea? - ela pergunta.
Ele no responde. Deita-se em seu lugar na cama, vira-
lhe as costas e ajeita o travesseiro.
Como difcil entend-lo!
Olha-o com tristeza, como est magro! E como est ca-
da vez mais distante! Ela mal reconhece esse homem com
quem uniu sua vida e hoje lhe parece quase um estranho.
Onde foi que a vida dos dois perdeu o precrio equilfrio
que os manteve unidos aqueles anos? Por que ele a tem tra-
tado com tanta frieza? O que ela fez, se pergunta?
Onde ser que errou?

4.

Esse seria o ltimo dia dos sobrinhos na Toca, antes de


voltarem a Paris. O Congresso terminara e Eleanor pde
dedicar a tarde toda a eles.
Os trs saem para passear por Londres, aproveitando a
temperatura amena e a luz do vero.
Eleanor ama a sua cidade. Os prdios baixos, espalhan-
do-se como canteiros, entre praas graciosas e parques ver-
des, ou dourados, ou cinzentos e marrons, ou cobertos pe-
lo branco reluzente da neve. As construes massivas,
grandiosas como a fora dos trabalhadores que as levanta-
ram: docas, portos, estaes ferrovirias, linhas de trem, tu-
do em perptuo movimento. A ebulio, o mundo de idias
novas que avanam, agitando tudo sua volta. O rio, seu

30
M min Jos Silvei1n

belo Tmisa de cores e humores mutantes. Com que cor se


deixar ver hoje?
para caminhar por suas margens que leva os sobrinhos.
J ohnny tem o rosto harmonioso e moreno, parece a
me. Edgar, os mesmos olhos escuros e doces. Com quem se
parecer Mem, a nica filha de J ennychen, que no v h
anos? Ela ama esses sobrinhos como se fossem os filhos que
no teve. Pena que o pai dificulte tanto um contato mais fre-
qente com a "tia de Londres"; Eleanor tem de se contentar
com esses breves perodos de frias e, mesmo assim, s com
os mais velhos. Que seja! Pelo menos nesses breves pero-
dos, pode cobri-los de afeto, pode sentir como alegre e di-
ferente uma casa com jovens. Ela sempre quis ter filhos mas
Edward acha que assumir demasiadas responsabilidades,
se comprometer demais, inadmissvel. No quer nem ou-
vir falar. E por que ela quer ter filhos, ele lhe perguntou uma
vez, se j tem seus gatos e cachorros?

J ohnny quer saber mais sobre o av e a me. Sem se dar


conta, mudara o tom questionador que usava antes quando
se referia a Marx. Quer tambm ouvir mais sobre a av.
Johanna Bertha Julie Jenny M arx- ne baronesa de
Westphalen- era quatTO anos mais v~lha que o Mouro, a
quem conheceu porque o jovem era colega do seu irmo.
Muito inteligente e preparada, livre-pensadora,Jenny se en-
cantou com o gnio e carisma do jovem jornalista e filsofo
pobreto, a quem chamava, imaginem vocs, de "meu pe-
queno javali selvagem".
Edgar e J ohnny soltam uma boa risada e J ohnny no se
contm:
-Meu av! Um javalizinho! Essa no!
Eleanor, tambm rindo, continua:

31
Eleanor M arx, filha de Karl

- Sua av era uma beleza da poca. Traos finos, olhos


castanho-claros. De Trier, em uma viagem que fez sem ela, j
depois de casado, o Mouro lhe escreveu: "Todos os dias e por
toda parte perguntam-me sobre a quondam, 'a moa mais bo-
nita de Trier' e 'a rainha do baile'. sumamente agradvel,
para um homem, que sua mulher permanea assim, na imagi-
nao de toda uma cidade, como uma 'princesa encantada'".
- Com aquela cara ... e apaixonado! - ri Edgar.
- Sim, eles foram dois jovens apaixonados. E desde o
comecinho tiveram de enfrentar toda sorte de dificuldades. A
famlia de Mohme jamais entendeu sua escolha, embora ad-
mirasse a genialidade do escolhido da filha. De presente de
casamento, eles receberam um bom dote em dinheiro - que
logo gastaram com camaradas que precisavam mais do que
eles-, uma coleo de jias e uma baixela de prata Argyl com
o braso da famlia.Jias e baixelas que se tornaram muito po-
pulares nas casas de penhores de vrios pases. Imaginem que
quando o Mouro foi penhorar a baixela pela primeira vez aca-
bou passando a noite preso. Foi em Bruxelas. A polcia belga
achou muito suspeito que um refugiado alemo, sem eira nem
beira, pudesse ser o legtimo proprietrio de prataria to no-
bre e o levou preso. O equvoco s pde ser desfeito na ma-
nh seguinte, com a interveno aristocrtica de sua av.
- Como a polcia pode ser to estpida ...
- Realmente, pode at ser engraado, contado hoje. E
a vida de Mohme foi essa, indo e vindo das casas de penho-
res; copiando os manuscritos quase indecifrveis do Mouro,
incentivando, ajudando, segura da importncia do trabalho
que ele fazia. s vezes um tanto nervosa, como no ficar!,
com a situao poltica, as perseguies; d(;!masiado preocu-
pada com a felicidade das filhas. Mas sempre uma figura ca-
rinhosa e companheira.

32
Mmia Jos Silveha

E Tussy conta da primeira- e nica- festa-baile que


os pais fizeram, depois que receberam a herana da me de
Marx e do amigo Wilhelm Wolf- a quem dedicado o pri-
meiro volume d'O capital. Foi quando puderam se mudar pa-
ra uma casa maior em Modenas Villas, Maitland Park.
Eleanor tinha nove anos e um quarto novo, s para ela.
Nessa nova casa, cada filha tinha um quarto; Marx, um es-
critrio com vista para o parque e Jenny, um belo jardim
com rvores. Compraram novas moblias e animais de esti-
mao para as crianas, incluindo dois gatos, os primeiros
que Tussy teria na vida.
Mohme andava preocupada com o futuro das duas fi-
lhas mais velhas, que sempre se viam obrigadas a recusar
convites para festas por no poder retribu-los. Decidiu fa-
zer um baile para os possveis pretendentes de suas moas.
Mais de cinqenta jovens foram convidados e as duas irms
estavam radiantes em seus vestidos a rigor. Houve msica,
dana e uma comida to farta que, no dia seguinte, Tussy p-
de convidar os amiguinhos da vizinhana para um lanche
improvisado no jardim.
Foi tambm nessa nova e grande casa que acontece-
ram as reunies de organizao da Internacional Comunis-
ta, a primeira.
Tussy conta:

Eu ficava andando pela sala, animada com todos aqueles


amigos do Mouro, at que as discusses mais acaloradas co-
meavam. Ainda ficava por ali, zanzando, escutando, apren-
dendo com o que dizia um ou outro. At que me cansava e
acabava dormindo no canto de um sof. Quando a reunio
chegava ao final, os companheiros saam, o Mouro me carre-
gava at o quarto, me deitava e me cobria.

33
Eleanor Marx, filha de Kai-1

Logo esse curto tempo de bonana acabou e voltamos


ao antigo padro de vida e casa de penhores. Pois assim era
a vida da nossa famlia, curtos perodos de vacas gordas,
quando um dos dois - o Mouro ou Mohme - recebia al-
guma herana, e longos perodos de dificuldades. Perodos
de doenas de sua av, beira de um colapso mental pelas
preocupaes com a famlia; e perodos em que as dolorosas
crises de furnculos e doenas hepticas deixavam seu av
sem condies de trabalhar.
Mas se as contas com os mdicos se acumulavam, eles
sempre davam um jeito de ir para alguma estncia de curas
termais. E ns, as filhas, por mais que muitas vezes faltsse-
mos escola por falta de pagamento, tnhamos - e no me
perguntem como meus pais conseguiam isso! - aulas de m-
sica, piano e ginstica . Mohme era muito preocupada com
nosso futuro e dizia que jovens educadas de maneira to pou-
co convencional como ramos, vivendo na sociedade em que
vivamos, teramos que nos sobressair de alguma maneira.

A sala da Toca se enche com os risos dos trs chegando


do passeio.
Tussy lhes diz: Venham, quero lhes mostrar uma coi-
sa. Sua me, quando adolescente, tinha um caderno de
"Confisses" e fez o Mouro e o General responderem s
suas perguntas.
Ladeada pelos sobrinhos, ela abre uma gaveta de sua
mesa de trabalho e dela tira um caderno de capas grossas on-
de l, primeiro, as respostas de Marx, dadas em meados dos
anos 1860:

Sua virtude favorita: simplicidade


Sua virtude favorita no homem: fora

34
Mmia Jos Silveinz

Sua virtude favorita na mulher: fraqueza


Sua principal caracterstica: coerncia de propsitos
Sua idia de felicidade: lutar
Sua idia de infelicidade: submisso
Vcio que lhe parece mais perdovel: gula
Vcio que lhe parece menos perdovel: servilisnzo
Ocupao predileta: ler
Poeta favorito: Sbakespeare, squilo, Goethe
Escritor favorito: Diderot
Heri favorito: Esprtaco, Kepler
Herona favorita: Gretcben [do Fausto, de Goetbe]
Flor predileta: dafne
Cor predileta: vermelbo
Prato predileto: peixe
Mxima predileta: Nihil humani a me alienum puto [Nada
do que humano me estranbo]
Lema favorito: De omnibus dubitantum [Duvidar de tudo]

Em seguida, as respostas de Engels:

Sua virtude favorita: alegria


Sua virtude favorita no homem: ocupm'-se de suas pr-
prias coisas
Sua virtude favorita na mulher: no ficar perdendo coisas
Sua principal caracterstica: saber tudo pela metade
Sua idia de felicidade: Chteaux Margaux 1848
Sua idia de infelicidade: ir ao dentista
Vcio que lhe parece mais perdovel: o excesso de qualquer tipo
Vcio que lhe parece menos perdovel: a mesquinbaria
Ocupao predileta: ler
Poeta favorito: Reineke de Vox, Sbakespeare, Ariosto etc.
Escritor favorito: Goethe, Lessing, doutor Samuelson

35
Eleanor Marx , filha de Knrl

Heri favorito: nenhum


Herona favorita: tantas que no d para mencionar
Flor predileta: jacinto dos bosques
Cor predileta: qualquer uma menos anilina
Prato predileto: frio, salada; quente, cozido irlands
Mxima predileta: no ter nenhuma
Lema favorito: V com calma

A leitura do caderno de] ennychen encerra-se entre ri-


sadas, com os sobrinhos interpretando quase como um jo-
gral as respostas de Eleanor, que ento tinha dez anos:

Sua virtude favorita: verdade


Sua virtude favorita no homem: coragem
Sua virtude favorita na mulher: (no respondida)
Sua principal caracterstica: curiosidade
Sua idia de felicidade: champanhe
Sua idia de infelicidade: dor de dente
Vcio que lhe parece mais perdovel: gazetear
Vcio que lhe parece nzenos perdovel: o Eves Examiner
[livro com 4. 000 exerccios escolares}
Ocupao predileta: ginstica
Escritor favorito: Shakespeare
Heri favorito: Garibaldi
Herona favorita: Lady Jane Grey
Flor predileta: todas
Cor predileta: branco
Seus nonzes favoritos: Percy, Henry, Charles, Edward
Mxima predileta: V enz frente

36
Julho
A CRISE ANUNCIADA

1.

O sol queima entre as folhas das rvores capadas, no


auge do vero daquele ano.
Apesar do mido e sufocante calor que detesta, Elea-
nor foi caminhando at a estao perto de sua casa esperar
Lieblmecht. O velho Library est chegando para passar uns
dias em Londres, e Eleanor no admite que ele se hospede
em outra casa que no a sua.
Ela mal contm a ansiedade espera do trem.
Lieblmecht um dos poucos amigos do velho grupo
que sobrevive, e Eleanor tem inmeros assuntos a conversar
com ele. Sobre os rumos da Internacional, sobre o Partido
na Alemanha, sobre os sindicatos ingleses. Sente uma gran-
de necessidade de discutir, com algum que pertenceu ao
grupo de Marx e Engels, os caminhos do socialismo, as difi-
culdades que tem encontrado, as cises e rupturas, as posi-
es reformistas. Ela anda decepcionada com muita gente,
inclusive com Bernstein e seu revisionismo. Depois da morte

37
Elermor Mnrx, filhn de Knrl

do General, sente-se duplamente rf e quer usufruir ao m-


ximo a presena do velho amigo.
Liebknecht desce do trem e a abraa, apertado e calo-
rosamente. No contm a surpresa: "Menina! Como voc
est magra! O que anda acontecendo?"
Para sua grande surpresa, Tussy sente, inesperado, um
soluo subir garganta e a custo consegue se controlar. No
esperava que sua alegria de rever o grande amigo pudesse se
manifestar, assim, trazendo junto a profunda tristeza de tu-
do o que no tem mais. Ela se surpreende com essa emoo
espontnea e avassaladora que a tomou sem avisos e que mal
a deixa murmurar "Que falta imensa sinto de todos vocs!",
enquanto se deixa ficar ali, ainda alguns instantes, aninhada
no peito amigo.
- Chore, chore, minha menina - lhe diz Library. -
E depois me conte o que anda lhe perturbando.

Nos dias que se seguem, os dois conversam, e conver-


sam. Eleanor passa o tempo inteiro ao lado dele e o acom-
panha para toda parte. Mas, talvez por ainda no ter plena
conscincia do que est de fato lhe acontecendo, nada diz
sobre o motivo maior da grande tristeza que anda sentindo,
a indiferena e distncia de Edward, sua fria rotina domsti-
ca, a solido.
Liebknecht tem vontade de rever as ruas dos "tempos
terrveis, mas gloriosos", de quando eram todos exilados em
Londres, todos jovens, todos imaginando que a revoluo
estava to perto, que passava por aquelas ruas junto com
eles. Naquela cidade que era, aos olhos de muitos, no s a
capital do poderoso Imprio Britnico, mas, por extenso, a
capital do mundo.
Quando Marx e a famlia chegaram, em 1849, Londres

38
Mnrin Jos Silveira

era a maior cidade da poca, com dois milhes e meio de ha-


bitantes. E embora Paris fosse considerada o centro natural
da revoluo europia, era em Londres, com todas as suas
contradies, que os refugiados polticos europeus encon-
travam mais segurana e liberdade. A cidade fervilhava com
informaes, idias, teorias novas, atraindo imigrantes de
todas as partes. Russos, hngaros, belgas, franceses, alemes.
Em 1851, o embaixador prussiano em Londres registrava
cerca de mil refugiados estrangeiros participantes de alguma
associao poltica.
Liebknecht quer rever aquela efervescente Londres dos
exilados.
Quer caminhar pela acanhada e feia Dean Street.
L est o nmero 28, o pequeno e miservel prdio cin-
za, feio e sujo, onde nasceu Eleanor, em 16 de janeiro de
1855. No sombrio apartamento de dois quartos, no ltimo
andar, vivia a famlia Marx - ento com quatro filhos, e
Lenchen, a governanta. O bairro era o Soho, o mais pobre e
o mais barato de Londres.
Sair rua, naqueles tempos, exigia cuidados estratgicos.
Alm dos credores que vinham diariamente casa - padeiro,
leiteiro, aougueiro - , era preciso evitar tambm os espies
do Kaiser Frederico Guilherme N da Prssia, que, no con-
tente em expulsar Marx de seu pas, queria saber que atenta-
do, que exploso, que compl esse flamejante e conttmdente
arquiinimigo poderia estar planejando com seus camaradas.
Em geral, o Mouro se deixava seguir sem criar proble-
mas. Outras vezes, quando estava de bom humor, virava-se
de repente e, com o melhor dos seus olhares de Inimigo P-
blico Nmero I, encarava o perseguidor que, sem sada, lm-
mildemente tirava o chapu, girava sobre os calcanhares e se
mandava, para nunca mais ser visto.

39
Elennor Mmx, filha de Karl

Alguns desses espies conseguiram se infiltrar. Fazen-


do-se passar por correligionrios, chegaram a ser recebidos
na pequena e atravancada sala do minsculo apartamento, o
centro dos exilados alemes em Londres.

Jenny perdera trs filhos ainda bebs e, meses depois do


nascimento de Eleanor, morre Edgar, aos oito anos, o nico
filho homem. O desespero com essa perda faz com que oca-
sal j no se conforme em continuar morando no msero e po-
ludo Soho. A chegada providencial da herana de um tio de
Jenny torna possvel a mudana para uma casa melhor e mais
saudvel, em Grafton Terrace, Hampstead, um subrbio.
As ruas de Hampstead no tinham pavimentos nem ilu-
minao, mas a casa tpica de quatro andares, com um pe-
queno quintal de grama e cascalho, cercada de campos e ter-
renos baldios, era quase um palcio, comparada ao apar-
tamento do Soho.
Liebknecht quer tambm passar por l e sorri, lem-
brando-se da casa cheia de amigos e dos piqueniques que fa-
ziam aos domingos, nos campos dos arredores. Tussy e as
irms se escondiam atrs dos arbustos, enquanto Marx ou
um dos seus amigos de vida inteira, ele, Engels, Wilhelm
Wolf, procuravam por elas. Depois, todos se reuniam, entre
risos e conversas, ao redor da toalha na relva e do almoo
delicioso preparado por Lenchen: um grande pernil de vi-
tela, po, queijo, s vezes at camares e, claro, garrafas de
bom vinho e gales de cerveja comprados no pub mais pr-
ximo. No fim da tarde, caminhavam de volta casa, decla-
mando poemas de Shakespeare e cantando canes folclri-
cas alems. Tussy vinha de mos dadas, um pouco com o
pai, um pouco com a me, um pouco com Engels, tentando
qmtar mais alto que todos eles.

40
Mmia Jos Silveim

- Voc foi uma menina muito, muito alegre -lhe diz


Liebknecht. - Brincalhona e travessa. Minha mulher ainda
fala de seus cabelos pretos rebeldes e seus grandes olhos es-
curos, irradiando energia e inteligncia, entre as cartas que
adorava escrever, os jogos de xadrez, a coleo de selos e bo-
necas, e os amigos - pequenos como voc ou adultos como
seus pais. Sua precocidade encantava a todos e sua me dizia
que voc era "poltica da cabea aos ps", a menina querida
de todos ns, os revolucionrios que se reuniam em torno de
seu pai. Voc deveria ter uns seis anos quando comeou a me
escrever cartinhas deliciosas, as cartas de uma menininha au-
toconfiante que tratava com graa e inteligncia dos assun-
tos de gente grande.
Tussy riu, feliz como h sculos no se sentia.
- Ah, como me lembro d tudo isso! Eu mantinha uma
correspondncia assdua: com voc, com Wilhelm Wolf e,
claro, com o General- diz, animada.- Escrevi at para
Abraham Lincoln, uma vez, dando meu ponto de vista sobre
por que estava segura de que o Norte ganharia. Meu pai ria
muito quando contava essa histria e durante anos guardou
minha carta.
De longe, se escutam as risadas dos dois, o velho de cabe-
los brancos, caminhando ereto com sua bengala, e a expansiva
mulher a seu lado, vestida com simplicidade mas elegncia.
- Tussy, desde que cheguei no a vejo rir to feliz -
comenta o amigo.
Os dois chegam Toca onde Edward - que, por cau-
sa de Liebknecht, voltava para jantar em casa naqueles dias
-,comenta:
-Que alegria a de vocs! Posso saber o motivo?
Mas quando Liebknecht comea a lhe contar como era
Tussy criana, ele muda de assunto.

41
Elermor Marx, filha de Karl

2.

O velho Library sente alguma coisa no ar, mas no


consegue identificar o que . Ele sabe que Tussy nunca foi
exatamente feliz com Aveling, mas evita se deter nessa ques-
to; no por falta de interesse, mas por discrio e por no
saber como lidar com situaes desse tipo. Como vrios de
seus companheiros, entende que os problemas domsticos
se resolvem com o tempo e, a no ser nos extremos, no
merecem tanta ateno. Talvez seja melhor fazer vista gros-
sa - se voc se negar a v-los, quem sabe os problemas dei-
xem de existir? Pelo menos, est satisfeito por ver que
Tussy, pela primeira vez na vida, est tranqila em termos
financeiros. A herana que Engels lhe deixou, alm de pos-
sibilitar a compra da boa e confortvel casa que chamam de
A Toca, onde agora esto morando, tambm proporciona
uma renda que lhe permite viver sem apertos. Apesar disso,
ele percebe que Eleanor no est exatamente bem, nem ani-
mada. Alm da morte do General, que a afetou demasiado,
ela deixara de comparecer s reunies da Unio dos Traba-
lhadores de Gs para se dedicar a organizar os papis do pai
e aos problemas de sade de Edward. Liebknecht no achou
nada sbia essa deciso: o experimentado militante sabe que
o contato com o movimento fundamental para quem de-
dica sua vida ao socialismo. Mais ainda no caso de Eleanor,
de temperamento to afetuoso, to cheio de vida: estar ao
lado dos companheiros o que d corpo e sangue s idias
que, sem isso, podem ficar abstratas demais, descarnadas.
Mais que ningum, ela precisa disso, desse corpo e sangue,
ela que puro feixe de emoes e sentimentos. Sem essa
ligao, as dificuldades comeam a parecer muito grandes,
a pessoa sente-se isolada, sente-se s e frgil, impotente.

42
Mmia Jos Silv eim

Mas Tussy garante que seu afastamento apenas tempor-


rio, que no conseguiria viver sem estar na linha de frente,
junto dos companheiros. Como sabe que isso verdade, ele
se tranqiliza. Tussy lhe promete tambm que vai prestar
mais ateno a suas refeies e que, se preciso, procurar um
mdico.
Uma daquelas tardes, Liebknecht sai para caminhar
com Edward. Aproveita e tenta manifestar sua preocupa-
o com Eleanor, mas Edward se recusa a continuar o as-
sunto e comenta, com azedume, a "sade de cavalo" que ela
tem. Liebknecht acha que no deve insistir, que no seria
de bom-tom, e aceita o rumo que seu anfitrio d conver-
sa. Quando a sade de Edward se normalizar, a vida dos
dois tambm entrar nos eixos - espera.
Aproveita aqueles dias para tratar com Eleanor da ne-
cessidade de que a histria do movimento dos trabalhadores
na Inglaterra seja escrita.
- O General sempre disse que voc seria a pessoa mais
indicada. Voc no apenas conhece a histria e a situao
atual do movimento dos trabalhadores ingleses - no ape-
nas a conhece, eu diria, quase por hereditariedade - como,
desde que comeou a pensar e a agir, tem se dedicado de co-
rao e alma a esse movimento.
Eleanor lhe diz que sim, que reconhece a necessidade
desse trabalho e promete que comear a pensar e a pesquisar
sobre a questo. Conta que tem tambm o projeto de escre-
ver uma biografia do pai, mas para isso seria imprescindvel
ter acesso s cartas que Marx escreveu a Engels e que estavam,
agora, sob a guarda do Partido Socialista Alemo, num cofre
ainda em Londres aos cuidados de Louise Freyberg.
- Mas voc sabe, Library, que me recuso a falar com
Louise. Estou com as cartas de Engels para o Mouro, que

43
Elea11or Marx , filha de Karl

ficaram com os papis de Marx, mas preciso da permisso


de Bebe! e Bernstein para copiar as cartas do Mouro para
Engels, que ficaram com os papis de Engels, e acho um ab-
surdo pedir a chave Louise.
Liebknecht promete ajud-la nisso.

3.

"A Toca, 27 de julho de 1897

Minha muito querida Olive,

H quanto tempo no nos escrevemos!


H quanto tempo no tenho notcias suas nem dos ou-
tros amigos que sempre estiveram to prximos! Agora esta-
mos cada um para seu lado, cada um envolvido com suas coi-
sas, sua vida, e o mximo que temos, quando temos, so as
cartas, amadas cartas, que s vezes escasseiam tanto que che-
gam quase a desaparecer.
Mas hoje, com esse calor que no deu trguas o dia to-
do e que mesmo agora, noite, faz o ar ficar pesado, opres-
sivo, quase irrespirvel, decidi parar um pouco o trabalho,
que no est rendendo nada, e lhe escrever como nos ve-
lhos tempos.
Ser, eu sei, uma carta de desabafo, de desespero, e tal-
vez eu no tenha coragem de envi-la, mas no importa. Es-
crev-la j me servir de algum consolo, de alguma forma
me ajudar. E peo desculpas se depois de tanto tempo lhe
escrevo uma carta triste. Mas que preciso tanto de uma voz
amiga, tenho tanta necessidade de um pouco de afeto e com-
preenso! s vezes acho que estou muito mal, que vou morrer,

44
Mmia Jos Silveim

querida Olive. Para qu continuar vivendo essa vida de to


poucas alegrias?
Meu casamento vai mal, minha amiga. E sei que voc
dir, com seu jeito direto e franco: 'Mas isso no surpresa,
Tussy, seu casamento sempre foi mal'.
Sim, voc tem razo. Nunca foi exatamente como eu
queria, ou imaginava, ou sonhava, sei l, depois desses cator-
ze anos j nem sei mais o que realmente imaginava encon-
trar ao lado de Edward quando decidi ficar com ele. Seja co-
mo for, agora est pior.
H dias no conversamos. Desde que Liebknecht foi
embora. No brigamos, mas no conversamos. Ele se recu-
sa a responder s minhas perguntas, mesmo as mais banais
como 'Por que voc precisa tanto ir a Londres hoje, se est
doente?' Uma pergunta assim o faz se virar e me lanar um
olhar to gelado que imediatamente me sinto equivocada ou
injusta ou totalmente sem direitos de querer saber da vida
dele que, afinal, tambm a minha. Embora isso parea
completamente en passant, para ele.
E, no entanto, ainda trabalhamos juntos - e e rsso,
acho, que me salva. Estamos escrevendo uma introduo pa-
ra vrios artigos do meu pai, que organizamos sob o ttulo 'A
Questo Oriental'. Na verdade, escrevi a introduo e ele
agora est acrescentando suas modificaes. Sempre sem me
dirigir a palavra, como se eu no estivesse aqui. Mas, pelo
menos por escrito, h essa prova de que, de alguma forma,
ainda estamos juntos.
E samos juntos de manh para ir ao Congresso do
Partido do Trabalho Socialista. Escrevi juntos, mas na ver-
dade no essa a palavra mais apropriada: samos um ao la-
do do outro e tomamos o mesmo trem e fazemos o mesmo
trajeto at chegar ao mesmo local de destino e cumprimentar

45
Elennor Marx, filha de Karl

os mesmos companheiros. Mas no nos falamos. Ele fria-


mente ignora todas as minhas tentativas de romper essa
barreira incompreensvel e cortante entre ns, de quebrar
seja l o que for que impede de tal maneira um mnimo de
comunicao. Mas no consigo.
Minha querida Olive, o que ser que est acontecendo
comigo? O que est acontecendo com Edward?
Posso v-la, agora, ao ler essa carta, voc, que sem-
pre foi contra meu casamento, balanar a cabea e dizer:
'Pobre Tussy, eu bem lhe avisei, eu sabia que sua vida se-
ria um inferno'.
O que voc nunca entendeu, querida amiga, que eu
amava e ainda amo esse homem. Eu precisava - e ainda
preciso dele. Meu pai costumava dizer que eu parecia mais
um menino do que uma menina. Foi Edward que realmente
trouxe tona o feminino em mim. Fui irresistivelmente
atrada por ele.
E depois nossos gostos so muito parecidos. Concorda-
mos em relao ao socialismo. Amamos o teatro. E conse-
guimos trabalhar muito bem juntos.
Mas agora alguma coisa mudou entre ns. Alguma
coisa muito sria, fundamental. S que no sei o que , e
ele, se sabe, no me fala. E, sozinha, no estou conseguin-
do entender.
isso que me faz lhe escrever essa carta - e no sei se
estou sendo impertinente por achar que um amigo tem o di-
reito de abrir para o outro seu sofrimento. Mas que con-
versar com voc, e mesmo lhe escrever, sempre foram para
mim coisas to importantes, me ajudaram em muitos mo-
mentos. Como gostaria que voc ainda estivesse morando
em Londres, pois ento iria visit-la e conversaramos e con-
versaramos e voc me diria as verdades que preciso ouvir e

46
Mmin Jos Silveira

imitaria Edward perfeio e talvez, no final, at consegus-


semos rir de tudo isso.
Por que o mundo tem que ser pior do que se pensa que
ele ?

Com o grande afeto de sempre, sua velha amiga,


Tussy"

47
Agosto e setembro
~

0 BELO HEROI

1.

Meados de agosto. O calor do vero continua intenso.


Eleanor trabalha em seu estdio mas sente que anda
rendendo pouco. Est cansada e gotinhas de suor aparecem
em sua testa. Pela ensima vez, como faz todo vero, jura
que dar um jeito de conseguir roupas mais apropriadas,
mais leves. Talvez amanh, depois da palestra que far no
Clube Radical, encontre um tempinho para passar em algu-
ma loja. O vero pode estar acabando mas as folhagens das
rvores do jardim ainda no conseguem conter a fora bru-
ta do sol.
Levanta-se e vai at a cozinha preparar um ch.

Edward, que estava no quarto, aparece na porta. Ines-


peradamente, lhe diz que precisam conversar. E , ento,
que uma espcie de bomba explode na frgil e angustiada ro-
tina domstica de Eleanor.
Como quem est apenas expondo um tipo de problema

49
Eleanor Marx, filha de Karl

que no lhe diz muito respeito, Edward finalmente fala al-


guma coisa. E o que fala o anncio de uma catstrofe.
H uma certa jovem em Londres que espera ser recom-
pensada financeiramente de alguma forma e ele precisa de di-
nheiro, um dinheiro que ele no tem mas Eleanor, sim. Tem
a herana de Engels. Edward espera que ela lhe entregue par-
te dessa herana. Ou a dita jovem poder se aborrecer mais
do que j est aborrecida e provocar um escndalo pblico.
Eleanor mal cr no que ouve.
Edward nunca chegara to longe! Pedir dinheiro para
uma de suas amantes!

(Como poderia Eleanor saber que agora, oficial e legal-


mente, a situao se invertera e a amante era ela? Ainda que
sempre considerasse sua unio com Edward como um "casa-
mento verdadeiro", essa unio nunca fora oficializada. Ave-
ling alegava que a primeira esposa no lhe dava o divrcio e,
quando ela faleceu, nada disse a Eleanor, deixando a situao
permanecer como estava. No nada fcil manter uma casa
extra. Edward sente isso na pele, e seu contnuo endivida-
mento se agrava cada vez mais pela vida dupla que est le-
vando. A sada que vislumbrou, certamente a mais fcil, foi
o dinheiro de Eleanor.)

A discusso entre os dois foi acalorada.


E frente recusa terminante dela de compactuar com
sua chantagem e gastos excessivos, Edward sai de casa.

Eleanor se desespera.
Sente-se aviltada. Ferida e s. No sabe o que fazer, o
que pensar. Sente-se perdida, mergulhada em um sofrimen-
to ainda maior do que poderia imaginar.

50
Mrwin Jos Si!veim

E apesar de tudo, quer que Edward volte.


Precisa dele e precisa de ajuda.
Precisa de algum que possa interceder junto a ele e
convenc-lo a voltar para casa. Desde a morte de Engels,
Freddy- o filho de Lenchen- tornara-se um grande ami-
go e com ele que ela se abre. Pede ajuda.
Felizmente, durante o dia, ela ainda consegue reunir
foras e se concentrar. Consegue trabalhar.
Escreve vrias vezes para Laura, para Kautsky e para
Library- que, mais uma vez, fora preso na Alemanha-,
mas a nenhum menciona seu sofrimento nem a situao pe-
la qual passa. Havia muitas questes polticas a serem resol-
vidas - poucos dias antes, eles participaram da conferncia
anual da SDF (Socialist Democratic Federation), para a qual
haviam voltado depois do falecimento de Engels, e Aveling
fora eleito para o comit executivo. Alm disso, Eleanor es-
tava participando do apoio greve dos maquinistas por oito
horas de trabalho - greve que recm comeara e provocara
uma reao inesperada dos patres, o locaute. E preocupa-
va-se muito com as posies revisionistas de Bernstein, cuja
influncia no Partido Alemo crescia sombra da ausncia
de Liebknecht, na priso.
Mais do que nunca, ela tenta mergulhar no movimento
maior que a cerca para escapar de seus demnios domsti-
cos. Sua sada e refgio so a realidade maior da luta para a
qual, desde pequena, viveu.
Mas sua tristeza profunda. A solido, um vazio que
envolve, frio e seco, por dentro e por fora, ela mesma, a ca-
sa, a paisagem. Quando chega a sua Toca, aps as reunies,
o desnimo a abate. Abre a janela e olha, sem ver, suas r-
vores. Pensa, infinitamente, no que fazer para. trazer Ed-
ward de volta.

51
Elen1201 Mmx, filbn de Knrl

Mal acredita quando, dias depois, ele regressa Toca.


Como se voltasse de um dia normal de trabalho, como se na-
da houvesse acontecido.
Ela est em seu estdio, tentando terminar um artigo,
quando Edward chega.
Ele no se desculpa nem d explicao. Mas parece
ofendido porque ela no se levanta para receb-lo como
de costume.
Eleanor no sabe definir bem o que sente ao ver a figu-
ra na porta. Alvio? Angstia? Alegria, no, alegria ela j no
capaz de sentir. Ele voltou para ficar?
Permanece sentada, esperando que ele lhe diga algu-
ma colSa.
O silncio pesa. Ela sente-se sufocar.
Ele nada diz. Olha-a e se vira, preparando-se para dei-
xar o cmodo. Ela no suporta mais:
- Edward, precisamos conversar sobre o que aconteceu.
Ele mal se vira e no a olha. Ela insiste:
- Nunca esquecerei a maneira como voc me tratou.
Ele continua sem responder; imutvel, dirige-se porta.
- Espere, Edward, no v. Freddy est vindo, talvez
amanh. Com certeza, ainda esta semana - ela diz, tentan-
do obter uma resposta.
Mas Edward sai do estdio e fecha a porta, sem nada
responder.

Ele tem essa maneira refinada de torturar Eleanor. No


escuta, no responde, no v. Inerte, gelado. Nenhum ms-
culo de seu rosto se mexe, inaltervel. Durante horas, den-
tro de seu corpo, h uma conscincia, mas uma conscincia
que no existe para ela.
Ele permanece nessa inexistncia at o momento em

S2
Mmia Jos Silveira

que ela desiste, declara-se vencida, sucumbe, e tambm ela


emudece, isola-se, volta-se para dentro de si mesma.
quando, ento, ele resolve existir. E assim que muito
mais tarde, quela noite, Edward decide lhe dirigir a palavra.
Mas o que ele diz , outra vez, mais desesperador do
que seu no-existir.
Fala baixo mas sem disfarce; sua chantagem torna-se
mais dura e grave.
Diz que, se no tiver o dinheiro de que precisa, aban-
donar imediatamente Eleanor e se casar com a jovem. E
diz mais: diz que se no pagar as dvidas corre o risco de
ser preso.
No fica claro, mas parece que ele sugere, que deixa
sobrepairar no ar, que deixa se infiltrar na percepo dela,
a suprema ignomnia: que fora obrigado a lanar mo do
caixa do Partido e que, se no pagar, um escndalo poder
vir tona.
A quantia que ele diz necessitar exorbitante.

Na manh seguinte, Eleanor desesperada escreve a


Freddy.

"Meu querido Freddy,


Venha, se puder, esta noite. uma pena incomodar vo-
c; mas estou to s, e estou cara a cara com a mais horrvel
posio: completa runa- tudo, at o ltimo penny, ou com-
pleta e aberta desonra. terrvel; pior do que imaginei que
pudesse ser. E preciso de algum com quem me consultar.
Sei que no final sou eu que devo decidir e ser a responsvel,
mas um pouco de conselho e de ajuda amiga seria de valor
incalculvel. Ento, querido, querido Freddy, venha. Estou
de corao partido."

53
Eleanoi M rn-x , filha de Karl

Freddy atende ao chamado e vai visit-la. Eles conver-


sam no pequeno estdio.
A falta de escrpulos de Edward parece ter ido longe
demais, no entanto, Eleanor no v outra sada. Sente-se no
fim das foras e decide ceder. Quem sabe, depois, o pesade-
lo termine.
Ela cede, mas sem ter idia do quanto est cedendo.
Sem saber que, tendo conseguido o que queria, Edward
continuar com sua vida dupla, morando parcialmente na
Toca, para manter as aparncias frente aos amigos socialis-
tas, e mantendo ao mesmo tempo a outra casa, com a nova e
oficial esposa, Eva Nelson.
(At quando pretenderia seguir assim?)

2.

Duas semanas depois, e como se nada estivesse aconte-


cendo, os dois vo juntos passar quinze dias com os Lafargue
em Paris. Nem Paul nem Laura notam qualquer coisa dife-
rente no casal.
Os dias so de encontros polticos e muitas conversas.
Ningum pode supor o que se e.s conde por trs das ati-
tudes de Edward. Eleanor, como sempre, gentil, atenta
aos gestos do companheiro. Ningum nota qlJ.e o casal s
de aparncias. Ningum percebe o sofrimento de Eleanor
tentando remediar o irremedivel; colocando sua vida nas
mos do tempo.
noite, no entanto, Eleanor no consegue dormir.
A seu lado, Edward mal se deita e cai em sono profun-
do, como o mais tranqilo dos homens. invejvel essa ca-
pacidade que o marido tem de se bastar em seu mundo.

54
Mmia Jos Silveim

Ela, no entanto, no consegue esquecer. H um peso


permanente em seu corao que a sufoca e inquieta.
Levanta-se e desce as escadas.
A casa que Laura e Paul compraram com a herana de
Engels uma enorme manso, em Dravil. Tem trinta quar-
tos, salo de bilhar, salas de leitura e de lazer, escritrio, um
jardim que mais parece um parque, com estufas e uma gran-
de casa para o jardineiro.
Eleanor sai para o jardim, onde o friozinho das noites
de setembro ainda suave e acolhedor.
Em que luxo est vivendo agora sua irm, admira-se.
Mas no acho que trocaria minha Toca por este palcio, pen-
sa. E como as coisas esto longe de estarem bem por aqui: o
movimento dividido, os amigos do peito de ontem so hoje
inimigos mortais, e Paul, com sua eterna fanfarronice, sem-
pre declarando - pior ainda, acreditando - que cela marche
admirablement!
"Ah, la graaaaannnde nation", como dizia Mohme, que
nunca foi grande admiradora dos franceses, a quem considera-
va esnobes e arrogantes!
E Lissagaray, por onde andar? O que pensar de tudo
isso? Paul e Laura se recusam a falar sobre ele e, se falarem,
vo falar mal, como sempre. Mas como no pensar nele aqui?
Ah, Lissa! Seu belo Lissagaray! A causa de sua primei-
ra e nica desavena com o pai.
Quando Johnny, aquela noite na Toca, lhe perguntou se
ela nunca se desentendera com o pai, Tussy no teve cora-
gem de lhe contar sobre Lissa.
Na verdade, ela jamais chegou a brigar com o Mouro, ja-
mais teve raiva dele. Nunca. Mas houve momentos em que se
sentiu morrer por no ser capaz de entender por que o pai
proibia aquele namoro. Por que no queria que a filha seca-

ss
Eleanor Marx, filha de Karl

sasse com Lissagaray. Ela sofreu tanto naquela poca, justo a


poca que poderia ter sido a mais feliz, a poca do grande
amor, e que foi toda dividida entre os belos momentos que pas-
sava com Lissa e os momentos de inferno em que temia ma-
goar o pai. Foram nove anos desse namoro proibido.
Nove anos muito tempo!

Por que o Mouro proibiu to inflexivelmente que ela se


casasse com Lissagaray? Talvez pela decepo e desgosto
com os dois genros mais velhos? J ennychen, como Laura,
acabara se casando com um francs, Charles Longuet, tam-
bm militante da Comuna, e que se revelara um pssimo
marido, egosta e grosseiro. No fossem os filhos, a vida de
Jennychen teria sido um inferno. Quanto a Paul Lafargue,
Marx nunca aceitou o fato de ele ter ficado noivo de Laura
como futuro mdico para logo depois se declarar decepcio-
nado com a medicina e viver se metendo em encrencas fi-
nanceiras e polticas, oportunistamente recorrendo gene-
rosidade de Engels, como se essa lhe fosse devida.
"Longuet, o ltimo dos proudhonistas, e Lafargue, o
ltimo dos bakuninistas!", ele desabafava com Engels. "Que
o Diabo os leve!"
E ento lhe aparece a caula, sua queridinha, tambm
apaixonada por um francs!
Difcil aceitar.
Lissagaray tinha todas as caractersticas nacionais que
Marx e Jenny detestavam: o individualismo, a vaidade, o sa-
voir faire, o topete engomado e a desastrosa fama de duelis-
ta e temperamental - alm de trinta e quatro anos, o dobro
da idade de Eleanor na poca.
"No peo nada dele'', Marx escreveu a Engels, "a no
ser provas, e no palavras, de que ele melhor que sua repu-

56
Mmia Jos Silveim

tao e que existem boas razes para confiarmos nele. O


maldito problema que tenho de ser muito cauteloso e in-
dulgente, por causa da menina."
Sim, a menina estava apaixonada. De maneira comple-
ta, romntica e sem sada, como todos os grandes amores.
Hippolyte-Prosper-O livier Lissagaray.
Ela o conheceu quando se envolveu no trabalho de
ajuda e solidariedade aos perseguidos da Comuna que co-
mearam a chegar a Londres sem dinheiro, sem trabalho,
sem assistncia.
Alto, moreno, vistoso, de extraordinrios olhos negros
(como at Jenny, a sogra recalcitrante, tivera que reconhe-
cer), era um belo homem, com seu queixo quadrado e ca-
belos negros esvoaantes. Era escritor e jornalista, ousado
e brilhante.
No bastasse tudo isso, era tambm um dos heris da
Comuna e um de seus principais defensores: estava sozinho
na ltima barricada a cair, e era autor do livro que o prprio
sogro, apesar de tudo, considerava como a nica histria so-
bre a Comuna digna desse nome.
Impossvel Eleanor resistir.
Para seus pais, ele era cabea quente, individualista, in-
controlvel, brigo. E, no bastasse isso, j condenado re-
velia, deportao e ao confinamento. Que futuro poderia
oferecer jovem de dezoito anos?
Para Tussy, ele era de suprema coragem, impetuoso,
defensor apaixonado de seus ideais.
"Os jovens", ele lhe disse uma vez, "devem ser diligen-
tes e austeros, e no despreocupados, pois no nos deixaram
tempo para sermos jovens."
Os dois estavam sentados lado a lado em um banco no
Hyde Park e, enquanto falava, Lissa tomou a mo de Elea-

57
Elermor Marx, filha de Ka1"!

nor e a colocou dentro da sua. A grande mo do homem al-


to e forte envolve a mozinha delicada da adolescente. Len-
tamente, ele entrelaa, um a um, seus dedos entre os dela.
Um a um, lentamente, de maneira ao mesmo tempo delica-
da e forte, terna e irreversvel.
"Ma petite femme", diz ele.
Ela se sente esmorecer por dentro. Nunca sentira esse
friozinho subir e transformar seu corpo em fonte de emoo
prazerosa. Nunca sentira assim o sopro trmulo de ar quen-
te subindo de seus pulmes, e ali ficou, sem ousar se mexer,
sua mo pequenina e morna respirando, alvoroada, dentro
da grande e poderosa mo de seu primeiro amor.

3.

E agora, no vasto jardim quase bosque dos Lafargues,


no ar suave de uma noite de setembro, Eleanor lembra-se da
noite em que Paul e Laura conheceram Lissa.
Foi no comeo do namoro.

Os pais desconfiam, ainda no sabem com certeza, mas


j haviam deixado bem claro que no aprovariam nada entre
eles. Se Lissagaray continua a freqentar a casa deve-se ao
fato de ser uma das figuras importantes do movimento revo-
lucionrio francs. Marx o respeita muito; s no o quer co-
mo namorado da filha.
Eleanor est excitada e contente porque a irm e o cu-
nhado finalmente conheceriam seu amado e certamente a
ajudariam a convencer o pai a aceit-lo.
Quando o casal Lafargue chega, a famlia j est reuni-
da na sala, com vrios amigos. Tussy abraa forte a irm e o

58
Mmin Jos Silv eim

cunhado e faz as apresentaes. Seus olhos brilham, anteci-


pando o encontro.
Laura e Paul, no entanto, mal estendem a mo ao mo-
reno elegante que se levanta entusiasmado para receb-los.
Tussy olha-os perplexa. O que aconteceu?
Seu entusiasmo pela reunio se arrefece, mas ela se
convence de que isso que pensou ser frieza pode ser ape-
nas um pouco de reserva entre pessoas que acabam de se
conhecer. Ela quer tanto que eles sejam amigos, por isso
est exagerando as coisas. melhor dar tempo ao tempo.
Eles vo gostar de Lissa, com certeza, como poderiam no
gostar? Paul tambm francs, Paul tambm lutou na Co-
muna. Ou ser que por isso mesmo? Por que so france-
ses, por que lutam pela mesma causa mas com crenas po-
lticas diferentes?
A conversa da noite animada, mas Tussy nota com
apreenso que os Lafargues parecem no escutar quando
Lissa fala. Comea a perceber que no poder contar com a
irm como aliada junto ao pai. Mesmo assim, no est mini-
mamente preparada para o que aconteceu na hora que o ca-
sal se levantou para ir embora.
Laura e Paul cumprimentam e abraam todos do crcu-
lo mas, ostensivamente desta vez, ignoram a mo estendida
de Lissa.
Eleanor, perplexa, sem saber o que dizer, acompanha-
os at a porta onde, quase sem voz, pergunta irm:
- Por que vocs agiram assim?
- Assim, como, ma chrie?
- Dessa maneira to pouco educada e gentil.
- Ora, Eleanor, o que voc sabe disso?
-Sei que voc e Paul foram odiosos. Tentaram humi-
lhar Lissagaray na frente dos antigos. Se ele veio a nossa casa

59
Eleano1 Maix, filha de Karl

porque digno de estar aqui e ser tratado de maneira edu-


cada. Ele um cavalheiro, no um ...
- Ora, ora. Voc ainda uma criana, Eleanor. Que
coisa desagradvel. Depois, conversamos com mais calma.
Agora, vamos embora, Paul.
Eleanor continua parada na porta, desapontada e furio-
sa. A atitude da irm e do cunhado fora inaceitvel.
Lissa aproxima-se e a envolve no xale que ela deixara na
poltrona.
- Est frio, ma petite. Entre.
- Eles no podiam ter feito isso - ela diz, com um
fiozinho de voz.
- No preocupe demasiado essa cabecinha, minha
querida Tussy. Laura sua irm e Paul seu Clmhado. No
vou brigar com eles. Com o tempo, entendero. Vamos en-
trar, agora, ou seus pais comearo a ficar preocupados.

4.

Sem contar com a aprovao de ningum, e proibida de


ver Lissagaray, Eleanor toma uma deciso inesperada: sair
de casa. Trabalhar como professora em Brighton, para con-
seguir independncia material e, sobretudo, emocional com
relao ao pai. Quer se afastar de seu olhar carregado de nu-
vens, raios e desgosto. Como suportar o olhar contrariado
de figura paterna to poderosa? Como suportar a sombra
que parece estar agora entre os dois?
Mhme, embora no aprove o escolhido da filha, teve uma
atitude menos intransigente e mais solidria - como parece
acontecer com a maioria das mes. No quer ver Tussy com es-
se ar de quem perdeu o rumo e a graa da vida, mas no canse-

60
Mmin Jos Silveim

gue convencer o Mouro, que est decidido a no deixar que sua


caula cometa o mesmo erro das irms e se case com quem no
poder faz-la feliz, ele tem certeza disso. Compactuar trs ve-
zes com o mesmo erro mais que humano, demais!
"Seja valente, seja corajosa", lhe diz a me. "No deixe
essa terrvel crise abat-la."
Se ela tivesse que escolher entre Lissa e o pai, como
poderia?
Como decidir, moto prprio, afastar-se do pai a quem
se achava completamente ligada? Mas como abdicar- e por
que motivo racional o faria? - do homem que amava? Co-
mo entender e aceitar a intransigncia do Mouro, frente a
quem ela toda admirao, respeito e afeto?
Esse dilaceramento a adoeceu to gravemente em
Brighton que, menos de seis meses depois, teve que voltar
para casa.

Eleanor esd com dezenove anos e, no auge do sofri-


mento, coloca uma carta na mesa de trabalho do pai:

"Meu querido Mouro,


Vou lhe pedir uma coisa, mas, primeiro, quero que me
prometa que no vai ficar muito zangado. Eu gostaria de sa-
ber, querido Mouro, quando poderei tornar a ver L. mui-
to difcil no poder v-lo nunca. Tenho feito o melhor pos-
svel para ser paciente, mas isso tem sido dificlimo, e no
sinto que possa faz-lo por muito mais tempo. No espero
que me diga que ele pode vir aqui. Nem sequer me atreve-
ria a desejar isso, mas ser que, de vez em quando, no pos-
so dar uma pequena caminhada com ele?
Quando eu estava muito doente em Brighton (na poca
em que tinha dois ou trs desmaios por dia), L. ia visitar-me

61
Elea1101 Mnr:c, filho de Karl

e sempre me deixava mais revigorada e mais feliz, alm de


mais capaz de suportar o fardo pesadssimo que me recaa
nos ombros. Faz muito tempo desde a ltima vez que o vi, e
comeo a me sentir tristssima, a despeito de todos os meus
esforos para resistir, pois tenho me empenhado em ficar
alegre e animada. No posso agentar muito mais.
Seja como for, querido Mouro, se eu no puder v-lo
agora, no seria possvel me dizer quando isso ser permiti-
do? J seria alguma coisa pela qual esperar e, se o tempo no
fosse to indefinido, seria menos desgastante a expectativa.
Meu querido Mouro, por favor, no fique zangado co-
migo por escrever isso, e me perdoe por ser egosta a ponto
de voltar a preocup-lo.

Sua,
Tussy
Que isso fique s entre naus."

5.

A tenso na casa torna-se quase irrespirvel. Nunca an-


tes acontecera nada parecido. Para completar, e talvez por
tudo isso, Marx tambm adoece.
A conselho mdico, pai e filha partem para uma tempo-
rada nas estncias termais de Harrogate e, logo depois,
Carlsbad. Ele, sofrendo de problemas do fgado agravados
pelo esgotamento nervoso e ela, de problemas diagnostica-
dos como exausto nervosa.
Esta ser apenas a primeira de uma srie de temporadas
em estncias de curas termais que aconteceriam na vida de
Tussy, ao lado do pai, nesses anos em que os dois viveriam

62
Mrn-ia Jos Silveim

problemas de sade com sintomas parecidos: insnias, dores


de cabea, fraquezas.
A repetir, como o pai, que seus males comeavam na ca-
bea, Eleanor tambm lamenta que seja sobretudo a preocu-
pao mental o que a aflige.
Juntos, em Carlsbad, os dois aos poucos recuperam o
equilbrio.
A pequena cidade tcheca, incrustada num vale abrupto
de montanhas cobertas de florestas, encanta Eleanor. a es-
tncia preferida da aristocracia europia: para l vo nomes
ilustres como Goethe, Leibniz, Bach, Schiller, Mozart, Pa-
ganini, Beethoven, e tambm os monarcas da Bomia, da
Prssia, da Frana.
Nesse ambiente sofisticado, pai e filha cumprem uma
dieta estrita, tomam guas e banhos, lem, jogam xadrez. Fa-
zem longas caminhadas pelo cenrio grandioso, formado pe-
las arborizadas encostas de granito. E, tardezinha, sentam-
se ao sol para saborear a incomparvel cerveja pilsen.

Eleanor pensa constantemente em Lissagaray e comea


a acreditar que o tempo ser seu grande aliado para conven-
cer o pai. Est decidida: no vai mais se contrapor diretamen-
te ao Mouro para no zang-lo ou preocup-lo, mas tampou-
co abandonar seu noivo. No pedir mais para que recebam
Lissa em casa e, por enquanto, se encontrar com ele sem
que ningum saiba. Sero talvez menos assduos os encon-
tros, mas Lissa compreender seus motivos e, aos poucos, os
dois conseguiro convencer Marx. No otimismo de sua ju-
ventude, ela acredita que, se tiver um pouco de pacincia,
vencer pela persistncia: o pai acabar reconhecendo que a
felicidade dela est ao lado do seu belo heri. Apesar da dife-
rena de idade, apesar da sua vida arriscada, apesar de tudo.

63
Elennor Mnrx, filhn de Knrl

Para escndalo dos outros hspedes burgueses da aris-


tocrtica cidade, Tussy comea a fumar. Mas apenas nisso
que o comportamento dos Marx causa algum frisson. Pois na
verdade, para grande surpresa de todos, eles so obrigados a
reconhecer que Eleanor uma jovem encantadora, bem-
preparada e inteligente, e que seu pai, a cabea do movimen-
to internacional proletrio, o arquidenunciado comunista, o
Inimigo Pblico Nmero 1 , na verdade, a presena encan-
tadora das reunies, a "alma da festa", com o comentrio
certo, o chiste perfeito, a gargalhada contagiante, uma ane-
dota adequada a cada ocasio.

6.

Os anos dessa paixo de Eleanor foram os primeiros de


sGa vida adulta.
Aos vinte anos, seus volumosos cabelos escuros cachea-
dos que voam para todo lado, e os olhos brilhantes, reflexi-
vos, eram os traos que mais chamavam a ateno, alm da
semelhana com o pai: a grande testa e o nariz.
No era bonita, mas a graa e a confiana da juventude
estavam nela de maneira notvel. Intelectualmente brilhan-
te, de raciocnio claro e lgico, voz musical e melodiosa, era
atraente, esbelta e cheia de vida.
Podia ser a criatura mais alegre do mundo, ou a mais
miservel. E talvez, como a enfermidade que sofrera em
Brighton poderia indicar, com tendncias depresso e s
cnses nervosas.

No grande jardim do castelo de Laura, Eleanor sente


um calafrio provocado pelo friozinho da madrugada.

64
Mtn-ia Jos Silveira

Puxa o xale e devagar vai caminhando de volta ao quarto.


De volta ao mundo real. O mundo de Edward.
Ela no quer se abrir com a irm - acha que no vale
a pena e no gosta de se expor, se queixar. Quer, pelo ~enos
na aparncia, achar que forte, que pode resolver seus pro-
blemas. Sobretudo, abomina o papel de vtima. No fundo,
talvez acredite ser a responsvel; que se sua vida no como
sonhou, ela quem, queira ou no, deve responder por isso.
Quer acreditar, mais uma vez- hoje como ontem-,
que o tempo, quem sabe, possa melhorar sua relao com
Edward.
(Isso Eleanor ainda no aprendeu. Que h um tipo de pro-
blema que o tempo no julga de sua alada resolver, e s piora.)
Amanh cedo, ela quer caminhar pelas ruas de Paris.
Caminhar ajuda a pensar.

Ela adora caminhar pelas ruas da cidade que amou des-


de sua primeira viagem de adolescente. Quando conheceu
Paris, tinha catorze anos e o encanto de quem comea a des-
cobrir o mundo. Estava comJennychen e iam as duas visitar
Laura que acabara de dar luz o primeiro filho.
Desde a travessia do canal da Mancha, tudo a divertiu.
At o mau tempo fazendo o barco balanar como se fosse
brinquedo de um parque de diverses. Ao seu lado, um se-
nhor bem-vestido tira os culos do bolso da lapela e, com se-
riedade, coloca-os no rosto, e diz:
" para evitar enjos".
Tussy olha espantada para Jennychen e cochicha, sem
conseguir conter as risadas:
"Voc j ouviu falar de tamanho absurdo?"
Os balanos do barco s fazem aumentar suas risadas.
Eleanor est deslumbrada com tudo o que v.

65
Elea1101 M arx, filha de Knil

E mais deslumbrada ficar ao chegar Paris de Hauss-


man: os grandes bulevares, o Champs-Elyses recm-cons-
trudo, as doze avenidas em linha reta que se irradiam a par-
tir do grande arco, as grandes galerias. A bela cidade de
ngulos retos, linhas simtricas e harmoniosas, onde mais de
vinte mil casas tinham sido demolidas para dar lugar urba-
nizao moderna dos largos bulevares.
Tudo fascina a jovem.
A alegria das tardes luminosas da primavera em Paris.
As tardes luminosas da adolescncia.
Sete semanas ela passa vagando pelas ruas, como s
possvel vagar por aquela cidade de histria e modernidade.
Pra nas esquinas, v o teatro de bonecos ao ar livre, os en-
golidores de faca e de tochas flamejantes, os vendedores de
castanhas. Aprecia o movimento dos bulevares. As vitrines. O
charme dos parques e as estreitas ruazinhas do quartier onde
moravam os Lafargues, na rua do Cherche-Midi. Pra em
um ou outro caf para se refrescar com um copo de cerveja.
No bastasse o encantamento da cidade, havia tam-
bm o sobrinho, lindo e rosado. De repente, descobre que
adora crianas e bebs . Acha que tambm ter um monte
deles, que sua casa ser cheia de risinhos e barulhos, fral-
das e mamadeiras.
Suas cartas para casa - enviadas tambm a Engels -
transbordam com essa alegria. a mesma menina alegre,
brincalhona e feliz, que se transformava na adolescente cu-
riosa, de olhos reluzentes e encantados.

66
Outubro
0 DEDO ENLUVADO

1.

"Se falasse em outro lugar ou em outra poca, eu iria


direto ao meu tema, que deixar claro para vocs o que en-
tendemos por socialismo. Mas nesta cidade, e neste mo-
mento, eu me sentiria uma covarde, e sentiria estar negli-
genciando um dever evidente se no me referisse questo
que, tenho certeza, est presente nos coraes e mentes de
todos os homens e mulheres aqui presentes; est presente
nos coraes e mentes de todos os homens e mulheres jus-
tos. Refiro-me, claro, ao julgamento dos anarquistas -
dizem que um julgamento - e a condenao morte de
sete homens. Mas eu no hesito em dizer o mais enftica e
explicitamente possvel que, se a sentena for executada, se-
r um dos mais infames assassinatos legalizados j perpetra-
dos. A execuo desses homens ser nada mais nada menos
que assassinato ... Se eles forem assassinados, poderemos di-
zer dos executantes o que meu pai falou daqueles que mas-
sacraram o povo de Paris. 'Eles j esto expostos no pelou-

67
Elea1101 Marx, fi!hn de Kni-1

rinho eterno, do qual nem todas as preces de seus padres


conseguiro redimi-los."'
Eleanor comeou assim seu discurso em Chicago.
Era 1886, ano de grande comoo. Acabara de aconte-
cer o Julgamento dos Oito de Chicago, acusados de terem
explodido uma bomba, matando um policial nas passeatas de
maio pela jornada de oito horas de trabalho. O julgamento
- um dos mais venais da histria - fora realizado precipi-
tadamente, condenando, sem provas, sete deles pena de
morte, a ser executada em dezembro.
Uma grande campanha para que os oito trabalhado-
res fossem a novo julgamento se espalhava por todo o
pas. Eleanor, em seus discursos, denunciava uma conde-
nao que se dera "no pelos fatos dos quais eram inocen-
tes nem pela cor de suas opinies polticas, mas simples e
unicamente por que so trabalhadores que se opem ao
atual sistema".

Era a primeira viagem de Eleanor e Edward ao Novo


Mundo.
Convidados pelo Partido Socialista do Trabalho, o ob-
jetivo do casal era divulgar o socialismo na Amrica, onde o
movimento apenas comeava. Em mais de trs meses, os
dois e Liebknecht - que logo se juntou a eles - visitaram
quarenta e seis cidades, com programao s vezes to inten-
sa quanto quatro comcios e reunies por dia.
A imprensa, socialista e burguesa, com reportagens,
perfis, entrevistas, dava enorme publicidade filha de Marx;
as multides s faziam aumentar por onde eles fossem.
Quando chegaram a Chicago, quase sitiada naquele
momento, foi uma apoteose.
No comcio no Aurora Turner Hall a multido era tan-

68
Mmin Jos Silvei1n

ta que as pessoas, de to apertadas, no conseguiam mexer os


braos para aplaudir, todas, ao mesmo tempo.

2.
Agora, doze anos depois, Eleanor e Edward - em
outra das inmeras viagens de divulgao do socialismo
que sempre fizeram- esto no trem noturno que, de Pa-
ris, segue para Lancaster, onde foram convidados a uma
srie de palestras.
Viajam em completo silncio.
Sentada na poltrona da janela, Eleanor olha a noite sem
vida atravs do vidro. As estaes so todas iguais, principal-
mente em noites assim, sem lua nem estrelas, de cu apaga-
do, cu morto.
O silncio entre ela e Edward j lhe to familiar que,
de certa forma, a tranqiliza. uma espcie de segurana: se
Edward no disser nada, nada de pior acontecer. a estabi-
lidade e a segurana do vazio. Quando Eleanor constata, co-
mo agora, que s vezes isso pode ser reconfortante, com-
preende tambm que um sinal do exuemo a que chegou sua
relao com ele.
Ento Edward se levanta e diz, quase num sussurro, que
vai ao comboio-restaurante. E no a convida. Com certeza,
planeja se sentar mesa de alguma senhorita auaente e lhe
oferecer um drinque.
Ah, como ela o conhece bem!
Eleanor aproxima o rosto do vidro frio da janela e seu
olhar procura distinguir alguma forma na paisagem escura,
deixada com estridncia e fagulhas para trs. So muitas as
viagens que j fez com Aveling nesses anos; poucas de passeio,

69
E/ennor Mnrx, filbn de Knr/

quase todas para divulgao do socialismo. um trabalho


rduo, sem dvida, mas o trabalho em que acredita, sua
vida, o legado que escolheu.
Na verdade, esse trabalho ao lado de Aveling o que
existe de mais concreto no casamento dos dois. Sempre traba-
lharam bem juntos e ela costumava se sentir mais confiante ao
lado dele. Edward a estimulou intelectualmente, desde o co-
meo, isso no h como negar. Talvez porque ele tivesse a for-
mao acadmica que ela nunca teve, sua aprovao lhe dava
um aval do qual sempre sentiu necessidade. Ou talvez - seus
inimigos diriam - por seu oportunismo ser tamanho que ele
era capaz de instig-la ao uabalho s para depois assinar o no-
me ao lado do seu sobrenome, Marx. Sim, seus desafetos po-
deriam sugerir uma coisa dessas, mas ela sabe que no ver-
dade, e sabe que muitos dos velhos amigos do Mouro tambm
admiram o uabalho intelectual de Edward.
Como Engels, cuja opinio ela prezava como se fosse a
de seu pai. Engels sempre esteve ao lado de Edward. E de
maneira incondicional. Como durante a infame campanha
de calnias levantadas em torno daquela primeira viagem de
ambos Amrica.

3.

Desde o comecinho dos dez dias de uavessia do Atln-


tico, aconteceu de tudo na viagem aos Estados Unidos. As
baleias intempestivas e a agitao dos golfinhos; a luz do sol
unindo cu e mar em uma mesma imensido e, noite, a luz
da lua se espelhando nas guas; a morte de uma passageira
que ia ao encontro do marido na Amrica. Na manhzinha
fria em que o corpo da mulher morta foi envolvido em panos

70
Mmin Jos Silveira

e jogado ao mar, depois da rpida cerimnia fnebre, Tussy


sentiu uma sbita tristeza.
Nunca tinha visto nada to lgubre e desolador.

No porto de Manhattan, ao chegarem, Eleanor e Ed-


ward foram recebidos por uma multido com fitas vermelhas
e reprteres que se lanaram sobre eles como se fossem per-
sonalidades longo tempo esperadas. No Brommer's Park, de
Nova York, Eleanor foi ovacionada ao falar para um pblico
de mais de vinte e cinco mil pessoas:
"Vamos lanar trs bombas para as massas: agitao,
educao, organizao".
E continuou:
"A essa altura, vocs j tero compreendido que o so-
cialismo no exatamente o que nossos inimigos e seus em-
pregados na imprensa apresentam. Invariavelmente, uma
das primeiras coisas que eles dizem que ns, socialistas,
queremos abolir a propriedade privada; que no admitimos
o 'direito sagrado de propriedade'. Mas, ao contrrio, a
classe capitalista hoje que est confiscando nossa proprieda-
de privada. E porque acreditamos no 'direito sagrado' de
vocs quilo que possuem que queremos que vocs possuam
o que hoje tomado de vocs. Vimos, no discurso que an-
tes fez o doutor Aveling, como toda riqueza, tudo que hoje
chamamos de capital produzido pelo trabalho de vocs.
Vimos como atravs do trabalho no-pago do povo uma pe-
quena classe se torna cada vez mais rica, e como queremos
pr um fim nisso, abolindo toda a propriedade privada de
terras, mquinas, fbricas, minas, ferrovias etc.; em uma pa-
lavra, de todos os meios de produo e distribuio. Mas is-
so no abolir a propriedade privada. Isso significa dar pro-
priedade aos milhares e milhes que hoje no tm nenhuma.

71
Elennor Mnix, filha de Knrl

Os capitalistas aboliram a 'propriedade privada' das classes


trabalhaddras, e ns pretendemos que ela lhes seja devolvi-
da. Todos os homens, ento, tero o direito 'propriedade
privada', pois todos os homens pertencero a uma s classe
- a classe dos produtores.
Depois, a vocs dito que os socialistas no querem
lei nem ordem. Realmente, ns no queremos o que hoje
eles chamam de ordem, pois a ordem de hoje desordem.
A anarquia prevalece por toda parte. Encontramos homens
milionrios e homens que morrem de fome; mulheres que
possuem milhes e milhes e mulheres que tm que esco-
lher entre a fome ou a prostituio. Ns no chamamos is-
so de ordem. Ns no achamos que seja 'ordem' um ho-
mem trabalhar dez, doze, catorze ou at mais horas por dia
e, no final da vida, no ter nada de seu. Ns no achamos
que seja 'ordem' mulheres terem que se prostituir. Ns no
achamos que seja 'ordem' quando de um lado existem fbri-
cas e depsitos abarrotados com superproduo e, de outro,
milhares e milhares de pessoas que precisam desses mesmos
artigos que apodrecem nas lojas. Tudo isso desordem, e
queremos acabar com isso e colocar uma ordem verdadeira
no lugar.
Agora, quanto lei. Ns queremos lei; mas uma lei que
seja justa, e justa para todos os homens e mulheres. E aque-
les que gritam que no temos lei, por acaso respeitam suas
prprias leis? No, eles as desobedecem, mesmo essas leis
ruins. Leis feitas por uma classe em seu prprio interesse so
desobedecidas pelos homens que as fizeram ... "

72
4.

Foi uma viagem cansativa mas estimulante; de muito


trabalho mas tambm de alegrias pelo entusiasmo com que
eram recebidos.

Em um final de tarde, no quarto do hotel, Eleanor mal


tem tempo para se trocar e se arrumar para o prximo en-
contro. Acabaram de chegar de uma reunio muito calorosa
e se preparam para um jantar e depois mais uma palestra pa-
ra uma platia de classe mdia, curiosa sobre o socialismo.
Ela coloca o vestido de veludo azul, seu preferido. A
larga gola de renda branca cria um bonito contraste com o
escuro aveludado. Como sempre, prende em um coque dis-
creto os cabelos negros e volumosos.
Aveling tambm parece contente. Na reunio da tarde,
seu discurso foi brilhante e os companheiros o cumprimen-
taram com entusiasmo.
Ele se aproxima de Eleanor e diz:
- Espere um momento. Tenho uma surpresa para voc.
Busca um pacote sobre o aparador e dele tira um pe-
queno buqu de flores artificiais para vestido. um arranjo
de flores vermelhas, delicadas e midas.
O buqu lindo. E muito raro um gesto atencioso as-
sim de Aveling. Eleanor fica radiante.
No comcio, depois do jantar, seu discurso causa gran-
de impacto na platia.
"O temor"- ela diz- "de que depois da abolio da
propriedade privada ningum possa dizer 'meu casaco', 'meu
relgio', e assim por diante, no tem o menor fundamento.
Ao contrrio. Os milhares de pessoas que hoje no possuem
absolutamente nada, com o socialismo podero dizer 'meu

73
Eleanor Marx , filha de Karl

casaco', mas nenhum indivduo ou conjunto de indivduos


poder dizer 'minha fbrica' ou 'minha terra' e, sobretudo,
nenhum homem poder dizer em relao a outro homem:
'minhas mos'."
E termina falando sobre a fora fsica: "Nenhum socia-
lista quer us-la. Mas, assim como os americanos lutaram
pela abolio da escravido, tambm os socialistas tero de
lutar para abolir a escravido do salrio".

5.

Essa viagem, que tanto fez pela divulgao do socialismo


nos Estados Unidos, terminaria com um grande escndalo.
Depois de percorrer uma grande parte dos Estados
Unidos e sentir o que estava acontecendo no pas, Aveling e
Eleanor se convenceram de que o Partido Socialista estava
isolado do movimento das massas. Acreditavam que os so-
cialistas deveriam fazer um esforo no sentido de se unir s
foras sindicais que por toda parte estavam se organizando
e adquirindo influncia cada vez maior.
Na reunio de balano, um dia antes da partida do casal,
Aveling mais uma vez defendeu essa posio que a Executiva
do Partido considerava inaceitvel. Houve, ao que tudo indi-
ca, uma grave ruptura poltica e, quando ele apresentou as
contas dos gastos de sua viagem, o caldo entornou.
Quando o convite fora feito ao casal, ficara estabeleci-
do que as despesas de Eleanor no estariam includas. O
Partido pagaria apenas as despesas de Edward e as de Lieb-
knecht. Aveling, no entanto, apresentou as despesas comple-
tas do casal e solicitou que a prpria Executiva as examinas-
se e reembolsasse as que julgasse legtimas. Essa atitude foi

74
Mmin Jos Silvei1n

considerada uma tentativa de fazer o Partido pagar por tudo


e, depois da ruptura poltica, tornou-se o pretexto para uma
longa e suja campanha difamatria.
Ao embarcarem no navio de volta a Londres, na gelada
manh de Natal em Nova York, o casal estava rompido com
o Partido americano. Mal podiam imaginar, no entanto, o
que os esperava ao chegar Europa.
Com o ttulo "Divulgar o socialismo parece um bom
negcio", um artigo publicado no New Hemld acusava Ave-
ling de ter apresentado uma conta exorbitante Executiva
do partido que o convidara. Contas que incluam dirias em
hotis de primeira classe, ingressos de teatro, os melhores
vinhos, "charutos e cigarros para sua emancipada senhora" e
at "buqus de flores artificiais para realar a beleza da se-
nhora Aveling".
Apesar de no provadas e quase annimas, essas denn-
cias ganharam as manchetes dos jornais americanos. Espa-
lharam-se. Foram publicadas nos jornais europeus nos dias
em que o casal, desavisado, atravessava o Atlntico.
Assim que chegaram a Londres, Aveling e Eleanor en-
contraram o escndalo armado. Imediatamente, comearam
a batalha de desmentidos, contando com o apoio imediato e
irrestrito de Engels:
"Conheo Aveling h quatro anos; e sei que j por duas
vezes sacrificou sua posio social e econmica a suas con-
vices. No fosse isso, ele poderia ser um professor univer-
sitrio e um fisiologista eminente e no um jornalista com
sobretrabalho e renda incerta ... J tive condies de obser-
var suas capacidades e seu carter, ao trabalhar com ele, e
seria necessrio muito mais do que meras declaraes e in-
sinuaes para que eu pudesse levar a srio o que algumas
pessoas agora esto falando sobre ele em Nova York.

75
Elermor Mmx, fi!bn de Karl

E, de qualquer forma, se ele tentou enganar o partido,


como poderia ter feito isso na viagem sem o conhecimento
de sua esposa? E, nesse caso, a acusao tambm incluiria
ela. O que completamente absurdo, pelo menos a meus
olhos. Ela, eu conheo desde criana, e nos ltimos dezesse-
te anos tem estado constantemente perto de mim. E, mais
aind, eu herdei de Marx a obrigao de apoiar suas filhas
como ele mesmo teria apoiado, e de cuidar, dentro do que
estiver em meu poder, para que elas no sejam ofendidas. E
isso eu farei, apesar de todas as Executivas. A filha de Marx
enganando a classe operria - realmente!
Ou ento, dizem que 'ningum aqui imagina que o
doutor Aveling colocou o dinheiro em seu bolso, ou o gastou
conzo as notas indicanz. Acreditam que ele apenas tentou cobrir
os gastos da esposa'. Isso outra acusao de falsificao, e
dito como uma suposio amenizada e caridosa. Se essa a
acusao atenuada, qual seria a acusao completa?"
Engels, na verdade, sempre considerara temerrio um
militante de classe mdia estabelecer transaes de dinheiro
com o movimento operrio, sobretudo em seus estgios ini-
ciais. Marx e ele sempre evitaram qualquer relao com o
Partido que envolvesse dinheiro.
Em cartas indignadas aos amigos socialistas da Amrica
e Alemanha, sua interveno conseguiu frear a campanha e
esclarecer as coisas. Ficou patente a m-f de alguns mem-
bros da Executiva, irritados com a divergncia de Aveling
em relao posio poltica defendida por eles. Outras acu-
saes e desmandos desse mesmo grupo do Partido vieram
tona logo depois.
Mas Eleanor no tem iluses: sabe que sempre fica um
travo amargo desse tipo de coisa. Todos conhecem a fama de
Aveling que, "no mnimo, pouco cuidadoso, para no dizer

76
Mmia Jos Silveim

pouco escrupuloso, em matena de dinheiro". Cada nova


acusao agrega um pouco de lama. At amigos, como Ber-
nard Shaw, diziam que "se se trata de dar a vida por uma cau-
sa, pode-se confiar em Aveling, embora ele carregue todas as
nossas bolsas com ele para o cadafalso".

6.

O vento gelado entra pelas frestas da janela e o frio


do norte da Inglaterra vai ocupando o trem. Tussy enro-
la-se no casaco. Quer mudar o rumo de seus pensamen-
tos, quer pensar em coisas que possam descansar sua men-
te e corao.
Edward ainda no voltou da cabine do restaurante. De-
ve estar, mais uma vez, envolvendo algum em seu manto de
sussurros e olhares que parecem ver a pessoa por dentro,
mas, de fato, nada vem a no ser seu prprio reflexo.
Ah, Edward!
Ela se concentra nos barulhos do comboio e se lembra
de uma outra viagem de trem que fizera de Paris para Man-
chester. Era to jovem e feliz! Tinha quinze anos e ia passar
uma temporada de cinco meses com o General, que j mo-
rava com sua segunda mulher, Lizzie Burns.

Lizzie ruiva, liberada, irlandesa e militante. tam-


bm uma mulher do povo, exuberante e divertida. Embora
quase iletrada e bem mais velha - tem quarenta e trs anos
- ela e Tussy tornam-se grandes amigas.
mocinha, que ento ganhara o apelido de "Pobre Na-
o Esquecida", por sua paixo pela luta dos irlandeses, Liz-
zie mostra onde moram e trabalham seus compatriotas em

77
Elennor Marx , filhn de Kai-1

Manchester. Tussy pode ver, com os prprios olhos, a dura


condio de vida dos imigrantes.
De volta casa, no insuportvel calor da tarde de vero,
as duas tiram os espartilhos, as meias e sapatos e s de an-
guas e blusinhas de algodo sentam-se no cho fresco, to-
mando cerveja e esperando, entre muita conversa e brinca-
deiras, Engels voltar do trabalho.
Riem a tarde toda, e Lizzie lhe ensina animadas canes
folclricas irlandesas e a faz conhecer de perto o jeito irlands
de viver.
Para a adolescente londrina, esses modos livres so uma
bela novidade.
Tussy estava l quando Engels, depois de dezenove
anos, finalmente conseguiu vender sua empresa, como vinha
planejando h tempos. Uma parte da renda ele repassaria pa-
ra Marx e, com a outra, poderia se mudar para Londres e se
dedicar ao movimento revolucionrio, como sempre desejou.
Bonacho, amante dos bons vinhos e das boas coisas
da vida, caloroso e otimista, sua amizade de vida inteira
com Marx to rara que a histria parece no registrar ou-
tra igual.
Eleanor conhece bem essa histria.
Quando o General e o Mouro se encontraram pela se-
gunda vez em Paris, em 1844 - depois de uma rpida pri-
meira vez em Colnia - eram dois jovens e impetuosos re-
volucionrios. Foram dez dias que passaram conversando e
se reconhecendo mutuamente como duas pessoas excepcio-
nais que se completavam e queriam trabalhar juntas. Ti-
nham a mesma paixo poltica e o mesmo ardor revolucio-
nrio; a grande diferena entre os dois era a famlia rica de
Engels. Desde ento, tornaram-se inseparveis. Comearam
a trabalhar juntos, escrevendo A sagrada famlia, A ideologia

78
Mmia Jos S ilv eim

alem, o Manifesto comunista, e incontveis artigos para os


jornais alemes.
Logo ficou claro para os dois que o momento exigia,
como nunca, o aprofundamento dos princpios tericos da
revoluo, guia imprescindvel para a ao poltica, e que
Marx era o mais capaz para essa tarefa. Engels no tinha d-
vida sobre a genialidade do amigo.
"Toda a minha vida fiz o que fui destinado a fazer, isto
, tocar o segundo violino. Acredito que me desempenhei
toleravelmente bem. E fui feliz por ter um primeiro violino
to excelente quanto Marx", gostava de dizer.
A partir de ento, tomou para si a tarefa de ajudar a criar
condies para que Marx pudesse se dedicar completamente
elaborao terica que consideravam imprescindvel para a
luta poltica. Tomou a dura deciso de voltar empresa fami-
liar - onde ficou durante dezenove anos - at que, depois
da morte do pai, foi possvel vender sua parte e dividir a ren-
da com o Mouro. S ento pde mudar para Londres e se de-
dicar, ele tambm, militncia revolucionria.
Foi morar perto da casa dos Marx, no nmero 122 daRe-
gent's Park Road, onde viveria at quase o final de seus dias.

Tussy estava l, em Manchester, na manh daquele es-


perado dia de 1869, em que Engels acertaria a venda da em-
presa para se mudar para Londres. Estava l quando ele dis-
se, triunfante, ao colocar suas botas antes de sair:
"Pela ltima vez!"
Poucas horas depois, junto com Lizzie, ela foi esper-lo
no porto.
E l veio ele pelo campo em frente casa, girando sua
bengala no ar e cantando a plenos pulmes. Seu rosto bri-
lhava e seu porte era de intenso jbilo.

79
Eleano1 Marx, filha de Kad

Tussy e Lizzie o abraaram, calorosas, e entraram todos


em casa e se sentaram mesa para celebrar, bebendo cham-
panhe e sendo felizes.
Pois felizes eles eram.
Aqueles foram meses de piqueniques, festas, exposies
e teatro, muitos amigos e brincadeiras. Engels era to brin-
calho que se dava ao trabalho de disfarar sua letra e escre-
ver cartas que enviava para Marx pedindo que as postasse pa -
ra Tussy de um bairro bem improvvel para ela no descobrir
que eram dele!
Mas alm e mais do que as brincadeiras, ele no descui-
dava da educao da adolescente e tambm lhe dava tarefas
precisas, como ler todo o Goethe e outros autores importan-
tes da poca. Saam, depois, para longas caminhadas e com-
partilhavam o mesmo senso de humor, alegria, considerao
pelos outros, e interesse pela vida.
Foi essa a educao nada ortodoxa da menina Eleanor.
O que provavelmente a fez conhecer mais de poltica elite-
ratura do que qualquer adolescente de sua idade.

Ao voltar dessa temporada com o General, comeou a


ajudar o pai a arrumar seus papis, e a auxili-lo na corres-
pondncia e organizao de seu material de pesquisa, tarefa
que j fora das irms. Era um trabalho e tanto mergulhar no
mundo dos livros e papis do Mouro, procurando a origem
de uma citao, encaminhando sua numerosa correspon-
dncia, copiando em letra legvel as partes ilegveis dos ma-
nuscritos, colocando ordem no infindvel volume de papis
que pareciam brotar em jorras incessantes da fronte pode-
rosa do Mouro.
Alm disso, e da mesma maneira intensa como acompa-
nhava a luta dos irlandeses, Tussy logo se interessou tambm

80
Mnl"in Jos S ilv eim

-completamente, como costumam fazer os jovens- pela


poltica na Frana.
Quando comeou a Guerra Franco-Prussiana, todos da
famlia foram profundamente envolvidos pelos aconteci-
mentos. Era como se a casa de Maitland Park no estivesse
em Londres mas na Paris sitiada por cento e trinta e cinco
dias, no final dos quais a cidade capitulou.
Os socialistas se reuniam ali, dia e noite, para discutir
como fazer avanar o movimento. Jennychen e Tussy acom-
panhavam tudo atentamente.
Engels, especialista em histria e artes niilitares, escre-
via vrios artigos sobre os acontecimentos, e o pagamento
que recebia- uma quantia razovel- era dividido na hora
com Marx, o que fez as meninas, rindo, proclamarem-no,
imediatamente, "o primeiro despojo de guerra em forma de
corretagem".

E aconteceu, ento, a Comuna de Paris.

81
Novembro
UM CASAMENTO VERDADEIRO

1.

De Lancaster e seu horroroso clima, Edward volta pa-


ra Londres com pneumonia.
Esto outra vez na Toca, mas Tussy sente que nada, na-
da est bem.
A relao entre os dois est to deteriorada que sequer
se do ao trabalho de trocar as palavras que fazem parte das
trivialidades cotidianas. esta a realidade banal de seu dra-
ma, ela pensa: um casal que no se deseja mais nem bom-dia.
Ao chegar, Edward vai direto para seu quarto. Est se
sentindo realmente fraco.
Deita-se e pede a Gertrude, a empregada, que lhe tra-
ga um ch.
Eleanor cuida de seus remdios, em completo silncio.
No quarto dos dois, ouve-se apenas o barulho provocado pe-
los frascos e colheres de medida.
Ela aproxima-se da cama e diz, em voz baixa: "Por fa-
vor, Edward, abra a boca".

83
Elermor Mrl1"x, fi/hn de Kni-1

Com ar desconsolado, ele toma o remdio e vira-se pa-


ra o outro lado.
Eleanor sobe para seu estdio. V a pilha de correspon-
dncias acumuladas nos dias da viagem, e comea a abri-las.
Entre elas encontra uma pequena carta de Bernard
Shaw, convidando-os para a estria de uma pea sua.
Ah, como gostaria de ir, rever os velhos amigos do tea-
tro, sentir a contida efervescncia e excitao de uma noite
de estria!
Foi numa noite de teatro que ela e Edward se conhece-
ram. Uma noite organizada justamente por Shaw, que tocou,
com elegncia, uma das Canes sem palavras de Mendels-
sohn ao piano.
Aplausos encheram o pequeno auditrio.
Mas foi quando Eleanor subiu ao palco e declamou o
monlogo de Oflia, que as pessoas se puseram de p para
aplaudir, gritando "Bravos!".
O jovem doutor Edward Aveling levantou-se para
cumpriment-la, e elogiou, de maneira emocionada, sua voz
e sua interpretao:
- Notveis, notveis - ele disse. - Fiquei profunda-
mente tocado.
Ela j o vira outras vezes, embora seu tipo fsico no ti-
vesse lhe chamado a ateno - meio corcunda e baixinho,
muito feio, com um jeito de olhar oblquo, "olhar de rptil",
como dizia Olive, que tinha um horror quase premonitrio
dele: "Dizer que no gosto de Aveling no suficiente. Ele
demasiado egosta, embora apenas isso tampouco d conta do
meu sentimento de temor. Senti isso a primeira vez que o vi,
e combati esse sentimento por causa da minha amiga; mas ele
resiste, forte como nunca".
Para Eleanor, no entanto, a sensao foi toda diferente.

84
Mmin Jos Silveim

Quando Aveling comeou a falar, sua voz em sussurros e


seus olhos penetrantes se detiveram exclusivamente nela, e a
envolveram como se sobre os dois depusesse um manto. Um
manto quente e protetor.
Pelo menos, foi assim que ela se sentiu aquela primeira
vez, e se sentiria sempre que ele quisesse faz-la se sentir assim.

A partir daquela noite, Aveling comeou a fazer parte


do grupo de teatro amador que se apresentava para angariar
fundos para o movimento socialista e sindical.
Desde aquele comecinho, no entanto, desde aquela pri-
meira noite, as mentiras e a dissimulao o acompanharam
como uma segunda pele.
Disse que era irlands, mas no era. Fez-se passar por
solteiro, mas j era casado - e por dinheiro, comentaram de-
pois. Comentaram tambm que ele era notoriamente falso e
pouco confivel. Ambicioso, interesseiro, auto-indulgente,
exibicionista. Aproveitador, vivia tomando dinheiro empresta-
do e se esquecendo de pagar. Alm de mulherengo compulsivo.
"Inquestionavelmente um cachorro".
Esses eram os termos que ningum poupava ao falar de
Aveling. Muito menos os amigos de Eleanor que, quase una-
nimemente, no gostavam dele.
Mas, fossem ou no exagerados, outra coisa havia em
Aveling, inexplicvel, apesar da feira: um charme irresist-
vel para algumas mulheres.
E justia lhe seja feita: era brilhante orador, muito inte-
ligente e com uma promissora carreira cientfica pela frente
- era formado em biologia - , que abandonou para se de-
dicar ao socialismo e dramaturgia.

Auelino da Rosa Oliveim


Neiva Afonso Oliveira 85
BIBLIOTE CA
Eleanor Nlarx, filha de Kai-1

2.

Quando os dois se conheceram, Marx j estava grave-


mente doente, falecendo logo depois. No chegou a conhe-
cer Aveling, que editava um jornal para o qual pediu a Elea-
nor um obiturio do pai.
Da famlia restavam, agora, ela e Laura, a irm compli-
cada, com quem Tussy nunca se dera muito bem e da qual s
aos poucos ia se aproximando.
Lenchen foi trabalhar como governanta de Engels e
Eleanor passou a morar sozinha at um ano depois, quando
decidiu viver abertamente com Edward.
Ela tem, ento, vinte e nove anos. Ele, seis anos mais.
Tomar essa deciso no foi to fcil. No pelo que as
pessoas pensavam dele, pois Eleanor, apaixonada, se recusa-
va a dar importncia rejeio e fileira de adjetivos e co-
mentrios maldosos que acompanhavam Aveling. Seu pro-
blema era de outra ordem: na Inglaterra vitoriana, poucos
aceitavam a relao aberta com um homem casado.
Mas, como era do seu feitio, ela enfrenta a questo sem
subterfgios. Gosta de tudo bem definido e claro sua vol-
ta, e escreve aos amigos, comunicando sua deciso e pedin-
do-lhes que se sintam livres para aceit-la ou no.
Escreve a Dollie, amiga de vrios anos:

"Minha muito querida Dollie,


Eu pretendia contar a voc esta manh quais so os pla-
nos sobre os quais lhe falei- mas de alguma maneira mais
fcil escrever - e talvez seja mais justo com voc, porque as-
sim poder pensar sobre o que vou lhe dizer. Bom, isto:
vou viver com Edward Aveling como sua esposa. Voc sabe
que ele casado, e que no posso legalmente ser sua esposa,

86
Maria Jos Silveim

mas ser um casamento verdadeiro para mim- tanto quan-


to uma dzia de registros poderiam oficializar... Edward no
via a esposa h muitos, muitos anos quando o conheci, e que
ele teve seus motivos para deix-la- voc entender melhor
qua!ldo eu lhe contar que Engels, o mais velho amigo de meu
pai, e Lenchen, que tem sido uma me para ns, aprovaram
o que vou fazer, e compreendem perfeitamente as razes.
No quero que voc comente nada sobre isso por en-
quanto, pela simples razo de que quero estar com Edward
antes de anunciarmos publicamente nossa unio. Dentro de
trs semanas, vamos viajar por um pequeno perodo- s
preciso de descanso- e ento, com certeza, todo mundo sa-
ber - na verdade, pretendemos avisar a todos que nos so
caros. Quando regressarmos, vamos morar juntos e se amor,
um entendimento perfeito em gosto e trabalho e a luta pe-
los mesmos objetivos podem fazer as pessoas felizes, ns se-
remos felizes. J contei a alguns poucos amigos, e quero que
voc e Ernest tambm saibam porque assim podero decidir
qual ser a posio de vocs. Eu compreenderei perfeita-
mente se acharem que sua posio ser a de no aceitar, e
no deixarei de pensar em vocs com o mesmo afeto, mes-
mo se no pudermos mais contar com vocs entre os nossos
amigos mais prximos.
Sempre com muito carinho, minha velha e querida amiga,
Sua Tussy

PS. Quero realmente que voc entenda, Dollie, que


embora sinta que no estou fazendo nada de errado, apenas
o que meus pais teriam aprovado, como faz Engels, posso
compreender, no entanto, que pessoas que foram criadas de
modo diferente, com todas as velhas idias e preconceitos,
podero considerar que estou muito errada, e se voc pensar

87
Elennor Mnrx , filha de Knrl

assim, no ficarei chateada e tentarei me pr no seu lugar.


Voc sabe que tenho uma capacidade muito desenvolvida de
ver as coisas 'do outro lado'."

Eleanor escreve tambm a um jovem amigo operrio es-


cocs, consciente do puritanismo das classes trabalhadoras:
"Acho que correto lhe informar, a voc que tanto
amigo - se posso dizer assim - quanto companheiro na lu-
ta pela causa - do passo importante que acabo de dar... No
estamos causando nenhum dano a nenhum ser humano. O
doutor Aveling moralmente livre como se a ligao que o
prendeu anos atrs, e que foi cortada anos antes de eu conhe-
c-lo, nunca existisse. Ns dois sentimos que tnhamos o direi-
to de. descartar todas as falsas e realmente imorais conven-
es burguesas, e fico feliz de poder dizer que recebemos -
a nica coisa que realmente conta para ns - a aprovao de
nossos amigos e companheiros socialistas. Posso esperar que
voc esteja entre os que compreendem nossos motivos? De
qualquer maneira, justo que, como um dos mais ativos e com-
petentes propagandistas na Esccia, voc fique sabendo ...."

3.

Eleanor e Edward so pobres e levam uma vida dura.


Ela faz pesquisas no Museu Britnico e escreve artigos
assinados por quem os encomenda. D aulas particulares.
D cursos e palestras sobre Shakespeare e arte dramtica.
Seu trabalho poltico tambm se intensifica. Escreve ar-
tigos semanais para os jornais socialistas e comea a fazer
suas primeiras palestras e discursos em reunies polticas.
Escreve pequenos ensaios polticos publicados como panfletos.

88
Maria Jos Silvei1a

Traduz peas polticas e literrias. Foi a primeira tradu-


tora de Madame Bovary, de Flaubert, para o ingls, e se apai-
xonou tanto por Ibsen que aprendeu noruegus para tradu-
zi-lo. A primeira leitura da Casa de bonecas na Inglaterra foi
feita no apartamento deles, ela fazendo o papel de Nora,
Aveling o de Helmer, e Shaw o de Krogstadt.
Edward ganha mal e, de sade complicada, passa sema-
nas em repouso absoluto.
Mas tambm ele tem intensa atividade poltica. Ajuda
Sam Moore na traduo de O capital para o ingls, enquan-
to Tussy pesquisa as citaes originais e suas fontes. Os dois
publicam juntos panfletos de divulgao, "O inferno da f-
brica" (1885), "A questo da mulher" (1886), "O movimen-
to da classe operria na Amrica" (1888).
Apesar de todos os problemas com Aveling, esses foram
os anos em que a contribuio de Eleanor tornou-se de
grande importncia para o movimento revolucionrio inter-
nacional. Foi uma poca de desenvolvimento do socialismo
no s na Inglaterra mas em outros pases da Europa e das
Amricas, e o momento da fundao da Segunda Internacio-
nal Socialista. Por seus contatos e proficincia em vrias ln-
guas, ela foi uma pea chave desse momento.
O grupo de Eleanor e Aveling forma a Liga Socialista,
desvinculando-se da SDF. O objetivo divulgar os princpios
do socialismo. Ela contribui regularmente com o jornal
mensal da Liga como responsvel pelas notcias do exterior.
presena obrigatria nas reunies e comcios, onde acaba
cuidando tambm do trabalho mido, desde garantir que
no faltem os jornais da Liga nos encontros, nem lanche pa-
ra os companheiros nas longas reunies, at organizar pi-
queniques, festas e apresentaes para angariar fundos.
Naqueles anos, Eleanor sente-se muito bem.

89
Elermor Mmx, filha de Kni-1

Parece encarnar com perfeio os princpios de Marx,


combinando a teoria com um profundo sentimento humano,
coisa desconhecida no mundo da poltica. Sente-se realizada
e responsvel, plenamente capaz de dedicar seus talentos a
servio dos seus companheiros.
Pelo menos no plano poltico.
Na sua relao com Edward, as coisas so um pouco
diferentes.

4.

No pequeno apartamento onde foram morar, Tussy, uma


manh, passa verniz em suas coisas. Passa verniz na mesa, nas
cadeiras, no assoalho. Enverniza tudo. a rainha do verniz.
Ao chegar em casa, Aveling se espanta com o brilho no-
vo da sala e ela lhe diz, bem-humorada:
- Se o clima permitisse, acho que tambm me en-
vernizaria .
S no diz que, se pudesse, ah!, se pudesse, tambm
passaria uma boa camada de verniz sobre Edward, com cer-
teza passaria! Se pudesse, lhe daria um brilho novo, claro, al-
go que o fizesse mais leve, mais prximo. Mais real.

Tudo foi to insatisfatrio, desde o comeo. Cheio de


desencantos.
Certamente, ela conhecia os comentrios sobre os h-
bitos dissolutos dele e sabia o quanto era vaidoso e egosta.
Sem dvida, ouvira os rumores sobre sua honestidade, o diz-
que-diz sobre malversao de fundos e irregularidades fi-
nanceiras na associao cientfica da qual fora vice-presiden-
te. Sempre rumores, sempre sem provas.

90
Mmin Jos Silveim

Mas se Eleanor pensou, como as mulheres apaixonadas


tantas vezes pensam, que a vida de casado poderia mud-lo,
logo deve ter se dado conta de que no seria assim.
Edward como uma enguia, uma neblina espessa que
no se deixa agrrar.
Sempre sai para jantar com amigos, todo animado, por-
que so jantares onde mulheres tambm estaro presentes.
Mas nunca a leva. Diz que precisa sentir-se livre para viver,
que no aceita um relacionamento amoroso como sinnimo
de priso, que estranha que ela, logo ela, a filha de Marx,
possa considerar o outro, o objeto de seu afeto, como pro-
priedade privada, que viver com ela no significa viver s pa-
ra ela, que o sentimento de posse amorosa to odioso
quanto qualquer outro sentimento de posse de um ser hu-
mano. Se foi a ela que ele escolheu como mulher com quem
viver, isso j suficiente, isso deve lhe bastar.
Edward diz essas coisas como se fossem uma verdade
muito conhecida, um suave murmrio, quase uma grande
declarao de amor, e a envolve, com seu manto de sussur-
ros e de certezas.
Quando consegue reagir, Eleanor responde que ele
confunde as coisas, que no o considera, absolutamente,
propriedade sua, que respeita sua liberdade e a defende, mas
o relacionamento amoroso, quando verdadeiro, exigente e
da natureza do amor querer a presena da pessoa amada.
O que lhe pede que ele fique com ela aquela noite, sente-
se s porque ele sai sempre, e nunca a leva. s isso.
Depois das discusses, com perplexidade ela o v zan-
zar pela casa como criana despreocupada, sem tristezas nem
remorsos. Enquanto ela se desespera, ele se esquece comple-
tamente do conflito de poucos minutos atrs! Como se os
problemas escorressem por sua pele, incapazes de penetrar

91
Elennoi Mn rx, filhn de Knd

mais fundo. De certa forma, ela inveja essa capacidade que


Edward tem de passar inclume pelas coisas, de num mo-
mento para outro esquecer qualquer disputa. Mas o reverso
dessa capacidade - a incapacidade de sentir profundamen-
te alguma coisa a menos que se sinta pessoalmente incomo-
dado - , talvez o que Eleanor considera a maior falha no
carter dele.
"Apesar de todo o sofrimento e tristeza, melhor ter
sentimentos fortes do que no ter sentimento nenhum",
ela acredita.

5.

"A Toca, novembro de 1897

Minha querida Olive,


Mais uma vez lhe escrevo uma carta de desabafo que
no sei se terei coragem de enviar. Mas preciso tanto me
abrir com algum ... Como sinto falta de nosso grupo, de
nossa amizade, desse afeto que sempre senti ao lado seu, de
Dollie, Radford, Havelock. Toda minha natureza anseia por
afeto. E desde que meus pais morreram, tenho tido to pou-
co de amor verdadeiro - i.e. puro, sem egosmos. Se algu-
ma vez voc tivesse conhecido nossa casa, se tivesse visto
meu pai e minha me, soubesse o que ele era para mim, vo-
c entenderia melhor minha necessidade de amor, de dar e
receber, e minha grande necessidade de compreenso ... Mas,
vocs, que eram meus amigos sinceros, eu fui perdendo aos
poucos. E por minha culpa, eu sei - por minha incapacida-
de de deixar Aveling.
Mas, apesar de saber de seus defeitos - e creio que

92
Mmin Jos Silvehn

ningum os conhece melhor do que eu-, o que nunca pu-


de aceitar foram as campanhas de difamao contra ele, as
acusaes sem provas. Quantas vezes falaram de emprsti-
mos e falcatruas; falaram de sua primeira esposa que estaria
vivendo em grande misria; e, pior ainda, falaram que ele se
casara comigo para explorar o nome de Karl Marx. Quan-
tas vezes falaram tudo isso, sem nenhuma prova! Eu no po-
deria aceitar.
Mesmo na casa de amigos prximos, como Kautsky, vi-
vi cenas desagradveis e constrangedoras. Uma tarde- no
se~ se lhe contei na ocasio - chegamos para visit-los,
quando Kautsky ainda estava casado com Louise, que era
minha amiga na poca - que ironia pensar que um dia che-
guei a considerar essa mulher uma amiga!- e l estava hos-
pedada a senhora Schack, aquela figura excntrica que todos
chamavam de condessa anarquista, voc a conheceu?
Pois assim que nos viu chegar, ela acintosamente le-
vantou-se e se retirou a seus aposentos, dizendo que no to-
leraria a presena de Aveling. Eu, claro, no pude aceitar is-
so e pedi a Louise que me levasse at ela e exigi que me
dissesse o que tinha contra meu marido. A condessa se re-
cusou a responder.
'Desculpe-me, mas seu comportamento odioso e
baixo', eu lhe disse.
Ela quis me intimidar: 'No admito ser insultada dessa
maneira', respondeu.
'Pois permita-me repetir, na presena de Louise
Kautsky, que baixo e odioso fazer tais acusaes sem decla-
rar seus motivos', continuei, mas ela saiu como um raio do
quarto, beira da apoplexia.
Sei que voc vai rir dessa histria, mas ela no engra-
ada, querida Olive. A condessa, realmente, no me impor-

93
Elennor Mnrx, filha de Knrl

tava, mas foram incontveis os amigos que perdi por causa


de Aveling. Muitos camaradas, nos quais eu confiava, sim-
plesmente se recusavam a trabalhar com ele.
como se um terreno pantanoso o cercasse, por onde
quer que fosse. As provas no existem ou no so mostradas,
mas as acusaes e o mal-estar persistem sua volta. So
acusaes de malversaes de fundos, so emprstimos que
no so pagos, so mulheres e mulheres e mulheres.
O que me restava fazer a no ser defend-lo? Eu, que
desde criana vi meus seres mais queridos serem difamados e
caluniados. O que mais me di, no entanto - e a voc eu pos-
so confessar isso -, ver o enorme contraste que existe em
defender os princpios do meu pai e ter que refutar as acusa-
es ao carter de Aveling. Isso me humilha e magoa mais do
que eu poderia descrever.
As situaes constrangedoras se repetiram constante-
mente em todos esses anos. Quantas vezes, ao meu lado e
contra a minha vontade, ele no pedia duas, cinco libras a al-
gum amigo, dizendo que pagaria em uma semana e, 'Se eu
no pagar', ele dizia e me apontava, 'Tussy paga'. Ele nunca
me chama de Tussy, a no ser nessas horas, e eu s falto mor-
rer de abatimento e vergonha.
to ruim de minha parte ficar escrevendo essas coisas!
Fico aqui me queixando, logo eu que detesto tanto me quei-
xar. Mas voc me perdoaria se soubesse como isso me ajuda.
O que me fazia agentar tudo isso? - voc deve ter se
perguntando muitas vezes, como eu me perguntei nesses
anos todos.
Uma alternativa seria deixar Aveling e viver sozinha.
No posso fazer isso; isso o levaria runa e no me faria
realmente bem.
No me faria bem; eu no poderia viver s, sem me

94
Mal"ia Jos Silv ei?a

sentir ligada a algum. E apesar de tudo, apesar de tudo,


acho que, no fundo, ele me ama pelo menos um pouco, ou,
se no me ama, pelo menos precisa de mim. Quando ele me
olha como se quisesse me ver por dentro e me diz com sua
voz sussurrante, o que so elas, essas mulheres?, vento, bri-
sa passageira, s voc importa, s voc tem razes, s voc fi-
ca, quando ele diz essas coisas, Olive, eu ... no sei, ele pare-
ce to verdadeiro e eu, por mais que no queira, por mais
que no queira me iludir, acredito que h um pouco de ver-
dade nisso, e fico.
Pois preciso que tambm lhe diga, querida amiga, que
Aveling, afinal, no um monstro. Deixe que eu tambm fa-
le dos bons momentos, que foram muitos .... e isso eu no
quero esquecer.
No quero esquecer a viagem que fizemos Noruega,
para conhecer a terra encantada de Ibsen, nem os dias no
'Castelo', a cabana que alugamos em Warwickshire, o cora-
o da Inglaterra, terra de Shakespeare. Era uma fazendinha,
com duas cabanas, uma das quais alugamos, a quatro quil-
metros de Stratford. O fazendeiro primeiro tentou nos ex-
plicar que elas eram s para trabalhadores - no conseguia
entender por que queramos alug-la. Voc entenderia. Na
parte de baixo havia uma grande cozinha - de pedra, claro
- , e na parte de cima, trs quartos, muito pequenos. Alm
disso, tnhamos um quarto de acre de terra ... Edward ia l
fora e desenterrava nossas batatas quando precisvamos, e
plantvamos todo tipo de coisas. No consigo lhe dizer quan-
to era encantadora aquela vida no campo, e justo na terra de
Shakespeare! amos trabalhar alguns dias por semana na casa
onde ele nasceu (com a permisso do bibliotecrio do local).
Aveling dedicava-se sobretudo a suas peas e aos artigos, e eu
traduzia Ibsen, a paixo do nosso grupo na poca, disso voc

95
Eleanor M arx, filha de Karl

sabe tanto quanto eu. E juntos trabalhvamos no texto que


depois foi publicado como 'O socialismo de Shelley', no sei
se voc chegou a ver. Depois desse perodo de frias, conti-
nuamos alugando a fazendinha ainda por um bom tempo e l
amos passar os fins de semana. Voltvamos sempre trazendo
batatas e ovos para Engels e Lenchen, todos ainda vivos. Ah,
que bons tempos aqueles!
ramos muito pobres, voc deve se lembrar, e levva-
mos uma vida apertada. Trabalhvamos muito e a situao
muitas vezes se agravava, com a sade precria de Aveling, e
as crises renais que o deixavam, por meses, impossibilitado
de trabalhar. Sem ter como pagar algum para nos ajudar, eu
era obrigada a acrescentar a meus prprios trabalhos o de
cuidar dele e de substitu-lo nos compromissos polticos
mais importantes.
Mas era assim a minha vida durante aqueles bons anos,
quando eu estava toda envolvida na organizao do movi-
mento dos trabalhadores, e era representante do sindicato de
Trabalhadores de Gs, participava da Sociedade Bloomsbury
e do Comit Central para as oito horas. As atividades de Ave-
ling eram semelhantes: ele acumulava trabalhos como profes-
sor, tradutor, jornalista, orador, organizador poltico. Alm
de ser tambm ator como eu, em nosso grupo de amadores,
era dramaturgo - ele teve, sim, vrias peas montadas pro-
fissionalmente com algum sucesso, voc ficou sabendo?
Naqueles anos, a cena poltica se agitava e havia um bur-
burinho, um entusiasmo, uma efervescncia que hoje no ve-
jo mais, em lugar nenhum. Ao acordar, eu pensava, com pra-
zer, 'o dia, e todas as coisas, esto minha espera'. Aveling e
eu escrevamos folhetos, dvamos conferncias nos Clubes
Radicais e muitas outras associaes, onde quer que nos cha-
massem. Nosso objetivo era fazer propaganda da necessidade

96
Mmin Jos Silveim

da implantao de um partido independente dos trabalhado-


res. Sentamos como se Londres fosse o centro do mundo
operrio, com seus trabalhadores se organizando em sindica-
tos e associaes. Depois da Greve das Docas de 1889, hm:IVe
um avano grande no movimento, e as ruas se agitavam com
marchas, demonstraes, comcios.
E eu discursava e discursava. Para tantas pessoas, minha
querida amiga, que pareciam gostar de mim. Os comcios
eram gigantescos naquele momento. Voc no estava aqui,
mas certamente deve ter ouvido a respeito. Conseguamos
reunir at trezentas mil pessoas no Hyde Park. Em um de-
les, em protesto contra a represso ao movimento irlands,
eu estava com aquele vestido de pelcia verde, que voc me
ajudou a escolher, combinando com um chapeuzinho verde,
lembra-se da loja onde o compramos naquela tarde diverti-
da em que voc, Dolly e eu fizemos uma excurso pela Ox-
ford St:reet? Depois do comcio saiu um artigo no Daily Te-
legraph dizendo -voc vai gostar disso - que eu tinha uma
'maneira muito bonita e persuasiva de colocar as idias so-
cialistas e revolucionrias como se fossem os pensamentos
mais nobres do mundo'. Veja s! Dizia que eu 'convencia o
pblico da necessidade de ajudar a pobre Irlanda, como se ao
fazer isso eles estivessem tambm ajudando a si mesmos e
causa qual eles esto ligados'. 'Com seu dedo enluvado'-
sim senhora, verdade!, com meu dedo enluvado, achei to
engraado que nunca me esqueci-, 'Eleanor Marx aponta-
va diretamente a chaga da opresso e foi entusiasticamente
aplaudida pelo discurso feito com absoluto autocontrole.'
Sim, minha Olive, as pessoas pareciam gostar de sua
amiga!
Acho que elas percebiam como acredito no que digo.
Como tenho certeza de que o mundo pode se tornar melhor

97
Eleanor Ma rx, filha de Karl

quando todos dedicarmos nossa fora para isso. Minha elo-


qncia vem dessa necessidade de convencer para o socialis-
mo, do meu esforo em aplicar os conceitos mais complicados
ao cotidiano, procurando dar-lhes carne e osso para torn-los
mais compreensveis.
Mas agora tenho que parar e retornar o artigo que de-
vo terminar ainda hoje, sobre a greve dos maquinistas. O
movimento se transformou em um confronto direto entre
os sindicatos e a federao dos empresrios. H muito tem-
po no h na Inglaterra um movimento assim. Infelizmente,
alguns dos nossos socialistas no entendem e dizem que no
um movimento socialista! Les inzbciles!
Minha querida amiga, voc nem imagina corno para
mim importante poder falar um pouco com voc, ainda
que assim indiretamente, e mesmo sem saber se enviarei ou
no esta carta.
Com todo o afeto de sua
Tussy

P.S. Fiquei pensando e acho que, quando disse acima


que as pessoas parecem gostar de mim, no totalmente
verdade, no no plano pessoal, pelo menos. Tenho to pou-
cas coisas em mim que possam atrair ou interessar outras
pessoas. Que voc, por exemplo, goste de mim um dos
mistrios que para sempre permanecer indecifrvel."

98
Dezembro
QS DOMINGOS NO PARQUE

1.

Aquele dezembro foi de frio, gelo e desespero.


Tussy olha pela janela e nada a atrai l fora.
Edward esteve todo o ms doente. Por ordens mdicas,
foi passar uns dias no sol e clima quente de Harding. No
quis que Eleanor o acompanhasse.
Disse-lhe que no estava to mal assim e que gastariam
muito se ela tambm fosse. (Ele, que jamais poupava gastos,
manifestar esse cuidado!) E ademais, seria s por poucos dias.
Apesar da preocupao, foram dias de certa calma para
Eleanor. Ela retomou o trabalho com os manuscritos do pai e
um ensaio sobre a histria do movimento operrio ingls. De cer-
ta forma, depois de tudo, ficar sozinha era uma espcie de alvio.
Quando Aveling voltou, estava melhor da pneumonia,
mas com o problema dos rins agravado. Esse abcesso, que
nunca cura completamente, s pode ser grave. Eleanor acre-
dita que Edward no resistir muito tempo. No v sada a
no ser dedicar-se completamente a ele.

99
Elen1101 Mnr.r:, filha de Knrl

Sua tristeza s faz aumentar.


Ela escreve a Freddy:
"Sim - eu algumas vezes sinto como voc, Freddy, que
nada nunca sai bem para ns. Quero dizer, voc e eu. Claro,
a pobre Jenny teve sua parte bem grande de tristezas e pro-
blemas, e Laura perdeu seus filhos. Mas Jenny teve a sorte
de morrer, e por mais que isso seja triste para seus filhos, h
momentos em que acho que foi uma sorte. Eu no desejaria
que Jenny passasse pelo que passei. No acho que nem voc
nem eu temos sido pessoas ms - e, no entanto, querido
Freddy, parece que estamos sendo punidos. Quando voc
pode vir? Pois quero muito v-lo. Edward est melhor, mas
est muito, muito fraco".

2.

Este inverno est sendo o mais terrvel de sua vida.


Ela j viveu outros invernos terrveis, verdade, mas
ento sentia as coisas de forma diferente. Havia um objeti-
vo, uma inteno, uma certeza na luta que dava s dificulda-
des - por maiores que fossem - uma outra densidade, mais
leve, uma outra cor, sabendo que a mudana viria e a vida se-
ria melhor. Era um sofrimento de batalha, e o entusiasmo da
luta e dos companheiros dava um ouuo carter a tudo, a so-
lidariedade entre os iguais: "Ns, to poucos, felizes poucos,
ns, bando de irmos".

Sem ir muito longe, bastava pensar na desastrosa situa-


o de Londres, no inverno de 1887, quando a recesso e o
desemprego encheram a rua de espantoso sofrimento: mu-
lheres, crianas, velhos sem agasalho e sem comida.

100
Mmia Jos Silveim

Logo surgiram manifestaes que o governo comeou


a repnm1r.
No domingo, 13 de novembro, foi convocada uma
grande manifestao em Trafalgar Square, em protesto con-
tra a situao de desemprego, a perseguio aos irlandeses e
pela liberdade de expresso.

O dia amanhece gelado. Sopra um vento penetrante e


uma garoa lgubre comea a cair. Mas nada assusta os gru-
pos que se reuniram em locais diferentes e saem em marcha
por vrios itinerrios, para se encontrarem na praa. So
verdadeiras multides, puxadas por bandas de msicas e la-
deadas por mulheres carregando bandeiras vermelhas, mar-
chando em direo ao local do encontro. Apesar do frio, da
fome, do desemprego, do temor pelo futuro, l est entre
eles aquela espcie de euforia que sempre est onde o povo
se rene para lutar por um direito seu.
De repente a polcia montada ataca, em vrios lugares
ao mesmo tempo; cassetetes, porretes, cavalos por todo la-
do. Policiais rasgando bandeiras, arrancando os instrumen-
tos da banda, dispersando os manifestantes.
Atacando, batendo, perseguindo, ferindo.

A confuso enorme. Pessoas correm, gritam, jogam


pedras.
Eleanor no v mas sente uma cassetada no brao e ou-
tra na cabea. jogada no cho. Seu chapu e seu casaco se
rasgam, se enlameiam, mas ela no sente dor, s perplexida-
de e indignao, pura adrenalina. Um companheiro a ajuda
a se levantar.
-Covardes! Covardes!- ela grita.
No total, milhares de feridos, centenas de presos e pelo

101
Elermor Mtffx, filha de Karl

menos dois mortos. O cu soturno uma capa de chumbo


que pesa sobre todos.
Esse foi o domingo que ficou conhecido na histria de
Londres como o "Domingo Sangrento". Foi a primeira vez
que, atrs dos. procedimentos burgueses civilizados, os lon-
drinos viram a exibio crua do poder do Estado em ao e
sentiram nos ossos e na carne sua fora bruta. Foi um cho-
que. E protestos logo pipocaram por toda a cidade.

Foi s mais ou menos por essa poca que Eleanor, che-


gando aos trinta e trs anos, comea a ter um contato mais
prximo com o bloco mais miservel da classe trabalhadora
inglesa. Seu trabalho poltico comea a lev-la para os bair-
ros do East End londrino.
O que v a estarrece.
Andando pelas ruas e vielas daquele que o bairro mais
miservel da grande metrpole, ela encontra situaes que' a
deixam sem dormir. um pesadelo ver mulheres e crianas
prestes a morrer de fome e frio, ver os homens nas docas do
porto trabalhando como animais a troco de um salrio que
no daria para alimentar a famlia, ver as marcas da fome e
do sofrimento nos rostos de crianas.
Embora, desde que se entende por gente, tenha se de-
dicado luta pelo socialismo e convivido com os lderes mais
combatentes da poca, Tussy ainda no tivera um grande
contato com esses homens e mulheres cujo caminho para a
libertao seu pai ajudara a uaar.
Uma coisa saber, em teoria, do que capaz a explo-
rao e a diferena de classes; outra bem diferente ver de
perto o quanto a vida pode ser cruel, o quanto pode ser "uma
histria contada por um idiota, cheia de som e alarido, na-
da significando".

102
Mmia Jos Silveha

Eleanor sente-se deriva. Est frente a frente com a


mais dura misria de uma das cidades mais ricas do mundo
onde meio milho de homens e um milho de mulheres es-
to desempregados. Tanto horror inaceitvel. Ela volta pa-
ra casa devastada pela urgncia e o tanto que preciso fazer.

3.

Chega 1889, o ano da fundao da Segunda Internacio-


nal, no Congresso Internacional Socialista realizado em Pa-
ris. Eleanor trabalha como intrprete em trs lnguas. No
pra, indo de um lugar a outro, presente a todas as sesses.
Um dos pontos aprovados foi o dia 1. 0 de maio para a
convocao de uma manifestao internacional dos trabalha-
dores em um nico dia, todos unidos em torno da exigncia
da jornada de trabalho de oito horas.
Na Inglaterra, comea a greve dos trabalhadores de gs,
que se espalha como onda pelo setor industrial de Londres.
Greves quase sempre so assim, contagiosas, podem virar epi-
deinia. Quando trabalhadores de uma fbrica resolvem lutar
por seus direitos, esse exemplo se torna quase irresistivel por-
que por toda parte a situao exatamente a mesma: salrios
miserveis e terrveis condies de trabalho, como a longa jor-
nada de trabalho, de dez a doze horas naquele momento.
Nas portas das fbricas, Eleanor sobe em caixotes,
bancos ou mesas para falar, no importa a hora: de manh,
de tarde e de noite. As bandeiras vermelhas enchem as ruas
e as marchas saem, ao som das bandinhas, conclamando os
grevistas, angariando doaes para o fundo de greve. Ela
participa de passeatas, recolhe doaes, organiza os encon-
tros e manifestaes. Elabora material de apoio, coordena

103
Elennor Mnrx, filhn de Knrl

as comisses e os trabalhos dos advogados que defendem os


presos da greve.
Por onde quer que aparea, com seu entusiasmo e vee-
mncia, deixa sua marca e faz uma diferena. Todos a que-
rem, a chamam, amam sua presena.

Tussy volta para casa altas horas da noite. Ainda mora


no pequeno apartamento perto do Museu Britnico.
Senta-se no sof e aconchega seus dois gatos pretos,
com laos de fitas vermelhas nos pescoos, olhos como pe-
queninos focos de luz e plos de seda pura. Abraa-os, exte-
nuada, preocupada, mas segura de que o resultado de uma
greve quase sempre significa um avano na organizao dos
trabalhadores. nesses dias que ela ajuda a formar a primei-
ra seo feminina do Sindicato Nacional dos Trabalhadores
de Gs e dos 11-abalhadores Gerais. Acredita que a luta no
vai terminar quando conseguirem o aumento do salrio. A
vitria s ser duradoura se os trabalhadores aprenderem a
se organizar, trabalhadores qualificados junto com os traba-
lhadores gerais, homens junto com as mulheres.
Ela quer comentar com Aveling como foi o discurso
que fez naquela tarde, numa manifestao no Victoria Park
para uma multido de mais de dez mil trabalhadores das f-
bricas de Silvertown, estivadores, mineradores de carvo,
pintores, eletricistas, homens e mulheres.
- Os prximos dias sero crticos, eu disse, pois se o
fundo de greve no funcionar, os trabalhadores sero levados
submisso pela fome. Voc no acha, Edward?
Aveling, no entanto, est de sada. Pega seu casaco e,
sem prestar ateno no que ela est falando, lhe diz:
- Certo. Vou sair um pouco. No sei a que horas volto.
- No est muito tarde para sair? - Tussy pergunta,

104
Mmia Jos Silveim

desapontada. Queria tanto conversar um pouco, relaxar, to-


mar uma taa de vinho, tirar de algum lugar um pouco de
uanqilidade e sossego.
Mas ele mal responde:
-Ora! s no me esperar, Eleanor.

4.

E como foi magnfico o primeiro domingo de maio de


1891, quando o Hyde Park, de repente, se viu tomado por
mna multido nunca vista.
Mais de trezentas mil pessoas!
Uma multido espantosa, um comcio gigantesco!
Foi a primeira comemorao da data convocada pela In-
ternacional, e Eleanor e Aveling trabalharam exaustivamente
em sua organizao, convencendo as vrias organizaes in-
dependentes a se unirem em uma nica manifestao no
mesmo dia em que o mundo inteiro estaria na mesma luta.
E ali estava o resultado: mn mar de cabea contra cabea,
as bandeiras em ondas vennelhas agitadas no alto sem parar.
Foram necessrios sete palanques onde os oradores pu-
dessem subir para falar multido. Engels, Aveling e Elea-
nor falaram do palanque dos socialistas.
Engels escreveu a Laura que se sentira "alguns cent-
metros mais alto ao descer do palanque de madeira velha,
depois de ter escutado ouua vez, em quarenta anos, a voz in-
confundvel do proletariado ingls".
Depois do comcio, exausto mas eufrico e "mais alto
alguns centmetros", o grupo foi para a casa do General, co-
memorar com vinho tinto e champanhe o memorvel do-
mmgo no parque.

105
Elerm or Marx, filha de Karl

No domingo seguinte, Eleanor estava em outra mani-


festao no Hyde Park, desta vez dos trabalhadores ferrovi-
rios. O dia chuvoso no dispersou a multido de mais de
trinta mil pessoas que, molhadas, cantaram La Marseillaise e
aplaudiram o discurso da filha de Marx:
"Os trabalhadores das ferrovias esto entre os que tra-
balham mais duro e recebem os piores salrios. No entanto,
poucos tm tanto poder: se eles compreendessem esse poder,
seria impossvel para as companhias de estradas de ferro ne-
gar suas reivindicaes. Eles podem paralisar a indstria do
pas inteiro. E homens que podem fazer isso certamente po-
dem conseguir um benefcio to pequeno como as oito ho-
ras de trabalho" .
Sua admirvel voz de atriz se erguia segura e emocionada:
"A vitria de uma greve nem sempre puro ganho, nem
uma greve derrotada , necessariamente, pura perda. Algu-
mas vezes ... melhor lutar e perder do que no lutar... Todas
as centenas de greves grandes e pequenas apontam para uma
mesma concluso ... a de que o sindicalismo e as greves, por si
s, no emanciparo a classe trabalhadora ... cuja liberdade
econmica s poder ser conseguida atravs do domnio do
poder poltico no interesse de sua prpria classe".

5.

Se algum quisesse uma imagem de Eleanor naquela


poca, uma imagem que pudesse resumir uma parte impor-
tante de sua vida, seria ela cercada de uma pilha de livros
sob o belo domo do salo oval de leitura do Museu Brit-
nico e saindo dali para alguma palestra ou comcio, na dis-
creta elegncia de seus vestidos e casacos talvez um pouco

106
M min J os Silveim

srios demais, mas sempre impecveis, levando seu insepa-


rvel pince-nez de leitura. L estaria ela, uma das raras mu-
lheres ao lado dos socialistas histricos como Bebel, Lieb-
knecht, Auer, Adler e, como sempre, sempre, ao lado de
Engels, seu segundo pai.
E que no se pense que era apenas uma sria e dedica-
da militante. Tussy era muito mais: uma mulher de energia
e alegria contagiantes, brincalhona, irreverente, ligada a seu
grupo de artistas e bomios. Capaz de rir fcil e de tiradas
impagveis, contava que j pensara seriamente em processar
o pai por danos pois, "Infelizmente, s herdei seu nariz e
no sua genialidade". Capaz de organizar um protesto con-
tra a proibio s mulheres da leitura do Kama sutra, no
Museu Britnico. E capaz de montar, com seu amigo Ber-
nard Shaw, uma hilariante verso da Casa de bonecas conser-
tada, pardia adorada pea de Ibsen, escrita por ela e um
amigo para "agradar ao senso de moralidade e decncia dos
ingleses". Um sucesso.
Apaixonada, espontnea e to honesta e franca que, sem
se dar conta, desarma seus adversrios e impe um respeito
raras vezes visto. quase uma unanimidade, no apenas por
ser filha de Marx, mas por ser como , Eleanor.
Ela escreve para os companheiros que conheceu em
Aberdeen, Esccia, onde fora como convidada:

"Queridos Camaradas,
Aqui estou de volta escura Londres, mas at nosso fog
londrino- e temos um bem representativo neste momento
- parece luminoso e agradvel quando penso no tempo fe-
liz que passei com vocs, em Aberdeen. to bom - e de
tanta ajuda- encontrar pessoas vivas como vocs, quando a
maioria de ns parece to morta - e ansiosos, e dedicados

107
Elen11or Marx, filho de Karl

trabalhadores para a Causa. Quando me sentir desanimada


(e h momentos em que uma pessoa no consegue evitar o
sentimento de desnimo), pensarei em Aberdeen e me ani-
marei de novo.
Vocs disseram que tinham receio de mim. Eu no sa-
bia que tinha uma reputao to formidvel. (Leatham disse
que esperava um 'iceberg intelectual' - e pareceu aliviado em
descobrir que eu no era nem um iceberg nem intelectual). E
vou lhes confessar que eu tambm tinha um pouco de receio
de vocs. Apesar de todo o entusiasmo de Edward por sua
visita anterior a Aberdeen, pensei que vocs fossem uma tur-
ma muito fria, dura, reservada e crtica. Vocs no podem
imaginar como fiquei aliviada quando vi que no eram nada
disso. Desculpem-me por dizer que vocs no so crticos.
Mas realmente a gentileza que demonstraram com minhas
palestras me faz pensar que no so to terrveis como temia.
Eu gostaria que Londres no fosse to longe de Aber-
deen, ou que no fssemos todos to sem grana. Se a distn-
cia fosse menor, e a bolsa no to curta, vocs logo nos ve-
riam outra vez.
Enquanto isso, quero agradecer de corao, com toda
sinceridade, pela gentileza de vocs. O pr-do-sol de segun-
da-feira, com seu glorioso dourado, ficar para sempre em
minha memria - e pensarei no trabalho de vocs como
promessa no de um pr-do-sol mas de um nascer do sol
ainda mais glorioso.
Fraternalmente,
Eleanor Marx Aveling"

108
Mmia Jos Silveira

6.

"A Toca, dezembro de 1897

Minha querida Olive,


Hoje o sol apareceu, sem que ningum esperasse. Com
sua morna luz de sol de inverno, mas luminoso.
Aproveitei para caminhar um pouco pelo meu jardim
onde as rvores compem suaves linhas de luz e sombra que
me transmitem certa paz. Quando voc vier me visitar um
dia, tenho certeza de que amar essa Toca onde vivo agora.
H um pequeno pedao do jardim onde plantei algu-
mas mudas que Laura e Paul me enviaram de Paris. Espero
que nasam nessa primavera, minhas jleurs pm-isiennes. que
no encerramento do congresso que fundou a II Internacio-
nal, Laura e eu compramos flores no mercado de Montmar-
tre e fizemos uma bela coroa em homenagem aos mortos da
Comuna. Todos os congressistas, ento, seguimos em mar-
cha at o Cemitrio Pere Lachaise, e a colocamos aos ps do
Mu1' des Fdrs. Laura me disse que algumas daquelas esp-
cies esto entre as mudas que me enviou.
Foi um belo dia, aquele. noite, houve um jantar em
comemorao nova Internacional e solidariedade do pro-
letariado. Brindamos e cantamos a Marseillaise e danamos e
danamos. Estvamos todos cansados, mas entusiasmados,
uma nova etapa do movimento comeava a nascer. Edward
estava dos mais efusivos e cheio de esprito. Prendeu em
meu vestido um pequeno ramo de bougainville que tirou de
um vaso na mesa, e disse: 'Para voc, minha querida, que
merece todas as flores do mundo novo que ajudamos a
construir'. Hlas! Sei que difcil para voc acreditar, mas ele
tambm tem seus momentos.

109
Elerm or Mnrx , filha de Kni-1

No dia seguinte, para completar, fui passear com meus


queridos J ohnny e Edgar Longuet, os filhos de Jenny, que
no pude encontrar nos dias .d o Congresso. Fomos conhecer
a recm-inaugurada Tour Eiffel e as outras atraes da gran-
de Exposio Universal de 1889. Tomamos sorvetes de mo-
rango e rimos e nos divertimos a valer. Esses momentos so
to preciosos para mim que, mesmo anos depois, como ago-
ra, sou capaz de reviver, nem que seja por instantes, a felici-
dade que eles me proporcionaram.
curioso mas acredito que muita gente no compreen-
de o quanto a noo de felicidade importante para os so-
cialistas, como ela est no corao mesmo do pensamento de
Marx. ela, afinal, o grande objetivo final de nossa luta, a
felicidade - no como simples busca do prazer individual
- mas como auto-realizao do ser humano. O direito que
cada indivduo tem de poder expressar e realizar suas capa-
cidades, realizar-se, colocando sua humanidade no que faz,
seja o que for: um objeto, uma lavoura, uma obra de arte.
Que todos possam ser felizes, efetivando suas capacidades e
fazendo parte de uma coletividade, um grupo que os reco-
nhece como seus. -----
Muitas pessoas nem sempre associam o 'livre desenvol-
vimento de cada um como condio para o livre desenvolvi-
mento de todos' noo de felicidade do indivduo. No en-
tendem que esse 'livre desenvolvimento' de cada um ,
justamente, a condio para que se possa ser feliz. Ou pen-
sam que isso coisa do futuro e deve ser deixada para o fu-
turo. No se do conta de que ser feliz algo para ser bus-
cado no presente; que no deve ser uma utopia, mas algo
necessrio, agora, algo para ser tentado desde j, algo que
nos faz melhores como pessoas e, portanto, mais capazes de
enfrentar a longa luta. No creio que exagero quando penso

110
Ma ria Jos Si/veim

que a beleza da vida, a alegria de viver o que deve nos guiar


e o que nos pode dar alguma fora. Que a revoluo signi-
fica no apenas a busca da vida e da liberdade, mas a busca
da felicidade. Que por acreditar que a vida vale a pena que
podemos ser generosos e ter a ambio de compartilhar com
todos o que ela pode oferecer de precioso - mesmo que is-
so s vezes seja to pouco.
Se no fosse assim, como seria possvel seguir em frente?
Pessoas como Aveling pem o prazer individual fren-
te de quase tudo, mas no a esse simples prazer da satisfa-
o bsica dos sentidos a que me refiro, mas ao prazer mais /
profundo da auto-realizao de cada indivduo como ser hu- ,__
~ Ao pr~r profulldo que sente o indivduo ao se tor-
nar quem ele realmente , desenvolver todas as suas poten-
cialidades. Quanto mais sou capaz de me realizar em vrias
. ais li~U.O cerne do capitalismo est na alie~
reas, m
nao em que joga as pessoas, alienao tanto uma das ou-
tras, quanto da natureza e, sobretudo, de si mesmas: de seus
sentidos, suas emoes, suas foras criativas.
E isso no s nas grandes coisas e no trabalho que se
realiza, mas tambm no cotidiano de cada um preciso que
essa alegria de se realizar e viver esteja presente, seno o que
que se quer dividir? Seno, como agentar esse mundo
exaustivo? A minha famlia, apesar das aflies da pobreza e
das doenas, sempre cultivou tambm esse prazer das peque-
nssimas coisas, o bem viver, os encontros com os amigos, as
conversas, os pi~ as garrafs de d iampanhe e cer-
~_a, o ris-o -=-;m suma, a alegria. Meu pai e o Generalt-
ram maravilhosos-mestres dessa arte.
Muitas vezes, infelizmente, acho que no consegui ser
uma boa aluna. Em certos momentos - que parecem cada
vez mais constantes- sinto que aprendi to pouco!

111
Eleanor Marx , filha de Karl

Acho que, no meu caso, a grande culpada a auto-esti-


ma, essa condio sine qua non para se derivar bem-estar de
alguma coisa, e que depende em grande parte da estima em
que os outros nos tm! E ela, essa bela e fera, to absolu-
tamente necessria para que se tenha motivos para continuar
vivendo! Sem ela, como achar graa em alguma coisa?
Infelizmente, a minha to frgil e vulnervel. Ser que
um dia serei mais forte e conseguirei me recuperar?
E, no meu caso, uma das coisas mais certas que no
sei viver sem amor. Tenho tanta necessidade de afeto que,
sem ele, as coisas para mim perdem o sentido. Ficam pesa-
das, negras, sem graa. No sei viver se no puder ter esse
mnimo cotidiano de felicidade, que sentir que sou impor-
tante para as pessoas que me cercam. poder olhar o mun-
do e enxergar sua luz, suas formas, seus cheiros, e sentir que
vale a pena. No sei viver sem isso.

Mais tarde:
O solzinho de inverno j desapareceu faz tempo, levan-
do suas sombras e tessituras suaves, e seus mpetos de vida.
A velha neblina retomou seu lugar e, depois da breve trgua,
pretende se vingar, atravessando os vidros das janelas e inva-
dindo a casa. Aquela frgil felicidade que me visitou de ma-
nh se foi, no sei para onde.
Tenho um grande horror de decepcionar a f que meu
pai e o General tinham em mim e meu trabalho poltico. Te-
mo que a herana infinitamente preciosa que eles me deixa-
ram seja tambm demasiado pesada e dominadora. Mas acho
que no estou, no estou conseguindo pensar direito sobre
essas coisas, esses dias.
O movimento tem se dividido muito e as vitrias so
poucas. Pessoas que deveriam estar altura do momento

112
Mrwin Jos Silveim

tm-se deixado envolver por ambies mesquinhas e se per-


dem em filigranas de um poder intil, que nada avana. s
vezes me sinto farta, farta.
Mas, desde pequena, eu sei o que significa devotar a vi-
da ao proltaire. E isso que continuarei fazendo. Meu pai
uma vez disse uma coisa que no entendi na poca e que at
me pareceu um paradoxo. Mas hoje sei o que ele quis dizer.
Meu pai estava falando de minha irm mais velha e de mim
e disse: 'Jennychen a mais parecida comigo, mas Tussy sou
eu'. verdade - com a exceo de que nunca serei to boa
e generosa quanto ele.

Sua, sempre
Tussy"

113
Janeiro
Q COMEO DO PESADELO

1.

Chega janeiro. Nem a neve muda l fora, nem o gelo


muda no corao de Eleanor.
Se algo mudou, foi para pior.
Os problemas financeiros se agravam- as contas com os
mdicos, os remdios e as constantes exigncias de Edward de
mais dinheiro para pagar emprstimos que nunca se acabam.
Eleanor comea a ter certeza de que o marido lhe es-
conde alguma coisa grave.
Ela escreve a Freddy:

"Meu querido Freddy,


Fico contente em saber que voc est um pouco melhor.
Eu bem queria que voc estivesse bom o suficiente para vir,
digamos, de sbado a segunda, ou pelo menos no domingo
noit;. brutalmente egosta, eu sei, mas voc o nico ami-
go com quem posso ser completamente franca e por isso gosto
tanto de ver voc.

115
Eleanor Marx, filha de Karl

Tenho que enfrentar um problema to grande, e com-


pletamente sem ajuda (pois Edward no me ajuda) e eu no
sei o que fazer. Diariamente tenho exigncias de dinheiro,
e no sei como atend-las, com a operao e tudo o mais.
Sinto que sou um tremendo problema para voc, querido
Freddy, mas voc conhece a situao: e eu digo a voc o
que no diria a ningum agora. Eu diria para minha velha
e querida Lenchen, mas no a tenho mais, s tenho voc.
Por isso, me perdoe por ser to egosta, e venha mesmo me
ver, se puder.
Sua Tussy

PS. Edward foi para Londres hoje. Vai ver os mdicos,


e coisas assim. No me deixou ir com ele! Isso pura cruel-
dade, e h coisas que ele no quer me dizer. Querido Freddy,
voc tem seu filho - eu no tenho nada, e no vejo nada pe-
lo qual valha a pena viver."

Mas, Freddy, seja por estar tambm doente, ou por te-


mer que Aveling - no sem fundamento e no pela primei-
ra vez - fosse lhe pedir mais dinheiro emprestado, no foi.
Eleanor olha o calendrio. domingo.
Ela tem perdido a noo dos dias da semana. J no se
diferenciam mais uns dos outros. a mesma rotina de rem-
dios, preocupaes, mutismo de Edward, discusses.

2.

Nada como antes, quando aos domingos eles se reu-


niam na casa de Engels para o almoo, com bons vinhos,
charutos e animadas conversas que se estendiam pela tarde.

116
Mmin Jos Silveim

Sempre havia hspedes na casa do General; em torno dele se


reuniam novos e velhos socialistas, animados por seu espri-
to contagiante.
E como ele adorava uma boa comemorao! Bons co-
mcios, pequenas vitrias, aniversrios, tudo para ele valia
comemorar. Pena que nos ltimos anos, com sua longa
doena e o reinado de Louise em sua casa, as comemoraes
deixaram de ter o encanto antigo. A ltima, que ela se lem-
bre, foi a festa de seus setenta anos, com bebidas servidas at
a madrugada, e uma rodada de ostras para encerrar.
Liebknecht, Bebel, Singer, os velhos socialistas esta-
vam presentes. O movimento avanava e o entusiasmo era
geral. No brinde, Engels disse que "em dez anos, se ain-
da vivesse, veria os prncipes, padres e poderes cados ge-
mendo no cho, e o proletariado mandando no assado, e
o comendo".
Mas que nada! No foi nada disso o que aconteceu.
Nem o proletariado conseguiu comer o assado, nem
Engels estava vivo dez anos depois.

Ele morreu aos setenta e cinco anos, de cncer, depois


de sofrer uma prolongada deteriorao da sade, quando
ainda estava trabalhando para finalizar o volume III d'O ca-
pital e comeando o rv:
Foi Eleanor quem levou a pequena urna com suas cin-
zas, no barco em Eastbourne . Com ela, foram Aveling,
Lessner e Bernstein. Engels no queria tumbas, nem mau-
solus. Queria o mar. O litoral onde gostava de caminhar e
olhar o horizonte.
O vento, intenso aquela manh, levou as cinzas em um
timo, um risco em direo ao infinito, preto no azul escuro
e espumado do mar. O General teria gostado.

11 7
Eleanor Ma1x , filha de Km!

Para Eleanor a morte desse inigualvel amigo foi um


golpe mais doloroso do que se poderia imaginar. Os ltimos
anos foram terrveis, anos de progressivas dificuldades no re-
lacionamento dos dois, coisa que ela jamais sups que pudes-
se acontecer.
Tudo comeou alguns meses antes da grande comemo-
rao dos setenta anos, com a morte de Lenchen, que desde
o falecimento de Marx tinha sido a governanta da casa de
Engels. O General, que confessadamente no conseguia vi-
ver sem uma mulher que Cldasse de suas coisas, contratou
ento Louise Kautsky para ficar no lugar de secretria-go-
vernan ta -amiga.
Louise recm se divorciara de Kautsky e, no comeo,
Eleanor s tinha simpatias por ela. Achava, inclusive, que
Bebel - que praticamente a forara a aceitar o posto como
uma tarefa do partido - no tinha o direito de fazer algum
como Louise, com uma carreira prpria pela frente, deixar
tudo para se dedicar a cuidar de Engels - por mais impor-
tante e querido que ele fosse. Ningum exigiria isso de um
homem, ela disse na ocasio.
E, no entanto, Tussy no sabia da missa um tero.
A ida de Louise para a casa de Engels, na verdade, se-
guia um plano arquitetado por Bebel e Adler para garantir
que, depois que o General falecesse, os papis, manuscritos,
cartas e as valiosas bibliotecas no s dele, mas tambm de
Marx, os dois grandes nomes do socialismo, ficassem com o
Partido Socialista Alemo.
Eleanor nada sabia sobre isso, mas as atitudes da nova
governanta aos poucos despertaram suas suspeitas e descon-
fianas. Primeiro, Louise tentou monopolizar o General, ti-
rando o mximo proveito poltico de seu prestgio. Depois,
quando se casou com o recm-formado mdico Freyberger,

118
Mmia Jos Silveim

que nada tinha de socialista e, para Tussy, no passava de in-


tolervel aventureiro, suas ambies passaram a ser sobretu-
do financeiras.
Fossem quais fossem seus planos e ambies, no entan-
to, em seu caminho estava Eleanor.
Mas, morando na casa de Engels, sabendo de cada mi-
nuto de sua vida, usando como pretexto sua sade e a auto-
ridade do marido mdico - que passou a cuidar dele -
Louise foi aos poucos exercendo grande controle sobre o
General. Espalhando fofocas e pequenas intrigas, inclusive a
de que o General decidira se afastar das filhas de Marx, ela
tentou isolar Engels dos velhos amigos. Fragilizado pela
doena, ele se tornara, em alguns aspectos, muito dependen-
te do casal e Tussy praticamente j no conseguia encontr-
lo a ss, como antes.
- Tussy, querida - dizia Louise - , o General no po-
de ficar tanto tempo conversando. Veja como ele est cansa-
do. Venha, vamos j para a cama, meu querido.
- Sinto muito, Tussy, mas hoje o General no passou
bem a noite e no poder receb-la ... Sinto muito, Tussy...
Hoje, no ... o General est cansado .. .
-Voc sabe o que pode acontecer se no tiver sua do-
se de descanso, General... Vamos para o quarto, vamos!

Uma dvida comeou a encher Eleanor de apreenso:


o temor de que, quando Engels falecesse, os papis de Marx
- que estavam em sua casa e sob seus cuidados - passas-
sem para as mos do casal de mdico e governanta, que,
Eleanor acreditava, seria capaz de tudo, queim-los ou ven-
d-los, o que lhes fosse mais conveniente. Sem saber dos
planos de Bebel, ela percebia que algo de errado estava sen-
do tramado. E num dos momentos mais difceis de sua vida

119
Auelino da Rosa Oliveira ]
va Afonso Oliveira
Elermor Mmx , filha de Kni-1

- e provavelmente tambm da vida do General, e sua re-


velia - declarou-se la guerre das filhas de Marx contra a go-
vernanta de Engels.
No qiproqu que se armou, ele pde lhes assegurar
que os papis do pai eram e seriam sempre dela e de Laura,
as legtimas herdeiras de Marx. Mas se isso aliviou as apreen-
ses de Eleanor, de nada serviu para melhorar seu contato
com o velho amigo: os encontros entre os dois continuaram
esparsos e controlados por Louise e "suas ordens mdicas".
No ltimo encontro, Engels j no podia falar.
E Eleanor no estava a seu lado na manh em que ele
morreu, sozinho, em seu quarto.

(Engels deixou trs oitavos de sua herana para Laura,


Eleanor e os filhos de Jenny, bem como os papis de Marx e a
responsabilidade de organizar e editar o volume IV d'O capi-
tal. Para Louise e o marido, deixou a casa e uma renda ainda
maior, que lhes permitiu, para dizer o mnimo, viver bastante
bem o resto da vida. E se Bebel e o Partido Socialista Alemo
no conseguiram, naquele momento, os papis de Marx, con-
seguiram os de Engels, separando a correspondncia dos dois,
o que dificultou por muitos anos o trabalho dos pesquisadores
e tericos marxistas.)

3.

Depois que Engels faleceu, a grande preocupao de Elea-


nor era levar adiante a edio dos manuscritos do IV volume
d'O capital, e de uma batelada de papis ainda no trabalhados.
Kautsky - preparado pelo General para decifrar a le-
tra e o estilo de Marx - assumiu a difcil tarefa de editar o

120
Mmia Jos Silveim

IV volume. Mas o prprio trabalho de arrumar, selecionar,


ler cuidadosamente os vrios artigos sem assinatura para
identific-los, e assim por diante, era muito mais demorado
e complexo do que Eleanor imaginara a princpio. E havia
ainda todo o tempo gasto em maantes negociaes, refe-
rentes a contratos e direitos autorais das obras. Era uma res-
ponsabilidade demasiado grande levar adiante o formidvel
legado do pai, sem a ajuda do General.

Com a herana deixada por Engels, ela comprou a casa


bastante confortvel, onde tinha seu prprio estdio e Ed-
ward o dele. Estava cheia de planos, apesar de tudo. Recebia
os amigos, participava das atividades do bairro, a escola do-
minical e o coro do grupo socialista, e logo se tornou uma fi-
gura querida pela vizinhana. Queria cultivar seu jardim e
sobre isso pediu instrues precisas ao cunhado Paul Lafar-
gue, conhecido jardineiro das horas vagas.
Mas pouco tempo e nimo ela teve para desfrutar de
seu jardim e seus pssaros. A frgil felicidade domstica que
pensara criar na sua Toca, na verdade nunca existiu. Ela vi-
veu ali apenas dois anos e meio.

E continuava trabalhando muito. Seguia escrevendo ar-


tigos semanais e dando aulas, palestras e conferncias - em
oito meses, em 1897, fez quarenta e uma palestras e partici-
pou da mesa de dez reunies, sem contar uma semana de pa-
lestras na Holanda.
Continuava a organizar e participar de congressos e co-
mcios, como o Comcio pela Paz no Hyde Park, em 1896,
e o Congresso Internacional dos TIabalhadores em Londres,
do qual participaram Clara Zetkin e Rosa de Luxemburgo, e
onde Eleanor trabalhou mais uma vez como intrprete e como

121
Eleanor M arx, filha de Karl

delegada da Unio dos Trabalhadores de Gs. Suas ativida-


des eram to requisitadas que ela se viu obrigada a escrever
ao editor do jornal People Press:

"Prezado Camarada,
Gostaria que, atravs de sua coluna, me permitisse pe-
dir aos setores dos Sindicatos dos Trabalhadores de Gs e
Trabalhadores em Geral que no anunciassem minha pre-
sena para falar em nenhum lugar antes de primeiro me per-
guntar se possvel, e, segundo, de receber minha confirma-
o. Tenho toda vontade e prazer em ir a qualquer lugar
onde h trabalho a ser feito. Mas no justo nem com o p-
blico nem comigo publicar meu nome como oradora, a me-
nos que seja certo que eu possa estar presente. A dificuldade
no fica menor quando anunciado que falarei em dois ou
trs lugares ao mesmo tempo sem ter sido consultada po.r
nenhum deles. Permita-me, portanto, pedir, atravs do jor-
nal, que os organizadores dos encontros que possam querer
meus servios por favor se comuniquem comigo antes de fa-
zer qualquer anncio pblico.
Fraternalmente,
Eleanor Marx Aveling"

122
Fevereiro
0 LEAO SEM JUBA

1.

Quando Eleanor comprou A Toca, era primavera e os


tordos e melros apareciam constantemente no jardim. Os
trinados a acordavam de manh e a acompanhavam durante
todo o dia. Na grande casa de Maitland Park, quando ainda
morava com a famlia, tambm era assim. Havia pssaros por
todo o quintal e, quando desapareciam no inverno, ainda ha-
via os dois canrios criados em casa.
Era isso o que deveria fazer, ela pensa, ter pssaros
tambm dentro de casa e, no prximo inverno, no ficar
nesse insuportvel silncio de agora. Para fazer um pouco
de barulho, ela s tem os cachorros; nem com seus gatos
pode contar, j que, por natureza, gatos so sempre silen-
ciosos durante o dia, seja qual for a estao.
Edward tem muito da natureza de um gato. Mas no a
fidelidade nem a solicitude e o aconchego deles. S a mal-
cia e os mistrios.

123
Elen1101 !Vlnr:c, filbn de Knrl

Os segredos de Edward parecem se agravar como sua


doena. Seu comportamento cada vez mais inexplicvel.
Nos poucos dias em que se sente melhor, vai para Londres,
sozinho e, s vezes, agora, nem volta noite, s no dia se-
guinte, e sempre pior.
Eleanor no entende o que est acontecendo, e quer
entender, no sentido mais amplo do termo. A ela, com seu
temperamento racional e exercitado intelectualmente para
compreender, o que mais a horroriza no ser capaz de ex-
plicar os motivos do comportamento da pessoa que , agora,
sua nica famlia. no compreender o que o leva a agir as-
sim. Comea a pensar que ele est doente. Moralmente
doente. A seus olhos, s uma pessoa enferma seria capaz de
ter esse tipo de comportamento.
Em mais uma noite de solido e insnia em seu estdio,
ela olha pela janela as rvores nuas do inverno. Seus olmos e
sicmoros esto sem folhas e sem vida.
Tal como ela.
Senta-se e comea outra carta para Freddy:

"A Toca, 5 de fevereiro de 1898

Meu querido F reddy,


Sinto muito voc no poder vir amanh. Para ser justa,
deixe-me dizer que Edward no tinha inteno de lhe pedir
dinheiro outra vez. Voc no faz idia de como ele est mal.
Ele queria v-lo porque acredita que no ver voc de novo
depois da operao.
Querido Freddy, sei como sincero seu afeto por mim,
e como verdadeiramente voc se preocupa. Mas acho que
voc no entende completamente - e eu s agora estou co-
meando a entender. Vejo cada vez mais claramente que o

124
Mmin Jos Silv eira

erro apenas uma doena moral, e quem moralmente sau-


dvel (como voc) no capaz de julgar a condio de quem
est moralmente doente. Da mesma maneira como a pessoa
fisicamente saudvel dificilmente pode entender a condio
da pessoa fisicamente doente.
Em algumas pessoas, h uma carncia de um certo sen-
tido moral, da mesma maneira como outras pessoas so sur-
das, ou tm uma vista ruim, ou tm qualquer outro proble-
ma de sade. E comeo a entender que no temos mais
direito de culpar um tipo de doena do que o outro tipo. De-
vemos tentar curar e, se a cura no for possvel, fazer o me-
lhor que pudermos. Aprendi isso atravs de um longo sofri-
mento - sofrimento sobre o qual no falaria nem a voc -
mas aprendi, e assim estou tentando suportar todo esse pro-
blema da melhor forma que posso.
Querido, querido Freddy, no pense que esqueci o que
Edward lhe deve (quero dizer em dinheiro, porque em ami-
zade e considerao impossvel calcular), e voc receber,
sem dvida, o que ele est devendo. Quanto a isso, voc tem
minha palavra. Acredito que Edward ir para o hospital no
comeo da prxima semana. Espero que seja logo, porque
essa espera o aflige terrivelmente. Eu lhe avisarei assim que
tiver alguma coisa definida, e espero com todo o meu cora-
o que logo voc esteja melhor.

Sua Tussy

P.S. Existe um ditado francs que diz que entender


perdoar. O grande sofrimento me fez entender- e assim eu
nem preciso perdoar. S posso amar."

125
E!ennor Mnrx, filhn de Knr/

2.

Aveling faz a cirurgia do abcesso no final de fevereiro.


Eleanor o acompanha o dia todo em seu quarto no hospital,
e s o deixa noite, quando ele adormece.
A cirurgia foi exploratria e tudo indica que ouua ser
necessria mais tarde.
Oito dias depois, eles voltam para casa. Ela acredita que
Aveling no sobreviver e, mais do que nunca, considera seu
dever se dedicar a ele. A conselho mdico, eles partem para
Margate, estncia onde Eleanor j estivera com o pai e a
me, anos atrs.
Os dias ali so terrveis.
De manh, ela faz o curativo no abcesso de Edward,
passando uma seringa pela ferida aberta e colocando, depois,
um tampo para fech-la, em uma rotina extremamente do-
lorosa para os dois. A seguir, lhe d um "banho de cadeira",
faz sua comida, cuida de seus remdios e, outra vez, noite,
faz o mesmo doloroso curativo.
Nos intervalos, escreve para Liebknecht, Kautsky -
sempre sobre trabalho e sobre a sade de Aveling - e pa-
ra Laura e Freddy. Tambm l uma biografia de Shakes-
peare, sobre a qual deve fazer uma resenha. Mas acha o li-
vro detestvel.

Seu pensamento est longe, est longe dali.


Est nos seus mortos. Seu pai, Jennychen, sua me. En-
gels. Lenchen.
Est nas inmeras vezes em que ela e o pai iam s estn-
cias termais procurando se recuperar de uma ou outra crise.
Est nos seus vinte anos.
No comeo de sua vida de adulta. Nos anos de seu na-

126
Mmia Jos Silveim

moro proibido com Lissagaray quando, dividida entre o amor


e a farrlia, ela decide mergulhar no trabalho e procura abrir
suas perspectivas. Comea a ter aulas de interpretao e filia-
se a clubes literrios, Nova Sociedade Shakespeariana e
Sociedade Browning. A grande admirao que todos da farr-
lia tinham por Shakespeare a faz pensar na carreira como atriz
- para o que sua voz, expressiva e potente, parecia ser um
grande ponto a favor. Comea a ensaiar e organizar apresen-
taes teatnis de amadores, com seu grupo de amigos.
Comea tambm a fazer trabalhos de traduo - uma
constante em sua vida - e adota, como o pai fizera antes, o
Salo de Leituras do Museu Britnico como lugar de traba-
lho. A movimentada biblioteca era um bom lugar para conhe-
cer pessoas com os mesmos hbitos e interesses. Seu crculo
de amigos se amplia e, enue eles, escritores e dramaturgos,
como Bernard Shaw, Dollie Radford, Edward Rose, Havelock
Ellis e Olive Schreiner. Tussy torna-se parte de um grupo de
jovens e entusiasmados intelectuais e bomios.
O velho pub em frente sada do museu, que anos antes
fora palco de acalorados debates entre Marx e seus compa-
nheiros, torna-se agora ponto de encontro de Eleanor e seus
amigos. Enue a fumaa densa dos cigarros e cigarrilhas, o
cheiro morno da cerveja, as gargalhadas, os projetos e as ca-
lorosas discusses de novas teorias, a vida se agita e se alegra.
E de l ela parte, com seu grupo, para atividades socialistas e
sindicais. Ou para ensaios e leituras de pea. Acompanha
tambm o pai aos debates e conferncias. a socialista ardo-
rosa que enche de admirao os amigos de Marx. Bernstein,
Bebel, Kautsky. Todos se entusiasmam com ela.
A vida em sua casa tambm passa por mudanas.
Com o casamento das duas primeiras filhas, a famlia
se mudara para uma casa menor e mais barata, na mesma

127
Elermor Mrffx , filha de Karl

Maitland Road. Mas, proibidos de voltar Frana depois da


Comuna, tanto Paul Lafargue como Charles Longuet esta-
vam vivendo em Londres; Laura e J ennychen, com seus fi-
lhos, estavam todos por perto.
Eleanor gosta muito de cuidar dos sobrinhos.
Marx, com os problemas de sade se agravando, aos
poucos foi obrigado a adquirir hbitos mais moderados. J
no passa as noites em claro trabalhando nos livros, nem em
acaloradas reunies polticas, nem conversando e bebendo
nos pubs. Sua diverso, agora, caminhar e brincar com os
netos. A fama de colrico revolucionrio completamente
alheia ao cotidiano desse bonacho e carinhoso velho de ju-
ba prateada e bigode ainda preto.
Seu ritmo de trabalho ainda intenso durante o dia,
mas noite, proibido pelos mdicos de trabalhar, ele e Jenny
abrem as portas da casa. Amigos de longe e militantes de ou-
tros pases vm visitar o grande homem, o brilhante conver-
sador e anfitrio efusivo.
Agora, aos domingos, a casa tambm se enche com os
novos amigos de Eleanor, os amigos do grupo de teatro que
vm ensaiar as peas e audies. Todos participam de recitais
para angariar fundos para causas sociais e polticas.
Marx adora essa turma. So jovens, e ele sempre gostou
da juventude, com quem sabe ser tolerante, divertido e ge-
neroso. Ao lado de Jenny, senta-se no sof e se comporta co-
mo a platia que qualquer ator gostaria de ter: nunca critica,
aplaude com entusiasmo e s vezes ri tanto que lgrimas ro-
lam por suas bochechas. Depois, participa com eles de jogos
de charadas e mmicas, to entusiasmado quanto o mais en-
tusiasmado deles.
A energia intelectual vulcnica do Mouro ainda assom-
bra os amigos de Eleanor, mas sua sade cada vez mais

128
Mmin Jos Silveim

precria. triste, ainda que inevitvel, que medida que a


filha caula e sua gerao se envolvam mais com a militn-
cia revolucionria, o pai comece a definhar com seus pro-
blemas crnicos de sade, agravados pela idade. Os dez l-
timos anos da vida do Mouro so marcados pela crescente
debilitao de sua sade- e so justamente os anos de mo-
cidade de Eleanor.

No pas, o conflito com a Irlanda permanente, e os


dias so agitados.
Michael Davitt, um dos lderes irlandeses, foi preso.
Uma grande agitao percorre as ruas e a indignao se es-
palha. Sabendo que o levariam para interrogatrio nas de-
pendncias da polcia em Bow Street, Eleanor tenta v-lo
para manifestar sua solidariedade.
Encontra uma multido zangada na porta: ao contrrio
dos outros presos, Michael Davitt fora levado at l muito
mais cedo do que o horrio normal.
"O governo teme encarar o pblico", ela diz, e pergun-
ta a um dos policiais de guarda se o prisioneiro ainda estava
no edifcio.
'~No, eu mesmo o coloquei no carro", responde o jo-
vem, com forte sotaque irlands.
Eleanor no se contm e lhe diz, vexada:
"E ser que no havia policiais ingleses suficientes para
colocar no carro um homem que, como Davitt, tanto fez por
seu pas? Eles tiveram que recorrer a voc, um irlands!?"
A multido, entusiasmada, a envolve e a levanta nos
ombros, dando vivas Irlanda.

O namoro proibido com Lissagaray o pano de fundo


dessa poca e a causa da angstia que, no meio de tudo isso,

129
Elea1101 Man:, filha de Ka rl

turva a alegria de Tussy. Ao lado dele, ela trabalha na tradu-


o para o ingls de sua Histria da Comuna e, quando po-
dem, encontram-se nos parques.
Mas curioso. Se, para muitos, as dificuldades no rela-
cionamento amoroso fazem com que o amor cresa mais -
pelo menos, o que dizem-, para Eleanor, no. No "cau-
sa nela o que o obstculo faz com a corrente", nem "torna o
amor mais violento e mais indomvel". Ao contrrio. As di-
ficuldades aos poucos vo minando seus sentimentos. Pare-
ce cada vez mais claro que o pai nunca aceitar Lissagaray. E
no, ela no quer romper com o pai. Decididamente, isso ela
sabe que no quer.

Quando chega a Anistia aos exilados da Comuna, Lissa


um dos primeiros a voltar para Paris. Eleanor, exasperada,
percebe que chegou um momento de deciso em sua vida.
Agora no tem mais sada: ter de escolher se segue com ele
ou no.
Charles Longuet e Paul Lafargue tambm retornam a
Paris. E, com eles, Laura, ] ennychen e as crianas.
Assim comea, para ela, um tempo de angstias e crise.
Eleanor no sabe que rumo dar sua vida.
Tortura-se sobre Lissagaray.
Sente falta dos sobrinhos e de] ennychen, irm que era
sua confidente e grande amiga. E v a doena da me, um ir-
remedivel cncer no fgado, se agravar. J com perodos de
dor forte,] enny viaja com Marx a Paris, na tentativa de mu-
dar de ares e rever os netos.
Tussy fica s em Londres, com seus problemas e encru-
zilhadas. Suas preocupaes so inmeras e as mesmas: as
doenas do pai e da me, a falta de uma profisso, e o noiva-
do "eterno" com Lissagaray.

130
Mrwia Jos Silveim

Insatisfeita com os rumos que pareciam fechar-se sua


frente, no consegue dormir direito, no consegue comer, es-
t a um fio dos limites de suas foras. Quer se desvencilhar de
suas cargas e obrigaes, quer crescer, quer fazer coisas que
valham a pena, quer ser uma mulher independente, quer se
realizar, ser feliz. Quer tanta coisa! E no sabe por onde co-
mear, sente-se sem cho e sem caminhos. O tempo est pas-
sando, sua juventude est passando, seu amor est passando,
tudo est passando e ela no tem nada de seu para se agarrar.
Sua amiga Dollie, sem saber como ajud-la, decide es-
crever a Marx em Paris.
Ele retoma imediatamente e encontra a filha em esta-
do lamentvel: suas mos tremem, e ela tem tiques faciais e
espasmos. O Mouro consegue lev-la ao mdico, que fala em
colapso nervoso. Sua sada, ela pensa, investir na carreira
teatral. Sim, isso o que ela quer. Vai tomar aulas com Ma-
clame Vezin, famosa professora de teatro de Londres.
Mas a doena da me s piora e Marx tem um grave
ataque de pleurisia; a casa se transforma em hospital: Jenny,
de cama, fica no quarto da frente e o Mouro, no quartinho
de trs. Tussy se v obrigada a adiar seus planos, esquecer de
si mesma e se controlar para cuidar dos dois. Passa dias e
noites cabeceira de um e de outro.
S as doses de morfina conseguem trazer um pouco de
paz a J enny, que morre aos sessenta e oito anos. dezembro
de 1881.
Na memria de Tussy, esse tempo uma longa, inter-
minvel noite sem dormir, sem pensar, sem viver, entre re-
mdios, ansiedades e consternao.
O enterro de Mohme, no frio londrino batido pelo ven-
to, desolador. Marx, proibido por ordens mdicas de se le-
vantar da cama, no pode comparecer.

131
E/ennor Mmx, filha de Knrl

A tarde est gelada e escura na cidade.


Ainda mais gelada e escura est na casa dos Marx.

Eleanor, sentada ali no quarto em Margate, olhando


pela janela enquanto Edward cochila na cama ao lado, pare-
ce sentir outra vez o desalento que sentia naquela poca, e a
tristeza daquela tarde, de volta do enterro, quando escreveu
uma carta para Jennychen, que, tambm com graves proble-
mas de sade, no conseguira viajar at Londres.
Tussy havia cortado um cacho dos cabelos da me, ca-
belos ainda negros, suaves e bonitos como os de uma jovem.
Lentamente, abre um envelope e nele coloca o cacho junto
com a carta, e o fecha.
Esgotada pela tristeza e pelas noites em claro beira da
cama dos dois doentes, ela quase desfalece. Enche-se tambm
de remorsos, convencida de que a me sofreu por sua causa,
pelo seu longo e proibido noivado com Lissagaray. Dividida
entre o dever filial e o amor de juventude, sente uma profun-
da tristeza, acreditando que a me morreu "pensando que,
apesar de todo seu amor, ela fora dura e cruel, sem imaginar
que, para evitar aos pais uma grande tristeza, sacrificara os
melhores anos de sua vida".

3.

Depois da morte de Mi::ihme, Marx e Tussy, por ordens


mdicas, foram mais uma vez para as termas da ilha de
Wright.
quando ela pode outra vez olhar para dentro de si
mesma e retomar suas dvidas e angstias. Est melanclica,
nervosa e completamente auto-absorta. Ainda no consegue

132
Mmia Jos Si!vei1a

dormir e come pouco. Essa sua crise - a segunda - est


sendo mais forte e mais demorada. Na primeira, em Brigh-
ton, era uma adolescente apaixonada enfrentando o pai, mas
agora uma jovem mulher, uma jovem mulher insatisfeita,
angustiada com a brecha que se abre entre os seus sonhos e
desejos e o que consegue realmente ter ao redor de si.
O tempo na ilha no d trguas: est horrvel, chuvoso
e frio, como o humor de Eleanor.
Ela puxa sua torre para a direita.
"Voc no est atenta", o pai lhe diz.
verdade, ela no est atenta.
No est ali. Est longe, em Paris, escutando Lissa lhe
dizer: "Venha comigo, ma petite femme. No h mais como
adiar. Nosso tempo se esgotou, venha". Pela milionsima
vez, no entanto, ela pensa na tristeza do pai. Pensa tambm,
agora, em outras coisas: sua carreira de atriz, seus amigos.
No, ela no quer sair de Londres. Mas, e Lissa? Depois de
todos esse anos, como lhe dizer que est mudando de idia?
Como lhe dizer que ainda o ama, talvez, sim, ainda o ama,
mas no a ponto de deixar tudo por ele. Seu corao j no
est todo tomado pelo seu bravo communard. Outras preocu-
paes e dvidas e desejos esto ali agora. Esse romance que
aos poucos foi se desvanecendo parece agora um peso que de
certa forma a oprime, algo que a sobrecarrega, que a tolhe,
a impede de seguir, seja l para onde for. Mas Lissa foi to
amoroso e paciente, todos esses anos, e no tem culpa do
que est acontecendo!
Eleanor est com vinte e sete anos e, preocupada
com a idade- j no uma mocinha-, sente-se pssi-
ma: ainda no conseguiu sua independncia verdadeira,
ainda no resolveu sua vida, ainda no se sente nada, nin-
gum. Est insegura e infeliz. Ser que tem mesmo dom

133
Elennor Mnrx, filhn de Kai-1

para atriz? A voz, ela sabe, o que tem de melhor. Mas se-
r que s a voz basta? Ser que conseguir emocionar um
grande pblico? O pblico do teatro amador, que a aplau-
de, no , por definio, menos exigente que o pblico do
teatro profissional?
Ela se inquieta, desespera-se. "Quanto tempo perdi! J
no sou to jovem para perder mais tempo com os artigos e
tradues e, se eu no puder fazer isso logo, j no terei mui-
to tempo. Mas no tenho dinheiro para as aulas com Mada-
me Vezin ... certamente ela no me aceitaria como aluna se
no acreditasse que tenho chances de ter sucesso ... Tenho
que tentar fazer alguma coisa ... Talvez eu no seja inteligen-
te o suficiente para viver uma vida puramente intelectual
mas tampouco sou to estpida a ponto de me contentar fa-
zendo nada." Ah, meu querido velho pai, como o amo ... e no
entanto devo viver minha prpria vida ...
- Vamos, Tussy, assim no possvel. No d para jo-
gar xadrez com um espectro - impacienta-se Marx.
- Desculpe, Mouro. minha dor de cabea. Se prefe-
rir, poderemos continuar a partida mais tarde.
-Acho que melhor, realmente. Quando voc voltar
para a ilha.

Sem querer preocupar ainda mais o pai, ela escreve lon-


gas cartas para Dollie e J ennychen. Mas a tenso s faz cres-
cer entre pai e filha, e o Mouro se ressente por achar que
Tussy no confia suficientemente nele para lhe contar o que
tanto a aflige.
Ele escreve a Engels, preocupado: "Quanto aos planos
futuros, a primeira considerao deve ser desobrigar Tussy
de seu papel como minha acompanhante ... A menina est
sob tal presso mental que est solapando sua sade. Nem

134
Mmin Jos Silveim

viagens, nem a mudana de clima, nem mdicos podem fa-


zer alguma coisa nesse caso".
Assim, aos poucos, todos parecem comear a entender
que para ela o melhor no era uma estao de veraneio, on-
de se tornava presa fcil de seus fantasmas e fantasias, mas
voltar a Londres para fazer as coisas que tanto quer.
E ela quer duas coisas: terminar o longo e desgastado
noivado com Lissagaray, e ter aulas mais srias com Mada-
me Vezin. Arde de vontade de encontrar um caminho para
si mesma e acredita que esse caminho seria o teatro.
Mas no seria.

Avelin.o da Rosa Oliveira


4. Neiva Afonso Oliveira
Bl BLIOTECA
De volta a Londres, Eleanor dedica-se completamente
s aulas de teatro, e ao trabalho para pag-las. Apesar de sua
dedicao e persistncia, no entanto, Madame Vezin no
demora a perceber que seu talento, embora existente, nun-
ca a levaria a ser uma das grandes. E para Tussy isso deso-
lador. Ela resolve desistir.
Nesse dia, vai casa de Olive.
Plida, trgica, quase desfalecendo, deitada nas almofa-
das da casa da amiga, conta-lhe o veredicto de Madame.
- terrvel demais no ser capaz de conseguir a nica
coisa no mundo que voc quer.

Por mais terrvel que fosse, no entanto, algo aconteceria


que a faria se esquecer do teatro: sua vida social adquiria um
ritmo frentico. Deliciada, ela descobre que muito querida
em crculos mais amplos que o de seus amigos ntimos e fa-
miliares, e que era um sucesso onde quer que fosse. Convidada

135
Eleanoi Marx, filha de Karl

para piqueniques, jantares, festas, ela declamava e apresenta-


va pequenas peas.
Um sucesso, mna coqueluche.
E, esfuziante como h tempos no era, escreve a
Jennychen:
"Fui convidada para mna reuniozinha na casa de Lady
Wilde, a me de Oscar Wilde, aquele rapaz muito frouxo e
desagradvel, que tem feito tantas besteiras na Amrica. Co-
mo o filho ainda no voltou e a me muito simptica, acho
que irei".
E foi. A essa e a muitas outras "noites de dissipao",
como as chamava, gracejando consigo mesma. Durante o
dia, continuava trabalhando duro no Museu Britnico, dan-
do aulas particulares e participando de reunies polticas.

5.

Mas chegou 1883, o ano horrvel.


Logo em janeiro, morre J ennychen em Paris, depois de
uma longa agonia, aos trinta e oito anos. Marx, que por or-
dens mdicas havia passado aqueles ltimos meses pratica-
mente em peregrinao por vrios lugares, tentando encon-
trar mn clima seco e quente para sua- pleurisia e bronquite
crnica, estava em Ventnor.
Eleanor foi levar-lhe a notcia.
No trem, na longa viagem, ela se torturava imaginando
como lhe contar que a filha mais velha morrera. "Eu sabia
que estava levando a meu pai sua sentena de morte."
Ao chegar, no entanto, no foi preciso dizer nada. Ven-
do-a, de repente, no umbral da porta do quarto, Marx com-
preende imediatamente e diz: "NossaJennychen morreu".

136
Mmia Jos Silv eha

Poucos dias antes, sentindo que j estava perto do fim,


ele decidira cortar sua barba. Antes, tirou uma ltima foto,
para que as filhas sempre se lembrassem dele com a barba
messinica e a juba prateada.
Para Eleanor, ver o pai sem barba foi como v-lo e, ao
mesmo tempo, no v-lo. A imagem daquele velho emagre-
cido pela doena, sem a espessa barba que ela puxava desde
criana, fez Tussy engolir um grito.
"Eu vivi muitas horas tristes, mas nenhuma to triste
quanto aquela", sempre diria depois.

Desolado e abatido, Marx volta a Londres para morrer


em casa.
No comeo da tarde de 14 de maro de 1883, quando
Engels chega para sua visita diria, Lenchen lhe diz que o
Mouro est cochilando. Os dois sobem at o quarto, entram
e compreendem que ele est morrendo.
Poucos amigos foram avisados do enterro, no cemitrio
de Highgate, ao lado de Jenny. O vento noroeste traz um
frio intenso e neve para Londres.
Eleanor tem vinte e oito anos e, com o pai, sente que
perde uma grande parte de si mesma.

6.

"A Toca, fevereiro de 1898

Minha querida Olive,


Quando despertei hoje, havia um silncio inusitado em
meu jardim, o silncio do ar vazio depois que a neve cai du-
rante horas na madrugada.

137
Elenno r Mnrx, filhn de Knr!

Olhei pela janela, e o branco sem som se estendia infi-


nitamente.
Sonhei com Lissagaray esta noite. Depois de tanto, tan-
to tempo sem nunca mais ter pensado nele dessa maneira, so-
nhei que ele me abraava muito forte e escutei nitidamente
sua voz me dizer, como me dizia naquele tempo, nza petite fenz-
nze. A sensao foi to intensa que por um momento parecia
que ele realmente estava de carne e osso ali ao meu lado.
Quando acordei, fiquei pensando nele muito tempo.
Ser que teramos tido uma vida melhor?
Depois de tantos anos, hoje eu me perguntei mais uma
vez por que as coisas aconteceram como aconteceram. Ele
foi, sem dvida, a pessoa que mais me entendeu, que sabia o
quanto, no fundo, sou frgil, o quanto necessito de me sen-
tir cercada de afeto para viver. Mesmo naqueles dias, dizia
que no poderia exigir que eu deixasse minha famlia por ele
pois sabia que, sem ela, eu no saberia viver. Que o ar que eu
respirava era o que vinha de meu pai, e que ele no queria,
no achava justo romper uma ligao assim to vital, eu no
seria feliz.
Ele compreendia tudo isso perfeitamente.
Ento, por que deixei de am-lo, meu conznzunard amo-
roso e paciente?
Hoje, olhando para trs, creio que foi como um proces-
so natural de autodefesa de minha parte. O que eu queria -
que era conciliar Lissa e o Mouro - no seria possvel, e, in-
conscientemente, talvez, minha escolha j fora feita desde o
incio - eu jamais poderia romper com minha famlia . S
me restava deixar de amar Lissagaray.
Foi um processo muito demorado e muito sofrido, e sem
que eu me conscientizasse totalmente disso, mas aconteceu.
Demorei muito tambm a entender por que meu pai

138
Mrwin Jos Silveiln

no o aceitava, mas hoje tudo me parece mais claro. Houve


um momento em Carlsbad, creio que foi quando Dollie -
a tonta da Dollie, voc sabe como ela era, muito preocupa-
da comigo e querendo me ajudar mas sem ver um palmo
alm do nariz- foi lhe dizer que acreditava que eu havia me
casado secretamente com Lissa! Naquele momento, o Mou-
ro me disse: 'Minha filha, se voc acha que realmente quer
ficar ao lado desse homem to mais velho que voc e com
to poucas condies de lhe dar uma vida estvel, sem so-
bressaltos e dificuldades, percebo que nada mais posso fazer.
Tentei o que pude para evitar que voc tivesse os mesmos so-
frimentos que, sem querer, causei sua me. Como eu disse
tambm a Paul, quando ele me pediu a mo de Laura - e
que, infelizmente, tambm de nada adiantou -vocs todos
sabem como sempre sacrifiquei toda a minha sorte luta re-
volucionria. No o lamento, muito pelo contrrio. Se tives-
se que viver minha vida outra vez, faria a mesma coisa. Mas
no me casaria. No que estivesse em meu poder, queria sal-
var minhas filhas dos recifes nos quais a vida da me naufra-
gou. Sempre julguei que era meu dever de pai no permitir
que pelo menos voc, minha ltima filha, tivesse a mesma vi-
da. Mas vejo, com muita pena, que um pai, por mais que lhe
doa e tente, no tem o poder de garantir a felicidade de uma
filha. E a nica coisa que realmente quero v-la feliz, mi-
nha menina'.
Se eu tivesse dito ao Mouro naquele momento que no
se culpasse, que eu tinha certeza que minha felicidade esta-
va ao lado de Lissa, tenho certeza de que ele teria dado, por
fim, sua aprovao, teria me deixado ir. Mas eu j no sabia
se queria ir, se queria me mudar para a Frana, se queria dei-
xar meus amigos em Londres, se queria desistir do teatTo,
que parecia ento ser minha vocao. De fato, no fundo, eu

139
Eleanoi Marx, filha de Karl

j deixara de amar meu querido heri. J havia sofrido mui-


to aqueles anos todos, havia sacrificado o amor de juventude
ao amor familiar, e queria dar um basta a esse dilaceramen-
to. Queria me sentir inteira, ser dona de minha vida, seguir
uma carreira, produzir. Queria ficar tranqila, sem tanto
drama, queria ser feliz.
Como poderia saber que a felicidade to inacessvel
quando se trata de amor?
Eu era jovem demais.
Ns ramos jovens demais.
Lembra -se que, quando nos conhecemos, voc dizia que
o amor no era uma coisa importante em sua vida? Que vo-
c era, antes de tudo, escritora. Que se tivesse que escolher
entre um homem e sua arte, no haveria vacilao possvel.
Ah, como me lembro de voc, entre as almofadas, fu-
mando sua inseparvel cigarrilha e dizendo isso, com pro-
funda convico e ardor!
Fiquei muito impressionada e a invejei pela determina-
o e pela fora. Eu tambm acreditava que essa atitude era
a mais revolucionria possvel, a mais de vanguarda, a mais
adequada a uma mulher. Era mais um motivo para admirar
voc, mas eu, eu no conseguia ser assim. No conseguia na-
quela poca, nem consigo agora. Minha natureza muito di-
ferente, e fui criada de tal maneira que no me basto a mim
mesma. Preciso dos outros. Preciso sentir que me amam e
me querem.
Comeo a achar que esse, talvez, seja meu maior defeito.

Sua, sempre,
Tussy"

140
Maro
A MORTE BRANCA

Essa a hora de Chumbo -


Lembrada por quem sobrevive a ela
Como lembra da neve quem ao frio no pode mais reagir-
Primeiro - Calafrio - depois Estupor - depois o deixar-se ir.
EMILY DICKINSON

1.

A morte, a morte deve ser como o sono. Com a diferen-


a de que sono sem cor, sono sem preto nem branco, sem
cinza, sono sem imagens, sem figuras, sem dor nem ale-
gria, nem frio nem calor, nem sustos nem sentimentos. o
sono irrestrito, final.
A morte o sono perfeito, como aquele mais restaura-
dor dos sonos, do qual o despertar surpreende porque nele
se perde de forma to cabal a conscincia. S que da morte
no se desperta.

141
Elen11or Mnrx , filh n de Knrl

A morte, quando nada se tem a perder, a morte pode


ser uma coisa boa.
Como materialista, Tussy no v horror na morte. "Sa-
be que um dia ter de retornar, corpo e mente, ao corao
da natureza de onde veio", como o General falou no enter-
ro de Mihme.
O nico problema de quem morre o que se deixa. O
problema da morte de qliem fica.
E quem ela deixar agora? Quem ficar?
Ningum que realmente se importe.

2.

No dia 27 de maro, outro domingo, Eleanor e Aveling


voltam de Marga te. Aveling ainda est mal, esqueltico, com
dificuldades para andar. Eleanor, por sua vez, tambm est
esgotada. Emocional e fisicamente, depois desses dias e noi-
tes, quase dois meses, cuidando de doente to difcil.
Dois dias depois, ela escreve para Olive:

"Minha querida Olive,


H vrios dias no consigo dormir. Passo as noites em
claro, do comeo ao fim. como se uma das feiticeiras de
Macbeth tivesse dado a mim o seu castigo: 'Eu a deixarei se-
ca como o feno e o sono, dia e noite, manter-se- longe de
seus olhos'.
No lugar do sono, so os pensamentos que vm sem
parar, em ondas obsessivas, e eu me afogo neles, tento fugir,
escapar, contar carneiros, pensar na casa de Grafton Terra-
ce, pensar nos meus tempos felizes, mas nada adianta. Os
pensamentos so por demais dominadores, so mais fortes

142
Mrn-ia Jos Silvei1a

do que minha vontade. Tomam conta de minha cabea e


no me deixam, mesmo quando vejo a temvel claridade do
sol romper a nvoa e se insinuar pouco a pouco pelas corti-
n as. No quero tomar drogas; anos atrs, depois da morte
de minha me, quando passei por noites assim, tentei vrias
drogas mas sempre me senti pior. esgotante no poder
dormir e temo o completo colapso. Quero escapar das mi-
nhas obsesses, quero enfi-las em um saco e jog-las pela
janela, quero destru-las, queim-las, mat-las, mas no sei
fazer isso. No consigo. Minha cabea parece completa-
mente cheia e, ao mesmo tempo, oca. Ou sou eu toda que
estou vazia e oca, no sei bem.
Tenho quase certeza de que Edward vai me abando-
nar. Sinto isso e seria uma completa idiota se no sentisse.
A maneira como ele me trata, com tal indiferena, tal gelo,
tal crueldade.
Ah, ser rejeitada, agora sei o que . No adianta saber,
e saber que no deveria me sentir assim, essa dor e humilha-
o, mas me sinto demasiado fraca agora para escapar dessas
cargas insuportveis da sociedade. Se de alguma forma con-
segui, na minha vida, escapar de algumas delas, de outras
no consegui antes e no consigo agora. Quando penso ra-
cionalmente, sei que estou sendo injusta comigo mesma ao
me sentir dessa maneira; por mais que tente evitar, no entan-
to, no consigo, e me envergonho de ter sido tratada assim.
Sinto como um grande e irremedivel fracasso ver de repen-
te que acreditei e vivi mergulhada em falsidades e mentiras.
Oh, minha amiga, ns que conversvamos sobre tantas coi-
sas, sobre tudo, sobre os preconceitos e as barreiras sociais,
que acreditvamos ser capazes de tudo enfrentar, at a mor-
te- e quantas vezes concordamos que o suicdio era um di-
reito de qualquer pessoa que no se sentisse mais capaz ou

143
Eleanor Marx , filha de Karl

no quisesse viver, sabamos at que veneno usaramos, nada


parecido com o p branco, o horrvel arsnico de Emma Bo-
vary que a fez ter morte horrorosa e lenta, queramos algo
rpido, e voc dizia que usaria uma pistola na beira de um
abismo e se daria um tiro no corao ou na cabea, esses dois
grandes culpados de todos os sofrimentos humanos, mas eu
disse que no, lembra?, eu disse que queria morrer na cama,
de preferncia com uma bonita camisola branca, minha cor
preferida, a cor do incio mas tambm a cor do nada. Mas
ns, ns que no temamos nenhum assunto e falvamos so-
bre tudo, ns deixamos de falar sobre a perturbao invasiva
de mn sentimento assim, de hmnilhao e vergonha, que faz
a pessoa se sentir vilipendiada, fracassada, impotente.
Quando amanhece, sou ainda capaz de dar ao dia sua
capa de normalidade, veja voc. Fao minha toalete, me ar-
rumo e cuido dos remdios de Edward.
Mas no tomo o caf da manh. No tenho tido apeti-
te. Com esforo tomo o ch que Gertrude insiste em trazer
o dia todo, embora eu lhe diga que por favor no me traga
nada, ela quer me vencer pela insistncia, a pobre. uma
boa pessoa, embora obtusa como ela s.
Depois vou para meu estdio, a minha rotina, e de ma-
nh tenho at conseguido fazer algumas coisas. 'Thbalho um
pouco nos manuscritos do meu pai - e, por instantes, sinto
que ainda posso e quero viver. incrvel, mas ainda me as-
sombro ao ver como o Mouro tratou de tantos assuntos, e de
forma to admirvel! Terminei recentemente a edio e uma
pequena introduo para a A histria secreta da diplomacia do
sculo XVIII. E agora estou organizando duas selees, mna
sobre a Histria da vida de lorde Pabnerston e outra sobre Sal-
rio, preo e lucro. O trabalho um alvio, pois exige que eu me
concentre em outras coisas, que no apenas olhe sem ver o

144
Ma ria Jos Silveira

mundo ao meu redor, mas que o veja, que retire dele algum
sentido. Quando consigo realmente trabalhar, um repouso.
Escrevo cartas para o editor. Para Liebknecht. Para Lau-
ra. Mas no falo de mim. S para voc e para Freddy. Detes-
to falar de mim e mais detesto ainda me queixar e no h co-
mo falar de mim hoje sem falar de todos esses horrveis
problemas.
Sinto tanta falta tambm dos companheiros do movi-
mento, dos meus amigos do East End, as bravas mulheres e
homens do povo, to autnticos e genunos como um bom
alimento. O entusiasmo e a fora que eles so capazes de
transmitir podem ser contagiantes. Eu, pelo menos, sempre
me sentia mais calma e segura quando estava com eles, e ho-
je tenho certeza de que foi um grande erro ter me afastado
- ainda que temporariamente - para cuidar de Edward.
Eu no imaginava que seria assim. No imaginava que esse
sacrifcio seria em vo. E agora no sinto fora para retomar
minha vida de antes. No agora. No at tudo estar resolvi-
do entre mim e Edward.
Muitas vezes tenho quase certeza de que ele vai morrer.
De certa forma, chego a desejar isso, no sei se voc pode me
entender. Sei que sou insuportavelmente egosta ao pensar
assim, mas s vezes quase desejo que esses sejam seus ltimos
dias. Porque isso, de certa forma, me d foras para ser pa-
ciente e procurar entend-lo e perdo-lo. Perdoar sua doen-
a moral. Me perdoar. Perdoar ns dois.
Penso, mais que nunca, em um dos motes de nossa ju-
ventude, lembra? 'Vou tentar. Se falhar, falhei.'
Sua, sempre
Tussy"

145
Elean or Mmx , filha de Karl

3.

Na tarde seguinte, dia 30 de maro, Eleanor recebe uma


carta.
Parece uma carta como outra qualquer, dentro de um
envelope branco comum, sem remetente. Estava ali, entre a
sua correspondncia, com ar de inofensivo alheamento.
Eleanor nem a abriu primeiro. Leu antes uma carta de
seu advogado e outra do editor francs das obras do Mouro.
Depois, descuidada e sem sequer o tremor de algum va-
go pressentimento, abre o prosaico envelope branco. E ali
est a carta que lhe revela o que Edward escondia desde ju-
lho: dez meses, trezentos e poucos dias.
Seu casamento com Eva, a jovem atriz.
Que agora reivindicava, como era de seu legtimo di-
reito, a posse do marido. Que ele abandonasse de vez a ve-
lha amante - Eleanor. Que levasse a parte do dinheiro que
lhe cabia.
Eleanor sente que lhe falta o ar. Acha que enlouqueceu.
Respira fundo vrias vezes. Rel, sem entender, aquelas linhas
que mal consegue decifrar. E ainda sem pensar, sobe quase
correndo as escadas at o quarto onde Edward est e lhe en-
trega, sem flego, aquele papel incompreensvel, aquela arma
to fina e to branca.
Tenta respirar e se acalmar enquanto espera a reao
dele. Edward vai dizer que tudo um engano, mais uma ca-
lnia. Que ele no est, no est, no est casado com outra,
como poderia, como poderia!
Mas Edward, talvez por achar que a situao se esgota-
ra, talvez porque premeditara assim, talvez por qualquer ou-
tro motivo, no nega. Fica em silncio ainda por um mo-

146
Mmin Jos Silvei1n

mento, mas no nega. Tenta, apenas, como uma concesso,


minimizar a notcia:
"Sim, Eleanor, melhor que voc saiba. Desposei essa
jovem, verdade, mas no infira muita coisa, isso no signi-
fica mais do que apenas isso. S preciso lhe dar uma com-
pensao financeira e sosseg-la.
E, ademais - ele ainda lhe diz na cruel discusso da-
quele dia - ns dois nunca fomos casados, Eleanor. Eu no
fiz nada que no tivesse direito de fazer. Voc exige de mim
muito mais do que tem o direito de exigir."
"Mas, Edward, voc sempre concordou que ramos,
que ramos casados, ainda que no tivssemos a oficializao
das leis burguesas. Os papis nunca importaram em nosso
casamento, nunca importaram, voc tambm pensava assim,
e era esse nosso compromisso. O que :rpudou, Edward?"
"Ah, Eleanor, voc sempre to exageradamente dram-
tica! Os papis no importam mesmo, so o que so, s pa-
pis. o que eu j lhe disse, no tire desse casamento infe-
rncias que ele no tem. So papis, papis, no est claro
isso? Mas no, voc prefere fazer um escndalo. Que faa!
Por isso cada vez mais impossvel viver com voc."

A discusso s no foi pior porque Edward, como sem-


pre, logo se recusou a prosseguir. Voltou a seu mutismo, e
deixou de responder a Eleanor.
Ela tentou sacudi-lo, faz-lo falar. Avanou sobre sua
cadeira e segurou-o forte, como se quisesse fazer aquele fei-
xe de ossos, aquela massa inerte e glida reagir e lhe dizer
que aquilo era um pesadelo, que no estava acontecendo.
Mas o toque com o corpo esqueltico e emaciado dele a ate-
morizou. Sentiu que ele poderia desmaiar e teve medo de
agravar sua condio, teve medo de mat-lo.

147
Elean or Marx, filha de Ka rl

Largou-o, assustada, e voltou, aturdida, para seu est-


dio. L passou a tarde, trancada.
No abriu a porta sequer para a empregada, que, vrias
vezes, tentou lhe levar o ch e algo para comer.

S noite, depois que Gertrude mais uma vez insistiu


em lhe servir a ceia, que ela mais uma vez recusou, Eleanor
subiu a seu quarto e se aproximou da cama onde Edward
estava deitado. Ele acabara de tomar o caldo preparado pe-
la empregada.
Eleanor senta-se aos ps da cama e segue os movimen-
tos dele, que, com a indiferena costumeira, o mesmo alhea-
mento, passa devagar o guardanapo sobre os lbios.
Ela espera que ele lhe diga algo. Qualquer coisa. Que
ainda proponha uma sada, uma soluo qualquer ou um ar-
remedo, um arremedo de sada, um arremedo de soluo.
Qualquer coisa em que ela possa se segurar.
Mas sem olhar para ela, e com sua voz mais aptica,
mais destituda de qualquer trao de emoo, ele apenas lhe
diz que, na manh seguinte, ir a Londres.
"Sozinho, Eleanor."
Cus! Ela no esperava isso! Num impulso, ainda diz:
"No possvel; uma loucura em seu estado!"
Edward vira a cabea para o outro lado, no travesseiro,
e resmunga que est cansado e farto de discutir. No respon-
de ao que ela insiste em lhe dizer e finge dormir.
E logo dorme, de fato.

Ela, no.

148
Mmin Jos Silveim

4.

Eleanor no dorme nem finge dormr. Desce para seu


estdio. A noite est fria, est negra, e ela no acende nenhu-
ma luz. Olha pela janela e, l fora, contra a escurido, mal dis-
tingue os galhos das rvores nuas e desoladas de seu jardim.

Tussy pensa na deciso que deve tomar, agora que sabe


qual o mistrio de Edward e o que ele vai fazer em Lon-
dres. Mais uma vez ele a surpreendeu para pior.
Apesar de suas infidelidades constantes, o que a segura-
va era se considerar como sua "esposa", no sentido mais le-
gtimo, o da mulher a quem ele dedicava seus sentimentos
mais profundos e verdadeiros, e para quem sempre voltava.
Seu casamento, com todos os impasses, fora um desafio
s leis da moralidade burguesa, um bem-intencionado inves-
timento moral contra a hipocrisia vitoriana. Ela suportara
muito por essa crena.
Agora, tudo mudara. Sem que sequer suspeitasse, seu pr-
prio papel havia mudado. Passara a ser "a outra", a amante.
"Como deixei isso acontecer comigo? Como fui to
cega e tola? Como poderei me perdoar e entender?", ela
se pergunta.
Ali, no escuro do escuro, fora e dentro dela, Eleanor
procura uma resposta e uma maneira de se libertar do sofri-
mento e das mentiras.

Desde que comeara a se entender por gente, ela se


comprometera de corpo e alma com o movimento dos tra-
balhadores, e seus sentimentos e emoes estavam e sempre
estiveram nessa luta. Mas, naquele momento, est to dis-

149
Elermor Mmx, filhn de Knrl

tante de seus companheiros, to afastada de seus amigos! E


pior: sente-se decepcionada e impotente frente aos rumos
que o movimento est tomando, e no se julga capaz de se
contrapor a isso. Mesmo em relao ao legado do pai, os ma-
nuscritos, sua grande responsabilidade, sente-se to incapaz!
J no tem mais controle sobre eles.
Para qu; ento, continuar, se j no se cr nem capaz
nem necessria? Se j no pode estar altura do que espera-
vam dela o Mouro e o General?

Sente que o cansao penetrou de tal forma em seu cor-


po que seus ossos pesam.
Sua pele est seca, os cabelos speros, o corpo murcho.
Depois dos ltimos meses, cuidando de um doente to
difcil, est exaurida, em todos os sentidos. Acredita que
sua solido absoluta. No teve sequer coragem de enviar
suas cartas para Olive. Quanto a Freddy, ele tambm tem
seus problemas, seria injusto querer que ajude a solucionar
os dela . Tussy, que enquanto Engels era vivo jamais conhe-
ceu de fato a solido, agora a conhece. Sabe como ela . E
no a quer.
Seu peso maior do que ela pode suportar.
Seu corpo e sua alma pedem descanso. Querem mergu-
lhar no esquecimento definitivo, no sono duradouro, no fim.
A custica msica dos homens, para que continuai: a ou-
vi-la? A corda retesada da vida, por que no deix-la ir?

5.

31 de maro de 1898.
Uma rara manh de sol no final do inverno em Lon-

150
Mmia Jos Silveim

dres: os pequenos prdios, as casas, os jardins e campos bri-


lham sob o inusitado azul cristalino. O frio intenso deixa o
ar penetrante, viveiro de lascas afiadas.

Eleanor espera Edward acordar, se levantar e se vestir.


Dessa vez, no o ajuda.
Senta-se beira da cama, enquanto ele cala os sapatos,
e aguarda.
Edward fica ainda um tempo ali, com um sapato na
mo, olhando para o piso do quarto, corno se procurasse,
rnolernente, e sem interesse, alguma coisa que perdera.
Quando finalmente termina, se levanta e, ainda sem nada di-
zer, dirige-se porta. Um fio de voz sai da boca de Eleanor:
-No v.
Mas ele no responde, no se vira.
Abre a porta e sai.

6.

So dez horas e Eleanor chama Gertrude. Pede-lhe que


v at a casa do farmacutico do bairro, com urna nota que diz:
"Favor dar portadora clorofrmio e urna pequena
quantidade de cido prssico para cachorro. E. A."
Junto, ela coloca o carto de Edward.
Sua voz precisa, suas mos esto firmes. Seus olhos
no dizem nada.

s dez horas e quinze minutos, Gertrude volta e entre-


ga pauoa, que a espera na sala, o pequeno pacote que fora
buscar na farmcia, e tambm o Livro de Venenos, que deve
ser assinado pelo comprador.

151
Eleanor Ma rx, filh a de Karl

Eleanor coloca o livro no colo - no bem um livro,


mas um caderno grosso, de capa dura - e com mo firme e
muita calma assina suas iniciais completas, E . M. A.
Entrega o livro de volta para a empregada e lhe diz:
"Obrigada. Agora voc pode ir". Gertrude sai para devol-
ver o livro ao farmacutico, e um estranho silncio se ins-
tala na casa.
Com passos lentos, mas sem hesitao, Eleanor sobe
para seu quarto, onde escreve duas cartas de despedida.

Uma para Aveling.


"Querido, logo tudo estar terminado. Minha ltima
palavra para voc a mesma que lhe disse durante todos es-
ses longos, tristes anos - amor."

Outra para seu sobrinho, Jean Longuet.


"Meu querido, querido J ohnny,
Minha ltima palavra dirigida a voc. Tente ser digno
do seu av. Sua tia Tussy."

Tudo lhe parece quase cortante em sua nitidez. As coi-


sas claramente se encaixam em seus lugares, voltam a se
equilibrar.
Sua deciso est pronta, como um fruto madurssimo
que s colher.
Naquela manh, quando Edward lhe disse que, sim, iria
a Londres, ela soube que sua deciso estava tomada.
Ainda escutou sua prpria voz, num fio quase imper-
ceptvel e irreconhecvel, lhe dizer: "No v".
Mas ao dizer isso e escutar sua voz sem tom e sem vida,
j sabia que assim deveria ser. Em algum momento daquela
noite escura, ela decidira.

152
Maria Jos Silveira

E tudo lhe pareceu extrema, infinitamente tranqilo.


Nada mais adequado. Nada mais certo.
No mais se debater, no mais se desesperar.
Seu pai, sua rp.e, J ennychen, Lenchen, o General, sua
famlia. Todos mortos, menos Laura e Paul.
Por que ficar? Para que permanecer?
Naquela noite escura, depois de tantos dias de sofri-
mento, ela deixou de sofrer. Sem derramar sequer uma lgri-
ma a mais, encontrara a resposta simples, natural.
Perfeita.

Deixa as cartas sobre a mesa-de-cabeceira e se despe


devagar, como se fosse, agora sim, depois de tantas noites in-
sones, dormir. Descansar. Veste sua camisola branca e desfaz
o coque, sentindo com a mo o volume dos cabelos negros.
E de repente uma outra pessoa quem faz os seus ges-
tos de sempre, quem dobra as roupas que usava e as coloca
sobre a cadeira. J no ela, mas algum que dentro do seu
corpo faz todos os movimentos necessrios, lentos e preci-
sos. Quem, sentada na beira da cama de colcha branca, segu-
ra o pequeno frasco de cido prssico e, por um breve ins-
tante, olha e admira o lquido voltil, a poderosa mistura
capaz de conduzi-la ao branco do princpio e do nada.
A sua ser uma morte branca, como sempre quis, o que
mais pode desejar?
Tussy ergue a mo e leva o lquido boca. Um cheiro
acre de amndoas se espalha pelo ar.
muito fcil.

Muito mais fcil do que poderia imaginar.

153
Eleanor Marx, filha de Kai-1

7.
Quando Gertrude volta da farmcia e sobe ao quarto,
por volta das dez e quarenta e cinco, encontra Eleanor ago-
nizando na cama. O rosto azul, j quase sem respirar, em
contores e espasmos. E quase no mesmo instante, parali-
sia muscular e morte.
O cido prssico - conhecido como cianureto - ve-
neno de efeito terrvel e sujo, e por isso raramente usado. Sua
grande vantagem a rapidez; a morte sobrevm em segundos.
No quarto, resta o cheiro pesado de amndoas podres.
Aveling, que tomara o trem para Londres depois das
dez naquela manh, s regressa s cinco horas da tarde. A ca-
sa j estava cheia com os oficiais de polcia, o legista e mui-
tos amigos perplexos e consternados.

Eleanor tinha quarenta e trs anos.

154
/

EPILOGO

Uma imensa multido esteve presente no funeral de


Eleanor.
O corpo foi cremado e as cinzas, hoje, esto em Lon-
dres no mesmo tmulo de Marx, Jenny e Lenchen. Os arti-
gos que saram nos jornais de vrios pases ressaltaram sua
dedicao de vida inteira ao socialismo, os dons ext:raordin-
rios de oradora e lingista, a vasta cultura, a personalidade
amvel e calorosa.
Com a perplexidade causada pelo suicdio de pessoa to
querida e ativa, e o inqurito que se desenrolou nos dias se-
guintes, Aveling passou a ser considerado suspeito. Acusa-
es comearam a ser feitas, aqui e ali, de que ele teria sido
ou conivente com o suicdio ou mesmo o induzido. Alguns
chegaram inclusive a adotar a verso romanesca de um pac-
to de suicdio entre os dois, sem que Aveling jamais tivesse
qualquer inteno de cumprir o acordo.
Tal verso, no entanto, no se sustenta. Baseia-se no pe-
dido do veneno ter sido acompanhado pelo carto dele e as-
sinado com as iniciais E. A. (que eram as dela, quando s ve-

155
Elermo1 Marx, filha de Karl

zes assinava como Eleanor Aveling, e que eram tambm as


dele). Baseia-se tambm no carter de Aveling e em uma su-
posta declarao sua, que teria sido feita durante o inquri-
to, de que Eleanor muitas vezes havia pensado em suicdio e
inclusive proposto, ao enfrentar grandes crises, o suicdio
dos dois. De qualquer maneira, e embora tenha sido engen-
drada pelo repdio unnime a Aveling, essa suspeita, ainda
que sem nenhuma inteno, lana uma sombra que avilta
tambm a figura de Eleanor, transformando-a em vtima vil-
mente enganada no momento mais cruel de sua vida.
Isso, com certeza, no aconteceu.
Saber que Aveling se casara secretamente, depois de ter
vivido com ele todos aqueles anos em uma unio no legali-
zada, enfrentando os preconceitos da sociedade vitoriana e
muitas dificuldades, pode ter sido - e certamente foi - a
gota de gua em um momento de grande vulnerabilidade de
Eleanor. Mais do que a gota, o fundamental entender os
vrios componentes de sua fragilidade. As decepes com as
cises e rupturas do movimento, o sentimento de impotn-
cia, o afrouxamento - ainda que temporrio - de sua liga-
o com as pessoas de carne e osso a quem ela dedicara sua
vida e, sobretudo, o esgotamento fsico e emocional daque-
les meses, a solido em que, sem perceber, mergulhou, em-
bora fosse to querida.

Depois de sua morte, Edward Aveling quase imediata-


mente foi morar com a nova esposa, Eva Nelson. Tambm
quase imediatamente se desligou da SDF.
Com Laura e os filhos de Jenny, ele herdou uma parte
dos bens de Eleanor, ou seja, da herana de Engels.
Quatro meses depois, tambm estaria morto. O que
restou da herana de Engels passou para a esposa.

156
Mmia Jos Silveim

O cido comentano de Olive Schreiner, ao saber da


morte da grande amiga, foi: "Fico muito feliz em saber que
Eleanor est morta. uma beno ela ter conseguido esca-
par de Aveling".

157
ANEXOS

159
Como se cria um erro histrico

Entre os papis e manuscritos de Marx, havia duas car-


tas de Darwin. A primeira, datada de outubro de 1873, me-
ses depois da publicao da segunda edio alem d'O capi-
tal, dizia assim:

"Downe, Beckenham, Kent

Prezado Senhor,
Agradeo-lhe por ter-me honrado com a remessa de
sua grande obra sobre o capital e, de todo o corao, gosta-
ria de ser mais digno de receb-la, tendo uma compreenso
melhor do tema profundo e importante da economia polti-
ca. Conquanto nossos estudos tenham sido muito diferentes,
creio que ambos desejamos sinceramente a ampliao do sa-
ber e, a longo prazo, certo que isso contribuir para a feli-
cidade da humanidade.
Subscrevo-me, Prezado Senhor,
Atenciosamente,
Charles Darwin"

161
Eleanor M arx, filha de Karl

A outra carta, datada de 13 de outubro de 1880, tem um


teor bem diferente:

"Downe, Beckenham, Kent

Prezado Senhor,
Sou muito grato pela gentileza de sua carta e pelo ane-
xo. A publicao de seus comentrios sobre meus escritos,
sob qualquer forma, na verdade no precisa de consentimen-
to de minha parte, e seria ridculo eu consentir o que no re-
quer consentimento. Eu preferiria que a parte ou o volume
no fosse dedicado a mim (embora lhe agradea pela inten-
o dessa honra), pois isso implicaria, at certo ponto, minha
aprovao da publicao geral, sobre a qual no tenho ne-
nhum conhecimento. [... ]
Lamento recusar seu pedido, mas estou velho e tenho
po.uqussimas foras, e o exame de provas tipogrficas (como sei
por minha experincia atual) deixa-me extremamente fatigado.
Subscrevo-me, Prezado Senhor,
Atenciosamente,
C. Darwin"

Essa ligao entre dois dos pensadores mais revolucion-


rios e influentes do sculo XIX foi assunto tratado por todos
os seus bigrafos. Todos eles aceitaram a histria da dedicat-
ria rechaada pela segunda carta como fato, embora uma an-
lise mesmo superficial de seu teor deixasse muita coisa incom-
preensvel, sem contar que, em 1880, seria impossvel Marx
estar trabalhando na prova tipogrfica de alguma obra sua. Os
bigrafos, no entanto, optaram por passar por cima dessas in-
congruncias, s divergindo quanto a que obra Marx teria
pensado em dedicar a Darwin.

162
Mmia Jos Silv ei1a

Mas por que Marx teria procurado a aprovao e o inz-


prinzatur de Darwin?
Uma estudante da Universidade da Califrnia, Marga-
ret Fay, ficou intrigada com tudo isso. "Minha intuio in-
sistia em me levar a fazer incurses repetidas e errticas na
biblioteca de biologia, onde eu vagava de um lado para ou-
tro, consultando biografias de Darwin e interpretaes mar-
xistas de sua teoria da evoluo para ver se, afinal, havia al-
gum significado poltico na obra de Darwin que me
houvesse escapado."
Mas o que ela achou foi um pequeno livro, Darwin para
estudantes, escrito por, imaginem quem?, Edward Aveling. E
cuja data de publicao era, justamente, imaginem quando?,
1881.
A partir da, foi fcil confirmar que entre os papis-
desta vez de Darwin - havia uma carta de Aveling, datada
de 12 de outubro de 1880, anexando alguns captulos da-
quele seu pequeno livro e "solicitando o ilustre respaldo de
seu consentimento".
No restava dvida, portanto, de que a segunda carta de
Darwin, cujo tom nada tinha da admirao e respeito da pri-
meira, no fora destinada a Marx e sim a Aveling. E por que
essa carta estaria junto com as de Marx havia uma explicao
fcil: depois da morte de Engels, Eleanor ficou com os pa-
pis e cartas do pai, e Edward, em 1895, escreveu um artigo
comparando Marx e Darwin, no qual citava a carta de Dar-
win a Marx, de 18 7 3, e dizia que tambm ele havia se corres-
pondido com o cientista. Concludo o artigo, as duas cartas
foram para a mesma pasta de arquivo, dando incio, assim, a
uma pista falsa que, s agora, quase um sculo depois, est
sendo corrigida.

163
Eleanor M arx , filha de Kai-1

Toda essa histria est contada, com muito mais deta-


lhes, na biografia recente de Marx escrita por Francis
Wheen. E eu a conto aqui como introduo para levantar al-
gumas dvidas quanto a outra histria tambm pouco eluci-
dada - e muito rapidamente aceita: a do suposto filho bas-
tardo de Marx com Helen Demuth, a querida Lenchen de
todos eles.
Essa histria, a famosa "revelao" de que o filho de
Lenchen seria tambm filho de Marx, veio tona em uma
carta, descoberta em 1962 no arquivo marxista do Instituto
Internacional de Histria Social, em Amsterd, onde hoje
est a maior parte dos manuscritos de Marx e Engels. Ali,
uma equipe de estudiosos participa do grande projeto de re-
viso e cotejo dos manuscritos de ambos os autores, conhe-
cido como MEGA (sigla que, em alemo, significa Obras
Completas de Marx e Engels).
Escrita em 2 de setembro de 1898, e endereada a Au-
gust Bebel, a carta descreve o que teria sido a confisso fei-
ta por Engels no leito de morte, e depois confirmada por ele
a uma arrasada Eleanor, no de viva voz (pois o General j
no conseguia falar), mas escrevendo-a em uma lousa.
A autora da carta Louise Freyberger, ou Louise ex-
Kautsky, a mesma inimiga figadal de Eleanor, a mesma "in-
trigante e manipuladora" que infernizou os ltimos anos da
sua relao com Engels, a mesma figura que, como gover-
nanta do General nos ltimos anos de sua vida, tentou afas-
t-lo das filhas de Marx.
Desde ento, no entanto, quase todos os bigrafos acei-
tam essa carta sem contestaes. Salvo pouqussimas exce-
es, como o professor Terrel Carver, autor de uma biogra-
fia de Engels, que considera toda a carta uma falsificao,
assinalando que no arquivo de Amsterd encontra-se apenas

164
Mmin Jos Silv eha

uma cpia datilografada de um original que, se existiu, nun-


ca foi encontrado. Mas, fora ele, mesmo os pesquisadores
que, como Yvonne Kapp, bigrafa de Eleanor, mostram-se
cheios de reticncias e dvidas, acabam assumindo a histria
contada pela carta como verdica.
A criana, que nasceu na Rua Dean, foi entregue a uma
famlia de criao e cresceu em um bairro da periferia de
Londres. Recebeu o nome de Henry Frederick Demuth e,
embora Eleanor no tenha tido maiores contatos com ele
quando criana e adolescente, o Freddy que se tornou seu
grande amigo nos ltimos anos de sua vida.

As dvidas sobre a histria da suposta paternidade de


Marx, no entanto, so inmeras e as evidncias continuam
bastante precrias.
Alm da carta de Louise - cuja credibilidade deve ser, no
mnimo, posta em ressalva - , alguns bigrafos citam as refe-
rncias em cartas, tanto deJenny quanto de Marx, sobre a cri-
se domstica que eles teriam vivido em 1851 e sobre um nzyste-
re. Para qualquer pessoa, no entanto, deveria ser bvio que a
. crise domstica no miservel apartamento da Rua Dean no
precisava de ingredientes adicionais para ser terrvel: o peque-
no Guido morrera no ano anterior e J enny e Lenchen, patroa
e empregada, deram luz mais ou menos na mesma poc_a, nu-
ma situao de grande penria e insalubridade, no minsculo
apartamento de dois quartos e sala. J enny, ainda deprimida pe-
la morte do filho, via com horror sua pequena Franciska, re-
cm-nascida, tambm doente, vindo a falecer pouco depois.
O que mais seria preciso para compor uma gravssima
crise domstica?
E se bem possvel que o famoso nzystere se refira mes-
mo ao pai desconhecido do filho de Lenchen, por que deduzir

165
Elermor Mmx, filhn de Karl

que seria Marx? H vrios candidatos mais provveis: a casa


era freqentada por muita gente, desde exilados dos mais di-
versos calibres, passando pelo "secretrio" de Marx na po-
ca, o jovem Wilhelm Pieper, conhecido namorador das em-
pregadas do bairro, e chegando aos espies prussianos que
conseguiram se infiltrar na vida da famlia. Uma das mais
minuciosas descries que se tem do apartamento da Rua
Dean daquele tempo, citada por todos os bigrafos de Marx,
precisamente a que foi feita por um desses espies infiltra-
dos. Por outro lado, a Lenchen no faltavam pretendentes
- como est dito em cartas da poca, escritas por freqen-
tadores do apartamento da Rua Dean. O pai da criana po-
deria ser perfeitamente qualquer um deles.
Para piorar as coisas, alm da fraqueza das evidncias
aceitas como provas, h uma incrvel incongruncia no com-
portamento de todos os personagens envolvidos na histria.
Todos eles tm em relao ao caso uma atitude que no cor-
responde em absoluto ao perfil psicolgico de nenhum.
Jenny Marx, por exemplo. Ciumenta e apaixonada co-
mo era, de temperamento instvel e "mercurial" (como dis-
se vrias vezes Marx), jamais poderia ter continuado amiga e
companheira de vida inteira de quem a tivesse trado de tal
maneira. Que ela tenha no s mantido Lenchen em sua ca-
sa como empregada, mas que a tenha tratado sempre como
grande amiga e companheira, no faz sentido.
E Engels, ento, o que dizer de Engels? O segundo pai
da famlia Marx, cujos filhos ele considerava um compromis-
so de sua vida proteger - como poderia agir de maneira to
indiferente com quem seria o nico filho homem do grande
amigo? De temperamento afvel, afetuoso e bonacho, co-
mo poderia se recusar - como recusou - a conviver com
um filho da pessoa a quem tanto admirava? Como poderia

166
Mmia Jos Silveim

aceitar Lenchen como velha e querida amiga - fazendo-a


sua governanta nos ltimos sete anos de sua vida, e a confi-
dente com quem tomava cerveja, conversando noite adentro
- e se recusar a ver Freddy, quando a me o recebia na co-
zinha de sua casa, longe das vistas dele? Como poderia ter
tanto horror a um filho do grande amigo, cuja me ele tam-
bm admirava e considerava como da famlia? Por que no
deixou sequer uma pequena parte de sua herana para
Freddy, como deixou para as filhas e netos de Marx? Pensar
que ele agiu assim porque se sentia injustiado por ter sido
forado, dizem, a assumir a paternidade do menino no lugar
de Marx, no suficiente para explicar sua ojeriza ao rapaz.
Esse comportamento de Engels s faz algum sentido se, por
alguma circunstncia, ele tivesse motivos para abominar o
pai do menino, embora continuasse a ter a maior considera-
o por sua me.
E quanto a Eleanor, ela, que era tambm to afetiva, ca-
rinhosa e, no ltimo ano de sua vida, extremamente carente
de relaes familiares, por que no chamou Freddy de ir-
mo, nas suas ltimas cartas, to desesperadas? Por que o
queria como seu maior amigo mas no o assumiu como ir-
mo, pelo menos no de maneira pblica? Por que disse tex-
tualmente em uma das cartas que o procurava no lugar de
Lenchen, e no que o procurava como irmo? E por que no
lhe deixou parte de sua herana, sabendo que ele tinha gra-
ves problemas financeiros? No faz sentido.
Nada faz muito sentido nessa histria.
Muito menos que ela tenha sido aceita de maneira to
ampla e irrestrita, sendo respaldada apenas pelo que foi con-
tado em carta de uma pessoa que detestava a famlia Marx,
se afastou do Partido Socialista to logo Engels morreu, e
era conhecida por espalhar intrigas. Uma pessoa a quem

167
Elean o1 Ma 1x, filha de Karl

Eleanor, nos ltimos anos, no poupava os mais crus adjeti-


vos, nem a ela nem ao marido, referindo-se a eles como "par
monstruoso", "casal altamente inescrupuloso", "completos
cafajestes", "par de ladres" e "usurpadores", entre outros.
Embora, a rigor, o fato como tal no tenha importncia
nem para o extraordinrio legado de Marx nem para a vida
de Eleanor - que, considerando-o como irmo ou no, te-
ve Freddy como grande amigo e confidente no final de sua
vida - , esperemos que surja em algum momento uma pes-
quisadora como Margaret Fay que, curiosa e competente,
possa confirmar essa histria com provas confiveis ou des-
mascar-la de vez.

168
Pequena cronologia da famlia Marx

1818. Marx nasce em S de maio, em Triers.

1820. Engels nasce em 28 de novembro.

184 3. Casamento de Jenny e Marx (ele, com 2 S anos -


ela, 29).

1844. Nasce Jenny, a primeim filba, em Paris. Ano em que


tambm comea a amizade de vida inteira entre Ma1'X
e Engels.

1844 e 1845. Marx escreve A crtica filosofia do direito de


Hegel, Teses sobre Feuerbach e A sagrada famli.

1845. Nasce Laura, na Blgica, e Helen Demutb, aos 22


anos, comea a trabalbar com a famlia Marx.

1846. Nasce o terceiro filbo, Edgar, na Blgica.

169
1848. Marx escreve o Manifesto do Partido Comunista.

1849. A famlia muda para Londres e nasce o quarto filho,


Heinrich Guida, que morre em 1850.

1850. Engels assume o trabalho na empresa do pai.

1851. Nasce Freddy (Henry Frederick Denzuth), o filho de


Helen Demuth, e a quinta filha de Marx e Jenny,
Franciska.

18 52. A filha Franciscka morre, com pouco mais de. 1 ano.

185 5. Nasce Eleanor numa quinta-feira, 16 de janeiro (l'v1arx


estava chegando aos 37 anos e Jenny estava com 41).

1856. Morre Edgar, o nico filho homem, aos 8 anos, pouco


depois do nascimento de Eleanor.

1856. Outro filho natimorto de Jenny e Marx.

1867. publicada a primeira edio de O capital, em alemo.

1868. Casamento de Laura com Paul Lafargue.

1870. Engels vende sua participao na empresa da famlia e


se muda definitivamente para Londres, com a segunda
mulher, Lizzie Burns.

1871. Acontece a Comuna de Paris.

170
Mrn-in Jos Silveira

18 71 (por volta de). Eleanor conhece Lissagaray.

1872. Jennychen casa-se com Chm'les Longuet (tero anco


filhos - um morre ainda criana).

1873. Eleanor sai de casa para morar em Brighton, por cerca


de seis meses.

1881. Morre Jenny.

1883. Morre Jennychen em ;aneno, e Marx, no dia 14 de


maro.

1884. Eleanor vai morar com Edward Aveling.

1895. Morte de Engels em 5 de agosto.

1898. Suicdio de Elean01~

1911. Suicdio de Laura e Paul Lafarg;ue.

1929. Morte de Freddy (Frederik Demuth).

171
As fontes

A principal fonte da minha pesquisa foi a biografia am-


pla e abrangente de Eleanor escrita por Yvone Kapp (cerca
de 1.000 pginas em 2 volumes):
Eleanor Marx- Fanzily Life (1855-1883), volume 1 e
Eleanor Mm"x- The C1owded Years (1884-1898), volume 2,
Internacional Publishers Co., New York, 1972.
Alm disso, os artigos e cartas de e sobre Eleanor e as
biografias listadas abaixo:
Eleanor Mmx (1855- 1898): Life, Work, Contacts- Edi-
ted by John Stokes, Ashgate, 2000.
The Daughten ofKarl Marx (Fanzily correspondence 1866-
1898) - A Helen and Court Wollf Book, Harcourt Brace
Jovanovich, Nova York, 1982.
The Life of Eleanor Marx (18 55-18 9 8). A Socialist Tra-
gedy- Chushichi Tsuzuki. Oxford/Clarendon Press, 1967.
Marx - Isaiah Berlin. Thornton Butterworth, Lon-
dres, 1939.
Marx - David McLellan. McMillan Press, Londres,
1973.

173
E/eanoi IV!arx, filha de Karl

Karl Marx - Francis Wheen. Editora Record, Rio de


Janeiro/So Paulo, 2001.
Engels - Terrel Carver. Hill and Wang, Nova York,
1981.
The Life and Thought of Friedrich Engels, a Reinterpreta-
tion - ]. D. Hunley. Yale University Press, New Haven e
Londres, 1991.

174
Agradecimentos

Quero agradecer aos amigos que acompanharam com


valiosas sugestes as etapas deste projeto: Maria Lucia e Ma-
ria Luiza Torres, Alpio Freire, Virgnia e A. C. Scartezzini,
Amlcar Boucinhas, Peg Silveira, Malu Alves. Quero agrade-
cer tambm, muito especialmente, a Felipe, que, em uma
tarde de chuva na cinzenta Dean Street, onde nasceu Elea-
nor, concordou que sua histria merecia um romance.

175
Este livro usa a fonte tipogrfica J anson, que por muito tempo
julgou-se ter sido criada pelo holands Anton J anson em Leipzig, entre
os anos de 1668 e 1687. Posteriormente comprovou-se, contudo, que a
Janson foi trabalho do hngaro Nicholas Kis (1650-1702),
discpulo do holands Dirk Voskens. AJanson um ntido exemplo da
influncia que exerceu a tipografia holandesa em toda Europa antes do
surgimento dos designs do ingls William Caslon (1692-1766).

FOTOLITOS E LW'RESSO DA GEOGRFICA, EM PAPEL PLEN SOIT DE 80G.


PROJETO GRFICO DA INC.DESIG N.
PAGINAO DA AREA DESIGN.
EDITORA FRANCIS, PRIMAVERA DE 2002.

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