Eugénio de Andrade - Marcas Da Sua Poesia
Eugénio de Andrade - Marcas Da Sua Poesia
Eugénio de Andrade - Marcas Da Sua Poesia
Portuguesa,
Ministrio da Educao, Lisboa, 1991 (2a ed.), p. 109.
4 Andrade, Eugnio de. Op. cit., p. 280.
6 Saraiva, p. ex., fala de uma espcie de imagismo portugus. In: Op. cit., p. 1095.
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I. Em busca do princpio
Uma grande parte das composies do autor concebida como lembranas do
passado,
como se s este fosse capaz de dar sentido ao presente e de oferecer a
possibilidade de
redeno. O sujeito lrico procura palavras que evoquem a beleza dos momentos
fugazes
beleza igualmente ftua e difcil de ser captada: Porque a beleza, ou esta
entrega
a quem de sbito a descobre, ou se esconde, cruel, a quem faz da sua procura uma
perseguio de carniceiro. (A beleza, VO). Lutando contra o esquecimento, to
tpico
para o pas sem memria em que vive, tenta regressar ao incio: Voltemos pois
ao
princpio. E o princpio so meia dzia de palavras e uma paixo pelas coisas limpas
da
terra, inexoravelmente soberanas. (Soberania, VO).
O passado volta em pequenas histrias e cenas curtas, em imagens estticas de
objectos ou evocaes baseadas em apreenso sensorial cores, sons, aromas,
toques.
O poema tem o poder de recuperar o j vivido e de o tornar no aqui e agora.
Assim,
une as desconexas dimenses do tempo num momento imemorial de ser,
entregando
existncia uma valncia geral. At o passado perdido, intil como um trapo
(Adeus,
AD), em que as palavras e o sentimento foram gastos, deixa no poema algum
sentido que
perdura. A palavra, lugar de esquecimento (XXXVIII, BB), representa um espao
que
resiste morte. Como observa scar Lopes, a atemporalidade que irradia dos
versos do
poeta criada tambm pelo uso especial do pretrito imperfeito do indicativo
tempo
que designa, principalmente, a durao de um acto passado. Este tempo desliga-se,
em
Eugnio, de qualquer coordenada temporal extrnseca razo pela qual o crtico o
chama de pretrito imperfeito absoluto.7
Fundamental sobretudo a evocao da infncia e juventude tempo em que
viver era crescer com uma flor entre os dentes, / aprender a respirar com o
perigo //
de a pele estalar num claro a cada passo. (VIII, BB). A memria deste perodo ,
frequentemente, associada figura da me com a qual o poeta tinha uma forte
relao;
a sua presena perpassa, por exemplo, todo o livro Corao do Dia. A imagem da
me
aparece sempre num espao atemporal, semelhana dos versos que falam das
Mes em
geral: Elas so as Mes, essas mulheres que Goethe pensa estarem fora do tempo
e do
espao, anteriores ao Cu e ao Inferno () Elas so as Mes, ignorantes da morte
mas
certas da sua ressurreio. (As mes, VO).
As lembranas do passado so lembranas da paisagem meridional, do claro cu
do Vero, das casas brancas debruadas de azul, dos primeiros toques de amor;
voltam
em imagens nas quais os elementos de natureza criam uma atmosfera tanto da paz
do
lar (fogo, rvore, sombra) quanto do espao aberto associado ao voo e
liberdade.
O valor simblico, a este respeito, recebem os motivos do mar / rio, vento / ar /
nuvem, ou
a recorrente imagem do pssaro: bom / ser assim de ningum / nos ramos altos,
irmo
/ do canto isento de alguma ave / de passagem. (VII, BB). No poema Walt
Whitman
e os pssaros (MR), o canto e o voo do pssaro so associados tambm poesia:
Ento,
evocando antiqussimas metforas do canto, peguei no livro venerando que tinha
na mo
e, de estrofe em estrofe, fui abrindo as represas s guas do ser, como quem se
prepara
para voar. No Poema me, este motivo aparece como metfora para a
libertao
7 Lopes, scar. Op. cit., p. 30.
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dos laos maternais: No me esqueci de nada, me. / Guardo a tua voz dentro de
mim. /
E deixo-te as rosas. // Boa noite. Eu vou com as aves. (AD).
O vaivm entre a terra e o cu, que parece simbolizar a tentativa de eliminar a
contradio
entre o regresso s razes e o desejo de emancipao, est patente em vrios
poemas:
Suportas mal o ar, dividido / entre a fidelidade que deves // terra de tua me e
ao quase
branco / azul onde a ave se perde. (IV, BB). No ver de scar Lopes, a polaridade
entre
os espaos fechado e aberto , com frequncia, representada pelas imagens da
casa e do
barco: O espao potico de Eugnio de Andrade um espao cheio e como que
sagrado;
o seu smbolo est na casa, a casa arquetpica em volta do fogo, com colunas ou
aberturas
para os deuses de cima; ou, mais do que a casa, est no barco, espcie de casa
mvel,
a cuja estabilidade, apenas relativa, se comunica a fora viva do vento, na
perspectiva de
um mar ilimitado.8
O motivo do regresso ao incio perpassa, de facto, toda a obra do autor. Apesar de
ser inseparvel da nostalgia e da conscincia do carcter irreversvel do tempo,
exprime
a nsia por no perder a espontaneidade natural e a capacidade de sentir alegria
perante
as coisas mais simples: Esse olhar mozartiano sobre as coisas sempre foi o teu;
at
quando te perdes em nevoeiros regressas com uma flor azul semelhante a essas da
nossa
infncia. (Conto de Inverno, VO).
II. Apelo da luz
A poesia de Eugnio de Andrade parte da oscilao entre dois plos semnticos.
O primeiro pode ser caracterizado como a nota solar (ver, por exemplo, o volume
Matria Solar); manifesta-se como a celebrao da luz que simboliza a vida, energia
ou
alma essa parte mais difana e impondervel do ser, e a que, se no lhe
chamarmos luz
tambm, nunca saberemos que nome dar. (Entre o primeiro e o ltimo
crepsculo, VO).
Esta tonalidade entrecruza-se com a linha oposta que gira ao redor das imagens da
sombra,
noite e destruio (ver, por exemplo, o livro O Peso da Sombra) e que,
frequentemente,
aparece em relao morte da me ou, em colectneas posteriores, aos motivos da
velhice
e solido.
Para a sua potica tpica a tradicional comparao das fases da vida humana s
estaes
do ano, porm, numa forma prpria: a vida humana captada atravs das
mudanas da
intensidade da luz. A luz do dia, o brilho do sol e as expresses semanticamente
prximas
(ardor, claridade, alvor, lume, fogo, etc.) relacionam-se, assim, s lembranas da
infncia
e da me: A luz tudo o que trago comigo, porque tambm eu tenho medo do
escuro.
(Infncia, VO); Olhas-me ainda, no sei se morta: () s lembrada / que fomos
jovens e formosos / alados e frescos e diurnos. (Corao do dia, BB). ,
sobretudo,
o recorrente motivo da Primavera, perodo de regenerao, esperana e nova
energia, que
atrai o interesse do poeta: Escuto o silncio: em abril / os dias so / frgeis,
impacientes
e amargos; / os passos / midos dos teus dezasseis anos / perdem-se nas ruas/
Um
s rumor de sangue / jovem: / dezasseis luas altas, / selvagens, inocentes e alegres,
/
ferozmente enternecidas (Escuto o silncio, OR); Que cheiro doce e fresco, /
por
entre a chuva, / me traz o sol, / me traz o rosto, / entre maro e abril, / o rosto que
8 Idem, ibidem, p. 25.
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foi meu, / o nico / que foi afago e festa e primavera? (Entre maro e abril, CD).
Por outro lado, o processo de envelhecer , quando j est obstrudo o caminho da
transparncia, simbolizado pelo decrscimo outonal da energia solar e pela
chegada
das nvoas invernais: Para a brancura das aves j tarde, () // Por um rasgo do
cu uma luz baa / escapa-se ferida, / mal ilumina a mo vacilante, / pelo cho
entorna
o mel. (XXXVIII, BB). Setembro, ms de venenosas claridades (Vastos campos,
MOR), prenuncia o frio do Outono e o fim da vida: um corpo // comea a morrer
mal
acaba o vero (XLIII, BB). A falta da luz na velhice compensa-se, assim, justamente
pela volta ao princpio iluminado pelo sol: Quanto mais envelheo mais pueril a
luz /
mas essa vai comigo. (Cavatina, VA).
No que se refere ao motivo da noite, ela aparece como uma parte integrante dos
ritmos
naturais, como um espao de descanso no silncio, de repouso necessrio depois
do viver
intensivo, pois ningum pode suportar de olhos abertos / o peso do mundo
(XLVIII,
BB). No ver de scar Lopes, a noite em Eugnio tem algo de me e de morte, algo
de uma nossa apetncia de reconciliao e entrega 9. interessante com que
frequncia
a noite associada ao elemento da gua: enquanto crescem dentes / noite
solitria /
vem a msica do sono / na gua. (Os resduos, VA); So muito vastas as noites
de
insnia, quase sempre atravessadas por um rio. (Memria doutro rio, MR).
Sobretudo
na infncia, a noite, que canta o xtase do dia (Nocturno de Fo, OR), est
carregada
da esperana da luz do dia: Quando a noite cai j estou de volta, o olhar
atravessado por
rpidos fulgores. (Infncia, VO).
De um modo semelhante concebida tambm a morte. omnipresente e
irrevogvel:
Porque chegaria um momento, disso no tinha a menor dvida, em que o deserto
da
noite e o silncio do corpo formariam uma substncia nica, para sempre
inseparvel
do ardor do orvalho, subindo matinal os ltimos degraus. (Do fundo do corpo,
VO).
Aparece como um desenlace natural da vida, momento em que o homem se
encontra com
a essncia da sua existncia: s na morte no somos estrangeiros. (XLIX, BB).
Porm,
a morte tem raramente conotaes romnticas de refgio, espao de descanso ou
escape.
Quanto mais envelhece, tanto mais o homem tenta afastar a morte de si ao
contrrio dos
jovens: () a beleza dos jovens que se amam melanclica. Eles no sabem ainda
que o
desejo de morte o mais perverso (Ainda sobre a pureza, VO). A morte como
tal vai
contra a vida, sendo um hspede no desejado e mal vindo: Com os mortos s
poderemos
ter delicadeza, mas o caminho por onde seguem -nos hostil desde o primeiro
passo.
(Sentados no silncio, VO).
Embora as duas posies, a luz e a sombra, apaream mais ou menos equilibradas,
dos
poemas do autor irradia, em ltima instncia, a afirmao da vida, a tentativa de
ultrapassar
tudo relacionado com a destruio. O negativo, no fundo, condiciona e prova a
existncia
do positivo: a escurido da noite antecipa o amanhecer, o frio do Inverno promete
os dias
do Vero, o silncio da solido pode inspirar a criao do poema. A poesia de
Eugnio
representa uma homenagem luz, claridade, pureza; area, lmpida,
transparente. Lembra
a ascenso de caro ao sol, exprime o esforo de viver plenamente, ardendo,
iluminando:
Viver de mos acesas no fcil, / viver iluminar // de luz rasante a espessura do
corpo,
/ a cegueira do muro. (XVIII, BB). consciente do perigo de queda que esta
intensidade
9 Idem, ibidem, p. 90.
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leva consigo: Que pode um homem esperar quando / to puerilmente / se expe
assim
ao sol em carne viva? (XIV, BB). Porm, exprime a esperana de que a morte
chegue no
prprio xtase: Pensei: devamos morrer assim. / Assim: explodir no ar. (Sul,
NT).
A sua poesia parte da escassez mas dirige-se plenitude. Embora muitas vezes a
sua fonte
seja a dor e a solido, sentimos nela a preferncia do sim a no. scar Lopes
observa:
ocorre-me que os descobridores dos mundos so sempre os maiores campees da
alegria,
sobretudo quando feita da dor mais autntica. 10 Segundo o crtico, a obra de
Eugnio de
Andrade ocupa um lugar excepcional no contexto da tradio potica nacional que
tende
mais para a desiluso, melancolia e saudade: Eu gosto desta poesia como caso
nico, na
nossa lrica portuguesa de frustraes vista11.
III. Poesia dos sentidos
Eugnio de Andrade um poeta da realidade palpvel, dos ritmos da natureza. Os
seus versos cantam a beleza do quotidiano, celebram o milagre do dia, das coisas
mais
simples da terra, pois s elas abrem as portas aos sortilgios, e os sortilgios so
diurnos, mesmo quando invocam a noite (Soberania, VO): Os ciclmens h
muito
que esto em flor, embora ningum tenha ainda ouvido cantar o cuco. Quando
demoro
os olhos naquelas ptalas, prestes a voar, penso que mereciam ser postas num
poema.
(Arioso, VO);O terrao da casa era o prodgio, / nele passava o vento. (VIII, BB).
A aparentemente limitada vivncia que os poemas do autor transmitem , de facto,
a experincia do essencial, do universalmente humano.
J a partir do seu primeiro livro que chamou a ateno da crtica, As Mos e os
Frutos
(1948), evidente o esforo de buscar o espao mtico, ednico, no aqui e agora:
no
tanto a mgoa, mais ou menos agridoce, de um paraso perdido, como a certeza de
um
paraso recuperado medida humana, sobre a terra.12 Da sua lrica irradia, por um
lado,
o desejo de uma existncia plena e autntica, por outro, a plena aceitao daquilo
que
a realidade oferece. scar Lopes a este respeito diz: H em Eugnio de Andrade
uma
sabedoria ainda de algum modo horaciana, uma trgua, por vezes, de urea
mediania
contente com as coisas13 Acrescenta, porm, que no se trata de uma
indiferena estica
perante as adversidades e a efemeridade da vida que leve conformao com o
destino:
o tnus de esperanas excede o da sapincia clssica da vida breve com a morte
vista.14
A vida recebe em Eugnio um valor fundamental, sendo percebida com uma
intensidade
insacivel.
A sua viso do mundo puramente sensual. Nos poemas aparecem percepes de
todos os cinco sentidos: olfcticas o cheiro a caf fresco, misturado com o cheiro
das
violetas (Praa da Alegria, VO), o cheiro das frsias que trazem a lembrana da
me
(Entre maro e abril, CD), o cheiro a linho branco, a po na mesa (III, BB), o cheiro
acidulado e bom do corpo, depois do amor (XX, BB), etc.; gustativas o gosto a
sangue
10 Idem, ibidem, p. 11.
11 Idem, ibidem, p. 25.
12 Idem, ibidem, p. 18.
13 Idem, ibidem, pp. 1920.
14 Idem, ibidem, p. 20.
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que trazia a primavera (XVIII, BB), o gosto da chuva (XI, BB), o sabor a sul dos
limes
(XL, BB), etc.; auditivas a msica da infncia (Velha msica, VO), a msica de
que
nasce novo corpo (Apenas um corpo, AA), a msica do interior (IV, BB), o canto
das
crianas (Direi o nome, VA), o canto de uma ave de passagem (VII, BB), etc.
A presena mais forte, porm, tm as sensaes visuais e tcteis, entre as quais h
uma
relao estreita: os olhos, instrumentos felizes da realidade mais real. Porque ver
sempre
foi tocar. Tocar uma a uma cada coisa com os olhos, antes da mo se aproximar
para
recolher os ltimos brilhos de setembro. (Com os olhos, VO). As imagens visuais
so
a mido baseadas na evocao das cores. No espectro cromtico distinguem-se,
novamente,
dois plos: o branco a cor do dia, da luz e pureza, e o preto a cor da noite,
sombra
e tristeza. A cor branca evidentemente domina (ver, por exemplo, o ttulo do livro
Branco
no Branco). associada lembrana da infncia e da me (A casa branca,
branca de
cal (que de todos os brancos o nico que branco), Casa no sol, VO; No
mais
fundo de ti, / eu sei que tra, me. /Tudo porque perdi as rosas brancas / que
apertava
junto ao corao / no retrato da moldura., Poema me, AD), ao amor (O
sangue
matinal das framboesas / escolhe a brancura do linho para amar., Natureza-morta
com
frutos, OR), ou ao espao aberto e liberdade (o quase branco / azul onde a
ave se
perde, IV, BB). Das outras cores surge, frequentemente, o azul, por ser beira-
mar
a cor da alegria (Casa no sol, VO): azul que se destina a transformar o que em
ns
apetncia de morte no mais limpo e matinal voo de cotovia (Cotovia, VO), azul
da
flor semelhante a essas da nossa infncia (Conto de inverno, VO), azul riscado
de
pssaros (Terreiro de S. Vicente, VO). Tambm aparece o verde, a cor dos
parasos
(As palavras, CD), das plantas, da gua, ou dos olhos que se parecem a peixes
(Adeus,
AD).
Como um objecto por excelncia para ser tocado surge o corpo humano; a sua
realidade
material, o movimento, a beleza constituem uma fonte de fascinao para o sujeito
lrico:
ombros, peitos, coxas, ndegas, falos. / Despertos, puros no seu pulsar a os tens:
esplendorosos, / duros. (XXVII, BB). Concentra-se no peito do qual parte a
respirao
e o bater do corao: S ento ganhavam relevo aquelas pancadas vindas do
fundo
do seu corpo. (Do fundo do corpo, VO); Respira. Um corpo horizontal, / tangvel,
respira. (Apenas um corpo, AA). Interessa-se pelas mos e pelos dedos, capazes
de
tocar outro corpo: inacabada msica / liberta dos dedos (XXVII, BB); As mos
seguem a inclinao / do peito e tremem, pesadas de desejo. (Apenas um corpo,
AA).
Como sugere a composio In memoriam (VO), a corporalidade parece
representar
quase uma concepo de criao do poeta:
O Schubert () era fabuloso: cantava com o corpo todo. Assim devia ser o poeta, pensava eu s vezes,
farto de tanto discurso onde apenas o esprito assomava. Mas entre homens e pssaros h, pelo menos,
esta diferena: um pssaro quando canta desce vertiginosamente raiz; o homem esse muito raro que
o ardor das vogais lhe queime a cintura.
Em alguns poemas somos testemunhas de uma espcie de epifania, de deificao
do corpo. Como se os deuses antigos desaparecessem do mundo moderno, mas no
por
completo: tornaram-se parte do simples corpo humano: Um corpo nu, divino, /
respira,
ondula, infatigvel. // Amorosamente toco o que resta dos deuses. (Apenas um
corpo,
AA).
O corpo aparece quase sempre sensual, sendo o objecto de desejo, a fonte de uma
nova
vida: Aguarda um relmpago, / um raio de sol, / outro corpo. // Se encosto o ouvido
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sua nudez, / uma msica sobe, / ergue-se do sangue, / prolonga outra msica. //
Um
novo corpo nasce, / nasce dessa msica que no cessa, / desse bosque rumoroso
de luz,
/ debaixo do meu corpo desvelado. (Apenas um corpo, AA). Evidente a relao
do
corpo com a gua, tradicionalmente associada energia ertica e fertilidade:
Quem no
sabe que tambm os corpos podem ser conjuno de guas felizes? (Memria
doutro
rio, MR). A nsia pelo regresso ao princpio representa, no fundo, o desejo de voltar
ao
corpo: Regressar ao corpo, entrar nele / sem receio da insurreio da carne.
(XXVII,
BB). Dos poemas de Eugnio emana uma concepo pr-crist do corpo, desprovida
das
conotaes do pecado; o corpo nunca pecaminoso e o prazer no tem
forosamente
que ver com a culpa. (Memria doutro rio, MR). Outro corpo constitui um espao
no qual possvel combater a morte: Uma boca imortal sobre outra boca
(XXVII, BB). No meio da celebrao pag da natureza, do homem e da vida, como se
desaparecesse o dualismo tradicional corpo alma, formando o espiritual e o fsico
uma
unio inseparvel.
A poesia de Eugnio de Andrade est longe de ser uma reflexo abstracta. O sujeito
lrico no confia em grandes ideias e teorias, partindo de um conhecimento
imediato da
realidade. No coloca perguntas nem oferece respostas explcitas, no se arroga o
direito
de dizer qual o sentido de vida. Elucidativo, a este respeito, o poema em prosa
Do
outro lado (MR):
Tambm eu j me sentei algumas vezes s portas do crepsculo, mas quero dizer-te que o meu
comrcio
no o da alma, h igrejas de sobra e ningum te impede de entrar. Morre se quiseres por um deus ou
pela ptria, isso contigo: pode at acontecer que morras por qualquer coisa que te pertena, pois
sempre ptria e deuses foram propriedade apenas de alguns, mas no me peas a mim, que s conheo
os caminhos da sede, que te mostre a direco das nascentes.
Uma atitude especfica manifesta-a tambm perante Deus. No poema Glosa (VO),
por exemplo, a graa de Deus equiparada graa da poesia. No texto a seguir,
Deus
chamado de uma hiptese de trabalho:
No largo da igreja as pombas procuram com afinco, entre as lajes, os olhos de deus. () quanto s
pombas, como deus no passa de uma hiptese de trabalho, o mais certo que tenham de contentar-se
com a trampa de algum verme. Est enganado, dizem-me imediatamente sobre o ombro, at mesmo
no mais nfimo gro de poesia se encontrar a presena de deus. Se assim for, no h sada: as pobres,
por mais que biquem entre as pedras, esto condenadas ao infindvel vazio do seu olhar. (Hiptese
de trabalho, VO).
IV. Minimalismo de expresso
A relativamente extensa obra de Eugnio de Andrade caracteriza-se por uma
excepcional compactidade e continuidade. Embora os livros individuais tal como
poemas
concretos difiram no seu tom e no emprego do material lingustico, tm em comum
um
repertrio reduzido de temas e motivos. scar Lopes fala, em relao
nomeadamente aos
ltimos livros do autor, numa poesia do limite, () feita de um mnimo de
recursos.15
Chama tambm ateno alta recorrncia e selectividade dos seus meios de
expresso
(sendo estas as condies bsicas do ritmo), comparando a obra andradiana
msica.16.
15 Idem, ibidem, p. 62.
16 Ver o ensaio Uma Espcie de Msica. In: Lopes, scar. Op. cit., p. 63163.
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A potica do autor baseia-se na escolha cuidadosa das palavras e na sua ligao
inusitada que rompe com os habituais esquemas mentais. scar Lopes observa que
neste
processo ocorre no apenas uma transferncia de sentido, mas tambm a sua
recuperao.
Ele diz, em relao ao recorrente motivo do mar: No se trata de qualquer
transferncia
referencial, mas, pelo contrrio, de uma concentrao do sentido, diremos at que
de
referncia, visto que o mar continua a ser mar, at mais mar do que antes. 17
Ainda que
a repetio de elementos temticos seja acompanhada de uma ampliao de carga
afectiva
e sugestiva das palavras, tem assim, como consequncia, no uma disperso
semntica,
mas, ao contrrio, a sua condensao. Trata-se de uma poesia objectiva, podemos
dizer at
materialista ou anti-metafsica, na qual as coisas guardam o seu significado
imanente,
tornando-se ainda mais elas prprias.
Em algumas composies, o tema central torna-se a prpria criao potica (ver,
por
exemplo, As palavras, CD; In memoriam, VO, etc.). Dos versos irradia antipatia
perante a inflao verbal e a escrita ornamentada. Em Pedras (VO), a criao do
poeta
equiparada actividade do pedreiro os dois trabalham com um material
parecido e com
objectivos semelhantes:
Era pedreiro, como eu haver nome mais certo para o meu ofcio? () As minhas [palavras], tm
s vezes a brancura lisa dos seixos, mas outras, a noite parecia ter nelas encontrado refgio. So as
mais secretas, com elas poderia fazer-se uma coroa de relmpagos. No entanto, eu prefiro aquelas
com que se disfara a ternura, tenuemente veladas pela luz do crepsculo, com raros brilhos casuais.
Exactamente o que o velho pedia pedra.
As palavras, desamparadas, inocentes, leves, tm uma fora enorme;
transformamse,
conseguem ser simultaneamente muitas coisas: So como um cristal, / as
palavras.
/ Algumas, um punhal, / um incndio. / Outras, / orvalho apenas. // () Tecidas so
de
luz / e so a noite. Guardam um mistrio que chama para ser descoberto:
Secretas vm,
cheias de memria. // () E mesmo plidas / verdes parasos lembram ainda. //
Quem
as escuta? Quem / as recolhe, assim, / cruis, desfeitas, / nas suas conchas puras?
(As
palavras, CD).
Embora a obra do autor nunca tivesse tendncia verbosidade, ao longo dos anos
torna-se ainda mais concisa, essencial e concreta, rejeitando qualquer redundncia.
Este
minimalismo verbal, baseado na intensiva explorao das possibilidades
combinatrias
dentro de umas certas reas semnticas, aparece, assim, como um dos traos
bsicos da
poesia andradiana.
V. Nas malhas da metamorfose
O jogo com a identidade dos fenmenos e a procura dos elos escondidos entre eles
frequentemente recebe, na obra de Eugnio, a aspecto de metamorfose processo
de
mudana de forma, estado ou essncia. Em palavras de Lopes, a linhagem deste
poeta
ascende, no h dvida, at mais antiga poesia mtica das metamorfoses
elementais.18
17 Idem, ibidem, p. 10.
18 Idem, ibidem, p. 31.
30
A sua mundividncia como se partisse da ideia de Herclito que tudo muda e se
transforma,
nada se encontra estvel: V como o vero / subitamente / se faz gua no teu
peito, /
e a noite se faz barco, / e minha mo marinheiro. (Arte de navegar, OD). Isso
tambm
testemunhado pela repetio dos motivos de transio de uma etapa em outra, de
perodos
que significam simultaneamente o incio e o fim. Como exemplo destes
entretempos
podem ser vistos os motivos j mencionados da Primavera e do Outono. A
metamorfose
manifesta-se tambm sob uma forma peculiar nos versos que se aproveitam da
conjuno
ou: e tudo comea a ser ave / ou lbios, e quer voar; um rumor de plpebras / ou
ptalas; um rumor de sementes, / de cabelos / ou ervas acabadas de cortar.
(Escuto
o silncio, OR); Um corpo apenas, barco ou rosa, / rumoroso de abelhas ou de
espuma.
// Entre lbios e lbios no sabia / se cantava ou nevava ou ardia. (Eros
Thanatos,
OR). Devido a esta unio livre de vocbulos de significados at contrrios, no no
sentido
disjuntivo mas coordenado, surge todo um caleidoscpio de variaes semnticas.
Cada poema como se fosse, no fundo, uma pequena metamorfose, na qual se
combinam
as imagens recorrentes ao longo da obra do autor. Ocorre sobretudo a interligao
de
quatro elementos primordiais, eventualmente de conceitos semanticamente
prximos:
terra (pedra, planta, fruto), gua (rio, peixe, barco), ar (cu, pssaro, vento),
fogo
(calor, sol, raio). Os elementos slidos, lquidos, gasosos e luminosos entram num
jogo
que leva diluio das fronteiras rgidas entre eles. Presentes, em vrias formas,
esto
todos os quatro elementos; porm, com a maior frequncia parecem ocorrer os
motivos
da gua e da terra.
A importncia do elemento da gua testemunhada j pelo facto de ele ter
penetrado
no ttulo de trs livros do autor: Mar de Setembro, Vspera da gua e Memria
Doutro
Rio. A imagem plurissignificativa da gua associa-se, comummente, vida,
natureza
e regenerao, ao amor: J gastmos as palavras. / Quando agora digo: meu amor,
/
j se no passa absolutamente nada. () Dentro de ti /no h nada que me pea
gua.
(Deus, AD). Nos poemas de Eugnio, a gua penetra igualmente nas lembranas
da
juventude e da terra natal: um lugar ao sul, um lugar onde / a cal / amotinada
desafia
o olhar. / Onde viveste. Onde s vezes no sono / vives ainda. O nome prenhe de
gua /
escorre-te da boca. (II, BB); Quando no chove, confusamente dispo-me atrs dos
amieiros e abandono-me corrente. Sigo para o sul, que para onde correm todos
os
rios, pelo menos os meus. (Memria doutro rio, MR).
Como um motivo importante, inseparvel da realidade portuguesa e
tradicionalmente
presente na lrica nacional, surge o mar. Em Eugnio tambm o mar aparece
inseparvel das
lembranas mais recentes, ligadas me, alegria e felicidade: O mar. O mar
novamente
minha porta. / Vi-o pela primeira vez nos olhos / de minha me, onda aps onda /
perfeito e calmo (XXIV, BB). Por caminhos de cabras descias // praia, o mar
batia
// naquelas pedras, nestas slabas. () Era a perfeio. (II, BB). Figura nos
momentos
de experincia ertica: Do teu peito avista-se o mar / caindo a prumo: / morre-se
em
agosto na tua boca: / com as aves. (XXI, BB); deita-te comigo, / trago-te do mar
/ a crespa luz da espuma / nos flancos este ardor retido. (XXVI, BB). A sua imagem
volta com intensidade na velhice, como a voz dos lugares de origem, como a
chamada
ao descanso final: Este mar, que de to longe me chama, / que levou na ressaca,
alm
dos meus navios? (XXIV, BB); Detrs dessa parede ouve-se o mar. / novembro,
novembro, v-se / bem o seu rasto em cada slaba. // Um homem e um co
surgem no
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horizonte. / Caminham no fim do dia, / caminham para o mar. / Detrs dessa
parede. //
Vem de to longe esta agonia, e sempre / o mar detrs. (XLIV, BB).
A terra, outro elemento fulcral, associada ao lar, campo, regio de origem.
Simultaneamente, liga-se a uma srie de motivos: casas brancas, animais, plantas,
frutos
Interessante , por exemplo, a imagem da rvore que gera conotaes, sobretudo
na fase
posterior, do descanso final: rvore, rvore. Um dia serei rvore. / () subirei ao
cu, /
s rvores so consentidas coisas assim. (XVI, BB); Um dia destes vou-me
estender /
debaixo da figueira, aquela // que vi exasperada e s, h muitos anos: / perteno
mesma
raa. (L, BB). Ao contrrio, os frutos das rvores so carregados da sensualidade,
da
energia vital e ertica: Sobre a mesa a fruta arde: peras, / laranjas, mas
pressentem /
a ntima brancura / dos dentes, o desejo represado. (XXVI, BB).
E por a fora As reticncias apresentam-se como a melhor e, de facto, tambm
a nica maneira de concluir um texto sobre a poesia de Eugnio de Andrade. Pois
a impresso de simplicidade que ela cria no leitor, devido ao seu estilo conciso e
recorrncia
de elementos temticos, apenas aparente. justamente a alta economia de
recursos expressivos, acompanhada da intensiva concentrao semntica, que
geram um
vasto campo de variaes interpretativas e colocam os leitores perante grandes
exigncias.
Nisso, porm, reside a principal fora da obra andradiana que, incontestavelmente,
vai
ficar no contexto da poesia portuguesa como uma das vozes mais autnticas da
segunda
metade do sculo XX.
Lista de abreviaturas:
VO Vertentes do Olhar
AD Os Amantes sem Dinheiro
BB Branco no Branco
MR Memria Doutro Rio
OR Ostinato Rigore
CD Corao do Dia
VA Vspera da gua
OD Obscuro Domnio
NT Outro Nome da Terra
AA At Amanh