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Álvaro de Campos - "O Filho Indisciplinado Da Sensação"

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LVARO DE CAMPOS - O FILHO INDISCIPLINADO DA SENSAO

A partir da carta a Adolfo Casais Monteiro, mas tambm de outros textos deixados por Fernando Pessoa, podemos construir a biografia do heternimo lvaro de Campos que ter nascido em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890. Fez o liceu em Lisboa e partiu depois para Glasgow, na Esccia, onde frequentou o curso de Engenharia Naval. Em Dezembro de 1913, fez uma viagem de barco ao Oriente durante a qual ter comeado a escrever poesia. No regresso, desembarcou em Marselha, prosseguindo por terra a viagem para Portugal. Instalado em Lisboa, foi nesta cidade que passou a viver sem exercer qualquer actividade para alm da escrita. Pessoa descreve-o como alto, elegante, de cabelo preto e liso, com risca ao lado, usando monculo e com um tipo vagamente de judeu portugus. Foi na revista Orpheu, em 1915, que Fernando Pessoa publicou os primeiros poemas em nome de lvaro de Campos: Opirio, que teria sido escrito no Canal do Suez durante a viagem ao Oriente e a Ode Triunfal, escrita em Londres. No nmero 2 da mesma revista, publicou a Ode Martima e em 1917 publicou o Ultimatum, no Portugal Futurista, revista imediatamente apreendida pela policia. Vive e trabalha durante alguns anos na Inglaterra, regressando de vez em quando a Portugal. Dois desses regressos esto patentes nos poemas Lisbon revisited 1923 e Lisbon revisited 1926. Fixa-se definitivamente em Lisboa e vai publicando poemas em revistas literrias. Sendo o heternimo pessoano que o poeta mais publicou, lvaro de Campos tambm aquele que apresenta uma evoluo mais ntida, podendo na sua obra distinguir-se trs fases. Assim, os seus primeiros poemas, escritos durante a viagem ao Oriente, aproximam-se de outros poetas da viragem do sculo, os decadentistas; mas o seu verdadeiro gnio vanguardista revela-se na sua fase futurista, quando escreve a Ode Triunfal, a Ode Maritima, e outros grandes poemas da exaltao da vida moderna, da fora, da velocidade, das maquinas; finalmente, numa terceira fase, escreve uma poesia mais intimista. A grande viragem na poesia de lvaro de Campos aconteceu, de acordo com um relato seu, depois de ter conhecido Alberto Caeiro, numa viagem que fez ao Ribatejo. Em Caeiro reconheceu imediatamente o seu Mestre, aquele que o introduziu no universo do sensacionismo. Mas enquanto Caeiro acolhe tranquilamente as sensaes, Campos experimenta-as febrilmente, excessivamente. To excessivamente que, querendo sentir tudo, de todas as maneiras, parece esgotar-se a seguir, caindo numa espcie de apatia melanclica, ablica, ou num devaneio nostlgico que o aproxima de Pessoa ortnimo com quem partilha o cepticismo, a dor de pensar, a procura do sentido no que est para alm da realidade, a fragmentao, a nostalgia da infncia irremediavelmente morta. Os seus versos livres, longos, por vezes prosaicos, exclamativos e eufricos ou repetitivos e depressivos so o exemplo mais acabado do vanguardismo modernista no qual se espelha um sentir cosmopolita, urbano, febril, nervoso, extrovertido, por vezes insuportavelmente mergulhado no tdio do quotidiano e no anonimato da cidade. Linhas do sentido / temas recorrentes Poeta modernista, a sua poesia tem trs fases: decadentistas, futurista e pessoal-intimista; Poeta sensacionista desde que conheceu Caeiro, como o Mestre, vira-se para o exterior, tenta banir o vcio de pensar e acolhe todas as sensaes; Predomnio da emoo espontnea e torrencial; Excitao da procura, da busca incessante; ansiedade e confuso emocional; Elogio da civilizao industrial, moderna, da velocidade e das maquinas, da energia e da fora, do progresso. Fuga para a recordao e/ou sonho que tendem a substituir a vida real. Angstia existencial; sentido do absurdo; tdio, nusea, cansao, desencontro dos outros.
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Presena terrvel e labirntica do eu de que o poeta se tenta libertar. Fragmentao do eu, perda de identidade. Cepticismo e ironia. Estilo Verso livre, longo, por vezes articulado com o verso curto. Estilo esfuziante, torrencial, dinmico (sobretudo nos poemas futuristas). Utilizao de repeties, anforas, exclamaes, interjeies. Utilizao de comparaes e metforas inesperadas, antteses e paradoxos. Poetizao do prosaico, do comum e quotidiano. Caractersticas temticas Decadentismo cansao, tdio, busca de novas sensaes ; Futurismo - corte com o passado, exprimindo em arte o dinamismo da vida moderna. O vocabulrio onomatopaico pretende exaltar a modernidade; Sensacionismo - corrente literria que considera a sensao como base de toda a arte; Pessimismo ltima fase, vencidismo; Caractersticas estilsticas Verso livre, em geral, muito longo; Assonncias, onomatopeias (por vezes ousadas), aliteraes (por vezes ousadas); Grafismos expressivos; Mistura de nveis de lngua; Enumeraes excessivas, exclamaes, interjeies, pontuao emotiva; Desvios sintcticos; Estrangeirismos, neologismos; Subordinao de fonemas; Construes nominais, infinitivas e gerundivas; Metforas ousadas, oxmeros, personificaes, hiprboles; Esttica no aristotlica na fase futurista. Anlise do Poema "Ode Triunfal" dolorosa luz das grandes lmpadas elctricas da fbrica Tenho febre e escrevo. Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto, Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos. rodas, engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno! Forte espasmo retido dos maquinismos em fria! Em fria fora e dentro de mim, Por todos os meus nervos dissecados fora, Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto! Tenho os lbios secos, grandes rudos modernos, De vos ouvir demasiadamente de perto, E arde-me a cabea de vos querer cantar com um excesso De expresso de todas as minhas sensaes,

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Com um excesso contemporneo de vs, mquinas! Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical Grandes trpicos humanos de ferro e fogo e fora Canto, e canto o presente, e tambm o passado e o futuro, Porque o presente todo o passado e todo o futuro E h Plato e Virglio dentro das mquinas e das luzes elctricas S porque houve outrora e foram humanos Virglio e Plato, E pedaos do Alexandre Magno do sculo talvez cinquenta, tomos que ho-de ir ter febre para o crebro do squilo do sculo cem, Andam por estas correias de transmisso e por estes mbolos e por estes volantes, Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando, Fazendo-me um acesso de carcias ao corpo numa s carcia alma. Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime! Ser completo como uma mquina! Poder ir na vida triunfante como um automvel ltimo-modelo! Reflexo: O sujeito potico neste poema exprime com exaltao e excesso o seu orgulho em ser moderno e contemporneo de uma beleza industrial totalmente desconhecida dos antigos num desejo assumido de acolher todas as sensaes. O poeta representa de forma exagerada o louvor ao mundo moderno. Anlise do Poema "Ode Martima" Sozinho, no cais deserto, a esta manh de Vero, Olho pro lado da barra, olho pro Indefinido, Olho e contenta-me ver, Pequeno, negro e claro, um paquete entrando. Vem muito longe, ntido, clssico sua maneira. Deixa no ar distante atrs de si a orla v do seu fumo. Vem entrando, e a manh entra com ele, e no rio, Aqui, acol, acorda a vida martima, Erguem-se velas, avanam rebocadores, Surgem barcos pequenos de trs dos navios que esto no porto. H uma vaga brisa. Mas a minh'alma est com o que vejo menos, Com o paquete que entra, Porque ele est com a Distncia, com a Manh, Com o sentido martimo desta Hora, Com a doura dolorosa que sobe em mim como uma nusea, Como um comear a enjoar, mas no esprito. Olho de longe o paquete, com uma grande independncia de alma, E dentro de mim um volante comea a girar, lentamente, Os paquetes que entram de manh na barra Trazem aos meus olhos consigo O mistrio alegre e triste de quem chega e parte.

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Trazem memrias de cais afastados e doutros momentos Doutro modo da mesma humanidade noutros pontos. Todo o atracar, todo o largar de navio, - sinto-o em mim como o meu sangue Inconscientemente simblico, terrivelmente Ameaador de significaes metafsicas Que perturbam em mim quem eu fui... Ah, todo o cais uma saudade de pedra! E quando o navio larga do cais E se repara de repente que se abriu um espao Entre o cais e o navio, Vem-me, no sei porqu, uma angstia recente, Uma nvoa de sentimentos de tristeza Que brilha ao sol das minhas angstias relvadas Como a primeira janela onde a madrugada bate, E me envolve como uma recordao duma outra pessoa Que fosse misteriosamente minha. Reflexo: O sujeito potico neste poema caracteriza-se metaforicamente a um paquete e a um volante. A sensao que o paquete nele desperta tem haver com uma doura dolorosa, paradoxo que traduz a sensao positiva e perturbante que tem do objecto, semelhante a uma nusea, a um enjoo de esprito. O volante representa metaforicamente o despertar do sujeito potico para o seu mundo interior, isto , a imagem exterior do paquete, que lhe tinha prendido a ateno, vai conduzi-lo, vai guia-lo sua imaginao e s suas emoes Anlise do Poema "Dactilografia" Trao, sozinho, no meu cubculo de engenheiro, o plano, Firmo o projeto, aqui isolado, Remoto at de quem eu sou. Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro, O tique-taque estalado das mquinas de escrever. Que nusea da vida! Que abjeo esta regularidade! Que sono este ser assim! Outrora, quando fui outro, eram castelos e cavaleiros (Ilustraes, talvez, de qualquer livro de infncia), Outrora, quando fui verdadeiro ao meu sonho, Eram grandes paisagens do Norte, explcitas de neve, Eram grandes palmares do Sul, opulentos de verdes. Outrora.

Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro, O tique-taque estalado das mquinas de escrever. Temos todos duas vidas: A verdadeira, que a que sonhamos na infncia, E que continuamos sonhando, adultos, num substrato de nvoa; A falsa, que a que vivemos em convivncia com outros, Que a prtica, a til, Aquela em que acabam por nos meter num caixo. Na outra no h caixes, nem mortes, H s ilustraes de infncia: Grandes livros coloridos, para ver mas no ler; Grandes pginas de cores para recordar mais tarde. Na outra somos ns, Na outra vivemos;

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Nesta morremos, que o que viver quer dizer; Ergue a voz o tique-taque estalado das mquinas Neste momento, pela nusea, vivo na outra ... de escrever. Mas ao lado, acompanhamento banalmente sinistro, Reflexo: Este poema foi escrito para salientar que o sujeito potico encontra-se no seu gabinete de engenheiro onde exprime a nusea, o tdio, as sensaes que o envolvem, neste caso a monotonia agressiva do tic-tac das mquinas de escrever. Este cansao do presente f-lo querer regressar ao tempo da sua infncia, da sua felicidade inconsciente, mas o rudo do presente interpe-se, deixando-o sem desespero.

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