II Congresso o Porto Romantico Compact
II Congresso o Porto Romantico Compact
II Congresso o Porto Romantico Compact
G O N A L O D E VA S C O N C E L O S E S O U S A
II CONGRESSO
O PORTO ROMNTICO
ACTAS
FICHA TCNICA
TTULO
EDIO ISBN
CITAR 978-989-8497-07-9
Centro de Investigao em Cincia e Tecnologia das Artes
Escola das Artes da Universidade Catlica Portuguesa
LOCAL DE EDIO
Porto
DATA
Junho de 2016
NDICE
INTRODUO
Gonalo de Vasconcelos e Sousa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
Introduo
Numa poca de profundas transformaes polticas, sociais e econmicas, o esprito romntico, que
envolveu boa parte de Oitocentos, traduziu-se tambm em mudanas de hbitos, comportamentos
e sensibilidades, na construo de novas formas de sociabilidade e de relao, de espaos, tempos e
gestos dos quotidianos, quer pblicos quer privados. Nesta breve comunicao, servindo-me, essen-
cialmente, de representaes literrias da poca, em especial de Almeida Garrett, Camilo Castelo
Branco, Jlio Dinis, Ramalho Ortigo e Ea de Queirs, tentarei destacar a expanso do consumo de
cerveja na cidade do Porto, ao longo do sculo XIX.
Considerada, inicialmente, uma bebida estranha aos hbitos dos portuenses, a cerveja era
apenas consumida por estrangeiros residentes na cidade, em particular da comunidade britnica. Os
tripeiros, por gosto, tradio e negcio, preferiam os muitos e bons ou maus vinhos do Minho ou do
Douro, que aqui afluam e aqui se comercializavam. Mas, no Porto romntico, a cerveja tornar-se-ia,
gradualmente, uma bebida da moda, com um consumo crescente entre os crculos da juventude
bomia, mais receptivos s novidades. Se verdade que as representaes literrias da poca nos
transmitem imagens contrastantes, ora de relutncia e de resistncia bebida de hereges e
anti-nacional, ora de anglomania e de imitao de costumes estrangeiros considerados superiores,
essas e outras fontes (imprensa peridica, inquritos e relatrios oficiais, etc.) revelam um progressivo
consumo de cerveja na cidade do Porto que, apesar de ainda limitado face ao mais popular e alargado
consumo do vinho, assumiria um papel significativo nos espaos de sociabilidade portuense mais
frequentados pela juventude, desde os botequins e cafs at s emergentes cervejarias (Guichard,
Camanho, guia de Ouro, etc.), onde o bock se tornou bebida corrente, a par de novas formas de
convivialidade, traduzidas por cervejar na prosa de Ea.
1
Professor catedrtico do Departamento de Histria e de Estudos Polticos e Internacionais da FLUP. Investigador do
CITCEM Centro de Investigao Transdisciplinar Cultura, Espao & Memria.
Garrett exagerava no clich do ingls, beberro incorrigvel. E, se muitos aderiam moda, por
imitao dos estrangeiros, outros recusavam-na por ser bebida de hereges e muito inferior aos
vinhos portugueses, como captou Garrett na sua comdia As Profecias do Bandarra, escrita em 1845,
situando a cena numa zona popular de Lisboa e fazendo contrastar a atitude do boticrio Pantaleo,
de abertura s novidades, com a repugnncia do sapateiro Tom Crispim:
Pantaleo, tomando uma garrafa das mos de Lzaro e dando a beber a Tom
Bebe, bebe, homem, que cerveja preta.
Tom Cerveja! Bebida de hereges, que a bebam eles os excomungados. Abrenncio! Daquele
blsamo de ontem, sr. Pantaleo, aquilo sim!
Pantaleo Chegue j um de vocs a casa, e traga uma garrafa do meu Porto velho4.
2
Veja-se, por exemplo, FERREIRA, J. A. Pinto Visitas de sade s embarcaes entradas na Barra do Douro nos sculos
XVI e XVII. Porto: Gabinete de Histria da Cidade, 1977, pp. 108-109 e 130-131. Refira-se que a importao de cerveja foi
proibida entre 1710 e 1810, o que suscitou, nesse perodo, a entrada de algumas quantidades por contrabando. Entre as
diversas mercadorias entradas por contrabando e apreendidas pelos fiscais da Alfndega do Porto, entre 1788 e 1791,
contavam-se 10 almudes de cerveja (cerca de 250 litros). Cf. SILVA, Francisco Ribeiro da A apreenso de mercadorias
proibidas nos finais de Setecentos. Um exemplo. Revista da Faculdade de Letras: Histria. Porto: Faculdade de Letras
Universidade do Porto, pp. 555-561. Em 1820, s entre Janeiro e Maro e apenas provenientes de Bristol, o Porto recebia
dois barris e trezentas dzias de garrafas de cerveja. Correio Braziliense, vol. XXV, n 146, Jul. 1820, pp. 35-36. No era
muito, mas deveria chegar e sobrar para os consumidores da bebida, sobretudo ingleses.
3
GARRETT, Almeida Lrica. 2 ed. Lisboa: Viva Bertrand & Filhos, 1853, p. 123.
4
GARRETT, Almeida As profecias do Bandarra. In GARRETT, Almeida Obras completas de Almeida Garrett. Lisboa: Empresa
da Histria de Portugal, 1904, vol. 1, p. 734.
Cerveja britnica,
De furor espuma!
De coisa nenhuma
me podes servir.
Quando oio do lpulo
Gabarem proezas,
s bocas inglesas,
Desato-me a rir6.
5
DINIS, Jlio Uma famlia inglesa. Cenas da vida do Porto. [1 ed. 1868]. 3 ed. Porto: Cruz Coutinho, 1875, p. 7.
6
IDEM, Ibidem, p. 38.
7
As primeiras fbricas de cerveja da Madeira tero surgido por volta de 1840, por iniciativa de estrangeiros, nomeadamente
John Park, estabelecido na Camacha nesse ano, e Diogo Guilherme Cave, com uma fbrica no Funchal em 1844. Cf. RIBEIRO,
Joo Adriano 125 anos de cerveja na Madeira. Funchal: Empresa de Cervejas da Madeira, 1996, p. 11.
8
FORRESTER, Joseph James The Oliveira Prize Essay on Portugal. Londres: John Weale, 1853, p. 64.
O uso de qualquer bebida leve, como cerveja ou cidra, desconhecido. Se um Portugus entra numa
loja de Bebidas para saciar a sede, pede uma limonada ou um copo de capilar, o primeiro dos quais
tm um jeito especial para preparar bem, que, segundo creio, atribuvel mistura de capilar em vez
de acar. Muitos indivduos tm, no entanto, tentado, com algum sucesso, a abertura de lojas para
venda de cerveja engarrafada em algumas das principais ruas da metrpole, onde os estrangeiros,
sobretudo alemes, so constantemente vistos a jogar damas, xadrez ou gamo, a fumar cigarros
e a beber cerveja. Esta maneira de passar um momento de lazer tornou-se quase uma moda em
Lisboa, imediatamente depois da guerra. Mas difcil de submeter o paladar, embora possamos
estar dispostos a faz-lo para seguir a moda; e tenho observado frequentemente um grupo de jovens
naturais de Lisboa sentarem-se com grande coragem para consumirem cerveja em garrafa e cigarros,
esforando-se por engolir as libaes sem exibir no rosto a repugnncia que a bebida provoca aos
seus gostos. Tais so os dolorosos sacrifcios da loucura da moda! 9.
Por estranha e repugnante que fosse ao paladar nacional, a cerveja foi conquistando um nmero
crescente de adeptos. Uma dcada mais tarde, j se divulgavam receitas para fazer cerveja caseira,
como se l no jornal O Panorama10.
A relutncia em aderir aos hbitos estrangeiros contrapunha-se atitude inversa, to ou mais
forte, de sobrevalorizar tudo o que chegava de fora. Na sociedade oitocentista, cruzavam-se tendn-
cias contraditrias, anglfobas e anglfilas. Em 1876, num dos textos que escreveu para As Farpas,
dirigindo-se a John Bull, Ramalho Ortigo ironizava contra a substituio dos hbitos tradicionais
pelas modas inglesa, incluindo o consumo de cerveja:
9
A.P.D.G. Sketches of Portuguese life, manners, costume and character. Londres: G. B. Whittaker, 1826, pp. 345-346.
10
O Panorama. Jornal Literrio e Instrutivo da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos teis. Lisboa: Tip. da Sociedade
Propagadora dos Conhecimentos teis, vol. I, 05.08.1837, p. 112. Veja-se, tambm, LCIO, Joo Baptista Pequena coleco
de verdadeiras receitas, para fabricar cerveja branca, e preta, cidra Lisboa: Tip. Cezariana, 1847.
11
ORTIGO, Ramalho; QUEIRS, Ea de As Farpas: crnica mensal da poltica, das letras e dos costumes. Nova srie, tomo
4. Lisboa: Tipografia Universal, Abril de 1876, pp. 5-6.
Tambm na prosa de Camilo Castelo Branco podemos encontrar, desde os anos cinquenta, diversas
representaes do consumo da cerveja. Como em Duas horas de Leitura, na cena em que Camilo e o
seu companheiro de viagem param na estalagem da Mariquinhas, para darem descanso aos cavalos
e matarem a sede:
Nestas gravssimas reflexes, chegmos Carria, e apemos. A primeira pessoa que vimos foi a
Mariquinhas, merendando, salvo erro, uma lourejante posta de pescada fritada em ovos. [] Enquanto
libvamos algumas botijas de cerveja, delicimos o esprito com as argcias de Mariquinhas13.
certo que, na prosa camiliana, podemos encontrar igualmente atitudes de resistncia cerveja. Por
exemplo, na novela O Cego de Landim, de 1877, Camilo criticava a mudana de hbitos na juventude,
com a crescente frequncia dos cafs e o consumo imoderado de cerveja:
[] h dezassete anos, o progresso material desconhecia a preciso dos cafs, paragens duns ociosos
que se putrificam, raa amolentada no sibaritismo da cerveja de quartola, com grandes orgias de
cigarros de Xabregas14.
Ou, ainda, as referncias sarcsticas do romancista Hospedaria da guia de Ouro, com cervejaria
no rs-do-cho, onde os poetas discutiam at de madrugada:
Debaixo do meu quarto, at ao romper da alva, fizeram-se orgias baratas de cerveja da pipa. Poetas
bbados diziam sonetos elegacos, e votavam, esmurraando as bancas, por Victor Hugo contra
Zola []. Depois, fecharam-se as portas da brasserie estrondosamente, pondo terramotos na velha
estalagem; e os poetas, no Largo da Batalha, muito desequilibrados em curvetas, saudavam com
ziguezagues e gestos largos a Aurora, vociferando estrofes do Firmamento de Soares de Passos e
golfos de cerveja aziumada.
Eu andava ento passeando no meu quarto entre os fantasmas dos meus amigos mortos, e pergun-
tava Providncia inventora porque fizera o percevejo acrobata e o poeta abeberado nos ideais da
cerveja da pipa15.
Camilo tinha as suas razes para condenar o uso imoderado da cerveja nas estrdias da juventude
bomia. O seu filho Jorge acumulava a infelicidade da demncia com bebedeiras de cerveja, como
se l numa carta do romancista para o seu amigo Carlos Ramiro Coutinho (Visconde de Ouguela):
12
QUEIRS, Ea de; ORTIGO, Ramalho As Farpas: crnica mensal da poltica, das letras e dos costumes. 4 srie, n 2. Lisboa:
Empresa Literria Luso-Brasileira, Novembro-Dezembro de 1882, pp. 41-45.
13
BRANCO, Camilo Castelo Duas horas de leitura. [1 ed. 1857]. In BRANCO, Camilo Castelo Obras Completas. vol. XI.
Porto: Lello & Irmo, 1990, pp. 317-318.
14
BRANCO, Camilo Castelo Novelas do Minho. [1 ed. 1877]. In BRANCO, Camilo Castelo Obras Completas. vol. VIII. Porto:
Lello & Irmo, 1988, pp. 113-114.
15
BRANCO, Camilo Castelo Bomia do esprito. [1 ed. 1886]. In BRANCO, Camilo Castelo Obras Completas. vol. XVI. Porto:
Lello & Irmo, 1993, pp. 15-16.
Ao longo do sculo XIX, apesar de se manter a forte tradio vincola, a cerveja afirmou-se, gra-
dualmente e de forma irreversvel, nos consumos dos portugueses. As sociabilidades urbanas, tanto
das elites intelectuais e polticas como das juventudes acadmicas e, por imitao, de outros estratos,
associavam-se, frequentemente, s tertlias e grupos que faziam dos cafs e das cervejarias pontos
de encontro privilegiados. O movimento era maior em Lisboa e, claro, o correspondente consumo.
Na prosa do mais cosmopolita dos escritores portugueses da poca, Ea de Queirs, surgem-nos
frequentes referncias cerveja17, normalmente ligadas sociabilidade urbana, nos locais pblicos,
como os cafs ou as cervejarias. Por exemplo, em Setembro de 1871, em As Farpas, Ea parodiava
sobre a vida dos literatos da capital:
Assim as slidas e incontestveis reputaes sobre a capacidade de esprito fazem-se nos botequins.
A imortalidade do Loreto ao Rossio repousa entre as dez horas e a meia-noite num banho de
cerveja de pipa18.
No seria muito diferente o que se passava no Porto, certamente em menor escala. O mesmo Ea
ironizava sobre o combate ao jesuitismo dos intelectuais portuenses:
Ora o jesuta um bom inimigo, que no desarranja os hbitos da digesto, a quem se d batalha,
conversando porta do Mor ou em volta de um bock na guia de Ouro19.
Ou, ainda, a mocidade portuense que voltara aos cafs, aps o fracasso da Liga Patritica do Norte,
em 1890:
[] a mocidade que fora arrancar Antero metafsica, regressara, cansada desse esforo, s banquetas
e aos bocks dos cafs da Praa Nova21.
16
Agradeo a informao e a referncia ao Dr. Jos Manuel Oliveira, Director da Casa-Museu Camilo Castelo Branco.
17
Na sua minuciosa pesquisa sobre as bebidas alcolicas na obra de Ea de Queirs, Drio Castro Alves apresenta nada
menos do que 87 citaes incluindo os termos beer, bock, porter e pale ale. Cf. ALVES, Drio Moreira de Castro Era Porto
e entardecia. De absinto a zurrapa. Dicionrio de vinhos e bebidas alcolicas em geral na obra de Ea de Queiroz. Lisboa:
Pandora, 1994, p. 72.
18
ORTIGO, Ramalho; QUEIRS, Ea de As Farpas: crnica mensal da poltica, das letras e dos costumes. Tipografia Universal,
Setembro de 1871, p. 19.
19
IDEM, Ibidem, Julho-Agosto de 1872, p. 54.
20
QUEIRS, Ea de Jos Matias. In Contos. Apud ALVES, Drio Moreira de Castro Op. cit., p. 81.
21
QUEIRS, Ea de Um gnio que era um santo. In Antero de Quental. In Memoriam. Porto: Mathieu Lugan Editor, 1896,
p. 514.
Conhecera-a na Foz, na Assembleia; nessa noite, cervejando com os rapazes, ainda lhe chamou
camlia melada22.
Estas fbricas [de cerveja] fazem entre ns poucos interesses, porque o nosso povo prefere o vinho
cerveja, e mesmo o verde, quando o h, melhor do que ela; mas se for maduro no se estima
menos. A cerveja apenas se gasta entre ns em alguns meses do vero, e nesses mesmos em pequena
quantidade25.
22
QUEIRS, Ea de Os Maias. Apud ALVES, Drio Moreira de Castro Op. cit., p. 90.
23
Peridico dos Pobres no Porto, Porto, n 170, 20.07.1836.
24
CORDEIRO, Jos Manuel Lopes A indstria portuense no sculo XIX. vol. 1. Braga: Instituto de Cincias Sociais da Univer-
sidade do Minho, 2006, p. 297; Almanaque comercial, fabril, judicial, administrativo, eclesistico e militar do Porto e seu
Distrito para 1860. Porto: Tip. de J. L. de Sousa, 1859. Sobre as fbricas de cerveja de Gaia, veja-se tambm GUIMARES,
Gonalves Memria histrica dos antigos comerciantes e industriais de Vila Nova de Gaia. [Vila Nova de Gaia]: Associao
Comercial e Industrial de Vila Nova de Gaia, 1997, pp. 70 e 136.
25
Sesso de 9 de Junho de 1860. Dirio da Cmara dos Deputados, n 9. Lisboa: Imprensa Nacional, 1860, p. 151.
26
Almanaque do Porto e seu Distrito para 1886. Porto: Imprensa Popular de J. L. de Sousa, 1885, p. 178.
Introduo1
O Conselheiro Agostinho Albano da Silveira Pinto nasceu no Porto em 17 de Julho de 1785 e
faleceu na sua quinta de guas Santas, em 18 de Outubro de 1852. A sua vida activa preenche,
assim, a primeira metade do sculo XIX. Embora no sendo das figuras histricas de maior destaque
no panorama nacional, a sua vida multifacetada tem muito interesse, pelo que revela de mltiplos
aspectos da histria do Porto e do Pas no perodo Romntico.
Com efeito, o Conselheiro Albano desenvolveu actividade pioneira e de relevo enquanto poltico,
com intervenes sobretudo no campo da Economia Poltica (foi deputado, sucessivamente eleito,
desde 1834 at sua morte, vice-presidente do Tribunal do Conselho Fiscal de Contas e, efemeramente,
ministro da Marinha e Ultramar durante 2 meses em 1847, num governo Cartista de Saldanha2) e na
rea da Farmcia (adquiriu grande prestgio nacional nesta rea, tendo sido autor do Cdigo Farma-
cutico Lusitano, texto que definia os frmacos com curso legal em Portugal, o qual teve 6 edies e
perdurou muito para alm do seu falecimento). Foi pioneiro a leccionar, na Associao Comercial do
Porto, um curso de Economia Poltica, e foi docente e Director da Academia de Marinha e Comrcio
e da Real Escola de Cirurgia do Porto, instituies precursoras da Universidade do Porto. Foi membro
da Academia das Cincias de Lisboa, para a qual entrou em 6 de Maro de 1828.
Concumitantemente com toda esta intensa e diversificada actividade, publicou uma bibliografia
relativamente vasta que se estende desde o ensino da lngua francesa at Botnica, Farmcia e
Economia. Foi jornalista, tendo editado a Revista Estrangeira, a que se seguiu a Revista Literria, e
participou em muitas comisses para estudar problemas locais e nacionais. Nos seus textos, denota
uma personalidade atenta ao desenvolvimento da Cincia a nvel mundial, e um raciocnio lgico
e racional, invulgar em Portugal no perodo em que viveu, por vezes com ideias muito avanadas.
Quando jovem, lutou contra os invasores franceses na Guerra Peninsular. Foi distinguido com o grau
de cavaleiro da Ordem Militar Portuguesa da Torre e Espada em 1840 e com o grau de Comendador da
Ordem de Nossa Senhora da Conceio de Vila Viosa em 1845. Foi membro da Maonaria, pertencendo
a uma loja francesa3. Significativamente, assumiu o nome simblico de Hyperion, o tit associado luz.
1
Uma parte da investigao relativa a este trabalho foi feita em colaborao com o Doutor Francisco Queiroz, Investigador
Principal da Linha Heritage, Culture and Tourism do CEPESE Centro de Estudos da Populao, Economia e Sociedade.
2
BONIFCIO, Maria de Ftima D. Maria II. Lisboa: Crculo de Leitores, 2005, pp. 180, 182.
3
Cf. MARQUES, A. H. de Oliveira Histria da Maonaria em Portugal, vol. 2, p. 523.
Reviso bibliogrfica
O Conselheiro Albano referido em vrios estudos publicados ainda no sculo XIX e, na segunda
metade do sculo XX, sobretudo nas reas da Economia e da Farmcia. Outras publicaes sobre ele
tm surgido at actualidade. Logo aps a sua morte, J. J. de Melo proferiu um elogio fnebre, publicado
em O Instituto e reproduzido total ou parcialmente noutras publicaes4. Muito desse texto serve de
base ao artigo que lhe dedicado pela Enciclopdia Luso-Brasileira. Inocncio refere Agostinho Albano
da Silveira Pinto no Dicionrio Bibliogrfico Portugus, listando uma parte das suas publicaes.
Agostinho Albano consta ainda do Dicionrio Biogrfico Parlamentar, 1834-19105. A propsito de um
palacete revivalista construdo na Afurada sob a gide do filho de Agostinho Albano, F. Queiroz e J.
Miranda Lemos6 fazem uma reviso dos principais aspectos da sua famlia dando-lhe, naturalmente,
destaque, e descrevem os principais passos da sua biografia, para alm de mostrarem, atravs de um
diagrama, quais os seus ascendentes e descendentes mais prximos.
Em meados do sculo XX, Amzalak dedicou-lhe um livro7 em que descreve detalhes da sua vida
e transcreve a lio inaugural do Curso de Economia Poltica. A propsito da escola de economia do
Porto no perodo 1837-1838, Augusto Santos Silva refere Agostinho Albano da Silveira Pinto8. De uma
maneira mais abrangente, Armando Castro d-lhe destaque entre os economistas portugueses do
sculo XIX, explicando o seu pensamento econmico9.
Mais recentemente, Antnio Almodvar redigiu uma nota biogrfica includa no Dicionrio
Histrico de Economistas Portugueses10. Existem, ainda, numerosas referncias a Agostinho Albano
da Silveira Pinto dispersas em textos dedicados histria da Economia e Finanas em Portugal (para
4
Cf. MELO, J. J. de Elogio Fnebre. O Instituto, Jornal Scientifico e Literario. Coimbra: Imprensa da Universidade, vol. II, n
4, 15 de Maio de 1853, pp. 45-47.
5
Cf MNICA, Maria Filomena (coord.) Dicionrio Biogrfico Parlamentar, 1834-1910, vol. III. Coleco Parlamento. Edio
da Assembleia da Repblica.
6
Cf. QUEIROZ, Francisco; LEMOS, Joo Miranda A famlia Silveira Pinto e o Palacete de S. Paio. In SOUSA, Gonalo de
Vasconcelos e (coord.) Actas do I Congresso O Porto Romntico. Porto: CITAR; UCE-Porto, 2012, vol. 1, pp. 179-198.
7
Cf. AMZALAK, Moses Bensabat Agostinho Albano da Silveira Pinto e o Ensino da Economia Poltica no Porto. Lisboa:
Grfica Lisbonense, 1945.
8
Cf. SILVA, Augusto Santos A burguesia comercial portuguesa e o ensino de Economia Poltica: o exemplo da escola do
Porto (1837-1838). Anlise Social, vol. XVI (61-62), 1980-1-2, 363-3.
9
Cf. CASTRO, Armando O Pensamento Econmico no Portugal Moderno (De fins do Sculo XVIII a comeos do sculo XX).
Instituto de Cultura Portuguesa, 1980.
10
Cf. ALMODVAR, Antnio Agostinho Albano da Silveira Pinto. In CARDOSO, Jos Lus (ed.) Dicionrio Histrico de
Economistas Portugueses. Lisboa: Temas & Debates, 2001, pp. 258-260.
A obra publicada
Para perceber as concepes e enquadramento da vida de Agostinho Albano da Silveira Pinto
importante o conhecimento da rica bibliografia que legou. Para alm de numerosos artigos em jornais
e da edio na Revista Literria, que ser abordada a seguir, publicou os seguintes livros e memorandos,
alguns com vrias edies posteriores:
11
Cf. BONIFCIO, Maria de Ftima Lisboa, bastio do proteccionismo (pautas, poltica e indstria nos anos 30-40 do sculo
passado). Anlise Social, XVI: 112-113, 1991 (3, 4), pp. 515-535.
12
Cf. BASTIEN, Carlos A integrao europeia vista pelos economistas portugueses uma perspectiva de longo prazo.
Anlise Social, vol. XLIV (191), 2009, pp. 337-359.
13
Cf. CARDOSO, Jos Lus. F. Solano Constncio on Political economy: A Science of Proportions. History of European Ideas,
vol. 35, pp. 227-335.
14
Cf. JUSTINO, David O Livre-cmbio e o Fontismo revisitados, atravs dos debates parlamentares. In SERRO, Jos Vicente;
PINHEIRO, Maga Avelar; FERREIRA, Maria de Ftima (org.) Desenvolvimento econmico e mudana social: Portugal nos
ltimos dois sculos. Lisboa: ICS, 2009.
15
Cf. PEREIRA, Ana Leonor; PITA, Joo Rui Agostinho Albano da Silveira Pinto (1785-1852). In-Vivo, revista mensal de sade,
2002. Cf. www.invivo.pt (1.1.2012).
16
Cf. DIAS, Jos P. Sousa De Pombal ao Estado Novo: A Farmacopeia Portuguesa e a Histria (1772-1935). Medicamento,
Histria e Sociedade, vol. 6, 1995, pp. 1-8.
17
Cf. FERRAZ, Amlia Ricon A Real Escola e a Escola Mdico-Cirrgica do Porto. Porto: Edies Centenrio; Universidade do
Porto, pp. 54, 61, 62, 64, 70, 248-253.
18
Cf. FERRAZ, Amlia Ricon A Real Escola e a Escola Mdico-Cirrgica do Porto. Porto: Edies Centenrio; Universidade do
Porto, pp. 62, 63.
19
Arquivo Histrico Militar. Caixas 1745 e 1754. Processo de Agostinho Albano da Silveira Pinto.
20
Cf. CHAGAS, Manuel Pinheiro Histria de Portugal popular e illustrada de Manuel Pinheiro Chagas. Continuada desde a
chegada de D. Pedro IV Europa at nossos dias por J. Barbosa Cohen. Lisboa: Empreza da Historia de Portugal, Sociedade
Editora, X vol., 1905, XI vol., 1906, p. 343.
De facto, o Cdigo Farmacutico Lusitano foi alvo de crticas e de controvrsia desde muito cedo. No
entanto, se algumas destas crticas tm fundamento luz de uma anlise objectiva dos conhecimentos
do tempo (por exemplo, na Advertncia da 5 edio, pstuma, do Cdigo Farmacutico Lusitano, o
editor Jos Pereira Reis deixa entrever que se, naquele momento, pudesse ter escrito a obra de raiz, esta
seria muito diferente), muitas outras devem ser vistas luz da luta poltica entre Cartistas (tendncia
partidria em que Agostinho Albano se inseria) e Setembristas, ou mesmo de rivalidades e emulaes
pessoais em relao a pessoas com a dimenso do Doutor Agostinho Albano da Silveira Pinto.
Logo em 1838 foi nomeada uma comisso para redigir uma nova farmacopeia que nunca chegou,
no entanto, a ser aprovada. Por uma razo ou por outra, e apesar dos defeitos que lhe foram reco-
nhecidos, o Cdigo Farmacutico Lusitano manteve-se como a farmacopeia legal at 1876 (data da
sua ltima edio!), em que foi finalmente substituda, e constituiu mesmo, durante algum tempo,
a farmacopeia oficial do Brasil.
21
Cf. PINTO, Agostinho Albano da Silveira Farmacografia do Cdigo Farmacutico Lusitano. Coimbra: Imprensa da
Universidade. 1836.
22
Cf. TELLES, Joo Jos de Sousa Reflexes Acerca da Farmacopeia do Dr. Agostinho Albano da Silveira Pinto. Lisboa: Imprensa
Silviana, 1856.
23
IDEM, Ibidem, pp. 9, 10.
24
Cf. IDEM, Ibidem, p. 69.
25
Cf. IDEM, Ibidem, p. 156.
A Revista Literria
A primeira publicao peridica editada por Agostinho Albano da Silveira Pinto foi a Revista Estrangeira
(1836-1838), com o subttulo Coleco de artigos extrados dos melhores escritos peridicos estrangeiros,
principalmente ingleses e franceses, a que se seguiu a Revista Estrangeira, Peridico de Literatura, filosofia,
viagens, cincias e belas-artes (1838-1845). De ambos foi co-redactor Jos Pereira Reis.
A Revista Literria insere-se no incio das publicaes de cultura geral que ocorreu em Portugal
logo aps o triunfo do Liberalismo, e de que Alexandre Herculano e a Sociedade Propagadora dos
Conhecimentos teis, associados ao Panorama, so um dos exemplos mais conhecidos. A maior
parte dos artigos no so assinados, sendo presumivelmente da autoria do editor, de resto como era
habitual na poca, quando os jornais eram quase concebidos por uma nica pessoa.
Numa sesso das Cortes em que se discutiram os preos dos portes de correio, Agostinho Albano
referiu-se a esta sua actividade do seguinte modo: uma verdade, e verdade amarga, que na nossa
terra no so favorecidos, nem tanto quanto o merecem, os literatos, e vejo tambm que uma verdade
que, actualmente, quem se d s letras mais por vcio do que por interesse. Eu mesmo j redigi um
peridico literrio por espao de 6 anos, redigi-o da minha algibeira em grande parte, por um capricho.
Foi a Revista Literria, e tenho para mim que no estava muito mal redigido. Fui por muito tempo s
na redaco, depois tive um colaborador.
Para alm do seu pioneirismo, a Revista Literria notvel por abordar temas at ento desco-
nhecidos em Portugal, ou muito controversos. Um dos exemplos do primeiro caso dado pelo que
26
Cf. PINTO, Agostinho Albano da Silveira Cdigo Farmacutico Lusitano. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1841, p. V.
Garrett, como todos os espritos propensos ao culto da arte tinha o horror das cifras. Aqui est
por que o colega Agostinho Albano, que no fazia discurso sem fazer desfilar perante a cmara
cerrados batalhes de algarismos, no s o apavorava: punha-lhe os nervos em excitao, como a
que experimenta quem ouve afiar os dentes a uma serra, ou sente o raspar de uma unha na superfcie
lisa de uma parece: o maior maador do pas! costumava ele afirmar convictamente28.
Estas opinies so explicveis pelo modo, singular no Portugal da poca, com que Agostinho Albano
fundamentava de modo objectivo e factual as suas intervenes e textos, da partindo para concluses
obtidas por raciocnio lgico. De facto29, nas suas obras sobre Finanas, quer os discursos de interveno
parlamentar, quer os memorandos que escreveu enquanto membro do Tribunal de Contas so trabalhos
muito bem construdos e fundamentados, denotando um raciocnio lgico e uma base informada, que
em tudo contrariam a imagem irnica do Dicionrio Bigrafo-Poltico e o apodo de Garret. Por exemplo,
a Dvida Pblica Portuguesa30 considerada por Espinha da Silva31 como uma fonte essencial para o
estudo da evoluo das finanas pblicas portuguesas no perodo a que se refere.
A Exposio sinptica do sistema geral da fazenda pblica em Portugal32 o que hoje poderamos
chamar um resumo do oramento geral do estado, explicando atravs de tabelas e chaves dicotmicas
27
Cf. Dicionario Biografo-Politico ou Galleria dos Contemporaneos. Lisboa: Typographia de J. M. Coelho, 1843.
28
Cf. CHAGAS, Manuel Pinheiro Histria de Portugal popular e illustrada de Manuel Pinheiro Chagas. Continuada desde a
chegada de D. Pedro IV Europa at nossos dias por J. Barbosa Cohen. Lisboa: Empreza da Historia de Portugal, Sociedade
Editora, vol. X, pp. 500, 501, 1905.
29
Cf. PINTO, Agostinho Albano da Silveira Dvida Pblica Portuguesa: Sua Histria, Progresso e Estado Actual. Lisboa: Imprensa
Nacional, 1839; IDEM Cdigo Farmacutico Lusitano. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1841; IDEM A crise financeira
de 1841. Imprensa Constitucional, Porto, 1841; IDEM Discursos do senhor deputado Agostinho Albano da Silveira Pinto
sobre o contrato para a converso da dvida estrangeira, celebrado pelo governo com a sociedade Folgoza, Junqueira, Santos
& C, proferidos na Cmara dos Deputados nas sesses de 1 e 2 de Abril de 1845. Lisboa: Imprensa Nacional, 1845.
30
Cf. PINTO, Agostinho Albano da Silveira Dvida Pblica Portuguesa: Sua Histria, Progresso e Estado Actual. Lisboa:
Imprensa Nacional, 1839.
31
Cf. SILVA, Lus Espinha da Aspectos da evoluo das finanas pblicas portuguesas nas primeiras dcadas do sculo XIX
(1800-27). Anlise Social, vol. XXIII (97), 1987-3., 505-529.
32
Cf. PINTO, Agostinho Albano da Silveira Exposio sinptica do sistema geral da fazenda pblica em Portugal. Lisboa:
Imprensa Nacional, 1847, p. 7.
33
Cf. IDEM, Ibidem, p. 32.
34
Cf. PINTO, Agostinho Albano da Silveira Elementos de Gramtica Francesa. Lisboa: Impresso Rgia, 1830, p. 7.
35
Cf. AMZALAK, Moses Bensabat Agostinho Albano da Silveira Pinto e o Ensino da Economia Poltica no Porto. Lisboa:
Grfica Lisbonense, 1945, p. 96.
36
Cf. IDEM, Ibidem, p. 97.
37
Cf. IDEM, Ibidem, p. 67.
38
Cf. IDEM, Ibidem, p. 69.
Abel Rodrigues2
Introduo
O presente texto apresenta-se como um trabalho em curso que tem como objectivo principal
estudar quatro famlias portuenses dos finais do sculo XVIII e primeira metade do sculo XIX, no
sentido de contribuir para o conhecimento das elites econmicas, sociais, culturais e polticas locais.
O ponto de partida da investigao situou-se em quatro protagonistas do palco portuense que,
aps a implantao do Regime Liberal, se notabilizaram ao servio do Reino nas mais variadas reas:
Jos Joaquim Gomes de Castro, 1 Visconde e 1 Conde de Castro; Jos Ferreira Borges, jurisconsulto,
fundador do Sindrio, Deputado s Cortes Constituintes, Glria da Nao; Antnio Joaquim da Costa
Carvalho, 1 baro de So Loureno, capitalista e administrador da Alfndega do Porto; e Jos Gomes
Monteiro, camonista, o biblifilo Joseph nas palavras de Camilo, de quem foi editor.
A seleco parece ser fortuita, mas na realidade no . Na verdade, as quatro individualidades referidas
tiveram percursos de relevo e pertenceram a famlias que, em vrios momentos, se entrecruzaram
por alianas matrimoniais e adoptaram estratgias semelhantes de sobrevivncia para garantir o seu
desenvolvimento estrutural dentro de um grupo social com caractersticas muito especficas. Para se
compreender as motivaes para o estabelecimento destas alianas, foi importante reconstituir a malha
familiar, identificando as suas origens, compreendendo a sua condio social de base, verificando os
seus itinerrios geogrficos, as suas prticas de sociabilidade nos diversos contextos at chegada
ao Porto e, depois da sua plena fixao no burgo, a mobilidade social e o protagonismo que vieram a
ostentar, num centro urbano caracterizado pela heterogeneidade social. Numa palavra, trata-se de
acompanhar a formao das famlias, na transio do Antigo Regime para o Liberalismo, a qual se
constitui como a base para os percursos individuais que se vo revelar em pleno a partir do Vintismo
e com maior pujana a partir do estabelecimento definitivo do Regime Liberal.
Assim, a investigao pretende, numa primeira parte que aqui se apresenta, de uma forma
sumria atendendo a economia do texto , incidir nas origens e evoluo familiares, e numa segunda
1
O autor agradece reconhecidamente aos Senhores Dr. Duarte Gomes de Castro, Dr. Jos Pedro Borges de Castro, Dr. Gonalo
Figueiredo de Barros e Professor Armando Malheiro da Silva pelo apoio recebido, desde a primeira hora, no desenvolvimento
deste estudo.
2
Mestre em Histria Moderna e Contempornea, pela Universidade do Minho.
3
J Antnio Henriques da Silveira afirmava que a maior parte dos homens de negcio so do reino e das conquistas so
nascidos no Minho, mas tambm nas Beiras e Trs-os-Montes. SILVEIRA, Antnio Henriques da Racional discurso sobre
a agricultura e populao da provncia do Alentejo. In Memrias Econmicas da Academia Real das Sciencias de Lisboa,
tomo I, 1789, pp. 41-122.
4
AMORIM, Norberta Abordagem demogrfica em Histria da Famlia. Alguns dados sobre Guimares de Antigo Regime.
Boletim de Trabalhos Histricos. Guimares: Arquivo Municipal Alfredo Pimenta, IV Srie, vol. II, 2003, p. 74.
b) O atractivo do Porto
A forte capacidade de atraco da cidade indica a sua vitalidade. indiscutvel que a sua loca-
lizao geogrfica, a presena do rio com condies de navegabilidade e a proximidade do mar so
determinantes para a ocorrncia deste fenmeno.
Entre 1623 e 1798, a cidade do Porto mais do que triplicou a sua populao. De 16.086 almas em
1623, passa para cerca de 24.883 em 1732, e para 50.256 em 17985. Este notvel crescimento deve-se
no s fixao das famlias, que vendo Lisboa destroada pelo terramoto vieram aqui estabelecer-se,
como tambm
Por causa do importante Commercio auxiliado com as multiplicadas, e grossas embarcaes, que
a foz do Rio Douro envia s quatro partes do Mundo com tanta frequncia, como nunca viro os
passados Portuenses [] desde que se transportou para esta cidade todo o commercio das vilas de
Viana [] Vila do Conde, Aveiro, e outros portos. []
Se o tempo no afrouxasse esta rapidez to prodigiosa, veramos o Porto em poucos annos competindo
na grandeza com algumas das primeiras cidades das outras Monarchias; veramos como at agora,
desaparecerem, quasi repentinamente, escarpados montes cobertos de continuadas pedreiras, para
5
SANTOS, Cndido A populao do Porto de 1700 a 1820. Contribuio para o estudo da demografia urbana. Revista de
Histria, vol. 1, p. 287.
Tambm Francisco Ribeiro da Silva, citando uma acta da Cmara refere o imenso crescimento
demogrfico e urbano do Porto, salientando que seria incrvel no se ver a extenso e o aumento que
tem havido na populao da cidade, com a construo de bairros inteiros, e que qualquer morador
de idade no a mais avanada se recordar serem cultivadas e vazias o que hoje vemos bairros e ruas
completas, como o stio das Hortas, do Laranjal, e outras muitas partes []7.
Na verdade, o Porto nunca foi uma cidade isolada. Teve sempre uma complementaridade com
as terras circunvizinhas e com o interior com este por fora do rio Douro. Foi sempre um centro
consumidor e, naturalmente, um centro do mercado interno e externo, aglutinador das massas que
para ali concorriam.
6
Descripo topografica, e historica da Cidade do Porto. Que contm a sua origem, situaa, e antiguidades: a magnificencia
dos seus templos, mosteiros, hospitaes, ruas, praas, edificios, e fontes [], feita por Agostinho Rebello da Costa. Porto: na
Officina de Antonio Alvarez Ribeiro, 1789, p. 45.
7
Francisco Ribeiro da Silva (1994:266). Os estudos demogrficos de Fernando de Sousa demonstram isto mesmo; os
estudos sobre a evoluo urbana de Joaquim Ferreira Alves tambm ajudam a compreender o fenmeno. Ver: ALVES,
Joaquim Jaime Ferreira O Porto na poca dos Almadas. Arquitectura. Obras Pblicas. Porto: Arquivo Histrico Municipal,
1990, vol. II; SOUSA, Fernando Alberto Pereira de A populao dos incios do sculo XIX. [S.l.: s.n.], 1979. Dissertao de
doutoramento em Histria Moderna e Contempornea apresentada Faculdade de Letras do Porto.
Neste sentido, importa compreender o vocabulrio social e, para isso, necessrio confrontar o
papel do regulador do Estado com as prticas quotidianas do exerccio da profisso. Mas certo que
cabe ao legislador, antes de tudo o mais, e atravs de rgos como a Junta do Comrcio e a Mesa do
Bem Comum dos mercadores, definir quem pertence ou no pertence, quem quem.
8
Veja-se o estudo exemplar de CRUZ, Maria Antonieta Bernardo Pereira Leito. Um notvel do porto. Douro Estudos &
Documentos, vol. I (3), 1997 (2), pp. 101-110.
9
PEREIRA, Miriam Halpern Pereira Negociantes, fabricantes e artesos entre velas e novas instituies. Lisboa: Joo S da
Costa, 1992, p. 10.
10
LAVE, Jean; DUGUID, Paul A produo de famlias o comrcio na histria: um projecto antropolgico-histrico. Douro:
Estudos & Documentos, ano 1, 1996, pp. 97-117.
II. As Famlias
1. Gomes de Castro
Os Gomes de Castro tm origens quinhentistas no casal da Torre, foreiro Colegiada de Guimares,
sito em So Romo de Ares, Fafe (antigo concelho de Montelongo), na fronteira com o concelho de
Guimares. So, portanto, uma famlia de lavradores, pequenos proprietrios e caseiros que, certamente,
sentiam no seu quotidiano a presena condicionante da serra, obstculo fsico que os distanciava do
centro urbano de Guimares.
A partir do incio do sculo XVIII, um dos ramos da famlia, preterido na sucesso do casal da
Torre, comea a descer pela encosta oeste da Serra de Nossa Senhora da Penha, ao longo da Ribeira
de Vizela, e em apenas trs geraes percorre sucessivamente as freguesias de Ates, Meso Frio, Vila
Nova das Infantas, Calvos, Gmeos e Serzedo, at se fixar finalmente no Porto.
Encontramos alianas matrimoniais com algumas das famlias notveis deste eixo geogrfico,
como os Mendes da Guerra (do casal de Sairro), tm pontualmente ligaes importantes Igreja,
como o caso do Padre Joo de Castro, Capelo das Religiosas de Santa Clara de Guimares, e ainda
alguns sinais de poder econmico (naturalmente ajustados ao contexto scio-econmico em que se
inserem), como por exemplo o ofcio de enterro de 27 padres e 8 dias de missas gerais mandado fazer
por alma de Maria de Crasto.
Do casal Custdio Gomes de Castro (n. 1722) e Clemncia Ribeiro (1732-1769), que fixaram a sua
residncia na freguesia de Serzedo, houve cinco filhos, sendo apenas um deles varo: Joo Antnio
Gomes de Castro, nascido em 1766 e baptizado na Real Igreja de So Miguel do Castelo. Pouco ou nada
se sabe da sua juventude e desconhece-se, em absoluto, o percurso das suas quatro irms.
11
VIEIRA, Benedita Maria Duque A formao da sociedade liberal: 1815-1851. Lisboa: Centro de Estudos de Histria
Contempornea Portuguesa, 2005, pp. 47-57.
12
Eram antepassados comuns dos nubentes Francisco de Castro e sua mulher Maria Mendes da Guerra, bisavs paternos
de Joo Antnio e avs maternos de Catarina Gomes da Silva.
13
Jos Joaquim (n. 1794), Francisco Jos (f. jovem), Antnio Jos (n. 1796), Camila (n. 1801), Domingos (n. 1802), Joaquim
(n. 1798), Margarida (n. 1799), e Francisco (f. jovem).
14
PINTO, Albano da Silveira; BAENA, Viscondes de Sanches da Resenha das familias grandes e titulares de Portugal. Lisboa:
Empreza Editora de Francisco Arthur da Silva, 1883, tomo I, p. 424.
15
Vd. GUIMARES, Gonalves A Alfndega do Porto e o comrcio entre a barra do Douro e os portos russos do Bltico em
1820. Revista de Histria, vol. 10, 1990, pp. 137-156.
16
Vd. SILVA, Antnio Martins da Desamortizao e venda dos bens nacionais em Portugal, na primeira metade do sculo
XIX. Coimbra: Faculdade de Letras, 1989; SILVEIRA, Lus Espinha da A venda dos bens nacionais (1834-43): uma primeira
abordagem. In O sculo XIX em Portugal. Comunicaes ao colquio organizado pelo Gabinete de Investigaes Sociais.
Lisboa: Editorial Presena/Gabinete de Investigaes Sociais, 1979, pp. 87-11.
17
Vd. PEREIRA, Gaspar Martins As quintas do Oratrio do Porto no Alto Douro. Revista de Histria Econmica e Social, n 13,
1984, pp. 13-49.
18
Arquivo do Dr. Jos Pedro Borges de Castro.
19
Vd. BORREGO, Nuno As ordenanas e as milcias em Portugal. Subsdios para o seu estudo. Lisboa: Guarda-mor, Edio
de publicaes Multimdia, 2006, vol. 1, p. 31.
20
Demitido em 16.11.1831 por se achar incapaz de continuar ao servio em virtude das molstias de que padecia. Cf. Gazeta
de Lisboa, n 276, 22.11.1831.
21
Vd. Almanaque das ordenanas referido ao 1 de Maro de 1831. Lisboa: na Impresso de Manuel Jos da Cruz, 1831.
22
Arquivo do Dr. Jos Pedro Borges de Castro.
23
PINTO, Albano da Silveira; BAENA, Visconde de Sanches de Resenha das famlias grandes e titulares de Portugal. Lisboa:
Empreza Editora de Francisco Arthur da Silva, 1883, tomo I, pp. 422-426.
24
Vd. Dirio de Governo, n 173, de 25.07.1822.
25
Vd. Dirio do Porto, n 4, de 22.05.1828.
26
Vd. Dirio do Porto, n 5, de 23.05.1828.
II
2. Os Ferreira Borges
Os Ferreira Borges fixaram-se no Porto nos finais do sculo XVII, princpios da centria seguinte.
A sua varonia Madureira, proveniente de Ancede, Baio.
A fixao dos apelidos Ferreira Borges ocorre com Antnio (1707-1775), morador na freguesia da
Vitria, no Porto, filho de Antnio de Madureira e de Maria do , que adoptou um apelido proveniente
da sua av materna e outro da av paterna.
Casou trs vezes: a primeira com Teresa Josefa, sem gerao; a segunda com Teresa Maria, de
quem teve trs filhos; e a terceira com Teresa Dinis de Carvalho, de quem teve oito filhos.
Destes oito filhos, salientam-se o Reverendo Antnio Ferreira Borges (n. 1752), irmo da Santa Casa
da Misericrdia27 e referncia moral da Famlia, e o primognito Jos Ferreira Borges (1760-1823), rico
27
Vd. SOUSA, Gonalo Vasconcelos e Irmos da Santa Casa da Misericrdia do Porto (1799-1856), Parte I. Genealogia &
Herldica, 1999, pp. 311-363; IDEM Irmos da Santa Casa da Misericrdia do Porto (1799-1856), Parte II. Genealogia &
Jos Ferreira Borges (pai) viria a casar segunda vez com D. Prudncia Perptua da Silva Meneses, filha
do Capito Antnio Cardoso de Meneses, morador na Rua Nova do Almada, com razes prximas em
Vila Real. Deste casamento nasceriam seis filhos, destacando-se D. Ana Emlia (n. 1801), que desposou
o Dr. Antnio Jos de Castro, pais de Jos Ferreira Borges de Castro, 1 visconde de Borges de Castro.
Herldica, 2, 1999, pp. 339-400; IDEM Irmos da Santa Casa da Misericrdia do Porto (1799-1856), Parte III. Genealogia
& Herldica, 9-10, 1999, pp. 509-551.
28
Vd. MORAES, Alexandre de Mello Historia do Brasil-reino e Brasil-imperio comprehendendo: A historia circumstanciada
dos ministerios, pela ordem chronologica dos gabinetes ministeriaes, seus programmas, revolues politicas que se dero,
e cores com que apparacero, desde a dia 10 maro de 1808 at 1871 [S.l.]: Typ. de Pinheiro & C., 1871.
29
Vd., sobretudo, BRUNO [Sampaio] Portuenses ilustres. Porto: Livraria Magalhes & Moniz Editora, 1907, tomo II,
pp. 321-327; DIAS, Jos Henriques Rodrigues Jos Ferreira Borges: poltica e economia. Lisboa: Instituto Nacional de
Investigao Cientfica, Centro de Histria da Cultura da Universidade Nova, 1988; MAGALHES, Jos Maria de Vilhena
Barbosa de Jos Ferreira Borges. In Juriconsultos Portugueses do sculo XIX. Lisboa: Edio do Conselho Geral da Ordem
dos Advogados, 1960, 2 vol.
30
Revista Universal Lisbonense. Jornal dos Interesses Physicos, Intelectuais, e Moraes. Collaborado por muitos sbios e literatos,
redigido por Antnio Feliciano de Castilho. Lisboa: Imprensa da Gazeta dos Tribunais, 1844-1845, tomo IV, p. 19.
31
Obras completas do cardeal Saraiva (D. Francisco de S. Luiz) patriarca de Lisboa, precedida de uma introduo pelo marquez
de Resende, volume 6, pp. 341-342.
32
Arquivo Histrico Militar Processo individual de Antnio Ferreira Borges.
precisamente este ltimo ramo que importa estudar. A sua evoluo liderada pela figura
tutelar de Francisco Jos Gomes Monteiro (1773-1824), considerado com um dos principais e mais
inteligentes negociantes da praa do Porto35. Homem com excelentes relaes com a Igreja, deu uma
esmerada educao a todos os filhos, encaminhando-os para os estudos em Coimbra e em Inglaterra.
Moradores no Largo de Santo Eli, na freguesia de Nossa Senhora da Vitria36, construram umas
nobres casas na Rua de Cedofeita na dcada de vinte do sculo XIX, afastando-se do Rio que lhes deu o ser.
Casou Francisco Jos, a primeira vez, com Maria Teodora Monteiro (ou do Valle), de quem teve
dois filhos: Francisco (n. 1803) e Maria, que viria a desposar Antnio Joaquim de Miranda Guimares,
negociante da Rua das Flores; e segunda vez com D. Maria Anglica de Andrade, natural de Britelo,
Celorico de Basto, de cujo casamento nasceram seis filhos: Jos Gomes Monteiro, o biblifilo Joseph
editor de Camilo; Carlos Eduardo, Joaquim, Alexandre, Henrique e Emlia.
Depois da morte de Francisco Jos, ocorrida em 1824, D. Maria Anglica, senhora de raras virtudes
e esprito elevado37, chama a si a responsabilidade de governar a Casa e f-lo com distino: tutela
33
PINTO, Albano da Silveira; BAENA, Visconde de Sanches de Resenha das famlias grandes e titulares de Portugal. Lisboa:
Empreza Editora de Francisco Arthur da Silva, 1883, tomo I, p. 220.
34
PINTO, Albano da Silveira; BAENA, Visconde de Sanches de Resenha das famlias grandes e titulares de Portugal. Lisboa:
Empreza Editora de Francisco Arthur da Silva, 1883, tomo I, p. 219.
35
CORDEIRO, A. X. Rodrigues Jos Gomes Monteiro. O Tripeiro, ano 1909, p. 541.
36
Arquivo Histrico Municipal do Porto. A-PUB/4839 (7), f. 2v.
37
Vd. CORDEIRO, A. X. Rodrigues Jos Gomes Monteiro. O Tripeiro, ano 1909, p. 541.
4. Os Costa Carvalho
Gabriel da Costa Carvalho , sem dvida, o patriarca que conheceu uma ascenso mais fulgurante.
Em 1801 torna-se Familiar do Santo Ofcio e em 1807 o nico dos patriarcas das quatro famlias
estudadas que surge claramente identificado como negociante de grosso trato da praa do Porto, com
casa comercial que gira sob a designao de Gabriel da Costa Carvalho & Filho 41.
Nascido em 1758, em So Miguel de Gona, concelho de Guimares, foi o oitavo filho de Joo
Machado da Costa (natural de Serafo, Fafe) e de sua mulher Maria Anglica de Carvalho (natural
38
Vd. Gazeta de Lisboa, n 254, 26.10.1827, p. 1238, e n 285, 02.12.1829, p. 1170.
39
Vd. GRAA, Manuel de Sampayo Pimentel Azevedo At guerra dos dois irmos a partir da correspondncia comercial
de Manuel Pedro Guimaraens (1822-1832). Douro Estudos & Documentos, vol. I (2), 1996 (2), pp. 167-179.
40
PIMENTEL, Alberto Noites de Cintra. 2 ed. Lisboa: Parceria Antnio Maria Pereira, Livraria Editora, 1908, pp. 69-78;
IDEM Vinte annos de vida literria. 2 ed. Lisboa: Parceria Antnio Maria Pereira, Livraria Editora, 1908, pp. 39-51; SILVA,
Inocncio Francisco da Diccionario Bibliographico Poruguez [], tomo IV, pp. 363-364.
41
Almanach do anno de 1807. Lisboa: na Impresso Rgia, p. 525.
42
Segundo a inquisio, realizada em 1801, como foi para a cidade do Porto no savem as testemunhas se he cazado nem
solteiro nem se tem filhos algums ilegtimos pois dele no tivero mais notcia.Vd. Diligncias de habilitao para o cargo
de familiar do Santo Ofcio de Gabriel da Costa Carvalho, casado com Maria Joaquina de Oliveira. Vd. Torre do Tombo.
Tribunal do Santo Ofcio, Conselho Geral, Habilitaes, Gabriel, m. 4, doc. 39, f. 10.
43
Vd. Ibidem, f. 15.
44
Vd. Ibidem, f. 82.
45
Vd. Ibidem, f. 27.
que se trata limpa e abastadamente e a sua ocupao he negociar para o Brazil, e nesta cidade e nella
tem boas propriedades ho de valer milhor de trinta mil cruzados h de fazer de lucro annualmente
milhor de oitocentos mil reis48.
Foi efectivamente um grande proprietrio, com duas casas na Rua das Flores, duas no Bairro do
Laranjal, duas nos Lavadouros e outras na Picaria49.
Manteve sempre uma grande afinidade com o seu compadre Joo Antnio Gomes de Castro, que
alis ser o seu nico testamenteiro e tutor dos seus filhos menores.
Do casamento de Gabriel e Maria Joaquina nasceram quatro filhos: Antnio Joaquim (1800-1874),
Maria Mxima (1802-1853), que veio a casar com Jos Joaquim Gomes de Castro, 1 visconde e 1 conde
de Castro; Joaquim e Jos.
Antnio Joaquim da Costa Carvalho, baro de So Loureno, por decreto de 184850, foi Comendador
das ordens de Cristo e de Nossa Senhora da Conceio de Vila Viosa, cavaleiro da de Torre e Espada;
comendador da de Isabel a Catlica, de Espanha, e de S. Maurcio e S. Lzaro de Itlia, conselheiro, etc.
Deputado em vrias legislaturas, foi membro honorrio do Tribunal de Contas, director da Alfndega
do Porto (em cujo lugar se reformou)51, presidente da Comisso Reguladora da Agricultura e Comrcio
dos Vinhos do Alto Douro, e coronel honorrio do extinto Batalho dos Empregados Pblicos do Porto52.
46
Vd. Ibidem, f. 29.
47
Vd. Ibidem, f. 16.
48
Vd. Ibidem, f. 4.
49
Registo do testamento com que falesceo Gabriel da Costa Carvalho, Negociante, morador que foi na Rua do Laranjal
freguesia de Santo Ildefonso. AHMP-A-PUB-02300, f. 240-241v.
50
Vd. Nobreza de Portugal e do Brasil, vol. III, p. 329; Portugal Dicionrio Histrico, Corogrfico, Herldico, Biogrfico,
Bibliogrfico, Numismtico e Artstico, volume VI, p. 697; Resenha das Famlias Titulares e Grandes de Portugal [], tomo II,
p. 568.
51
Exposio dos principaes actos da administrao do baro de So Loureno, como director da alfandega do Porto. Lisboa:
Imprensa Nacional, 1862.
52
Cf. Notcia do falecimento e disposies testamentrias no jornal O Comrcio do Porto de 22.06.1875.
Concluso
Nas quatro famlias em apreo assiste-se a um momento-chave: a ruptura, a mobilidade geogrfica
de um dos seus membros que, por si s, evoluir como patriarca da sua famlia. So homens capazes
de construir uma Casa no sentido sociolgico do termo, de construir uma linhagem, de reagrupar os
parentes baseando-se em laos fortes de solidariedade.
So essas famlias que, com uma poltica de casamentos endogmica, tendentes a salvaguardar
e aumentar o seu patrimnio, filiadas numa homogamia social e na vivncia quotidiana de valores
de educao e de cultura traduzidas em formas de estar e de sentir agregadoras, para garantir a
manuteno do seu estatuto social, que vo construir o Porto Romntico.
53
Relao dos Liberais (), p. 16
54
Vd. Colleco (), p. 155.
55
Vd. O Tripeiro, I Srie, I ano, p. 268.
56
AHMP, Livro de Plantas, n VI, f. 193-194.
57
PIMENTEL, Alberto A Campanha do Ch. A Assembleia Portuense. O Tripeiro, I Srie, I ano, pp. 45-46.
58
BASTO, Artur de Magalhes O Porto do Romantismo. [Porto]: Caminhos Romanos, 2010.
59
O Comrcio do Porto, 22 de Junho de 1874.
Introduo
A vida de Jos Pereira Reis preenche, durante quase 80 anos, uma boa parte do sculo XIX. Nasceu
em plenas invases francesas e, na parte inicial da sua vida, atravessou perodos muito difceis da vida
nacional que muito o influenciaram (as guerras liberais, a Patuleia), falecendo quando chegava ao fim
o perodo de prosperidade que prolonga a Regenerao. No sendo uma figura histrica nacional, a sua
biografia tem interesse por isso mesmo: foi um dos que conseguiu iludir o destino banal e medocre
a que uma sociedade fechada condenava muitos dos seus contemporneos. Tendo nascido numa
famlia sem meios, conseguiu pelo seu valor conquistar uma posio econmica e social confortvel,
sem se esquecer de contribuir, de maneiras mltiplas, para melhorar a sociedade em que vivia. Lente
da Escola Mdico-Cirrgica do Porto e mdico das elites portuenses, mas tambm filantropo, literato,
poltico local e mao, conhecer o doutor Jos Pereira Reis conhecer melhor o Porto do Romantismo.
Neste trabalho, aps uma resenha dos principais passos da sua vida, abordam-se alguns aspectos
ainda no publicados da sua biografia, designadamente a discusso do seu papel relativamente a
uma dissertao sobre os efeitos teraputicos da Electricidade, a anlise da sua biblioteca e o seu
testamento. Apresenta-se, ainda, iconografia indita.
1
MARQUES, A. H. Oliveira Histria da Maonaria em Portugal Poltica e Maonaria 1820-1869, 2 Parte. Lisboa: Editorial
Presena, 1997, p. 523.
Fig. 1 Jos Pereira Reis. Fotografias constantes em lbuns da famlia Miranda Lemos e a ela por ele legados.
Jos Pereira Reis era mao, pertencendo loja Constncia do Porto, onde atingiu o grau 4 em
1842. Assumiu o nome simblico de Jenner, certamente inspirado pelo mdico e investigador ingls
Edward Jenner (1749-1823) que, pela primeira vez, estabeleceu em bases minimamente cientficas
a vacinao para o combate da varola. Prezando muito as suas relaes sociais, foi um dos scios
fundadores do Club Portuense4. Foi tambm fundador do Asilo da Primeira Infncia Desvalida e do
Recolhimento de N Sr das Dores e S. Jos, para meninas desamparadas, um e outro estabelecidos no
Porto, actividades que desenvolveu em conjunto com Agostinho Albano da Silveira Pinto. Protegeu
ainda o Asilo da Primeira Infncia Desvalida de Coimbra. Foi um dos fundadores do Montepio Geral,
relativamente ao qual desenvolveu uma actividade significativa.
2
Enciclopdia Luso-brasileira, artigo Reis, Jos Pereira.
3
Ibidem.
4
FERREIRA, Damio Vellozo O Club Portuense 1857 Biografia dos Fundadores. Lisboa: 2007.
O Diccionario Bibliographico Portuguez de Inocncio refere-o e lista as suas obras5, tal como a
Enciclopdia Luso-Brasileira, que lhe dedicou um extenso artigo. Numa monografia recente publicada
sobre a Escola Mdico-Cirrgica do Porto, considerado como uma figura notvel do Corpo Catedrtico
desta Escola6.
5
INOCNCIO, Francisco da Silva, et al. Diccionario Bibliogrphico Portuguez. Lisboa: Imprensa Nacional, 1885, tomo V,
pp. 100-101.
6
FERRAZ, Amlia Ricon A Real Escola e a Escola Mdico-Cirrgica do Porto. Porto: Universidade do Porto; Edies Centenrio,
2013, p. 63.
7
PIMENTEL, Alberto Os Amores de Camilo. 2 ed. Lisboa: Livraria Editora Guimares & C.a, 1923, p. 261.
8
PIMENTEL, Alberto O Porto h trinta anos. 2 ed. Porto: UCE-Porto, 2011, pp. 45-46.
9
O Occidente. vol. X, n 291, 21 de Janeiro de 1887.
10
FERRAZ, Amlia Ricon A Real Escola e a Escola Mdico-Cirrgica do Porto. Porto: Universidade do Porto; Edies Centenrio,
2013, p. 63.
11
FERRAZ, Amlia Ricon A Real Escola e a Escola Mdico-Cirrgica do Porto. Porto: Universidade do Porto; Edies Centenrio,
2013, p. 381.
12
FERRAZ, Amlia Ricon A Real Escola e a Escola Mdico-Cirrgica do Porto. Porto: Universidade do Porto; Edies Centenrio,
2013, p. 93.
O exerccio da Medicina
H ampla evidncia de que Jos Pereira Reis exerceu a actividade de mdico. Um curioso livro
publicado por um ex-funcionrio pblico de ento justifica a sua (do funcionrio) ausncia continuada
do local de trabalho durante nove anos! Entre as justificaes apresentadas encontra-se uma prescri-
o de Jos Pereira Reis para que realizasse um tratamento termal em Vizela. Mas a sua actividade
relativamente Medicina no se limitou ao exerccio da clnica, estendendo-se estruturao da
profisso de mdico. Jos Pereira Reis foi o primeiro presidente da Sociedade Unio Mdica, fundada
no Porto em 188213.
Era um entusiasta das guas termais de Vizela, com que tomou contacto cerca de 185114, tendo feito
parte de uma comisso destinada a estudar estas guas e a promover a sua utilizao. Nos ltimos
anos da sua vida possua uma residncia de Vero em Vizela que ainda hoje existe, embora em runas.
Actividade literria
Jos Pereira Reis contribuiu para o Repositrio Literrio, em 1834 e, em colaborao com o seu
sogro, o conselheiro Agostinho Albano da Silveira Pinto, redigiu a Revista Estrangeira, fundada em
1837, mais tarde substituda pela Revista Literria, que durou at 1845. Para alm das obras relativas
Medicina, fez tradues cuidadas das obras de Eugne Sue: Mistrios de Paris, Porto, 1843 (trad. do
romance de Eugnio Sue, que no assinou); Os Sete Pecados Mortais: 1o Soberba, Porto, 1847, 4 tomos;
2o Inveja, id., 1848, 3 tomos; 3o Ira, id., 1849, 1 tomo; 4 Luxria, id., 1849, 2 tomos; 5 Preguia, id.,
1851, 1 tomo; 6 Gula e 7 Avareza, id., 1857, 1 tomo (trad. da obra de Eugne Sue, que no assinou).
Aquilino Ribeiro15 refere que Jos Pereira Reis fez um trabalho notvel para aprender o calo das
crianas de rua de Paris de forma a realizar a traduo dos Mistrios de Paris.
A biblioteca
A biblioteca de Jos Pereira Reis foi por si legada ao Asilo da Primeira Infncia Desvalida do Porto16,
tendo sido vendida em leilo. O catlogo17 tem 140 pginas e abrange 2057 ttulos, estando dividido
nas seguintes seces: Literatura e Poligrafia (45% do nmero de ttulos), Cincias Naturais (36%),
13
Os estatutos da Sociedade Unio Mdica, bem como o extracto de uma acta, esto conservados no Arquivo Distrital do
Porto, cdigo de referncia PT/ADPRT/AC/GCPRT/J-C/114/01095.
14
Cartas inditas de Camilo Castello Branco ao 1 Conde de Azevedo. Frana e Armnio, 1926.
15
RIBEIRO, Aquilino O Romance de Camilo. Lisboa: Livraria Bertrand, 3 vols., 1961.
16
Arquivo Municipal do Porto (AMP). Registo do Testamento com que no dia 11 de Janeiro de 1887 falleceu o Doutor Jos
Pereira Reis, morador que foi na rua do Almada, freguesia da Victoria, desta Cidade do Porto. Arquivo Municipal do Porto,
identificador 12203.
17
Catlogo dos livros pertencentes biblioteca do falecido Dr. Jos Pereira Reis, e que ho-de ser vendidos em leilo na Rua do
Almada n 324. Porto: Imprensa Popular, 1887.
18
COSTA, Teresa de Jesus Alguns aspectos da vida e da obra de Augusto d Arzilla Fonseca (1853-1912). Gazeta da Sociedade
Portuguesa de Matemtica. Cf. http://gazeta.spm.pt/getArtigo?gid=199 (2014.9.29).
19
Arquivo Municipal do Porto (AMP). Registo do Testamento com que no dia 11 de Janeiro de 1887 falleceu o Doutor Jos
Pereira Reis, morador que foi na rua do Almada, freguesia da Victoria, desta Cidade do Porto. Arquivo Municipal do Porto,
identificador 12203.
20
LEMOS, Joo Miranda Albano de Miranda Lemos: um solicitador no Porto do Romantismo. In SOUSA, de Gonalo de
Vasconcelos e, coord. Actas do I Congresso O Porto Romntico. Porto: CITAR; UCE-Porto, 2012, vol. 2, pp. 269-284.
No foi certamente por acaso que Francisco Martins Ramos Guimares foi colocado em primeiro
lugar no rol das testemunhas. Conhecemos o testamento de Francisco Martins Ramos Guimares21, e
21
AMP. Registo do testamento de Francisco Martins Ramos Guimares. Arquivo Municipal do Porto, identificador 17581.
Concluso
Qual o legado de Jos Pereira Reis? A sua obra, quer a literria, quer a relativa Medicina, est
hoje totalmente ultrapassada e quase completamente esquecida. O que resta, pois, dele que nos leve
a lembr-lo? No seu tempo, Jos Pereira Reis tentou sempre ter uma actividade com um impacto
positivo na sociedade, no melhor sentido. Com maior ou menor sucesso, actuou em vrias frentes,
na beneficncia e assistncia social, na prtica e ensino da Medicina, combatendo o charlatanismo
e usando de modo objectivo os melhores conhecimentos disponveis no seu tempo, na gesto
municipal e mesmo em aspectos mais mundanos, como a literatura ou a divulgao cultural. No
foi um investigador, mas pode dizer-se que foi um homem de cincia, tendo ultrapassado em muito
o diletantismo de um mero divulgador. Tinha averiguadamente interesse pelos efeitos teraputicos
da Electricidade e isto era, de facto, um tema muito avanado na poca, que tudo aponta para que
no tenha abordado de um modo meramente livresco. Numa palavra, a sua atitude face ao valor do
conhecimento para o progresso da sociedade que extremamente actual e importa recordar.
1
Lus Alberto Alves, professor associado do Departamento de Histria e Estudos Polticos e Internacionais da Faculdade
de Letras da Universidade do Porto, investigador do CITCEM Centro de Investigao Transdisciplinar Cultura, Espao
e Memria. Francisco Miguel Arajo, doutorando na mesma instituio com projeto de investigao financiado pela
Fundao para a Cincia e a Tecnologia (FCT/POPH/QREN/UE), investigador do CITCEM.
2
ANTONINO, Jos A Prostituio sob o ponto de vista da hygiene social. Porto: Typ. Universal de Nogueira e Caceres, 1881,
p. 35.
3
Vd., a este propsito e entre outros, DUFOUR, Pedro Histria da prostituio em todos os povos do mundo desde a mais
remota Antiguidade at aos nossos dias. Lisboa: Emp. Lit. Luso-Brasileira Ed., 1895. PESSOA, Alfredo de Amorim Histria
da prostituio em Portugal desde os tempos mais remotos da Lusitnia at aos nossos dias. Lisboa: Emp. Editora de F. Pastor,
1887. SANTOS, Carlos A Prostituio em Portugal nos sculos XIX e XX. Histria. Lisboa: Projornal. 41 (Mar. 1982), pp. 2-21.
ROBERTS, Nickie Whores in History: prostitution in Western Society. New York: Harper Collins, 1992. JEFFREYS, Sheila The
idea of prostitution. Melbourne: Spinifex Press, 1997. PAIS, Jos Machado A prostituio e a Lisboa bomia: do sculo
XIX a incios do sculo XX. Porto: Ambar, 2008. SILVA, Susana Classificar e silenciar: vigilncia e controlo institucionais
sobre a prostituio feminina em Portugal. In www.scielo.oces.mctes.pt/pdf/aso/n184/n184a05 (2014.06.05; 21 h).
A prostituio no Porto no maior do que a das outras cidades no estrangeiro com igual populao5.
Porm, na primeira metade do sculo XIX, a consulta de fontes primrias de diversas tipologias no
muito explcita quanto s mulheres pblicas e sua integrao entre as gentes tripeiras. Todavia,
encarando a sua condio matriz de cidade martima e de entreposto comercial, numa circulao
constante de pessoas do burgo, das reas circundantes e de estrangeiros, em especial os marinheiros
4
Vd., a este propsito, CRUZ, Francisco Ignacio dos Santos Da prostituio na cidade de Lisboa. Lisboa: Typ. Lisbonense,
1841. AZEVEDO, Francisco Pereira d Historia da prostituio e Policia Sanitaria no Porto. Porto: Typ. Francisco Gomes
da Fonseca, 1864. LEMOS, Alfredo Tovar A prostituio. Lisboa: Tip. Colonial, 1908.
5
Vd. AZEVEDO, Francisco Pereira d Op. Cit, p. 160.
6
Apud PIMENTEL, Alberto O Porto na berlinda: memorias duma familia portuense. Porto: Liv. Chardron, 1894, p. 145.
7
CORRA, Francisco Luiz Manifesto do inventor do preservativo do contagio venereo a todos os facultativos do mundo.
Porto: Typ. Comercial Portuense, 1839.
8
Apud ALBERTO, Jos Maria Dos crimes sexuais: do crime de lenocnio em especial. O novo paradigma da Criminalidade Sexual.
[S.l.: s.n.], 2012, p. 21. Dissertao de Mestrado em Cincias Jurdico-Criminais na Universidade Autnoma de Lisboa.
9
Governo Civil do Porto. Regulamento Policial e Sanitrio das Meretrizes dos Concelhos do Porto e do de Vila Nova de Gaia.
Porto: Typ. de C. Gandra, 1860.
10
Vd. SANTOS, Maria Jos Moutinho A sombra e a luz: as prises do Liberalismo. Porto: Edies Afrontamento, 1999.
11
Governo Civil do Porto. Regimento ou Instruces Regulamentares e Disciplinares do Corpo de Policia Civil do Porto. Porto:
Typ. Antnio Jos da Silva Teixeira, 1868.
12
Governo Civil do Porto. Regulamento de Policia das Toleradas no Districto do Porto. Typ. do Jornal do Porto, 1868.
No vou referir todas as causas de prostituio que ainda subsistem nos tempos modernos [];
falarei simplesmente das causas que ahi vemos todos os dias augmentar o numero de prostitutas e
as quaes podem ser consideradas em dois grupos; umas inherentes propria natureza da mulher,
outras dependentes dos meios em que ella vive; aquelas intrinsecas, estas extrnsecas14.
Os historiadores parecem alinhar por um mesmo tom quanto a um aumento substancial da Pros-
tituio um pouco por toda a Europa, entre finais do sculo XVIII e por todo o sculo XIX, enquadrado
nas radicais transformaes socioeconmicas da difuso da Revoluo Industrial. O crescente peso
do sector industrial face agricultura e ao comrcio, o aumento dos fenmenos migratrios do xodo
rural e da emigrao, a expanso urbana e a formao de uma classe operria, tudo neste conjunto
agravou a misria e o pauperismo social entre as franjas mais pobres e desprotegidas da sociedade,
obrigadas a lanar mo a todas as alternativas de sobrevivncia, mesmo que ilcitas. Outro facto que
poder ter infludo no caso das mulheres pblicas foi o dos movimentos de abolio da escravatura
negra por muitos pases europeus, porque afinal a disponibilidade sexual das cativas era tambm
um dos direitos que os senhores arrogavam para si e os seus familiares15.
Comparativamente, outras causas mais pessoais permanecem to vlidas, antes como hoje, para
as mulheres que optavam por essa profisso indigna: carncia de educao e instruo familiar e
pblica, ncleos familiares desestruturados e em ambientes de promiscuidade, necessidade por
falta de trabalho ou da prpria misria social e mesmo como complemento dos parcos rendimentos
profissionais. Mas tambm para tantas outras a corrupo dos costumes e da moral, o afastamento
da religiosidade e dos mandamentos da Igreja, o aliciamento por uma vida de luxo e de riqueza fcil,
a cedncia ao despotismo e preguia ou a fuga dos seus meios de residncia por decees amorosas
e o julgamento por terceiros do seu carcter e conduta duvidosa.
O clnico Jorge Vieira apontava, por seu lado, algumas caractersticas mais tpicas para a Prosti-
tuio na capital nortenha, delineando a interligao comum com a expanso industrial e urbana
do Porto Romntico, o xodo rural dos meios circundantes engrossando a classe operria e as gentes
mais humildes e pobres, nas oficinas e outros locais de trabalho, e a coao dos mestres e capatazes
sobre as suas subordinadas. A emigrao transatlntica que sangrou muita da populao do norte do
pas, tendo como principal destino o Brasil, ter impelido muitas mulheres solteiras e casadas para o
submundo da Prostituio, dada a falta de noivos e o abandono dos chefes de famlia que deixavam
muitos lares desamparados e sem meios de subsistncia. J a suposta influncia da literatura de
13
Vd. ALVES, Lus Alberto; ARAJO, Francisco Miguel Rumos da internacionalizao na histria da Universidade do Porto.
In TEIXEIRA, Pedro, ed. Percursos da internacionalizao na Universidade do Porto: uma viso centenria. Porto: U. Porto
Editorial, 2014, pp. 99-103.
14
VIEIRA, Jorge A prostituio no Porto. Porto: Typ. Jos da Silva Mendona, 1892, p. 16.
15
Vd. ARAJO, Francisco Miguel; ALVES, Sandra Vivncias dos escravos leceiros do sc. XVIII. In CONFERNCIAS DE LEA
DA PALMEIRA 2007/09: actas, Lea da Palmeira, 2009, pp. 136-143.
O Douro era a terceira provincia com maior escala de prostituio tolerada ressentindo-se do numero
de inscries no Porto17.
16
SILVA, Adelino A inverso sexual. Porto: Typ. Gutenberg, 1895, p. 198.
17
FONSECA, ngelo Da prostituio em Portugal. Lisboa: Typ. Occidental, 1902, p. 35.
18
Deve ressalvar-se um pequeno lapso na anlise estatstica do prprio Jorge Vieira, que nos seus quadros contabiliza um
total de 146 toleradas para o ano de 1889, de um total global de 1157 elementos, quando na realidade para a naturalidade
o mesmo perfaa somente 145.
19
VIEIRA, Jorge Op. cit., p. 34.
20
Vd. COELHO, Eva; MARTINS, Roberto As toleradas da Pvoa de Varzim (1871-1950). Pvoa de Varzim: [Edio do Autor],
2008.
21
FONSECA, ngelo Op. cit., pp. 378-385. O presente levantamento estatstico apresenta uma limitao de anlise
metodolgica pelo seu autor ter procedido ao uso de valores mdios quinquenais de matrculas de toleradas ao invs de
nominais.
22
VIEIRA, Jorge Op. cit., pp. 47-49.
A prostituio , sem duvida, uma causa importante da degenerescencia physica e moral do povo
portuguez e uma causa de morte prematura de todas as mulheres que a tm por modo de vida, quer
pelos excessos de toda a ordem, quer pelas doenas a que esto sujeitas a syphilis e a tuberculose23.
Alheada das especulaes filosficas e poltico-religiosas quanto a este fenmeno, a classe mdica
nacional dedicava alguma ateno sua articulao com as indagaes prementes sobre a Sade
Pblica, numa poca em que as correntes higienista e epidemiolgica estavam em grande voga
alm-fronteiras. Ora, uma das grandes impulsionadoras nacionais desse movimento era a Escola
Mdico-Cirrgica do Porto (1836-1911), alma mater de categorizados cientistas como os professores
Janurio Galvo, Antnio de Sousa Jnior, Joo Lopes Martins ou Ricardo Jorge, encaminhando muitos
dos alunos recm-diplomados para o estudo e investigao nessas reas cientficas.
Comummente, na perceo dos clnicos portuenses de Oitocentos, a manuteno da Prostituio
no Porto e no restante pas era aconselhvel, desde que nos moldes de um regime de tolerncia com
a divulgao de medidas profilticas contra as doenas venreas, diretamente relacionadas com as
meretrizes como principal foco da sua disseminao. A maioria das suas apreciaes profissionais
prendia-se, portanto, com o exame e a preveno dos riscos para a Sade Pblica e as suas propostas
mdico-clnicas pela promoo de hbitos e cuidados higinicos pessoais, englobavam: a instruo
das mulheres e dos seus clientes para os sinais e tratamento do tipo de doenas sexualmente trans-
missveis, a utilizao de mtodos contra a sua transmisso (preservativo, guas higinicas, cremes
e loes desinfetantes, etc.) e o combate acrrimo prostituio clandestina24.
O reforo da ao da Polcia Sanitria era outro dos apelos mais subscritos, a identificao das
prostitutas no ativo, o aumento da frequncia das visitas sanitrias, as melhorias dos servios prestados
nos dispensatrios e nos hospitais durante os tratamentos, aqui numa dupla vertente formativa
quanto aos riscos da profisso e reeducao moral e cvica para ponderarem uma mudana de vida.
At porque no caso do burgo portuense, o sistema montado por essa repartio policial se revelava
insuficiente para poder abranger todas as toleradas da cidade, logo, muito menos todas as que se
movimentavam na clandestinidade.
Os dois mdicos-inspetores tinham pouco pessoal auxiliar para os acompanhar e tinham de
se revezar entre os domiclios e o dispensatrio, o Hospital de Santo Antnio possua apenas duas
enfermarias prprias com 89 camas para tratamento das prostitutas em regime prisional que inclua
todo o tipo de enfermidades e sentia-se a falta de um hospital exclusivo para as doenas venreas.
Todo o trabalho era altamente comprometido pela prpria conduta das interessadas: as que estavam
infetadas procuravam dissimular a doena para no perderem dias de trabalho; e as patroas das
casas de tolerncia nem sempre eram muito rigorosas no controlo da higiene e estado de sade das
23
FERRAZ, Manuel Tibrio Breves consideraes a respeito das principaes causas de degenerescncia physica, moral e
intelectual do povo portuguez. Porto: Typ. de Pereira & Cunha, 1893, p. 125.
24
Vd., por exemplo, MOUTINHO, Antnio Ferreira Syphilis. Breve noticia do descobrimento do seu preservativo. Porto: Typ.
Imprensa Portugueza, 1880.
5. Eixos de reflexo
O Porto conta uma populao de 130:000 almas e tem em circulao 380 prostitutas matriculadas.
Est pois o numero de meretrizes para o de habitantes na proporo de 2,9%, proporo esta que
um pouco inferior que se d em Lisboa, a qual de 3,2% [] Quanto ao confronto com algumas
cidades europeas, v-se que a proporo entre ns relativamente superior, pois que Paris, Madrid,
Berlim, Berne, Marselha, Bordus e outras, apresentam uma percentagem inferior de Lisboa e
ainda do Porto25.
Talvez a afirmao supra, nessa comparao estatstica internacional da Prostituio para o sculo
XIX, se encontre algo desproporcionada. No Porto e noutras localidades nacionais data, o nmero
de prostitutas registadas seria evidentemente significativo, mas cremos que esta maior visibilidade
pblica se tenha ficado a dever promulgao da legislao nacional e municipal, que as passou a
demarcar com maior rigor. Neste caso, o nosso pas partilhava dessa discusso europeia sobre as
vantagens e desvantagens da Prostituio Pblica, vacilando entre o proibicionismo e a liberalizao,
elegendo-se esse meio-termo da tolerncia que melhor permitiria controlar o comrcio do sexo.
Entre outras esferas da ingerncia governativa, o Estado liberal portugus assumiu esse papel
regulador deste submundo socioeconmico, transpondo em parte os constrangimentos das condena-
trias mensagens religiosas e morais, intervindo com objetivos sociais e de sade em nome do bem
25
VIEIRA, Jorge Op. cit., p. 29.
26
ANTONINO, Jos Op. cit., p. 37.
27
VIEIRA, Jorge Op. cit., p. 44.
28
ANTONINO, Jos Op. cit., p. 48.
29
Vd. DUARTE JNIOR, Antnio Joaquim Henriqueta ou uma herona do sculo XIX romance original. Porto: Typ. de
Coelho Ferreira, 1877. CLUDIO, Mrio Henriqueta Emlia Conceio teatro. Lisboa: Dom Quixote, 1997.
30
Henriqueta da Conceio encomendou um dos mais peculiares mausolus no cemitrio do Prado do Repouso, um pedestal
de granito com uma esttua em mrmore de S. Francisco, para ltima morada da companheira e amante de Teresa Maria
de Jesus. Vd. QUEIROZ, J. Francisco Ferreira A encomenda de monumentos sepulcrais no perodo Romntico e o papel
da mulher na construo da memria familiar. Revista da Faculdade de Letras: Cincias e Tcnicas do Patrimnio. Porto:
Faculdade de Letras da Universidade do Porto. I Srie, vol. V-VI (2006-2007), pp. 509-525.
Contexto
A viragem do sculo XX caracteriza-se por grandes transformaes sociais, polticas, tecnolgicas,
humanas e artsticas, e eventos decisivos tomam lugar, como a Primeira Guerra Mundial. A msica
ocidental conhece rupturas tradio, pela primeira vez de forma severa desde h pelo menos 300 anos,
quer pelo contacto com prticas musicais extra-europeias (decorrentes, por exemplo, do colonialismo
1
Escola das Artes/Universidade Catlica Portuguesa.
2
Escola das Artes/Universidade Catlica Portuguesa; Escola Superior de Msica e Artes do Espectculo / Instituto Politcnico
do Porto.
3
Escola das Artes/Universidade Catlica Portuguesa.
4
Vd. PHILIP, Robert Early recordings and musical style: changing tastes in instrumental practice, 1900-50. Cambridge:
Cambridge University Press, 1999; IDEM Performing music in the age of recording. Yale: Yale University Press, 2004; e,
ainda, CHANAN, Michael Repeated takes: a short history of recording and its effects on music. Londres: Verso, 1995.
Pianistas e pianolas
Dos mais antigos nomes ligados ao instrumento de tecla na cidade do Porto, encontramos Joo
Guilherme Bell Daddi (1814-1887), exmio pianista que colaborou em duo com F. Liszt na sua visita
a Lisboa em 1845 e que era tambm membro da Sociedade de Quartetos no Porto. igualmente de
salientar Miguel ngelo Pereira (1843-1901), que foi um pianista e compositor relevante na vida
musical portuense, aluno de Sigismund Thalberg, e que passou parte da vida no Brasil, terminando
os seus dias no Porto, mestre de scar da Silva, Ernesto Maia e Artur Ferreira, entre outros que se
desconhecem. O pianista Alfredo Napoleo dos Santos (1845-1880), pianista e compositor, sucede a
Daddi na Sociedade de Quartetos.
Concertos e recitais so promovidos por diversas sociedades de concerto e tambm nos sales da
nobreza e burguesia. Encontramos referncia ao grande repertrio e s peas de salo ou encores de
cunho romntico. Alm da msica ao vivo, surgem no final do sculo XIX, nas casas e estabelecimentos
5
NERY, Rui Vieira; CASTRO, Paulo Ferreira de Histria da msica. Snteses da cultura portuguesa. Lisboa: Comissariado
para a Europalia 91, 1992, pp. 148-165.
Fig. 1 Pianola do incio do sc. XX (coleco particular, Escola de Msica Guilhermina Suggia, Porto).
O mecanismo onde os rolos se depositam claramente visvel atravs da moldura ao centro.
6
Vd. nota supra.
7
LOURENO, Sofia As escolas de piano europeias: tendncias nacionais da interpretao pianstica no sculo XX. Porto:
Universidade Catlica Editora, 2012, pp. 64-65.
8
TORRES, Hernni Sntese histrica do Conservatrio de Msica do Prto e breve anlise da sua evoluo at 15 de Junho
de 1933. Porto: Imprensa Moderna, 1933.
9
Sobre a querela entre Hernni Torres e Moreira de S, vd. BARBOSA, lvaro A luta pelo direito I: De como o menosprzo
das leis , multimodamente, causa de desordem nas relaes sociais. Porto: Edio do autor, 1927; IDEM A luta pelo
direito II: Ensinar os ignorantes. Porto: Edio do autor, 1933.
O programa do CNL denota a preciso na enumerao dos contedos que a experincia institucional
proporcionara, onde os objectivos coincidem com as expectativas de aquisio de competncias para
cada grau. A anlise de Torres incide apenas nos primeiros seis anos do curso de piano, no incluindo
a classe de virtuosidade (do 7 ao 9 anos). Existem diferenas muito acentuadas na quantidade de
repertrio entre as duas instituies. Somos tentados a concordar que, sendo verdadeiro este panorama,
seria quase impossvel um aluno estudioso no 5 ano conseguir preparar as 15 Sinfonias (Invenes a 3
vozes) de J. S. Bach num s ano, ou no 6 apresentar vinte peas, quatro das quais sonatas de Beethoven.
O programa do CNL notoriamente semelhante ao curso bsico vigente em 2014. Em 1936, Vianna
da Motta aposenta-se do cargo de director do CNL, sendo nomeado Ivo Cruz para o posto (1936-1972).
So entretanto desenvolvidos no Porto outros projectos pedaggicos importantes de cariz privado,
como o Curso de Msica Silva Monteiro (1928) e a Juventude Musical Portuguesa (fundada a nvel
nacional em 1948).10
1 3 peas, 5 Czerny op. 489. Exerccios, estudos, 15 Czerny, 5 peasincl. 1 port. e 1 bras.
2 5 Bach, 3 peas, 7 Czerny op. 299. Exerccios, escalas, 12 Czerny e Heller, 6 Bach, 5 peas incl. 1 port. e 1 bras.
1 exerccio de Vieira ou Philipp sobre escalas, ou 1 Czerny I. Escalas M/m 8/10/6, cromtica, arpejos; II. 1 Czerny entre 12; III. 1 Bach entre 10;
3 op. 299 entre 15, 1 Bach (23 Peas Fceis) entre 10, 1 IV. 1 ou mais andamentos de sonata; V. 1 pea portuguesa entre 2; VI. 1 pea entre 4
sonata de Haydn ou Mozart, 1 pea moderna entre 6. incl. 1 bras.
4 invenes, 5 Czerny op. 740, 3 Cramer, 1 sonata de
4 6 invenes, 6 Czerny, 6 Cramer, Sonata, 5 peas incl. 1 port. e 1 bras.
Beethoven, 3 peas.
5 Cramer, 3 Clementi, 2 sinfonias ou 1 suite francesa, 1
5 4 Czerny, 4 Cramer, 4 Clementi, 6 invenes, 1 sonata, 5 peas incl. 1 port. e 1 bras.
sonata de Beethoven ou Mozart, 3 peas.
6 sinfonias, 2 preldios e fugas ou 1 suite, 5 Cramer, 5 I. Escalas M/m 8/10/6, em 3.as, cromtica em 3.as, arpejos na 7 Dom; II. 1 estudo
6 Czerny op. 740, 5 Clementi, 1 sonata de Beethoven, 1 entre 4 Czerny, 4 Cramer e 4 Clementi; III. 1 sinfonia entre 3; IV. 1 ou mais andamentos
pea entre 8. de sonata; V. 1 pea portuguesa entre 2; VI. 1 pea entre 4 incl. 1 bras.
10
TORRES, Hernni Sntese histrica do Conservatrio de Msica do Prto e breve anlise da sua evoluo at 15 de Junho
de 1933. Porto: Imprensa Moderna, 1933, pp. 8-11.
Concluso
Sucessivas geraes de pianistas e tradies piansticas passaram pelo CMP enquanto alunos,
depois professores; muitos continuaram a desenvolver trabalho pedaggico e performativo no Porto,
outros seguiram para outras paragens. A tendncia de crescimento na procura deste tipo de ensino
foi apenas quebrada aps a Segunda Guerra Mundial, apontando Jos Delerue como principal razo
o avano da msica mecnica o disco, a rdio e mais tarde a TV, que j se ope msica viva e
sua aprendizagem11. Apesar dos constantes avanos tecnolgicos que poderiam ter acentuado esta
tendncia, o CMP viu aumentar o nmero de inscries nas dcadas seguintes (de salientar a ocupao
do Palacete Pinto Leite aps o 25 de Abril de 1974 e a mudana para a remodelada ala Oeste da Escola
Rodrigues de Freitas em 2009). No ano lectivo de 2014/15, o CMP tem condies para admitir apenas
15% dos candidatos aos vrios regimes e cursos.
A escassez de informao relativa aos primeiros anos do quase centenrio CMP frustra os esforos
de compreender melhor as orientaes por detrs da vida pedaggica da instituio. data da sua
fundao, o pblico-alvo constitua-se por diversas origens socioeconmicas e com motivaes
variadssimas: desde pianistas polivalentes, a maestros de coro, passando pelas meninas de sociedade,
tipificadas mordazmente por Barbosa12. O pianista deveria ganhar competncias de leitura e impro-
visao, ser desembaraado numa situao de, por exemplo, falta de pginas na partitura, deveria
11
DELERUE, Jos No cinquentenrio do Conservatrio de Msica do Porto. Porto: Edies Maranus, 1969, p. 11.
12
BARBOSA, lvaro A luta pelo direito II: Ensinar os ignorantes. Porto: Edio do autor, 1933, p. 3.
Agradecimentos
No podemos deixar de salientar a preciosa ajuda da parte de Antnio Moreira Jorge (actual
Director do CMP) e de Isabel Rocha (directora e professora de piano aposentada do CMP), enquanto
especialistas do lado de dentro da histria da instituio.
Este trabalho tambm no teria sido possvel sem a pacincia dos bibliotecrios do EMIC/UCP e
da Biblioteca do CMP.
Referncias bibliogrficas
BARBOSA, lvaro A luta pelo direito I: De como o menosprzo das leis , multimodamente, causa
de desordem nas relaes sociais. Porto: Edio do autor, 1927.
BARBOSA, lvaro A luta pelo direito II: Ensinar os ignorantes. Porto: Edio do autor, 1933.
CABRAL, Lus Uma gerao notvel: os fundadores do Conservatrio de Msica do Porto. Porto:
Conservatrio de Msica do Porto, 2009.
CHANAN, Michael Repeated takes: a short history of recording and its effects on music. Londres:
Verso, 1995.
DELERUE, Jos No cinquentenrio do Conservatrio de Msica do Porto. Porto: Edies Maranus, 1969.
LOURENO, Sofia As escolas de piano europeias: tendncias nacionais da interpretao pianstica
no sculo XX. Porto: Universidade Catlica Editora, 2012.
NERY, Rui Vieira; CASTRO, Paulo Ferreira de Histria da msica. Snteses da cultura portuguesa.
Lisboa: Comissariado para a Europalia 91, 1992.
PHILIP, Robert Early recordings and musical style: changing tastes in instrumental practice, 1900-50.
Cambridge: Cambridge University Press, 1999.
PHILIP, Robert Performing music in the age of recording. Yale: Yale University Press, 2004.
TORRES, Hernni Sntese histrica do Conservatrio de Msica do Prto e breve anlise da sua
evoluo at 15 de Junho de 1933. Porto: Imprensa Moderna, 1933.
Joo-Heitor Rigaud
A Msica, como meio favorvel criao artstica, tem especificidades que a distinguem das outras
situaes atravs das quais possvel criar objectos de Arte. Se, por um lado, a obra musical resulta
do encadeamento de acontecimentos acsticos num meio organizado, tendo por base primordial a
conflitualidade entre duas sries de sons harmnicos, com a entrada de novas sries neste ncleo original
gera-se uma complexa teia de conflitos dos quais resultam duas ocorrncias acsticas que promovem
o dinamismo necessrio existncia de uma situao discursiva conducente entidade delimitada
que a pea musical. So elas a tenso e a resoluo, sendo estes os dois princpios fundamentais da
dialctica que constitui a essncia do texto musical. Deste modo, tendo por base a realidade fsica
que a vibrao de um slido propagada atravs do ar e captada pelo aparelho auditivo do ouvinte,
a msica dispe, hoje em dia, de um patrimnio cientfico sem paralelo no meio artstico e em
constante evoluo que beneficia do enriquecimento resultante da reflexo filosfica que, ao longo
do sculo XX, deu origem a uma fecunda abordagem da Filosofia cujo processo de elaborao assenta
na criao musical.
Por outro lado, tendo ao seu dispor, como matria utilizada para a criao da obra, algo que ,
simultaneamente, material e incorpreo, o compositor procede por imagens musicais, elaborando
mentalmente as ideias at chegar ao resultado final atravs de um processo de audio interna que
se situa ao nvel da imaginao e da memria. esta materialidade intangvel que, para ser fixada
e transmitida sociedade musical, o autor escreve finalmente na partitura. Ao longo deste processo
h dois aspectos a ter em conta: o primeiro a capacidade tcnica de redaco do texto musical que
o compositor desenvolveu ao longo de anos e que lhe permite criar com fluncia; e o outro muito
pouco habitual em msica, visto que os compositores se contentam, quase sempre, com a sumria
indicao de gnero musical, que pode, ou no, corresponder realidade da pea a atribuio de
um ttulo, o que, habitualmente, acontece a posteriori e, no raro, carece de qualquer fundamento
directa ou indirectamente relacionado com a pea a que se aplica.
Sobre assuntos anlogos, dois consagrados escritores brasileiros, Clarice Lispector e Fernando
Sabino, escreveram textos significativos que importa referir. Clarice, em crnica intitulada O Artista
Perfeito, publicada no Jornal do Brasil, em 6 de Setembro de 19691, escreveu:
1
Jornal do Brasil, ano LXXIX, n 130, 06/09/1969, caderno b, p. 2.
Clarisse clarificar magistralmente esta ideia, que, alis, parte de leituras que fez da obra de Henri
Bergson, ao afirmar que a Arte no liberdade, no pureza, no inocncia, mas sim libertao,
purificao, tornar-se inocente.
Sabino, por seu lado, no livro autobiogrfico O Tabuleiro de Damas Trajetria do menino ao
homem feito, escreveu o seguinte:
Gosto daquela definio de Mrio de Andrade: conto tudo aquilo que o autor chama de conto.
Lembro-me que um dia Guimares Rosa me telefonou e perguntou o que eu estava fazendo. Eu disse
que estava tentando escrever uma pea de teatro. E ele, meio paternal:
No faa biscoitos, faa pirmides.
Fiquei algum tempo encafifado com aquilo, sem saber se a obra literria se impunha tambm pelo
gnero e pelo tamanho, alm da qualidade. Acabei concluindo que Voltaire, Machado de Assis, Jorge
Lus Borges e tantos outros fizeram biscoitos. Hemingway fez tanto sucesso com os seus biscoitos, como
aquela admirvel novela Old Man and the Sea, que acabou ganhando o prmio Nobel. Ningum
obrigado a ser Tolstoi na vida, como o prprio Hemingway pensava. Nem julgado por ser biscoiteiro
ou fara3.
Assim, alm das peas antigas que tanto apareciam designadas como Sonatas ou como Tocatas
por vezes at com uma designao na capa e a outra na partitura , no repertrio musical h
2
Depois da morte da autora, esta crnica viria a ser publicada em colectnea: LISPECTOR, Clarisse A Descoberta do Mundo.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 348.
3
SABINO, Fernando O Tabuleiro de Damas: Trajetria do menino ao homem feito. Rio de Janeiro: Record, 1988, p. 40.
Completando a ideia, vem a propsito citar o que Sabino escreveu, no mesmo livro, a pp. 28-30: Saram muitos artigos
sobre o livro [Os Grilos no Cantam Mais], nos suplementos literrios, como era moda naquele tempo []. A crtica oficial
foi bastante condescendente []. Mas o maior sucesso, para mim, foi ter recebido uma carta de Mrio de Andrade sobre o
exemplar que lhe mandei.
Entre outras coisas, a carta de Mrio dizia que, se eu tivesse mais de trinta anos, meu caso era como o de outro qualquer,
mas se tivesse menos, vinha a ser um caso bem interessante. Como eu tinha 17 [].
Mrio era um homem multiforme, um polgrafo: musiclogo, crtico de arte, ensasta, poeta, romancista, contista, folclorista,
cronista. Um mestre isso os jovens de hoje talvez no entendam, quando me mandam originais ou querem que eu seja
uma espcie de Mrio de Andrade para eles. No tenho condio. Mrio era nico.
Fui a S. Paulo conhec-lo. Embora tivesse trinta anos mais do que eu, nos entendamos como dois amigos. Ele me orientava
em tudo. Essa era a sua vocao: uma vocao apostolar e epistolar, como diria Hlio Pellegrini. Esclarecia minhas dvidas
de ordem esttica, cultural, poltica e social. Aconselhava-me a escrever todo dia, me estimulava a querer o melhor possvel:
s se dando uma empreitada destas, voc no se deixar levar pela vida, no se contentar com migalhas`, dizia numa
carta.
[] Eu enviava a Mrio os meus novos contos, que ele comentava minuciosamente. Aos 19 anos escrevi o segundo livro,
a novela A Marca. [] Levei os originais para Mrio e ele, depois de ler, fez questo de rel-la comigo, palavra por palavra,
fazendo comentrios. Comentrios que at hoje me valem como orientao.
O caso Wagner leva a outra situao que tem tido papel negativo no cabal entendimento de
tantas obras musicais, isto , as tradues defeituosas que tm feito escola sem que ningum ouse
sequer tomar conhecimento delas e, muito menos, contest-las. Vejamos, resumidamente, algumas
das mais correntes:
Wagner comps uma pera que intitulou, prudentemente, Der Ring des Nibelungen, o que em
portugus significa O Anel do Nibelungo, referindo-se a Alberich, o Nibelungo que possua o anel
mgico. Da que a traduo habitual, O Anel dos Nibelungos, que em alemo seria Der Ring der
Nibelungen ou Der Nibelungenring, para alm de errnea, no exprima correctamente o enredo;
No subttulo desta pera, Wagner exps com clareza a sua viso da pea ao indicar tratar-se
de um Bhnenfestspiel fr drei Tage und einen Vorabend, isto , um Espectculo teatral para
trs dias e uma vspera, donde se conclui que, como o enredo da obra exprime, no esprito do
compositor era uma pea nica com prlogo e trs jornadas, no uma tetralogia;
Com a pera Der Rosenkavalier, de Richard Strauss, passa-se uma situao semelhante anterior,
porque a traduo adoptada, O Cavaleiro da Rosa, no s no se aplica ao enredo como em alemo
seria Der Rosenreiter, sendo a traduo correcta O Cavalheiro da Rosa; de Strauss tambm, o
Festliches Prludium, Preldio Solene, tem um carcter muito mais solene do que festivo, ao
contrrio da traduo em uso, embora o sentido de solenidade e festa possam coincidir o que
4
RACZYNSKI, Atanazy Les Arts en Portugal: lettres adresses la socit artistique et scientifique de Berlin et accompagnes
de documens. Paris: Jules Renouard et C.ie, 1846. IDEM Dictionnaire Historico-Artistique du Portugal Pour Faire Suite
lOuvrage Ayant Pour Titre: Les Arts en Portugal. Paris: Jules Renouard et C.ie, 1847.
Neste complexo e vasto contexto, Joo Arroyo (1861-1930) um caso paradigmtico. Comeando
pelas tradues, porque o ttulo da pera Amor de Perdio foi traduzido para alemo e italiano como
sendo Liebe und Verderben e Amore e Perdizione, o que d, em portugus, Amor e Perdio, as razes
para estas curiosas tradues no esto esclarecidas; no entanto, o compositor sempre se referiu, pelo
seu prprio punho, a esta pera como intitulando-se Amor de Perdio, ttulo do romance homnimo
do seu velho e saudoso amigo Camilo Castelo Branco.
Durante cerca de vinte anos, Arroyo, o professor catedrtico de Direito de Coimbra e poltico de
todos conhecido, relegou a actividade musical para a esfera restrita da sua residncia particular, de
tal modo que, repentinamente, a revista Ilustrao Portuguesa informou que ele trocara a cadeira de
Ministro pelo banco do piano6 (o seu precioso Erard de concerto), como se fosse possvel que algum
se fizesse msico de elevados recursos tcnicos de um dia para o outro.
Seja como for, em 1906, pouco antes de ser iniciada a srie de apresentaes privadas do Amor
de Perdio que decorreram em casa do compositor, o pianista e crtico musical Adriano Mera foi
entusiasticamente informado de que o conselheiro Arroyo tinha composto uma pera wagneriana,
o que ps imediatamente em dvida, certo de que Joo Arroyo era ele prprio e apenas isso e nunca
se submeteria hegemonia de Bayreuth. Dias depois, ouvida a pera, escreveu:
5
A confuso entre cavaleiro e cavalheiro , nas tradues para portugus, um problema transversal que se manifesta
em relao a vocbulos como chevalier, Kavalier e cavaliere, estando relacionado com situaes semelhantes que se
observam quando esto em causa, por exemplo, as palavras inglesas festival e gallantry, ou, como j referido, festlich
e tantas outras. Porm, neste contexto, a questo lingustica muito mais vasta, grave e complexa, sendo a traduo
apenas um dos aspectos a considerar.
6
Ilustrao Portuguesa, n 12, 14/05/1906, pp. 353-359. Sucedeu finalmente o que tinha de suceder: levantou-se da
cadeira de ministro e foi sentar-se no banco do piano. Abandonou a pasta e tomou a partitura. Mandou para o inferno os
directores-gerais e passou a dar despacho s Musas.
No ano seguinte, no jornal A Luta, cujo director era o mdico republicano Manuel de Brito Cama-
cho, contemporneo do regenerador Joo Arroyo na licenciatura em Coimbra, o crtico Augusto de
Vasconcelos, na sequncia da estreia, a 2 de Maro, no Real Teatro de S. Carlos, deu uma notvel lio
de crtica de Arte, afirmando que o Amor de Perdio de Arroyo:
Nem um drama lrico wagneriano, nem uma pera Massenet, nem felizmente mais uma
tentativa verista moda italiana. O sr. Arroyo desprendeu-se de frmulas obrigatrias; foi escre-
vendo a sua msica ao sabor da sua inspirao, ora aproveitando e aplicando com discernimento
os ensinamentos do mestre genial de Bayreuth, ora servindo-se do bom que encontrou pelas outras
escolas, sobretudo pela francesa e nesta pelo Berlioz, que nos pareceu ser-lhe predilecto. Revolucio-
nrio, se disse. No nos deixou essa impresso; o sr. Arroyo com certeza um msico de fino gosto e
de apurada cultura, que teve a feliz ideia de trabalhar com o que h adquirido de autenticamente
belo como tcnica e como orientao, sem se subordinar a uma unidade de concepo, e sem ter a
veleidade de inventar processos novos. No que lhe escasseie o engenho; supomos que acha bastante
o que existe, como meios de se garantir, seja a que ideia for, a sua integral representao lrica e
afigura-se-nos que tem razo. No seguiu o Wagner com o seu Leitmotiv; mas adoptou os motivos
temticos, como ultimamente tm feito os modernos italianos. Somente os seus motivos, que tm,
como os de Wagner, a qualidade de serem curtos, mas de grande poder expressivo, guardam plena
eficcia atravs da partitura e destacam-se da trama orquestral com a nitidez precisa para fixarem
a ateno de quem tenha aos lados da cabea alguma coisa mais do que uns apndices auriculares
de comprimento varivel.8
7
O Dia, n 1858, 14/04/1906, p. 1.
8
A Luta, n 427, 07/03/1907, p. 1; n 428, 08/03/1907, p. 1.
9
Gibt es eine portugiesische Oper? Ja, gibt es berhaupt eine portugiesische Musik? Wir Deutschen, und wahrscheinlich
geht es anderen kunstfreundlichen Vlkern ebenso, wissen so gut wie nichts von den Portugiesen als einer knstlerisch
und musikalisch fruchtbaren Nation. Vielleicht gibt es da nichts zu wissen []. Die Portugiesen waren von jeher ein Volk der
Geschfte []. Sicher aber muss Arroyo als eine durchaus musikalische Natur, als ein nicht gewhnlich begabter Musiker
eingeschtzt werden. [] Arroyo schreibt ungemein dankbar fr die Singstimme und verleugnet die den lateinischen
Nationen angeborene Neigung zu jener Art von ohrenflliger Melodie`, die man Salongassenhauer nennen mchte; seine
Deklamation ist ausdrucksvoll, sein Pathos zeichnet Wrme und ein gewisser Schwung aus, seinen Stil Einheintlichkeit. Was
will man mehr! [].
10
Le Figaro, 54 ano, 3 srie, n 62, 02/03/1908, pp. 4-5. Trata-se de uma extensa crnica que conclui referindo: les beauts
de cet ouvrage, qui compte assurment parmi les plus belles productions du thtre lyrique contemporain.
11
O Primeiro de Janeiro, n 24, 28/01/1910, p. 1.
12
O Dia, n 2966, 29/01/1910, p. 1.
13
O Ocidente, n 1015, 10/03/1907, pp. 49-50.
Fontes e Bibliografia
Fontes hemerogrficas:
A Lucta (Lisboa)
Hamburger Nachrichten (Hamburgo)
Illustrao Portugueza (Lisboa)
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro)
Le Figaro (Paris)
O Dia (Lisboa)
O Occidente (Lisboa)
O Primeiro de Janeiro (Porto)
Bibliografia
LISPECTOR, Clarisse A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
RACZYNSKI, Atanazy Dictionnaire Historico-Artistique du Portugal pour Faire Suite lOuvrage Ayant
pour Titre: les Arts en Portugal. Paris: Jules Renouard et C.ie, 1847.
RACZYNSKI, Atanazy Les Arts en Portugal: Lettres Adresses la Socit Artistique et Scientifique de
Berlin et Accompagnes de Documens. Paris: Jules Renouard et C.ie, 1846.
SABINO, Fernando O Tabuleiro de Damas: Trajetria do menino ao homem feito. Rio de Janeiro:
Record, 1988.
O historiador
A historiografia musical na Europa, abarcando neste termo a biografia e a crtica, teve os seus
antecedentes no sculo XVIII com os ideais iluministas e recebeu o seu impulso com os alemes Ernst
1
A ortografia portuguesa neste texto foi actualizada.
2
(CESEM/Departamento de Cincias Musicais Universidade Nova de Lisboa)
3
A arte em Portugal no sculo XIX. Lisboa: Bertrand, vol. 2, 1966, p. 113.
4
Apesar dos trabalhos que Rui Vieira Nery tem dedicado ao historiador portugus. Vd., a este propsito: NERY, Rui Vieira
The music manuscripts in the library of King D. Joao IV of Portugal (1604-1656): a study of Iberian music repertoire in
the sixteenth and seventeenth centuries. [S.l.: s.n.], 1990. Dissertao de Doutoramento em Musicologia apresentada na
Universidade do Texas em Austin, EUA; NERY, Rui Vieira Msica erudita. In BRANCO, Salwa Castelo, dir. Enciclopdia
da Msica em Portugal no sculo XX. Lisboa: Crculo de Leitores, 2011; IDEM Musicologia histrica. In BRANCO, Salwa
Castelo, dir. Enciclopdia da Msica em Portugal no sculo XX. Lisboa: Crculo de Leitores, 2011.
5
Por exemplo, as obras de Otto Jahn sobre Mozart, de Alexander Thayer sobre Beethoven ou de Friedrich Chrysander sobre
Haendel.
6
Sobre este autor escreveu Joaquim de Vasconcelos: musicographe portugais, amateur distingu, crivain aussi consciencieux
que modeste, a rendu de grands services la littrature musicale de son pays. Plein denthousiasme pour lart, il a prodigu
tout le monde ses livres, ses recueils de musique, ses notes peronelles, fruit dimmense travaux, sans quon lait, dans la
plupart des cas, remerci jamais dun seul mot. Il a fait des sacrifices de toute espce pour rappeler la classe des musiciens
de Lisbonne, dans laquelle tous les sentiments dhonneur et de dignit professionels semblent teints, leurs devoirs envers
lart, envers le pays et ses glorieuses traditions artistiques. M. Marques a fond des journaux, a mis sa plume au service de
toutes les entreprises utiles, sans aucun souci de son temps, de ses intrts, da sa sant mme, et malgr des conditions trs
modestes de fortune, malgr des dceptions de toutes sortes, il na jamais manqu de courage dans la lutte ni perdu la fois
dans lidal de lart; de plus, il a su communiquer quelques rares proslytes lenthousiasme qui lanime, et recruter deux
ou trois travailleurs qui lont aid dans lArte Musical, de Lisbonne. Ce journal, qui a d suspendre sa publication aprs deux
annes de luttes (1874-1875), a marqu un re nouvelle Lisbonne, o les feuilles artistiques navaient tendu jusqualors, tout
comme en Italie, quaux plus ignobles buts; M. Marques y a publi: Chronologia da Opera em Portugal (plus de 20 articles).
Estudos sobre a historia da musica em Portugal (15 articles), daprs le manuscrit de M. Platon de Vaxel, etc. etc. M. Marques
a fourni au Jornal do Commercio, le premier jornal de Lisbonne, une foule darticles relatifs la musique; cest lui qui, avec
M. le docteur Ribeiro Guimares (Voy. Ce nom), qui vient, hlas! de mourir il y a quelques mois, a veill et rpandu le got
pour les tudes de musicographie, revenant sans cesse et tous propos sur les questions les plus importantes de lhistoire
de lart. Je tiens rendre ici cet hommage M. Marques, car je lui dois, plus que tout- autre, des services inapprciables
pour mes travaux. M. Marques est n Lisbonne en 1836. FTIS, Franois-Joseph Biographie universelle des musiciens.
Supplment et complment. 1880, vol. 2, p. 173.
7
Alguns textos referem o ano de 1917 como o da morte, outros 1919. Tambm o seu nome apresenta ortografias diferentes.
Tanto Plato de Waxel como Platon Vacsel foram utilizadas.
8
WAXEL, Platon Lvovitch von A Msica em Portugal: apontamentos para a Histria da Msica em Portugal. Gazeta da
Madeira. (Fevereiro-Junho de 1866).
9
Segundo diz Vasconcelos, quer Joaquim Jos Marques quer Plato de Waxel resolveram no publicar o Dicionrio
de Artistas Portugueses, que servia de complemento Histria da Msica, e oferecer-nos os apontamentos para os
refundirmos neste livro.// Protestmos, porm j era tarde. [] Necessrio foi ceder, porm infelizmente o adiantamento
desta obra, que j ia na letra R, no consentiu que nos utilizssemos dos oferecimentos dos dois desinteressados amigos,
seno de uma maneira muito limitada. [] Demais, sendo o mtodo de Plato de Waxel, diverso do nosso e as suas
fontes tambm diferentes daquelas, onde fomos trabalhar, de certo que os resultados haviam de ser diferentes. Cf.
VASCONCELOS, Joaquim de Os msicos portugueses: biografia bibliografia. Porto: Imprensa Portuguesa, 1870,
vol. 1, XXXII.
10
Para uma biografia desenvolvida de Joaquim de Vasconcelos, Vd. LEANDRO, Sandra Maria Fonseca Joaquim de Vasconcelos
[1849-1936]: historiador, crtico de arte e muselogo. [S.l.: s.n.], 2008, vol. 1. Dissertao de Doutoramento em Histria de
Arte Contempornea apresentada na Faculdade de Cincias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
11
Cf. VASCONCELOS, Joaquim de Os msicos portugueses: biografia bibliografia. Porto: Imprensa Portuguesa, 1870, vol. 1,
XXV.
A Msica, atendendo-se circunstncia de ser, de entre as suas trs irms, a nica que dispensa
o auxlio de uma forma plstica, exerce por este mesmo motivo uma influncia mais ideal sobre o
modo de sentir da humanidade, do que as outras artes; da vem que os seus adeptos so em verdade
muito menos numerosos do que os das outras artes, mas por isso incomparavelmente superiores na
sua percepo esttica13.
Para o autor, porm, nem todos os gneros de msica se equivalem. Entre eles, h os que se dirigem
aos sentidos e os que se dirigem ao esprito. Nestes ltimos inclui os gneros religioso, sinfnico e
de cmara, representados por Hndel, Mozart, Haydn, Beethoven, Mendelssohn e Schumann14. Nos
outros, inclui a msica que, pelo seu carcter sensual, apela mais aos sentidos. Era o caso da opereta,
que considerou um vrus endmico na sociedade portuguesa devido popularidade de que gozavam
as operetas de Offenbach e da msica de Verdi, que ser frequentemente objecto da sua condenao.
Mesmo a pera, devido aos elementos profanos que continha, ficava reduzida a um papel servil, e
indigno da sua elevada misso15.
O entendimento de uma msica para os sentidos e outra para o esprito, distino que era corrente
no meio intelectual europeu da poca, vinha quase sempre acompanhado de outras dicotomias como
a da melodia versus harmonia, da inspirao versus trabalho16, cada uma delas tipificando a msica de
diferentes pases, a do Sul versus a do Norte ou, mais especificamente, a de Itlia versus a da Alemanha.
Um grande projecto o levava a publicar a biografia dos msicos portugueses o de dar a conhecer,
no s aos seus compatriotas mas ao mundo culto, uma histria pouco conhecida, incompleta e com
erros, de uma arte quase ignorada no pas e fora dele17. Ao referir que obras enciclopdicas como a de
Ftis no podiam ser escritas por uma s pessoa, dada a impossibilidade de abarcar um conhecimento
universal, para alm da diversidade de especialidades implicadas, essas dificuldades s poderiam
ser ultrapassadas quando os diferentes pases reconhece[ssem] a necessidade de trabalharem cada
12
VASCONCELOS, Joaquim de Eurico, anlise da pera do mesmo nome, de Miguel ngelo. Porto: Imprensa Portuguesa,
1874, p. 11.
13
VASCONCELOS, Joaquim de Lusa Todi: estudo critico biogrfico. Porto: Imprensa Portuguesa, 1873, IX, n.r. 1.
14
IDEM, Ibidem, IX, n.r. 1.
15
IDEM, Ibidem, IX, n.r. 1.
16
O que Bernd Sponheuer designou por conceito exclusivista para a construo da ideia da hegemonia musical alem.
Um conceito que vem acompanhado pelo que foi considerado pelo autor de specifically German characteristics, which
differs from non-German in its depth, hard work and thoroughness (Tiefsinn, Arbeit, Grndlichkeit). SPONHEUER, Bernd
Reconstructing ideal types of the German in Music. In APPLEGATE, Celia; POTTER Pamela, eds. Music & German
national identity. Chicago: The Univeristy of Chicago Press, 2002, p. 40.
17
Sobre a primeira obra que publicou, a Biografia dos msicos portugueses, escreveu A. Pougin: Ce livre, fait avec le plus
grand soin, est venu combler une lacune dans la littrature musicale europenne, et fait beaucoup dhonneur son auteur,
au double point de vue de la conscience historique et des connaissances musicales dont il y a fait preuve; grce lui, beaucoup
derreurs ont t corriges sur les musiciens portugais dont on avait prcdemment retrac la vie et la carrire, et un grand
nombre dartistes ont t rvls dont les nomes taient jusquea ce jour rests inconnus. FTIS, Franois-Joseph Biographie
universelle des musiciens. Supplment et complment. 1880, vol. 2, p. 609.
18
Cf. VASCONCELOS, Joaquim de Os msicos portugueses: biografia bibliografia. Porto: Imprensa Portuguesa, 1870, vol. 1,
XXVI-XXVII.
19
Todas as vezes que se perde a tradio artstica, o gnio perde a sua norma, desvaira, e a arte decai; ressuscitar a tradio
musical hoje uma necessidade urgente para quem quiser fecundar a concepo e dar segurana crtica. Cf. VASCONCELOS,
Joaquim Noticirio: Sociedade de Quartetos. A Actualidade (9 Jun. 1874), p. 1.
20
Ao contrrio do trabalho que empreender mais tarde para as artes industriais.
21
Entre outros, vejam-se os vrios artigos de Ea de Queirs e Ramalho Ortigo nas Farpas.
22
Cf. VASCONCELOS, Joaquim de Os msicos portugueses: biografia bibliografia. Porto: Imprensa Portuguesa, 1870, vol. 1,
XI.
23
VASCONCELOS, Joaquim de Arqueologia artstica. Porto: Imprensa Portuguesa, 1877, IX.
[] devemos considerar os autores das grandes concepes do gnio e os seus intrpretes gloriosos,
como uns semi-deuses, que encerram em seu peito todas as paixes da terra e do cu. [] Parmos
sempre, desde que soubemos sentir, dominados por um respeito profundo, e por uma admirao sincera,
diante desses vultos admirveis da Histria das Artes, que impelidos por um poder sobrehumano e
guiados pelo seu gnio, descerraram maravilhas, prodigalizando-as s geraes, que desconhecendo o
valor inestimvel da oferta, as acolhiam a maior parte das vezes com um indiferentismo insultante 26.
Para Vasconcelos e para muitos intelectuais do sculo XIX, a imagem do gnio solitrio encon-
trava-se associada crena de que o mistrio da existncia s podia ser apreendido pela imaginao
e intuio e no pela razo.
O artista, segundo Alexander Sturgis27, era visto no perodo romntico como mrtir da sociedade por
ter vivido a epifania da criao. Referindo-se a Mozart, Beethoven e Schubert, Vasconcelos perguntava:
Quem os condenava a essa existncia do sacrifcio, perguntar o leitor? Un matre sans piti le
gnie28. O poder de criar levava o artista a ter de se confrontar com uma mentalidade filistina que
o rejeitava por no seguir as convenes. Sobre a 9 sinfonia de Beethoven comenta Vasconcelos:
curioso que fossem Schiller e Beethoven, dois idealistas, que sofreram, mais do que nenhum outro
gnio, da misria humana, que fosse um o autor da letra e o outro o autor da msica29.
Para alm das grandes figuras, Vasconcelos d igualmente destaque, nos Msicos Portugueses, s
instituies que podiam exigir um lugar de relevo na histria europeia, como a biblioteca de D. Joo
IV, a Capela Real ou a cadeira de msica criada por D. Dinis na Universidade de Coimbra.
Nestas entradas aproveita para fazer a histria dessas instituies, o que levar Joaquim Jos
Marques a sugerir, por mais de uma vez, que se lance na elaborao de uma Histria da Msica ainda
por fazer em Portugal30.
Sempre no intuito de engrandecer a histria do seu pas afirma, na Biografia dos Msicos Portugueses,
que nos sculos XVI e XVII era Portugal que enriquecia a Espanha dos mais distintos msicos. Esta
24
Objecto no s de uma entrada na Biografia dos msicos portugueses como tambm de um fascculo na Arqueologia
Artstica.
25
Cf. VASCONCELOS, Joaquim de Os msicos portugueses: biografia bibliografia. Porto: Imprensa Portuguesa, 1870, vol. 1,
p. 24.
26
IDEM, Ibidem, XXII.
27
STURGIS, Alexander; [et al.] Rebels and martyrs. The image of the artist in the nineteenth century. London: National
Gallery, 2006.
28
VASCONCELOS, Joaquim de Sociedade de Quartetos VI. A Actualidade (1 Jul. 1874), p. 1.
29
IDEM Folhetim: Sociedade de quartetos V-VI. A Actualidade (19 Nov. 1874), p. 1.
30
Carta de Joaquim Jos Marques a Joaquim de Vasconcelos datada de 18 de Outubro de 1870. Biblioteca Geral da Universidade
de Coimbra, Epistolrio de Joaquim de Vasconcelos, 1849-1936.
[Ao entusiasmo e delrio rossiniano] seguiu-se a febre verdiana, por uma ligeira, quase imper-
ceptvel transio. Essa febre diminuiu hoje, mas os seus efeitos esto patentes, tristemente; a
agitao nervosa, constante, a tenso forada das cordas do sentimento, que no homem so as
mais delicadas, desafinou o instrumento, alterou-lhe talvez mesmo as condies acsticas! //
Ser difcil, depois dessa tempestade violenta, que passou por sobre a nossa alma, desfolhando,
crestando e queimando, ser difcil e quase impossvel volver ideia simples, bela e pura da arte,
castidade, verdade do sentimento. O efeito sensual e vulgar e a sua influncia desptica e
teimosa tornou o pblico incapaz de sentir a beleza ideal, que sempre pura, e s se revela a quem
puro se conservou35.
O problema maior da msica portuguesa foi no ter conseguido escapar ao seu jugo, o que o fez
dizer, na entrada sobre o compositor Santos Pinto: No houve influncia musical que mais tiranica-
mente dirigisse o gosto do pblico em Portugal, como aquela que exerceram as peras de Verdi desde
o aparecimento do Trovador36. E sobre Marcos Portugal diz:
31
Compositor, maestro e musiclogo.
32
ASENJO BARBIERI, Francisco Estudio bibliogrfico-musical. Revista de Espaa, Cuarto Ano, Tomo XIX, Madrid, 1871, p. 354.
33
Sobre o lado polmico do seu carcter comenta o amigo e admirador Joaquim Jos Marques numa carta que lhe dirige: Que
labor para as tricas da polmica! A bossa da verrina manifesta-se-lhe a cada momento certo, mas ela bem desculpvel
porque se baseia na recta justia e no amor da verdade. No o ralhar chocarreiro e pretencioso do pedantismo. Oxal
que as polmicas das nossa literatura tivessem como a sua por base a justia a imparcialidade e a rectido. Carta de 9 de
Agosto de 1870. Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Epistolrio de Joaquim de Vasconcelos, 1849-1936.
34
Sobre o estado das artes em Itlia escreve: A decadncia da arte italiana no se manifesta s na msica, atacou tambm a
pintura e a arquitectura. VASCONCELOS, Joaquim de A instruo pblica na Alemanha. A Actualidade (4 Fev. 1874), p. 2.
35
VASCONCELOS, Joaquim de A arte musical em Lisboa no sculo XIX 1800-1825. Arte Musical, Jornal Artstico, Crtico e
Literrio. (21 Fev.1875), p. 1.
36
Cf. VASCONCELOS, Joaquim de Os msicos portugueses: biografia bibliografia. Porto: Imprensa Portuguesa, 1870, vol. 1,
p. 36.
No ardor da sua juventude38 invectivou igualmente a Igreja catlica, e em particular o clero, uma
classe que considerava suja, imoral e fantica39, e tambm a monarquia, que esbanjava o dinheiro
do povo [] em banquetes e caadas, em festas aonde se arrasta a virtude at ao lodo40.
Nas suas obras maiores, como Os Msicos Portugueses, Lusa Todi e o Catlogo de D. Joo IV, as
relaes e influncias musicais entre Portugal e outros pases, como a Flandres no sculo XV ou a
Espanha nos sculos XVI e XVII, so consideradas indissociveis na construo da biografia dos msicos
portugueses, facto este que o individualiza entre os musiclogos do seu tempo, menos preocupados
com questes sociolgicas.
Por outro lado, fez uso de um grande manancial de fontes nacionais e internacionais41 e manteve
contactos com personalidades estrangeiras, o que lhe permitiu no s estar ao corrente das ideias
musicais do seu tempo, como consultar fontes de difcil acesso42.
Os factos histricos musicais surgem contextualizados e frequentemente acompanhados de uma
anlise comparativa com as outras artes. Logo nas Ideias Preliminares da sua primeira obra sublinha
que vemos as manifestaes das formas darte, reflectindo de um modo fatal as revolues do meio
social43. De igual modo afirma no Prlogo da Lusa Todi: E todavia mister [] ligar os produtos do
movimento intelectual de modo, que se conhea a sua relao mediata ou imediata nas naes cultas44.
O entendimento da msica como um conjunto de disciplinas especializadas aproxima-o da noo
oitocentista de Musikwissenschaft (Cincias Musicais) teorizada pelos autores alemes ao longo de
Oitocentos.
37
IDEM, Ibidem, pp. 108-109.
38
Vasconcelos tinha apenas 21 anos quando publicou Os msicos portugueses.
39
Cf. VASCONCELOS, Joaquim de Os msicos portugueses: biografia bibliografia. Porto: Imprensa Portuguesa, 1870, vol. 1,
p. 45.
40
Cf. VASCONCELOS, Joaquim de Os msicos portugueses: biografia bibliografia. Porto: Imprensa Portuguesa, 1870, vol. 1,
XIII.
41
Da sua biblioteca musical faziam parte 1567 ttulos, entre livros, libretos e partituras, que foi obrigado a vender devido a
problemas financeiros. O catlogo desses livros foi publicado em 1893 com o ttulo Catalogue des livres rares composant
la bibliothque musicale dun amateur.
42
Foi o caso de Emil Hbner, Conde A. Raczynski, e J. Robinson, autores de vrios ensaios sobre a histria da arte portuguesa,
de Ferdinand Denis, historiador e bibliotecrio francs, e do j mencionado Francisco Ansejo Barbieri.
43
Cf. VASCONCELOS, Joaquim de Os msicos portugueses: biografia bibliografia. Porto: Imprensa Portuguesa, 1870, vol. 1,
XVII.
44
VASCONCELOS, Joaquim de Lusa Todi: estudo critico biogrfico. Porto: Imprensa Portuguesa, 1873, p. 6.
O crtico
Vasconcelos, como cronista musical em dirios e peridicos especializados46 para alm das crticas
a peras, operetas e outros gneros musicais , torna-se o porta-voz do ideal da msica absoluta, ou
da msica puramente instrumental, nos textos que escreveu sobre os concertos.
A noo de que este tipo de msica pudesse valer por si mesma, ao contrrio da msica vocal, que
era acompanhada de texto, s se enraza na Europa a partir do sculo XIX. A msica desprovida de
funo, ao contrrio da de corte ou da Igreja, j no tem de representar a realidade exterior, passando
a revelar uma verdade superior. O entendimento de que a msica puramente instrumental era a
que melhor traduzia o espiritual, o inefvel, era justificado pela sua natureza abstracta, ou seja, pela
ausncia de qualquer referncia ao mundo exterior. Na coerncia e dinmica da sua estrutura interna,
a msica passaria a ser entendida como capaz de incorporar o transcendente.
Entre os vrios gneros de msica, a de cmara era a que melhor representava o meio supremo
de estetizao da vida47. Sobre essa msica diz Vasconcelos:
Onde melhor, do que na Sociedade de Quartetos poderemos encontrar um meio de atingir mais
facilmente compreenso da forma artstica mais completa, que o gnio moderno criou para traduzir
as suas aspiraes mais elevadas, forma que se manifesta numa linguagem universal que se revela a
todos? // No sabemos, no conhecemos de outra fonte mais pura, onde possamos purificarmo-nos
de todas as influncias mais ou menos inferiores, que se disputam no ntimo de cada indivduo as
condies da sua existncia48.
Em Portugal, onde a pera tinha uma supremacia absoluta entre todos os gneros, este ideal
demorar bastante tempo a enraizar-se, dado que a msica instrumental, excepo de um grupo
restrito de amadores e profissionais, era mal aceite. Por essa razo, quando a Sociedade de Quartetos
do Porto foi criada, em 187449, Vasconcelos festejou o acontecimento no jornal A Actualidade com as
seguintes palavras:
45
De Os Msicos portugueses diz ter vendido, no perodo de dois anos e meio, apenas 80 exemplares. VASCONCELOS, Joaquim
de Catalogo dEl-Rey D. Joo IV. [Porto: Edio do Autor], 1900-04,VIII.
46
Entre outros peridicos foi autor de artigos sobre msica em: A Arte Musical, A Actualidade e Crnica dos Teatros.
47
[] la musique de chambre est le moyen suprieur desthtiser la vie. FAUQUET, Jol-Marie Les Socits de Musique de
Chambre Paris de la Restauration 1870. Paris: Aux Amateurs de Livres, 1986, p. 195.
48
VASCONCELOS, Joaquim de Noticirio: Sociedade de Quartetos. A Actualidade. (3 Out. 1874), p. 2.
49
Dela faziam parte os msicos Miguel ngelo Pereira (1843-1901), Nicolau Medina Ribas (?-1900), Augusto Marques Pinto
(1838-1888), Joaquim Casella (?) e Bernardo Moreira de S (1853-1924).
Entre os muitos exemplos possveis, destacam-se os que incidem sobre a organizao do programa.
Embora considere positiva a repetio das mesmas obras em vrios concertos55, possibilitando aos
ouvintes familiarizarem-se com elas, condena o fraccionamento a que a Sociedade de Quartetos do
Porto sistematicamente as sujeita. Sobretudo, quando se trata de composies de Beethoven, cujas
obras foram concebidas como um todo orgnico, considera que a sua unidade lgica se v destruda
ao tocar-se apenas um andamento dos vrios que constituem a composio.
Ainda sobre o programa, nomeadamente no que respeita sequncia das obras no mesmo con-
certo, considera que a variedade da escolha leva a que a interpretao de concepes to diferentes,
50
VASCONCELOS, Joaquim de Folhetim: Mikrokosmo Musical (Sociedade de Quartetos). A Actualidade. (11 Out. 1874), p. 1.
51
VASCONCELOS, Joaquim de Artes: Sociedade de quartetos XII (concl.). A Actualidade (21 Jul. 1874), p. 2.
52
Vd. WEBER, William The history of musical canon. In COOK, Nicholas; EVERIST, Mark, ed. Rethinking music. Oxford:
OUP, 2001, p. 340.
53
VASCONCELOS, Joaquim de Missa do sr. E. Lami. Crnica dos Teatros. (24 Dez.1870), p. 3.
54
O que nesta altura difcil de encontrar nas crticas dos cronistas portugueses que, na maioria das vezes, apenas se
limitavam a comentar a interpretao.
55
Sobre este questo diz: Essas mesmas repeties merecem todavia especial louvor; em primeiro logar, tem a vantagem
de facilitar a anlise ao pblico, que pode correr o risco de se perder no meio desses mundos de ideias novas, e de sensaes
desconhecidas; em segundo lugar, concedem aos artistas algum descanso, porque dar duas sesses por semana, um tour
de force. VASCONCELOS, Joaquim de Sociedade de Quartetos VI. A Actualidade. (1 Jul. 1874), p. 1.
O homem erudito que sabe profundamente do seu mtier e no a massa muitas vezes injusta,
porque a inteligncia dessa massa mediana em geral []. Esse privilgio que tiveram esses nomes
ilustres da Renascena, privilgio de serem avaliados s por quem os podia compreender, foi para
eles o incentivo que criou as grandes concepes completas e nicas, onde no h uma nota fraca,
dissonante58.
Nunca os intelectuais se arrogaram tanto o direito de educar outras classes como no sculo XIX.
Esse direito exclusivo que chamaram a si, pressupunha o pensar e falar pelos outros. Vasconcelos, como
homem do progresso, informa-se, compara, selecciona o que lhe parece ser fivel mas, ao mesmo tempo,
toma a sua verdade como absoluta e desse modo que a comunica aos seis leitores. Como diz Rancire:
[] um homem de progresso tambm outra coisa: um homem que pensa a partir da opinio do
progresso e erige essa opinio condio de explicao dominante da ordem social. [] Quem diz
ordem, diz hierarquizao. A hierarquizao supe explicao, fico distributiva, justificadora, de
uma desigualdade que no tem outra explicao, seno a sua prpria existncia59.
No caso de Vasconcelos, ele exerce esse poder com plena convico e autoridade, sustentado pela
sua formao acadmica, legitimado pelo idealismo musical germnico e pelo progresso na arte de
que um porta-voz convicto. O prprio espao onde os concertos decorrem favorecer essa ideolo-
gia a sala de concertos, que passa a ser escurecida no mesmo sculo, levando a um determinado
comportamento tico como a obrigao do silncio absoluto e a inibio de qualquer movimento.
O conhecimento que Vasconcelos utiliza nos seus textos no um conhecimento neutro, como ele
julgava. profundamente ideolgico relativamente arte, sociedade e aos seus governos. Seja como
historiador da msica ou como crtico, os seus valores so expostos com toda a frontalidade sobre
os mais diversos assuntos, quer se trate do idealismo musical de influncia germnica; do profundo
anticlericalismo a que ope o luteranismo; do seu sentimento antimonrquico; ou ainda do lugar da
mulher como intrprete nos concertos pblicos. Sobre esta ltima situao diz:
56
IDEM A Actualidade. (12 Jul. 1874), p. 2.
57
IDEM Folhetim: Sociedade de Quartetos I. A Actualidade. (14 Out. 1874), p. 1.
58
VASCONCELOS, Joaquim de Eurico, anlise da pera do mesmo nome, de Miguel ngelo. Porto: Imprensa Portuguesa,
1874, p. 11.
59
RANCIRE, Jacques O mestre ignorante: cinco lies sobre a emancipao intelectual. Mangualde: Edies Pedago, 2010,
p. 124.
Disposto a revelar o patrimnio musical do seu pas, Vasconcelos optou pela biografia, o gnero
historiogrfico que mais ia ao encontro dos ideais positivistas da sua poca. Para tal, serviu-se de um
legado que, no s em nmero61 como em prestgio, pudesse disputar um lugar na cena europeia, para
alm de devolver a tradio aos msicos nacionais para que pudessem usufruir dela na renovao da
msica portuguesa. Ao contrrio do que aconteceu com as indstrias populares com que Vasconcelos
pretendia fomentar a indstria nacional, foi a msica erudita que decidiu divulgar, e no a msica
popular, como propunham os melmanos do seu tempo.
A crena absoluta no progresso e, no caso especfico, no progresso da arte, identificando-o com
a msica germnica e, em particular, com a sua msica instrumental, levou-o a condenar a msica
italiana, contribuindo assim para a difuso do mito explorado pelos prprios alemes com eco na
Europa culta do seu tempo a superioridade da arte alem, no dizer do pianista e compositor Anton
Rubinstein62.
Como intelectual, investido da misso de civilizar as massas, foram os valores da sua classe que
pretendeu impor, sem nunca abdicar de uma posio altiva devido ao saber de que era detentor. O
estilo que utilizou para defender os seus ideais foi geralmente contundente, despertando a ira dos
msicos que no lhe perdoaram os ataques que desferiu a alguns colegas. Essa animosidade ter,
provavelmente, contribudo para que tivesse uma participao progressivamente menos activa na
vida musical portuguesa63, desapontado com a falta de reconhecimento dos seus pares.
Contudo, raros entre eles puderam almejar o conhecimento profundo que adquiriu durante os anos
da sua formao e ao longo da vida, trabalhando incansavelmente e investindo uma grande parte da
sua fortuna nas pesquisas que levou a cabo. O mesmo se pode dizer do detalhe e organizao a que
submeteu os dados recolhidos e a forma criteriosa e contextualizada como os exps.
Pioneiro no entendimento da musicologia como uma disciplina cientfica composta de vrios
saberes especializados, foi, no ltimo quartel do sculo XIX, o terico portugus mais consistente
do ideal de msica absoluta. Este conceito, como se viu, implicou a noo de arte como um lugar
sagrado, em especial a arte dos sons como reflexo da expresso da alma, a msica instrumental como
paradigma da autonomia, a partitura como materializao da obra acabada, a sua unidade interna
como sustentculo da composio de arte autnoma, e o compositor enquanto gnio criador.
60
VASCONCELOS, Joaquim de Theatro de S. Joo. A Actualidade. (16 Mai. 1875), p. 1.
61
Como diz no Dicionrio dos Msicos: Aqui jazem 400 musicos portugueses [XXXIII].
62
TARUSKIN, Richard Nationalism. In The New Grove Dictionary of Music and Musicians. 2 ed. London: Macmillan, 2001,
vol. XVII, p. 693.
63
Apesar do tempo que continuava a investir para a finalizao e publicao do Catlogo de D. Joo IV.
Fontes:
Fontes manuscritas
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Epistolrio de Joaquim de Vasconcelos, 1849-1936.
Fontes impressas
ASENJO BARBIERI, Francisco Estudio bibliogrfico-musical. Revista de Espaa, Cuarto Ano, Tomo
XIX, Madrid, 1871, pp. 351-360.
FTIS, Franois-Joseph Biographie universelle des musiciens. Supplment et complment. 1880, vol. 2,
p. 173.
VASCONCELOS, Joaquim de A Actualidade. (1874-1875).
VASCONCELOS, Joaquim de A arte musical em Lisboa no sculo XIX: 1800-1825. Arte Musical, Jornal
Artstico, Crtico e Literrio. (21 Fev. 1875).
VASCONCELOS, Joaquim de Arqueologia artstica. Porto: Imprensa Portuguesa, 1877.
VASCONCELOS, Joaquim de Catlogo da livraria de msica de El-Rei D. Joo IV. Porto: Imprensa
Portuguesa, 1873.
VASCONCELOS, Joaquim de Catalogue des livres rares composant la bibliothque musicale dun
amateur. [Porto: Typ. Arthur Jos de Souza & Irmo], 1893.
VASCONCELOS, Joaquim de El-Rey D. Joo o 4to. [Porto: Edio do Autor], 1900-04.
VASCONCELOS, Joaquim de Eurico, anlise da pera do mesmo nome, de Miguel ngelo. Porto:
Imprensa Portuguesa, 1874.
VASCONCELOS, Joaquim de Lusa Todi: estudo critico biogrfico. Porto: Imprensa Portuguesa, 1873.
VASCONCELOS, Joaquim de Os msicos portugueses: biografia bibliografia. Porto: Imprensa
Portuguesa, 1870, 2 vols.
WAXEL, Platon Lvovitch von A Msica em Portugal: Apontamentos para a Histria da Msica em
Portugal. Gazeta da Madeira.(Fevereiro-Junho de 1866).
Bibliografia
FAUQUET, Jol-Marie Les socits de musique de chambre Paris de la Restauration 1870. Paris:
Aux Amateurs de Livres, 1986.
FRANA, Jos Augusto A arte em Portugal no sculo XIX. Lisboa: Bertrand, 2 vols., 1966.
LEANDRO, Sandra Maria Fonseca Joaquim de Vasconcelos [1849-1936]: historiador, crtico de arte e
muselogo. [S.l.: s.n.], 2008, 2 vols. Dissertao de Doutoramento em Histria de Arte Contempornea
apresentada na Faculdade de Cincias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
NERY, Rui Vieira Msica erudita. In BRANCO, Salwa Castelo, dir. Enciclopdia da Msica em Portugal
no sculo XX. Lisboa: Crculo de Leitores, 2011.
Nas fontes mais diversas da crtica literria portuguesa tem vindo a subsistir a imagem, que
naturalmente se distendeu ao pensamento do pblico leitor em geral, que as relaes pessoais e
literrias entre Jlio Dinis e Camilo Castelo Branco no se envolveram em contornos particularmente
amistosos, distanciamento que mesmo se insinua num quadro de alguma hostilidade. Aprofundada
esta questo, porm, parece que no foi bem assim. Percebe-se que, ainda que com discreta cordialidade,
entre os dois escritores nortenhos existia afinal mais respeito e at admirao do que desinteresse, ou
mesmo animosidades. Existem alguns indicadores que assim o testemunham e permitem repensar
o conceito que tem vindo a pairar acerca destes dois escritores do sculo XIX portugus, e dos quais
a cidade do Porto tanto se orgulha: Jlio Dinis, portuense de linhagem e corao, e Camilo Castelo
Branco, perfilhado portuense pelas relaes quotidianas que amplamente desenvolveu neste burgo.
No abundam as referncias a trocas de opinies ou relaes estabelecidas entre estes dois literatos.
Alis, talvez tenha mesmo sido essa escassez de informao que, aliada a algumas brevssimas frases
deixadas por Jlio Dinis em Inditos e Esparsos, tenha contribudo para a inferncia de raciocnios
crticos em nada abonadores das relaes sociais entre ambos os escritores. Convir entretanto
notar-se que, do ponto de vista literrio, estes escritores eram de facto muito diferentes, circunstncia
prontamente exposta nos seus legados, e cuja constatao a crtica literria no omite: Camilo e Ea
de Queiroz correspondem a outras zonas, exprimem outros ideais2 ou, ento, Camilo foi homem de
ideias bicudas, Jlio Denis homem de ideias redondas3. Se atentarmos que no trabalho de Jlio Dinis,
multifacetado em oferecimentos estticos, os sentimentos do amor, amizade e fraternidade se efetivam
na ordem, respeito e paz, em declarada nsia de utopia social, percebe-se que a obra de Camilo est
penetrada pelas enredadas atribulaes da paixo humana e enformada pelas ideias centrais da Pro-
vidncia, do Pecado e do Resgate4, pulverizando-se em episdios de bomia, infidelidades e bastardias.
1
carmen.m.abreu@gmail.com
2
SARAIVA, A. Jos A obra de Jlio Diniz e a sua poca. Vrtice. Coimbra: n 67, vol. VII, Maro 1949, p. 137.
3
MALPIQUE, Cruz Alguns aspectos do Perfil de Jlio Denis. O Tripeiro, Porto: n 10, VI srie, ano XI, Outubro 1971, p. 296.
4
COELHO, Jacinto Prado Introduo ao estudo da novela Camiliana. 2 ed. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda,
1982, vol. 1, p. 64.
Daqui se poder ainda depreender que o facto de estes escritores frequentarem e pertence-
rem a ncleos sociais diferentes tambm lhes trouxe, naturalmente, uma mundiviso literria
diferente. Se alguma incompatibilidade dos seus fazeres literrios se poder referir, as causas
perpassam, irrefutavelmente, os respetivos percursos de vida, distribudos por trilhos bastante
dissemelhantes.
Recordem-se as brevssimas frases deixadas por Jlio Dinis acerca de um encontro com Camilo
no Chiado, registadas numa carta enviada ao amigo Custdio Passos, em 1869:
Ontem, descendo o Chiado, esbarrei cara a cara com no menor personagem [Jlio Dinis tinha
acabado de se referir a Coutinho de Madureira] do que Camilo Castelo Branco. Se fosse no Porto,
saudar-nos-amos muito cerimoniaticamente e passaramos. Aqui foi outra coisa. O amvel romancista
dirigiu-se-me com maneiras to afveis, que dir-se-ia sentir um real prazer em me encontrar. []
informou-se dos meus padecimentos, deu-me conselhos, sentiu do corao que a minha doena me
no deixasse escrever; e terminou oferecendo-me a sua casa. Separmo-nos como grandes amigos,
depois de um tte--tte de um quarto de hora6.
Apesar da presena dos itlicos a negrito, que tanto podero indiciar ironia como enfatizar
cordialidade, percebe-se que o encontro entre ambos os escritores ocorreu com deferncia, sem que
contudo tivesse ultrapassado a necessria expresso de boas normas na circunstncia. Por outro
lado, no ser todavia de se desprezar a possibilidade de estes itlicos terem sido a traduo grfica
de aspas, ou at de sublinhados utilizados por Jlio Dinis no seu manuscrito, no intuito de reforar
os cordiais sentimentos expressos por Camilo. Fica a ambiguidade, convidando a que no seja
severamente interpretada. E relativamente s referncias de Camilo acerca de Jlio Dinis, tambm
no passam de algumas breves palavras deixadas numa conhecida carta enviada a Antnio Feliciano
de Castilho, em 1867:
5
STERN, Irwin Camilo e Jlio Dinis: Relaes Meta-Literrias. In Camilo Castelo Branco: no centenrio da sua morte, Joo
Camilo dos Santos (ed.). Santa Barbara: University of California, 1995 (1991), p. 41
6
DINIS, Jlio, Cartas Particulares. In Inditos e Esparsos, Obras Completas de Jlio Dinis. Lisboa: Crculo de Leitores, 1992
(1910), vol. 7, pp. 379-380.
E no existem demais referncias neste mbito, razo pela qual, em meados do sculo passado,
Alberto Moreira ter escrito que Tambm com Camilo foram poucas as relaes de Gomes Coelho
como ele prprio confessou a Toms de Carvalho (Moreira, 1955:240), acrescentando que estava
convicto de que Gomes Coelho nunca manteve relaes de amizade com o autor de Uma Pgina da
Universidade e de A Repblica, desta vez, em clara referncia a Vieira de Castro.
Passemos a outro tipo de observao, tambm necessria. Em meados do sculo XIX, entre os
pontos de contacto dos intelectuais da sociedade portuense contava-se o circuito de visitas a livrarias,
no qual obrigatoriamente se inclua a Casa Mor (atual Livraria Lello). Sendo do conhecimento pblico
que Camilo frequentava assiduamente este espao, quanto a Jlio Dinis calcula-se que, embora com
menor frequncia, tambm o visitasse, circunstncia aferida a partir do relato de uma carta escrita
ao amigo Soares dos Passos, na qual se l:
Ou seja, sabendo-se que Camilo frequentava aquele espao com regularidade, percebe-se que
Jlio Dinis, embora com menor frequncia, tambm o visitava. E da resultar a probabilidade de que
algum comentrio menos afvel, ou at mesmo um pouco mais cido pudesse ter ocorrido naquele
ou noutro espao de frequncia do ncleo de literatos a ter-se verificado, colocamos a hiptese
de ter sido proferido por Camilo, j que Jlio Dinis era por todos (re)conhecido como uma pessoa
tmida e bastante reservada, e logo pouco inclinado para tecer reparos em pblico. Alis, acerca desta
eventualidade, j Egas Moniz defendera a mesma opinio:
O feitio mordaz do brilhante escritor [Camilo] talvez se tivesse exteriorizado no Prto contra le
[Jlio Dinis] em crtica menos lisonjeira, em conversas de livraria [] [ou talvez ainda] desse guarida,
na Gazeta Literria do Prto, que dirigia, crtica spera e injusta de Andrade Ferreira9.
O mencionado artigo que Andrade Ferreira publica na edio n 8 do Jornal do Porto desenvolve-se
em torno de comentrios crticos ao romance dinisiano As Pupilas do Senhor Reitor, e todo o sarcasmo
em que o articulista se envolve chega, de facto, a ser insultuoso para com o escritor. E na medida em
que este texto subscreve um raciocnio que investe contra todo o restante fluxo que a crtica literria
dedica a Jlio Dinis, ns prprios inclusive, o que o torna absolutamente solitrio no coro crtico dos
analistas, torna-se razo suficiente para que, neste breve espao, nos dispensemos de o comentar. Dele
ficar apenas o registo provocatrio de Andrade Ferreira, quer ao trabalho literrio do escritor Jlio
Dinis, quer identidade do homem-escritor, o que certamente no contribuiu para granjear simpatias
7
CABRAL, Alexandre (recolha, pref., coment.) Correspondncia de Camilo Castelo Branco com Antnio Feliciano Castilho.
Lisboa: Horizonte, 1985, vol. III, p. 166.
8
Op. cit. Inditos e Esparsos, p. 413.
9
MONIZ, Egas Jlio Denis e a sua Obra, Ricardo Jorge (pref.). Lisboa: Casa Ventura Abrantes, 1924, vol. 2, p. 39.
Fig. 1 Folha de rosto do romance de Jlio Dinis, Uma Famlia Ingleza: Scenas da Vida do Porto.
Porto: Typographia do Jornal do Porto, 1870.
Aps consultada esta obra dinisiana confirma-se que foi pertena de Camilo, e que a vendera para
regularizao de dbitos, concluindo-se que o escritor de Seide a tinha lido e anotado com cuidado,
aspeto que logo se nos ofereceu bastante interessante para uma releitura do pensamento de Camilo
10
MONIZ, Egas Jlio Denis e a sua Obra, Ricardo Jorge (pref.). Lisboa: Casa Ventura Abrantes, 1924, vol. 2, p. viii.
11
MONIZ, Egas Jlio Denis e a sua Obra, Ricardo Jorge (pref.). Lisboa: Casa Ventura Abrantes, 1924, vol. 2, p. xi.
Fig. 2 Carto da firma Romo & Comp, de Lisboa, onde se encontra registada a
venda em leilo do romance Uma Famlia Ingleza: Scenas da Vida do Porto para
pagamento de um dbito de Camilo Castelo Branco. DINIS, Jlio Uma Famlia
Ingleza: Scenas da Vida do Porto. Porto: Typographia do Jornal do Porto, 1870.
Fig. 3 Carto da firma Romo & Comp, de Lisboa, onde se regista o preo
da venda em leilo do romance de Jlio Dinis Uma Famlia Ingleza: Scenas
da Vida do Porto. Porto: Typographia do Jornal do Porto, 1870.
Fig. 4 Pgina que antecede o texto do romance de Jlio Dinis Uma Famlia Ingleza: Scenas
da Vida do Porto. Porto: Typographia do Jornal do Porto, 1870, na qual Camilo escreveu alguns
comentrios crticos a dois captulos da obra, enaltecendo o trabalho literrio do colega.
Lanando um breve olhar aos referidos captulos XXIX e XXX de Uma Famlia Inglesa tentamos
perceber a razo pela qual Camilo no ter empatizado com as estratgias romanescas tecidas por
12
Torna-se evidente que num ensaio com as caractersticas de que este texto se reveste no seria possvel entrar em detalhe
analtico acerca dos comentrios de Camilo apostos obra em questo.
Porcaria.
O autor desconhece a sociedade dos rapazes bem educados. Estas e as seguintes tolices nunca se
praticaram na sociedade alta nem na mdia. escusado recorrer ltima.
E fizemos esta breve transcrio para podermos tecer uma observao, tambm breve. Centrado na
boa educao, mote aferidor de uma determinada classe social a alta, ou a mdia , torna-se evidente
nesta nota o despeito de Camilo em relao a um grupo de jovens personagens que eram amigas de
Carlos Whitestone. E quando refere escusado recorrer ltima, classe mdia, a ltima que enumera
no apontamento e aquela em que certamente se considerava includo, permite ainda exegese admitir
a hiptese de se estar a referir ao povo, afinal a ltima classe de uma hierarquia socialmente cultural
estabelecida. No nos parecendo, todavia, que esta seja uma questo de primordial importncia no atual
contexto crtico, o que com imperioso vigor se oferece anlise o olhar atento de Camilo, envolto em
manifesto orgulho ferido, porquanto talvez se considerasse includo nos grupos sociais que entendeu
afetados, reclamando que lhes fossem reconhecidas as boas normas e maneiras cvicas. J por outro lado,
porventura pressentir-se- que a dita sociedade alta registada no seu apontamento autgrafo esteja
tacitamente atribuda ao escritor do romance, tecendo-lhe uma manifesta censura ao mencionar que
o autor desconhece os rapazes bem educados, conforme se leu. Discorrendo desta sucinta teia analtica,
logo se pressente a clara tenso entre o fazer romanesco de ambos os escritores. Tendo a vida de Camilo
deambulando entre sinuosidades comportamentais que no se reconhecem em Jlio Dinis, torna-se uma
forte razo para entendermos que destas achegas do escritor de Seide ressumam laivos de ressentimento
pelo carcter ofensivo que reconheceu no romance de Jlio Dinis, o que uma vez mais convida a que
percebamos estar-se perante dois escritores com provenincias familiares e at culturais razoavelmente
distintas, com percursos sociais diferenciados, com experincias de vida que se afastaram, e at com idades
um pouco distanciadas Camilo era mais velho cerca de quinze anos do que Jlio Dinis. E nesta moldura
de enquadramento de identidades, as anotaes de Camilo resultaro compreensivelmente legitimadas.
No obstante todas estas deambulaes, percebe-se que quando Camilo pretendeu construir a
sua afirmao literria optou por um tipo de estratgias romanescas que, de facto, no se compati-
bilizam nas assumidas por Jlio Dinis Aos conflitos de Camilo sucede a paz de Jlio Dinis: a uma
realidade exacerbada uma realidade idealizada13 e, na opinio de Irwin Stern, O percurso de xito
de Camilo no resultou s de escrever, mas tambm dum esforo independente para ser reconhecido
13
FRANA, Jos-Augusto O Romantismo em Portugal. 3 ed. Lisboa: Livros Horizonte, 1999 (1974), p. 429.
Ou seja, apesar do seu valor intrnseco e inquestionvel, o escritor Camilo teve de se esforar no
sentido da sua metamorfose social para ser publicamente reconhecido e bem aceite. J quanto a Jlio
Dinis, sabendo-se que logo nascena foi recebido num colcho cultural bastante slido, mesclado
ainda pela interferncia das culturas inglesa e irlandesa, tais circunstncias ofereceram-lhe uma
conceo do mundo, e por consequncia literria, colorida por outras tonalidades que diramos mais
moderadas. Repare-se que, apesar do estigma da doena que desde cedo invadiu a casa do escritor
do Porto, o convvio familiar e os circuitos de amizades em que Jlio Dinis se movimentava nivela-
ram-se pelos extratos da sociedade portuense esmerada, favorecimento que a sua obra no denega.
Alm disso, mdico por formao, tambm o seu convvio profissional se circunscrevia por um nvel
intelectual privilegiado. Assim sendo, neste patamar de convivialidades Jlio Dinis conhecia no s
o requinte e as normas da elegncia, como os meandros dos enredos sociais e os trmites da boa e
da m educao, em contraponto s tendncias mais triviais do povo.
Prosseguindo-se neste filo crtico, passemos a observar outras fontes de interesse, ainda pela
sua originalidade nesta matria. Na obra A Formosa Lusitnia, escrita em 1877 por Lady Jackson e
traduzida de ingls para portugus, prefaciada e anotada por Camilo Castelo Branco, em nota de
rodap na pgina dez l-se a adjetivao formoso romance (Lady Jackson, 1877:10, n.r.p.) atribuda
por Camilo a Uma Famlia Inglesa. Mas entretanto nas pginas 105 e 106 da mesma obra de Lady
Jackson que, tambm em nota de rodap e acrescentado por comentrios do escritor francs Philatre
Chasles, Camilo tece um rasgado elogio a Jlio Dinis, no deixando margem para dvidas que o
escritor de Seide tinha um perfeito conhecimento do trabalho literrio do seu homlogo portuense.
Leia-se um extrato:
Um dos melhores cryticos da Europa, Philatre Chasles, fallecido ha trez annos, escreveu um livro o
ultimo , posthumamente publicado com o titulo: La Psychologie sociale des nouveaus peuples.
Aqui se nos depara uma apreciao de Gomes Coelho (Jlio Diniz) muitssimo honrosa para a
memoria do amoravel romancista, e para ns todos os que o admiramos por que escrevia formosos
livros portuguezes sem os grafar de costumeiras estranhas. Eis-aqui a pagina de Philarte Chasles
que no expurgamos de umas preocupaes insensatamente polticas e humilhantes para a nossa
independencia
[]
[] esse pequeno paiz, que j foi to opulento de heroes e poetas, gloria-se de ter visto nascer um dos
primeiros romancistas do nosso tempo, muitssimo da escola de Dickens, de Fo e Fielding, alma
14
STERN, Irwin Camilo e Jlio Dinis: Relaes Meta-Literrias. In Camilo Castelo Branco: no centenrio da sua morte, Joo
Camilo dos Santos (ed.). Santa Barbara: University of California, 1995 (1991), p. 40.
15
COELHO, Jacinto Prado Introduo ao estudo da novela Camiliana. 2 ed. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda,
1982, vol. 1, p. 65.
Mas as manifestaes de Camilo no se ficaram por aqui. Aps transcrever as laudatrias palavras
do escritor francs, Camilo continua em tom patritico, simultaneamente crtico, mas sobretudo
defensrio da honra de Jlio Dinis. Escreveu assim:
Depois desta apreciao to larga, to farta de horisontes e prevista de destinos, faz pena que um
mestre da critica portugueza, o snr. Ramalho Ortigo, escreva assim de um romancista que F. Chasles
reputou um dos primeiros da Europa: A obra de Jlio Diniz pertence litteratura de tricot cultivada
com ardor na Inglaterra pelas velhas miss. Apezar das suas qualidades paisagsticas, do seu mimo
descriptivo, da sua feminilidade ingenua e pittoresca, as novellas de Jlio Diniz no tem alcance
social, so meras narrativas de salo (Farpas, T. III da Nova serie, pag. 85).
Sem leve offensa opinio do elegante escriptor, no vacillo em affirmar que o romance de mais
alcance social que se tem escripto em portuguez o intitulado Os fidalgos da casa mourisca.
Neste momento seremos levados a acreditar que a opinio e apreo de Camilo Castelo Branco
por Jlio Dinis j no deixaro dvidas. Mas curioso ser ainda notar que esta admirao no brotou
unilateralmente, pois existem registos que documentam e nos do a conhecer o respeito que Jlio
Dinis tinha por Camilo Castelo Branco.
Na revista n 8 de O Tripeiro, de 1955, publica-se um artigo da autoria de Alberto Moreira intitulado
Jlio Dinis, Vieira de Castro e Camilo. O articulista encerra o artigo com a seguinte frase:
O genial romancista [Camilo] reconhecia o invulgar talento de Jlio Dinis e devia-lhe gratido,
porque, embora embuado, teve-o a seu lado num dos mais graves momentos de infortnio, quando
velhos amigos o abandonaram!17.
Esta assero de Alberto Moreira levanta perplexidades ao leitor que, entretanto, ficam sem uma
exata resposta. Percebe-se que Jlio Dinis se aproximou de Camilo Castelo Branco num momento em
que este ltimo atravessaria dificuldades, sugerindo que se questione se o teria visitado durante a
permanncia na cadeia, aquando da punio sofrida pelo seu romance com Ana Plcido. Mas, apesar
desta racional probabilidade, o certo que no se ultrapassa a especulao j que, embora aquelas
frases a encerrar o artigo sejam motivo para reflexo que se acentua pela presena de reticncias
que claramente deixam o texto em aberto, no existem demais dados neste sentido. O que se sabe,
16
LADY JACKSON, Catharina Charlota A Formosa Lusitnia, Camilo Castelo Branco (trad., pref. e notas). Porto: Livraria
Portuense Editora, 1877, pp. 105-106, n.r.p.
17
MOREIRA, Alberto Jlio Dinis, Vieira de Castro e Camilo: (Uma pgina esquecida do autor de A Morgadinha dos
Canaviais). O Tripeiro, Porto: n 8, V Srie, Ano XI, Dezembro 1955, p. 240.
Em fins de Agosto de 1861, Jos Cardoso Vieira de Castro publicou o seu famoso livro Camilo Castelo
Branco notcia da vida e obras do gigante da prosa. Este valioso trabalho, escrito em estilo muito
elevado, ressente-se, por vezes, do ardor excessivo com que Vieira de Castro defende Camilo e, impie-
dosamente, fustiga os adversrios que o Romancista insensatamente criara. Porm, tal parcialidade
, de certo modo, desculpvel e at meritria se repararmos que Vieira de Castro teve por objecto
salvar a reputao de Camilo, ento mal visto pela burguesia sensata, e desde 1 de Outubro de 1860
expiando na Cadeia da Relao do Porto o crime dos seus ilcitos amores com Ana Plcido. Camilo
veio a ser julgado em 15 de Outubro de 1861, e o livro de Vieira de Castro algo contribuiu para a
absolvio do apaixonado Romancista e sua adulterina enamorada. Cremos que Jlio Dinis assim
o compreendeu, e, em 15 de Setembro de 1861, no peridico portuense O Nacional, fez ao livro de
Vieira de Castro a seguinte apreciao: []18.
Urgia que a tal burguesia sensata lesse a obra, convite que Jlio Dinis no esconde com a
ltima frase do seu texto crtico: O livro precisa ser lido para se ver depois quo pouco eu disse
dele19. Embora toda a recenso de Dinis se dirija a Jos Cardoso Vieira de Castro, o autor da obra,
e no a Camilo Castelo Branco a personagem principal do enredo, que empresta o nome ao pr-
prio ttulo , o constante enaltecimento de todos os passos do romance , claramente, no s um
elogio a Vieira de Castro, como um elogio implcito ao romancista de Seide, chegando a adjetiv-lo
de grande romancista20. Leia-se um breve excerto da recenso, no qual Jlio Dinis aproveita as
prprias palavras de Vieira de Castro:
[] A introduo fechou com seis perodos admirveis onde o sr. Vieira de Castro em frase sublime nos
diz o que neste mundo ser poeta. O final do livro mais sublime ainda. uma das mais grandiosas
imagens que conhecemos em lngua portuguesa. O sr. Camilo Castelo Branco, j cego, apegando-se
ao bordo de Homero, encostado como Ossian ao ombro da sua Malvina, e antes de pedir uma
esmola como Milton, convidando os filhos da sua ptria para que o vejam no fundo do seu crcere,
e ali, postos os seus livros todos na travesseira do seu leito de ferro, ele no meio das suas relquias,
exorando a Deus que o chame, e morrendo como o sol, a agonizar entre os raios da sua formosura
Divina e esplndida imagem! []21.
18
MOREIRA, Alberto Jlio Dinis, Vieira de Castro e Camilo: (Uma pgina esquecida do autor de A Morgadinha dos
Canaviais). O Tripeiro, Porto: n 8, V Srie, Ano XI, Dezembro 1955, p. 238.
19
MOREIRA, Alberto Jlio Dinis, Vieira de Castro e Camilo: (Uma pgina esquecida do autor de A Morgadinha dos
Canaviais). O Tripeiro, Porto: n 8, V Srie, Ano XI, Dezembro 1955, p. 238.
20
MOREIRA, Alberto Jlio Dinis, Vieira de Castro e Camilo: (Uma pgina esquecida do autor de A Morgadinha dos
Canaviais). O Tripeiro, Porto: n 8, V Srie, Ano XI, Dezembro 1955, p. 238.
21
MOREIRA, Alberto Jlio Dinis, Vieira de Castro e Camilo: (Uma pgina esquecida do autor de A Morgadinha dos
Canaviais). O Tripeiro, Porto: n 8, V Srie, Ano XI, Dezembro 1955, p. 238.
[]
Tinha ao fim, de um lado um piano levantado, defronte uma mesa de pinho com muitos livros,
muitos manuscritos incompletos, e uma Bblia aberta.
A infeliz senhora, sentada ali perto da mesa, com as suas mimosas faces levemente arrugadas
na esteira fugace de agonias precoces, que parecia empenharem-se para a fazer mais linda, e o
filhinho do colo, rindo e brincando sempre com as mozinhas irrequietas sobre as pginas do livro
santo, dir-se-ia ao fundo da nave de um templo escuro a antiga e veneranda imagem de uma santa
alumiada ao trmulo e crepitante claro de um crio novo. Sublime quadro e insondvel!
Sublime na verdade!22.
Nesta descrio ecfrstica de um cenrio idealizado por Vieira de Castro lateja a tal verosimilhana
que no poderia deixar de enternecer qualquer leitor daquela poca, dada a ponte que a fico consegue
estabelecer com um acontecimento real por todos reconhecido. O efeito comovedor desta descrio
logo se prope atravs do prprio local sombrio e inspito que apresentado ao leitor, em profundo
contraste com a presena de uma mulher e me desventurada, embora letrada e religiosamente
convicta, imagem qual se ope a ingnua alegria do seu filho de tenra idade, num quadro de pureza
amordaada pelo crime de um dia ter amado algum. Repare-se ainda que, aps a transcrio do
excerto textual de Vieira de Castro, a ltima frase exclamatria de Jlio Dinis Sublime na verdade!
remete o leitor para a tenso, profundamente ambgua, entre o ficcional que a estrutura do prprio
romance advoga e o real de um episdio vivido na sociedade portuense, frase que claramente reclama
que seja lida na perspetiva do episdio do escritor Camilo e Ana Plcido.
Aps esta breve explanao, que pretendeu concatenar alguns documentos e organizar criticamente
um novo parecer acerca das relaes, pessoais e literrias, de Jlio Dinis e Camilo Castelo Branco, no
seria possvel referir-se que existiu uma declarada amizade entre ambos os escritores. Porm, apesar de
a mundiviso artstica no se conciliar em ambas as canetas, acreditamos que Jlio Dinis reconhecia
as extraordinrias capacidades literrias de Camilo, deixando provas de admirao e respeito pelo seu
fenmeno literrio. No sentido contrrio, Camilo foi igualmente elogioso das capacidades literrias
de Jlio Dinis. E perante as propostas que foram lanadas neste breve ensaio acreditamos tambm
que uma nova imagem possa imergir em torno destes dois escritores do sculo de ouro da nossa
literatura, substituindo outra que, assim o entendemos, no lhes devida. Embora marcados por
22
MOREIRA, Alberto Jlio Dinis, Vieira de Castro e Camilo: (Uma pgina esquecida do autor de A Morgadinha dos
Canaviais). O Tripeiro, Porto: n 8, V Srie, Ano XI, Dezembro 1955, p. 239.
Introduo
Nesta comunicao, pretendemos analisar o quadro da evoluo das ideias literrias de Alexandre
da Conceio, que, ao longo de pouco mais de quatro dcadas de existncia, far a transio do lirismo
romntico para uma potica revolucionria e panfletria de influncia vtor-huguana e, mais tarde,
para a conceo de uma poesia positivista, explanada no volume de ensaios crticos Notas. Ensaios
de Critica e de Litteratura, para, na fase final da sua reflexo terica, reabilitar determinados aspetos
do lirismo subjetivo romntico. Para tanto, iremos recorrer a um conjunto de textos de teorizao
literria disponibilizados na plataforma de edio digital E-poeticae Textos de teorizao literria
on line, onde, no mbito de um projeto que congrega vrios investigadores especializados em estudos
comparatistas, temos vindo a constituir um uma base de dados em desenvolvimento contnuo,
contendo, data, cerca de 500 textos de teorizao literria.
1
Instituto Universitrio da Maia/CIAC
onde os poetas so chamados a serem obreiros. Pela voz do sujeito de enunciao, exprime toda
a sua confiana no progresso da humanidade:
Por essa altura segue j atentamente os movimentos da Gerao Coimbr, auscultando nesses
jovens os sinais de uma revoluo literria que, aniquilando o romantismo decrpito, viria a ter a sua
voz de plena afirmao nas Conferncias de Casino.
Assim, quando Guerra Junqueiro publica, em 1874, A Morte de D. Joo, para Alexandre da
Conceio, esta obra afirma definitivamente a revoluo literria em Portugal, em consonncia
com o grande movimento scientifico da Europa, a agitao febril dos espiritos, as tempestades
da politica, as lutas de polemica religiosa, os combates gigantes da critica, o desmoronamento
espantoso das idas e das instituies4. Faz um ponto da situao altamente crtico da sociedade
portuguesa, denunciando o seu aspeto hipocritamente conservador e o seu atraso intelectual:
Emquanto l fora se esgotavam nm anno vinte edies da Vida de Jesus de Renan, em Portugal
esgotavam-se outras tantas da Misso Abreviada. No esqueamos que 1874 o ano da rejeio
de Renan como scio correspondente da Academia Real das Sciencias, facto que, pelo seu absurdo,
se afigurou para a intelligentzia portuguesa como a evidncia da incapacidade das instituies
para reconhecerem a evoluo cientfica e social internacional; e Alexandre da Conceio no
podia deixar passar a oportunidade de acusar a inutilidade somnolenta e encharcadada Segunda
seco da academia real das sciencias, bem como a feio sem caracter do sr marquez dAvila, ou
os exageros grotescos do bispo de Viseu. Oportunidade tambm para relembrar as etapas mais
significativas desta revoluo inevitvel como a publicao das Odes Modernas, a questo do Bom
Senso e Bom Gosto, uma revoluo que no se pode travar, facto brilhantemente consummado
e que conquista cada vez mais adeptos:
2
Em vez de prologo. Alvoradas. Porto: Typographia de Francisco Gomes da Fonseca, 1866, pp. 9-10.
3
A Francisco Taborda. Alvoradas. Porto: Typographia de Francisco Gomes da Fonseca, 1866, p. 66.
4
CONCEIO, Alexandre da A morte de D. Joo. Poema por Guerra Junqueiro. O Paiz, n 417, 31-5-1874, pp. 1-2.
Noutro artigo escrito pela mesma poca, acerca da coletnea A Alma Nova, de Guilherme de Azevedo,
posto perante o panorama da decadncia atual da sociedade, Alexandre da Conceio considera que
s uma coisa se ergue como uma aureola divina acima do charco social; essa coisa a poesia, esta
flr eterna do espirito humano, este raio de graa das almas luminosas e justas, esta casta confidente dos
coraes puros e juvenis6. A poesia hodierna representa, para o fundador dA Revoluo, antes de mais,
um documento onde as geraes futuras iro estudar a histria da alma contempornea, esta feio
contradictoria do caracter do nosso tempo, as conturbaes sociais e polticas do pas. Entrevendo,
atravs das aparncias de prosperidade, de progresso material e de serenidade, o ceticismo poltico,
o cinismo administrativo, o cesarismo pblico, o mercantilismo econmico, a hipocrisia religiosa, os
privilgios do clero, a inutilidade rendosa, a devassido e dominando tudo isto a figura augusta da
justia amarrada, como um escravo, ao carro ensanguentado dos vencedores da occasio, dos Cesares da
immoralidade, a poesia deve impor-se como uma voz de denncia, uma daquelas vozes mysteriosas
e propheticas, que as lendas romanas dizem que se ouviam na vespera dos grandes acontecimentos.
Enfim, porque pressente a aproximao das grandes coisas, dos mundos desconhecidos, e possui
o dom mysterioso de dupla vista7, a poesia, tal como os antigos profetas bblicos, deve agitar as
conscincias, anunciando e preparando as catstrofes iminentes, aps as quais surgir uma nova
ordem social. Ciente de que as conquistas da verdade e da justia se processaro pouco a pouco,
segundo o ritmo lento de germinao dos novos ideais em Portugal e somente atravs do trabalho
surdo e persistente das idas, Alexandre da Conceio lamenta a ambivalncia de tom da poesia
moderna, que oscila entre o entusiasmo construtivo e o ceticismo nocivo. Elogiando no exemplo de
Guilherme de Azevedo toda essa mocidade robusta e enthusiastica marcada por uma feio moral
que alia espontaneidade e virilidade, pelo sentimento profundo da justia e da verdade, Alexandre
da Conceio est simultaneamente a considerar a atitude contrria (a descrena na revoluo das
ideias, a falta de entusiasmo combativo), uma tendncia prejudicial regenerao do corpo social.
Curiosamente, para designar a nova escola potica, votada a demolir as instituies sociais que
obstaculizam a implantao da justia, Alexandre da Conceio prope como denominaes possveis
os adjetivos philosophica, realista, socialista, revolucionaria ou mesmo positivista (pois a nova
poesia parece-lhe participar um pouco de tudo isso: philosophica porque verdadeira, realista
porque se inspira da naturesa, socialista porque lucta pelo direito, revolucionaria porque combate
pela verdade, positivista porque s tem f na sciencia)8. Nesta hesitao terminolgica, em que parece
5
IDEM, Ibidem.
6
CONCEIO, Alexandre da A Alma Nova por Guilherme dAzevedo (Impresses de leitura). O Paiz, n 494, 6-9-1874,
pp. 1-2.
7
IDEM, Ibidem.
8
IDEM, Ibidem.
9
IDEM, Ibidem.
10
CONCEIO, Alexandre da Anarchia dexame. In Notas. Ensaios de Critica e de Litteratura. Coimbra: Imprensa Academica,
1881, pp. 12-14. Este artigo inicialmente publicado na revista Litteratura Occidental, n 1, 1877, pp. 7-9.
11
IDEM, Ibidem.
12
IDEM, Ibidem.
13
CONCEIO, Alexandre da Realismo e realistas. In Notas. Ensaios de Critica e de Litteratura. Coimbra: Imprensa Academica,
1881, pp. 94-96.
A filosofia superior almejada por Alexandre da Conceio viria a ser encontrada na frmula
positivista. No seu texto de crtica literria Realistas e Romnticos, publicado no peridico A
Evoluo, explana a importncia da literatura enquanto instrumento da renovao intelectual em
curso, fundamentalmente pela sua conexo com a cincia, sendo o trao de ligao natural entre
a alta especulao scientifica e o sentimentalismo artistico; o cadinho mysterioso em que a sciencia
se transfrma em arte e a arte se converte em sciencia; uma espcie de mdia arithmetica entre a
alta cultura intellectual e as aspiraes instinctivas e inconscientes, para o bello e para a verdade16.
Neste sentido, a passagem do Romantismo ao Realismo decorrera, segundo Alexandre da Conceio,
naturalmente da evoluo do movimento intelectual e da transio de um estado de compreenso
metafsica a um estado de compreenso cientfica. Nesta equao entre Realismo e Positivismo, ao
realismo, impessoal, crtico, despreocupado e frio corresponde o
positivismo scientifico, com todo o seu rigor de methodo, com toda a sua indifferena religiosa, com
a sua profunda comprehenso do dever e do direito. Toda a obra litteraria por isso a manifestao
artistica de uma philosophia, s vezes presentida nas suas affirmaes geraes pelo auctor, mas em
todo o caso revelada na inteno moral da obra, nos seus methodos de observao, nos seus processos
de analyse, no caracter das suas syntheses e at na propria frma litteraria.
14
CONCEIO, Alexandre da Anarchia dexame, op. cit., p. 15.
15
JUNQUEIRO, Guerra; AZEVEDO, Guilherme de Nota 51 - Pg. 100. In Viagem Roda da Parvonia. Lisboa: Empreza Litteraria
de Lisboa, 1879, pp. 217-219.
16
CONCEIO, Alexandre da Realistas e Romanticos, Estudo Litterario a propsito da Comedia do Campo, Scenas do Minho,
volume 2 Amor Divino (estudo pathologico duma santa), por Bento Moreno. A Evoluo, n 8, Maro de 1877.
uma renovao litteraria mais ou menos consciente e systematica, com intuitos eminentemente
scientificos e experimentaes, tendendo a substituir ao velho e impalpavel idal romantico, collocado
fra do alcance da phenomenalidade realisavel, um novo ponto de vista esthetico, dado pela com-
prehenso positiva da condies reaes do universo, pela rejeio intransigente de todas as canadas
idalidades neo-platonicas, pela eliminao de todo o convencionalismo devaneador e dispersivo
e pela adopo de todos os resultados definitivamente adquiridos para o patrimonio commum do
saber geral pelo estudo consciencioso e despreoccupado dos phenomenos e das leis que os regulam,
nico objecto das sciencias. Esse realismo, afirma Alexandre da Conceio, em 1877, permanecia em
Portugal mais como tendencia inconsciente de alguns escriptores de talento e de forte comprehenso
das necessidades reaes do espirito publico, do que uma verdadeira escola litteraria com intuitos e
principios perfeitamente definidos e assentes18.
17
IDEM, Ibidem.
18
Cf. CONCEIO, Alexandre da Realismo e realistas. In Notas. Ensaios de Critica e de Litteratura. Coimbra: Imprensa
Academica, 1881, p. 92.
19
Trata-se da coletnea das respostas de Camilo aos seus opositores, publicadas ao longo de 1879, em O Sorvete e
Bibliografia Portuguesa e Estrangeira, editada em folheto e, posteriormente, incorporada em apndice 2 edio do
Cancioneiro, em 1887.
20
Rasgaram-me sobre o CANCIONEIRO as cataratas de lama que prenunciam o dilvio das letras daquem e dalm-mar. Que
eu saira a insultar a Ideia Nova no verso e no romance, porque a minha ignorncia me vedava as fronteiras que separam o
velho romantismo da elaborao dos processos que fotografam a vida a um raio luminoso da cincia. Ignorncia de qu?
das misrias indeclinveis que eles chamam as podrides? das lgrimas a que eles do como lenitivo a gargalhada do velho
e safado diabo das lendas? Eu conhecia tudo isso sem expositores franceses. O que eu no podia era atribuir fisiologia, ao
sangue, fatalidade da raa, o que era da liberdade moral, do esprito, da educao, da conscincia, da responsabilidade. Eu
ia mais para as lgrimas do que para as nuseas., apud CABRAL, Alexandre Polmicas de Camilo. Lisboa: Livros Horizonte,
1982, tomo VII, p. 150.
21
CABRAL, Alexandre Polmicas de Camilo. Lisboa: Livros Horizonte, 1982, tomo VII, p. 106.
22
IDEM, Ibidem.
23
CABRAL, Alexandre Polmicas de Camilo. Lisboa: Livros Horizonte, 1982, tomo VIII, p. 5.
24
IDEM, Ibidem.
25
Cf. BRANCO, Camilo Castelo, apud CABRAL, Alexandre Op. cit., p. 18.
26
Cf. BRANCO, Camilo Castelo, apud CABRAL, Alexandre Op. cit., p. 19.
seria menos assombroso se tivesse sido educado intellectualmente na moderna escla positiva de
philosophia artistica. Assim, alimentado pelo velho espiritualismo moribundo e esteril, verdadeira-
mente prodigioso pela vitalidade, pela comprehenso instinctiva dos destinos da arte moderna, pela
scintillao do estylo, pela impetuosidade, pela fria dissecao anatomica duma individualidade
ou de uma situao28.
27
CONCEIO, Alexandre da Realistas e Romanticos. A Evoluo, n 12, Dezembro de 1877.
28
IDEM, Ibidem.
29
IDEM, Ibidem.
30
CONCEIO, Alexandre da, apud CABRAL, Alexandre Op. cit., p. 14.
31
Alexandre da Conceio explica esse extravio pelo Romantismo como o resultado de uma influncia perniciosa do meio;
o que explica no seguinte poemeto, intitulado Bacharelite, que viria a publicar em A Folha Nova, em 21.9.82: Eu
fui do Romantismo um crente confessado / E dissipei a alma em muito verso errado, / que o tempo, esse coveiro alegre e
pachorrento / Lanou assobiando valla esquecimento. / Mas como um velho estroina, eu sinto no organismo / ainda a
perverso do antigo romantismo. / [] Eu sinto aqui no peito, aqui dentro do seio / O mal do romantismo, o mal do proprio
meio / Em que respiro e vivo, o mal do meu paiz, / Que nos d a feio dum povo de imbecis, / A tnia do lyrismo, a grande
solitria que nos devra a alma [] elle o cogumello, o proto-organismo, o microcosmo vil do cholera lyrismo, / elle o
phyloxera, a epidemia, o mal, que estirilisa e queima a vida nacional.
32
Em dado momento, Alexandre da Conceio chega a lamentar que Camilo Castelo Branco use a tctica velha e conhecida,
de descambar imediatamente para a agresso insultante, convertendo a discusso desde logo num conflito de personalidades.
Cf. CONCEIO, Alexandre da, apud CABRAL, Alexandre Op. cit., p. 27.
33
Cf. CONCEIO, Alexandre da, apud CABRAL, Alexandre Op. cit., p. 37.
34
Cf. CONCEIO, Alexandre da, apud CABRAL, Alexandre Op. cit., p. 42.
35
Cf. CONCEIO, Alexandre da, apud CABRAL, Alexandre Op. cit., p. 41.
36
contra este inimigo secular do nosso desenvolvimento intelectual que reage Ea de Queirs como romancista, Bento
Moreno como literato, Ramalho Ortigo como crtico, Oliveira Martins como historiador e como economista, Rodrigues
de Freitas como deputado e como publicista, Antero de Quental e Guerra Junqueiro como poetas, Bordalo Pinheiro como
propagandista, Guilherme de Azevedo como folhetinista, Jlio de Matos, Augusto Rocha, Manuel Garcia, Correia Barata,
como homens de cincia, Tefilo Braga, como literato, como crtico, como filsofo, como professor, como publicista [,] como
democrata, e tantos outros espritos ilustres e disciplinados cuja enumerao felizmente j seria longa.. Cf. CONCEIO,
Alexandre da, apud CABRAL, Alexandre Op. cit., p. 83.
3. Do romantismo ao romantismo
A dicotomia romantismo versus realismo viria a impor-se como um dos travejamentos da colet-
nea pstuma Outomnaes, de Alexandre da Conceio, onde Tefilo Braga colige vrias composies
publicadas na imprensa ainda em vida do autor. Em versos que fazem lembrar a stira lavrada numa
nota obra de Guilherme de Azevedo e Guerra Junqueiro, Viagem Roda da Parvonia, referida noutro
local, o Romantismo, violentamente coberto de eptetos disfricos (antiga perverso, vrus, mal,
tnia, grande solitria, acional malria, microbio banal do cholera lyrismo), responsabilizado
pela esterilizao da vida nacional. Identificado o mal do Romantismo com o mal do proprio meio,
/ Em que respiro e vivo, o mal do meu paiz,/ Que nos d a feio dum povo de imbecis, o Romantismo
perspetivado como o phylloxera, a epidemia que confere ao povo portugus esta feio grotesca,/
O tom sentimental, a linha romanesca, / O olhar D. Quixote e o ventre Sancho Pana, dissolvendo
37
Cf. CONCEIO, Alexandre da, apud CABRAL, Alexandre Op. cit., p. 81.
38
Cf. CONCEIO, Alexandre da, apud CABRAL, Alexandre Op. cit., p. 82.
39
O carter satrico destes romances foi objeto de dvida pelos contemporneos de Camilo. Em setembro de 1879, A. de
Souza Vasconcellos, em A Arte, na Revista Litteraria, faz a recenso a Eusebio Macario. Recorda a expectativa com que o
livro era esperado, j que a imprensa anunciara que o escritor seguiria no Eusebio Macario a eschola e processos de Zola.
Esperado pelos que gostariam de celebrar a converso de Camilo s modernas doutrinas de um realismo nauseativo e
asqueroso e pelos que pensavam regalar-se com a leitura de scenas sensuaes e desbragadas como as do Crime do Padre
Amaro, e do Primo Baslio.
40
BRANCO, Camilo Castelo, apud CABRAL, Alexandre Op. cit., p. 20.
Esta espcie de balano final positivo do romantismo traado por um dos seus mais acrrimos
crticos leva-nos a considerar Alexandre da Conceio um dos casos mais assinalveis de evoluo
esttico-literria no sculo XIX portugus. Depois de transitar do sentimentalismo romntico que
carateriza Alvoradas para a potica de combate e para a poesia positiva que defende em Notas. Ensaios
de Critica e Litteratura, ser levado a reabilitar na fase final da sua reflexo terica determinados
aspetos do lirismo subjetivo romntico.
41
CONCEIO, Alexandre da Outomnaes (Versos). Porto: Imprensa Portugueza, 1891.
42
CONCEIO, Alexandre da Versos dum caturra. In Outomnaes (Versos). Porto: Imprensa Portugueza, 1891, pp. 7-10.
Disponvel em http://e-poeticae.com/index.php/autor/texto/13/14/0/5.
1
Universidade do Minho mcpinheiro@ilch.uminho.pt
2
MACHADO, lvaro Manuel Agustina Bessa-Lus: da herana romntica a Marguerite Yourcenar. In Do romantismo aos
romantismos em Portugal. Lisboa: Editorial Presena, 1996, pp. 149-150.
3
MACHADO, lvaro Manuel Agustina Bessa-Lus: da herana romntica a Marguerite Yourcenar. In Do romantismo aos
romantismos em Portugal. Lisboa: Editorial Presena, 1996, p. 152.
4
CASTELO BRANCO, Maria do Carmo A ordem da fico e a desordem da realidade (a propsito de Fanny Owen). In Ponce
de Leo, Isabel, org. Estudos agustinianos. Porto: Edies Universidade Fernando Pessoa, 2008, p. 220.
Conhecer o Porto no coisa de agncia de viagens. Nem de escritores tambm. Camilo Castelo
Branco fez muito mal ao Porto, mostrando-o como uma fortaleza de brasileiros e um alegrete de
mulheres vestidas de seda cor de pulga e apaixonadas por uma sobrecasaca. No assim. Ainda hoje
h quem se refere ao Porto empregando o tom camiliano e correndo o risco de ser tolo9.
Talvez esta mudana de posio possa explicar-se pelo facto de Jia de Famlia ser uma
narrativa centrada em mutaes permanentes: nas vidas das personagens e na perceo do
espao. Neste plano, Agustina mostra-se mais interessada em evocar o modo como a paisagem
foi transformada. Por isso, o que o romance revela sobretudo um universo humano e vegetal
perdido: Muitos dos jardins privados desapareceram para dar lugar a imveis com elevadores e
garagens subterrneas. [] Era perigoso sair noite e a velha Baixa ficou deserta, e os cafs fechados.
O Porto bomio desapareceu10.
5
BESSA-LUS, Agustina Fanny Owen. Lisboa: Guimares Editora, 1979, p. 10.
6
BESSA-LUS, Agustina A quinta essncia. Lisboa: Guimares Editores, 1999, p. 45.
7
BESSA-LUS, Agustina Fanny Owen. Lisboa: Guimares Editora, 1979, p. 12.
8
BESSA-LUS, Agustina Fanny Owen. Lisboa: Guimares Editora, 1979, p. 13.
9
BESSA-LUS, Agustina O princpio da incerteza. Jia de famlia. Lisboa: Guimares Editores, 2001, p. 79.
10
BESSA-LUS, Agustina O princpio da incerteza. Jia de famlia. Lisboa: Guimares Editores, 2001, p. 70.
Dantes, quem no exportava vinhos era fanqueiro ou ourives; essa tradio dum mundo mais
seguro de cmbios, de alianas maduramente pensadas, de contribuies para as ordens religiosas
[], essa tradio, dizia eu, extraviou-se bastante. No entanto, o Porto , como qualquer cidade do
mundo [] um burgo cheio de segredos. [] Em nenhuma parte como no Porto se encontra a nata
da raa europeia, com a sua sensibilidade por definio avessa s novidades e ao escndalo, com a
sua arte de dialogar e que se subentende no ritmo do negcio12.
Esta constatao das metamorfoses vividas pela cidade justifica porventura uma memria
nostlgica do Porto, tambm presente na obra As Relaes Humanas. A, a antropomorfizao da
natureza concorre para uma evocao mais pungente da cidade, ou mais precisamente de uma rua,
significativamente chamada Rua da Saudade:
Era um desses lugares que o Porto conserva por esquecimento, soalhentos porm tristes, com azulejos
cor de besouro nas fachadas e alguns jardins assentes em terra que chora constantemente gua viva.
[] H na sombra escorregadia desses passeios em cunha a alma do burgo velho, de negociantes e
capites mercantes cujas filhas aprenderam canto13.
O desconforto manifestado por Agustina com transformaes da cidade torna mais expressiva
uma certa evocao romntica. Em Jia de Famlia, a descrio da casa da famlia Roper recorda esses
lugares solitrios e algo sombrios to caros ao Romantismo: A casa estava erguida num lugar alto
e pedregoso, rodeada por jardins em que predominavam as japoneiras. Havia camlias todo o ano e
tambm jasmins do cabo14.
Romntica tambm, em Fanny Owen, a descrio do quarto que Camilo Castelo Branco ocupa
em 1850 na Rua de Santa Catarina com a moblia folheada e duas gravuras da escola romntica,
medas de rosas e de mulherzinhas que espirravam sade e a coriza das rosas, talvez15. Neste mesmo
romance, no apenas o ambiente romntico que Agustina recupera. Destacam-se ainda aquelas
personagens que se encontram no universo camiliano e que constituem figuras paradigmticas
da atmosfera camiliana, ou pela sua ligao, mais ou menos prxima, vida de Camilo [], ou se
tornaram smbolos de um pensamento trgico/romntico como acontece com Jorge Artur de Oliveira
11
BESSA-LUS, Agustina O princpio da incerteza. A alma dos ricos. Lisboa: Guimares Editores, 2002, p. 336.
12
BESSA-LUS, Agustina As relaes humanas. Lisboa: Guimares Editores, 2001, p. 115.
13
BESSA-LUS, Agustina As relaes humanas. Lisboa: Guimares Editores, 2001, p. 411.
14
BESSA-LUS, Agustina O princpio da incerteza. Jia de famlia. Lisboa: Guimares Editores, 2001, p. 80.
15
BESSA-LUS, Agustina Fanny Owen. Lisboa: Guimares Editora, 1979, p. 40.
16
IDEM, Ibidem.
17
IDEM, Ibidem, p. 17.
18
IDEM, Ibidem, p. 23.
19
IDEM, Ibidem, p. 65.
20
PIRES, Maria Joo Percursos romnticos pela paisagem vitoriana: alguns exemplos. In BUESCU, Helena Carvalho; [et
al.], org. Corpo e paisagem romnticos. Lisboa: Edies Colibri, 2004, p. 371.
21
BASTOS, Mrio Da paisagem habitada pelo corpo ao corpo enquanto paisagem: uma leitura de William Wordsworth
e de Walt Whitman. In BUESCU, Helena Carvalho; [et al.], org. Corpo e paisagem romnticos. Lisboa: Edies Colibri,
2004, p. 157.
Era escuro l dentro, escuro como os jardins mais tristes do velho Almeida. Era um jardim Porto,
com muitas japoneiras. [] Havia medos no jardim. O pequeno Lopo apreciava estes medos com toda
a sua coragem de cinco anos. Mas era preciso que o irmo estivesse ao p e lhe desse a mo para
atravessarem o bosque dos brincos-de-princesa ou a alameda das tlias22.
A associao ntima entre o homem e o ambiente natural e a influncia que a paisagem exerce
sobre uma personagem so tambm explcitas no romance Os Meninos de Ouro. Como assinala
lvaro Manuel Machado23, No por acaso que a segunda parte do romance [Os Meninos de Ouro]
se intitula O pinheiro-choro, referindo-se imagem obsessiva dum pinheiro do jardim da vivenda
nos arredores do Porto onde Jos Matildes passa a infncia. O pinheiro-choro atravessa toda a sua
vida como imagem supremamente protectora. Com efeito, o amparo emocional que esta rvore
proporcionou criana prolonga-se na idade adulta, como pode concluir-se do seguinte fragmento
textual: Debaixo do pinheiro-choro, ele sentia-se como um homem a quem nada era negado: fora,
beleza, sentidos ligeiros e penetrantes, o poder de voar e de derrubar tudo o que fosse contrariedade24.
22
BESSA-LUS, Agustina O princpio da incerteza. A alma dos ricos. Lisboa: Guimares Editores, 2002, p. 11.
23
MACHADO, lvaro Manuel Agustina Bessa-Lus: da herana romntica a Marguerite Yourcenar. In Do romantismo aos
romantismos em Portugal. Lisboa: Editorial Presena, 1996, p, 163.
24
BESSA-LUS, Agustina Os meninos de ouro. Lisboa: Guimares Editora, 1983, p. 111.
25
GIRAUD, Yves La rverie dans le jardin. In AA.VV. Romantismo da mentalidade criao artstica. Sintra: Instituto
de Sintra, 1986, p. 69.
26
GIRAUD, Yves La rverie dans le jardin. In AA.VV. Romantismo da mentalidade criao artstica. Sintra: Instituto
de Sintra, 1986, p. 73.
O parque de japoneiras do jardim dos Pessanha era um dos orgulhos da cidade. A sua florao
era to ritual que havia camlias todo o ano. Comeava em Setembro com uma espcie singela e
perfumada e acabava em Agosto com os pequenos clices rosados. Era um jardim antigo onde a praga
dos agapantos se instalou mais tarde, trazida pelos jardineiros municipais, em geral varredores e
podadores e inimigos da espcie floral mais impdica. [] O jardim dos Pessanha [] teve influncia
na vida dos jovens27.
Assinale-se a coincidncia com o tipo de jardim ingls, moldado pelo chins, numa outra reflexo
da autora:
A ideia que se encontra nos jardins ingleses de fazer uma plantao que permita a florao das
espcies durante o ano inteiro, tambm uma ideia chinesa. [] Chambers previne da dificuldade
que h em construir um jardim chins, tanto ele deve ao gnio da improvisao e ao conhecimento
perfeito do esprito humano28.
No romance Prazer e Glria, Agustina recupera este cenrio da arquitetura paisagstica inglesa
do Romantismo, muito embora no deixe de observar as diferenas que, por fora da construo
desenfreada, rapidamente se criaram entre alguns jardins portuenses e os seus inspiradores
ingleses:
Joo habitava na freguesia de Lordelo do Ouro, lugar no h muito tempo ermo em que se traou
o caminho da Foz, arborizado e percorrido pelos elctricos amarelos. Em pouco tempo rasgaram-se
as avenidas nobres e construram-se vivendas luxuosas. A Marechal e a Boavista ficaram a significar
a refrega com que a cidade trata a provncia, e as famlias mais desafogadas edificaram ali as suas
moradias, algumas de grande fachada e com jardins bem tratados. No tinham, certo, a confortvel
graduao dos jardins ingleses, com as suas japoneiras e rododendros escoceses, mas apresentavam
uma boa viso do parque em miniatura, tendo rvores de fruto em profuso, porque o Porto
calculador mesmo quando poeta29.
O jardim ingls de 1720 a 30 tirou o seu modelo do jardim chins. William Chambers, um
arquitecto ingls do sculo XVIII, pde trazer para a Europa uma estimativa do jardim chins
em todo o pormenor. [] O jardim chins tem uma composio teatral e est construdo no
intuito de produzir uma diversidade de cenas. As cenas so de trs categorias: risonhas, terrveis
e encantadoras. [] sucedem-se os contrastes, necessrios expanso dos sentidos, e as cenas
deliciosas, de lagos tranquilos e flores raras, aparecem, fazendo a distribuio dos jogos de luz
e de cor30.
Em As Frias (texto originalmente publicado em 1977), reencontramos este fascnio pela descrio
de jardins particulares do Porto que seguem o modelo do jardim ingls do Romantismo. Ao mesmo
27
BESSA-LUS, Agustina A quinta essncia. Lisboa: Guimares Editores, 1999, p. 7.
28
BESSA-LUS, Agustina A quinta essncia. Lisboa: Guimares Editores, 1999, p. 294.
29
BESSA-LUS, Agustina Prazer e glria. Lisboa: Guimares Editora, 1988, p. 9.
30
BESSA-LUS, Agustina A quinta essncia. Lisboa: Guimares Editores, 1999, p. 293.
A casa de Olga [] tinha tambm esttuas no jardim. [] Era um jardim quase grandioso, com grande
soma de rvores mais prprias para um parque ingls, do que para ensombrar dois quarteires
daquele burgo onde se implantavam os corredores das ilhas. No Porto h essa paisagem de Constable
metida dentro de muros coroados de fundos de garrafas partidas31.
4. Em jeito breve concluso, recupero dois tpicos que devem ser sublinhados.
Primeiro tpico: em Fanny Owen, Agustina retrata o Porto camiliano e proporciona ao leitor uma
viagem por lugares que marcaram vivncias do escritor romntico. Em Jos Augusto, observa traos
de uma personagem moldada pelo ambiente saturado de byronismo; nos lugares retratados, destaca
a componente romntica.
Segundo tpico: na recriao de um certo ambiente romntico do Porto, os jardins ocupam um
lugar preponderante:
No creio que o valor concedido pela narradora a jardins (privados em primeiro lugar, mas tambm
pblicos) seja indissocivel de uma certa nostalgia romntica do esprito do lugar. Em si mesmos,
os jardins urbanos so para Agustina lugares com alma, como sustenta no Caderno de Significados:
Os jardins foram e sero a alma das cidades. E tambm de quem mora nelas. So lugares que
prendem o corao s virtudes domsticas, porque nos jardins a criana brinca, os jovens namoram
e os velhos descansam. [] Jardins histricos, jardins de passagem, outros com tristezas como aves
suspensas na luz do meio-dia. Quem no teve um jardim, pblico ou privado, na sua infncia, ser
um doente das suas prprias memrias. O jardim o princpio e o fim, o den e o Gethsmani32.
Lida luz de outras narrativas, esta reflexo sobre o papel dos jardins na existncia humana
contm uma componente de romantismo da prpria descrio. O Porto no para Agustina apenas
uma memria nostlgica do passado; mas essa memria existe e o passado rememorado o do
Romantismo da cidade.
Bibliografia
BASTOS, Mrio Da paisagem habitada pelo corpo ao corpo enquanto paisagem: uma leitura de
William Wordsworth e de Walt Whitman. In BUESCU, HelenaCarvalho; [et al.], org. Corpo e
paisagem romnticos. Lisboa: Edies Colibri, 2004, pp. 157-164.
BESSA-LUS, Agustina A quinta essncia. Lisboa: Guimares Editores, 1999.
BESSA-LUS, Agustina As chamas e as almas. Romances. Crnica do Cruzado Osb. As frias. Lisboa:
Guimares Editores, 2007.
BESSA-LUS, Agustina As relaes humanas. Lisboa: Guimares Editores, 2001b.
BESSA-LUS, Agustina Caderno de significados. Lisboa: Guimares Editores, 2013.
BESSA-LUS, Agustina Fanny Owen. Lisboa: Guimares Editora, 1979.
BESSA-LUS, Agustina O princpio da incerteza. A alma dos ricos. Lisboa: Guimares Editores, 2002.
31
BESSA-LUS, Agustina As chamas e as almas. Romances. Crnica do Cruzado Osb. As frias. Lisboa: Guimares Editores,
2007, p. 256.
32
BESSA-LUS, Agustina Caderno de significados. Lisboa: Guimares Editores, 2013, pp. 78-79.
Elsa Pereira1
1
FCT (bolseira de ps-doutoramento SFRH/BPD/92155/2013); investigadora do CLUL (Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa); colaboradora do CITCEM (Faculdade de Letras da Universidade do Porto).
2
SILVA, Francisco Ribeiro da Jornais e revistas do Porto no tempo de Camilo. Bibliotheca Portucalensis. Porto, [s.n.]. II, 5
(1990), p. 50.
3
Vd. LANA, A. A Harpa: recordaes da mocidade. O Tripeiro. Porto: [s.n.]. II, 6 (114) (1919), p. 119.
4
Esta coleo foi recentemente enriquecida com fotocpia dos nmeros em falta, a partir da reproduo que providenciei
junto da Biblioteca Nazionale Marciana di Venezia. A mesma cpia foi tambm disponibilizada BPMP, em verso integral.
[] que arranque de mocidade! Oh o bom tempo que passou! Lembrar-se-hia o Joaquim de Araujo das
maravalhas litterarias do que essas linhas escrevia e com que elle cuidadosamente brindava os vos em
gazeta esquecida onde tripudiavam todos, Maximiano de Lemos, Accacio Antunes e outros que taes?5
Segundo Antnio Lana, teria sido alis no estabelecimento comercial do pai de Jos Sampaio
com porta aberta no n 414 da Rua do Bonjardim que inicialmente se formara a ideia de criar uma
revista, entre os estudantes que, todas as tardes, depois das aulas, se reuniam entrada da padaria6.
Assim foi ganhando forma o ambicioso projeto de meia dzia de rapazes, que logo estabeleceram
redao no n 86 da Rua da Duquesa de Bragana7, at que, a 29 de maio de 1873, aparecia o primeiro
nmero dA Harpa, em formato pequeno, a duas colunas.
Seria o primeiro de 26 nmeros, distribudos por duas sries irregularmente publicadas entre 1873
e 1876 e que foram saindo com nmero varivel de pginas, embora predominantemente com oito,
na Srie I, passando depois, na Srie II, a concentrar um maior nmero de pginas em cada fascculo8.
Comeou por imprimir-se em typo cansado e papel barato na typographia Coelho Ferreira, nesse
tempo ao fundo da rua das Taypas, esquina da de Bellomonte9, transitando depois, a partir do n 10,
para a Imprensa Literrio-Comercial (da Rua do Bonjardim). Vendia-se razo de 40 ris por cada
nmero avulso, enquanto as subscries eram assinadas na livraria Progresso (da Rua do Almada) e
na Chardron (aos Clrigos), pela quantia de 600 ris, para uma srie de vinte nmeros10.
Sem um programa definido, vinha ento a lume A Harpa, apresentando-se, logo desde o incio, como
um projeto eminentemente literrio, embora convocando vrios gneros textuais desde os literrios
propriamente ditos (tanto em prosa como em verso), at uma srie de trabalhos de crtica literria11,
5
BRUNO Portuenses Illustres, III. Porto: Livraria Magalhes & Moniz Editora, 1908, p. 196.
6
Vd. LANA, A. Op. cit., p. 119.
7
A se manteria at ao final, apesar de uma breve passagem pelo n 65 da Rua das Taipas, onde se fixou entre a publicao
dos n.os 4 e 9 da Srie I.
8
Os nmeros mais pequenos dA Harpa saram com apenas 4 pginas, enquanto o maior teve nada menos do que 32. A
alterao na estratgia editorial dos ltimos fascculos justificada por Joaquim de Arajo, no Expediente do n 5 da
Srie II: O atrazo em que se acha esta publicao e o desejo que temos de que ella entre de novo em dia num pequeno
lapso de tempo, obrigam-nos a introduzir na Harpa uma ligeira modificao que no prejudicando os nossos assignantes
pde fazer com que em breve acompanhemos o movimento literario do paiz. Tal modificao consiste em distribuir pelo
menr numero possivel de numeros as 160 paginas, de que deve constar a segunda serie da Harpa (vinte numeros de oito
paginas). As atribulaes que marcaram a reta final da publicao impossibilitariam, no entanto, o cumprimento desta
promessa, terminando a Srie II abruptamente, no n 6, com apenas 84 pginas.
9
LANA, A. Op. cit., p. 119.
10
Vd. A Harpa: Revista Litteraria (dir. Joaquim dAraujo). Porto: [s.n.]. I, n 1 (1873), p. 8. Ao longo do trabalho, sempre que
remetermos para esta revista, indicaremos apenas a respetiva srie, nmero e pgina.
11
E.g. artigo de Tefilo Braga sobre a Dinamene camoniana (II, n 1, pp. 2-3); artigo de Joaquim de Vasconcelos sobre a
receo camoniana na Alemanha (II, n 1, pp. 3-4); artigo de Adolfo Coelho sobre os contos de Trancoso (II, n 2, pp. 11-14;
n 3, pp. 19-22); Consideraes sobre litteratura, de Simes Dias (II, n 3, p. 17; n 5, p. 42); artigo de Tefilo Braga, sobre
Aos quatro ventos da publicidad[e] vai apparecer mais um jornal. Hasteia [a] bandeira sacrosanta
do progresso e sente no peito referver-lhe o velho orgulho portuguez.
Raio luminoso, a instruco propaga-se e a imprensa o seu mais dilecto orgo. Nobilissimo , pois,
[o] mister da imprensa.
Noblesse oblige: tomando estas palavras por braso, apparece hoje a HARPA.
No sero magistraes as mos que espraiem a sciencia, mas tambem no destoaro do fim a que
se propoem (I, n 3, p. 3).
O romance popular em Virgilio (II, n 5, pp. 46-47); artigo de Adolfo Coelho, sobre onomatologia celto-ibrica (II, n 5,
pp. 49-52); apresentao de uma glosa indita de Bocage, por Tefilo Braga (II, n 6, p. 57); apresentao do escritor espanhol
Fernando Garrido, por Simes Dias (II, n 6, pp. 79-80).
12
E.g., recenso de Simes Dias a um livro de D. Antnio Costa (I, n 19, pp. 135-136); recenso de Joaquim de Arajo ao
livro Quadros Cambiantes, de Cndido de Figueiredo (I, n 20, pp. 142-143); recenso de Bruno a O Bispo, de Guilherme
Braga (I, n 20, pp. 146-147); recenso de Emdio de Oliveira a O Padre Maldito, de Silva Pinto (I, n 20, p. 149); transcrio
de uma carta de Luciano Cordeiro, apreciando a Analyse da Crena Christan, de Bruno (II, n 1, pp. 6-7); recenso de A.
Villas-Boas a Portugal Contemporaneo, do espanhol Modesto Fernandez y Gonzalez (II, n 2, p. 15; n 4, p. 31); recenso de
Csar de Castro a A Morte de D. Joo, de Guerra Junqueiro (II, n 5, pp. 37-39; n 6, pp. 72-77); recenso de Adolfo Coelho
aos estudos filolgicos de G. Cardoso (II, n 6, pp. 70-71).
13
E.g. artigo de Lopes Praa, sobre a Escola de Krause em Portugal (I, n 12, pp. 89-91; n 15, pp. 111-112; n 17, pp. 121-122;
n 19, pp. 136-137); artigo de Magalhes Lima, sobre a filosofia de Comte (I, n 16, pp. 116-117); Estudo sobre o Codigo Civil,
de Assis Teixeira (II, n 4, pp. 29-31); reflexo de Lus de Andrade, sobre as virtudes da vida na aldeia (II, n 6, pp. 66-67).
14
E.g. informaes de cultura geral, da responsabilidade da Redao (I, n 4, pp. 31-32); artigos sobre numismtica portuguesa,
assinados por Jos do Amaral (I, n 1, pp. 3-4; n 5, pp. 37-38; n 9, pp. 65-66); notcia da Redao sobre a riqueza gerada
pela indstria do ferro em 1871 (I, n 5, p. 40); nota sobre a bandeira da Inquisio de Coimbra (I, n 8, p. 60); artigo de
Manuel Emdio Garcia, sobre a autonomia municipal (I, n 17, pp. 123-124); artigo de Lus de Mesquita, sobre a elevao
de Arrifana de Sousa a vila (I, n 17, pp. 127-128); artigo de Lopes Praa sobre o foral de Montemor-o-Novo (II, n 1, pp. 5-6);
artigo de Alves de Morais sobre a escravatura na Grcia (II, n 2, pp. 9-10; n 5, pp. 40-41); artigo de Inocncio Francisco
da Silva, sobre o ofcio de Rei (II, n 4, pp. 27-28); artigo sobre a cidade de Penafiel, por Lus de Mesquita (II, n 4, p. 32);
artigo do Visconde de Ouguela, sobre os sales no sc. XVIII (II, n 5, pp. 43-46); fragmento do Livro dos Trabalhadores, de
Rodrigues de Freitas, sobre O trabalho e as distines sociais (II, n 6, pp. 53-56); artigo histrico, de Oliveira Martins (II,
n 6, pp. 58-60); artigo de Tefilo Braga, sobre Supersties e festas populares nas ilhas dos Aores (II, n 6, pp. 61-64);
artigo de lvaro Rodrigues dAzevedo, sobre a Ordem de Cristo (II, n 6, pp. 68-69); artigo de Pedro Gasto Mesnier, sobre
A conquista do Yunnan (II, n 6, pp. 78-79).
15
E.g. artigo sobre Francisco Manuel Gravito, com transcrio de uma carta, a partir dO Conimbricense (I, n 7, p. 44); nota
de Tito de Noronha, sobre livreiros editores no sc. XVI em Portugal (I, n 11, pp. 81-82); artigo de Cndido de Figueiredo,
sobre o ento falecido escritor Guilherme Braga (I, n 15, p. 105); artigo de A. M. Simes de Castro, sobre Bispos-Condes
na Histria de Portugal (I, n 16, pp. 113-114); artigo de G. Borges dAvelar, sobre o mdico lamecense Gaspar Negreiros
(I, n 17, p. 123); artigo de Lus de Mesquita, sobre o jornalista Rodrigo de Bessa (I, n 20, p. 141); artigo de Tefilo Braga,
sobre a eventual passagem de Cames pelas Molucas (II, n 3, pp. 23-24); artigo de Tefilo Braga, sobre Heitor Silveira,
amigo de Cames (II, n 4, pp. 25-26).
16
E.g. artigos de J. de M. sobre Lisboa Antiga (I, n 1, 3 e 4); artigo reproduzido dO Instituto, sobre o Recolhimento de N S
da Conceio da Vila de Arrifana de Sousa (I, n 5, pp. 33-34; n 8, pp. 53-57); artigo sobre a Ermida do Calvrio no Buaco,
por A. M. Simes de Castro (I, n 7, pp. 45-46).
Deixa de tomar parte, temporaneamente, na redaco deste jornal o nosso amigo o snr. Jos de
Sampaio. Motivos dhonra que o levam a esta resoluo (I, n 3, p. 8).
Efetivamente, o nome de Jos de Sampaio no mais voltaria a aparecer nas pginas dA Harpa,
mas a sua presena na revista continuou assdua, usando agora um nome diferente. A encenao
devia-se menos a questes de honra e mais ao facto de o jovem filsofo que nessa altura escrevia
a Analyse da Crena Christ: Estudos Criticos sobre o Christianismo (1874) ter decidido adotar, logo
no n 2, um pseudnimo inspirado na figura renascentista de Frei Giordano Bruno, que morreu na
fogueira, acusado de heresia pela Inquisio.
No ser alis por acaso que Sampaio (Bruno) j ento conhecido pelas ideias heterodoxas
que defendia no Diario da Tarde17 chegou mesmo a receber honras de abertura no n 6 dA Harpa,
que assinalava o 41 aniversrio do desembarque do Mindelo, durante a Guerra Civil. Esse nmero
especial, que foi orgulhosamente impresso a tinta azul, vinha encimado com as armas nacionais e
um enftico ttulo, assinado, justamente, por Bruno: Viva a Liberdade!.
Tendo em conta este posicionamento ideolgico (que oscilava entre um assumido liberalismo e um certo
republicanismo latente18), agravado ainda pela idade juvenil dos seus fundadores, seria talvez de esperar
que A Harpa fosse encarada com alguma desconfiana pelos autores consagrados da altura. No deixa,
pois, de ser surpreendente que a modesta revista, dirigida por meros estudantes do Liceu do Porto, tenha
conseguido angariar um nmero to significativo de prestigiosos colaboradores nomes como Antero
de Quental, Tefilo Braga, Joo de Deus, Guerra Junqueiro, Joo Penha, Gonalves Crespo, Cesrio Verde,
Cndido de Figueiredo, Guilherme Braga, Simes Dias ou Manuel Duarte de Almeida, entre muitos outros.
O mrito devia-se inteiramente ao diretor, Joaquim de Arajo, que, apesar dos seus quinze anos
de idade, revelava j as qualidades singulares que haveriam de fazer dele no s um biblifilo e poeta
reconhecido, mas sobretudo um dinamizador cultural, de viso empreendedora. Ao longo de trs
anos, Arajo conseguiu efetivamente reunir, nas pginas dA Harpa, alguns dos maiores vultos da
intelectualidade da altura, maioritariamente em colaboraes inditas, cedidas para o efeito, embora
por vezes surjam tambm meras reprodues de textos pouco conhecidos, a partir de peridicos,
17
Vd., e.g., crnica publicada a 8 de abril de 1872: Vs [catlicos] quereis trevas, ns queremos luz; vs quereis infmias, ns
queremos liberdade; vs quereis mistrios, embrutecimento, fanatismo, ns preferimos cincia, instruo, religio (Apud
GAMA, Manuel O Pensamento de Sampaio de Bruno: Contribuio para a Histria da Filosofia em Portugal. Lisboa: IN-CM,
1994, p. 35).
18
Vd., e.g., transcrio, a partir da Republica Portugueza, de um poema de Manuel de Arriaga, com texto introdutrio de
Boaventura da Costa Barbosa e comentrio da Redao I, n 5, pp. 34-35.
A.
A. F. Barata
A. Garraio
A. M. Simes de
Castro
A. Villas-Boas
Abel da Silva
Acacio Antunes
19
Entre as composies expressamente transcritas a partir do lbum de Joaquim Arajo, contam-se o longo poema
Meditao de A. de Lencastre (I, n 2, pp. 10-11; n 3, pp. 18-19; n 5, p. 39), uma Satanica em prosa de Joo Penha (II,
n 5, p. 41), a poesia Divinum quid de Custdio Duarte (II, n 5, pp. 41, 52) e o poema Em jornada de Gonalves Crespo
(II, n 6, p. 60).
20
Vd., e.g., reproduo de cartas de Inocncio Francisco da Silva (I, n 12, p. 85), de Rodrigo de Bessa (I, n 14, pp. 97-100), de
Luciano Cordeiro (II, n 1, pp. 6-7) e do Visconde de Ouguella (II, n 6, p. 80).
21
Para a correspondncia trocada com Tefilo, vd. FERRO, Antnio Tefilo Braga e Joaquim de Arajo. In AA.VV. In
Memoriam do Doutor Tefilo Braga (1843-1924). Lisboa: Imprensa Nacional de Lisboa, 1934, max. pp. 78-79, 86, 88-90.
A, Arajo solicitava no apenas colaboraes do seu interlocutor, mas pedia tambm que intercedesse junto de Ramalho
Ortigo, Augusto Soromenho, Gomes Leal e Guilherme de Azevedo, no sentido de conseguir alguns textos seus. De resto,
esta peculiar insistncia do diretor dA Harpa manter-se-ia em projetos subsequentes, nomeadamente nA Renascena,
como testemunha, por exemplo, a correspondncia trocada com Joo Penha Arquivo Distrital de Braga (A.D.B.), Ms. 546,
m. 9, pp. 86-87, 116-117.
22
FIGUEIREDO, Cndido de Homens e Letras: Galeria de Poetas Contemporaneos. Lisboa: Typographia Universal, 1881,
pp. 157-160.
Albano
Coutinho Junior
Alberto Braga
Alberto
Malheiro
Alberto Telles
Alexandre
Braga
Alfredo Angra
Alfredo Campos
Alfredo
Carvalhaes
Alvaro
Rodrigues
dAzevedo
Alves de
Moraes
Amadeu
Amelia Janny
Anthero de
Quental
Antnio Cunha
Vieira Meirelles
Antonio
dAzevedo
Castello Branco
/ A. dAzevedo
Castello Branco
Antonio de
Lencastre / A.
de Lencastre
Antonio de
Macedo
Antonio
Malheiro
Antonio
dOliveira
Marreca
Antnio de
Oliveira
Antonio
Papana
Antonio Soares
/ A. Soares
Antonio Vasco
Augusta de
Lemos
Augusto de
Carvalho
Augusto
Soromenho
B. Passos
Barros Seixas
Bazilio Telles
Bettencourt
Rodrigues
Boaventura da
Costa Barboza
/ B. da Costa
Barboza
Bruno A
Jos de
Sampaio
C. Boaventura
C. G.
Candido de
Figueiredo / C.
de F.
Carvalho
Guimares
Cesar de Castro
Cesario Verde
Christovam
Ayres
Coelho de
Carvalho
Coelho Ferreira
Coriolano de
Bea
Correia Leite
Cunha Vianna
Custodio
Duarte
Cypriano
Jardim
D. Ennes
Dias Freitas
A
Pseudnimo de Jos de Sampaio. Vd. LAPA, Albino; VIDIGAL, Teresa Dicionrio de Pseudnimos. Lisboa: Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 1980.
E. A. Vidal
Eduardo Cabrita
Emygdio
dOliveira
Ernestina da
Fonseca
Ernesto Cabrita
F. A. Nunes
Pouzo / F.
Pouzo
F. Adolpho
Coelho
Fernando
Garrido
Ferno AnnesB
Henrique
Marinho
Florido Telles
Francisco
Jacobetty
G. Borges
dAvellar
Gerardo de
Vasconcellos
/ G. de
Vasconcellos
Gomes Leal
Gonalves
Crespo / G.
Crespo
Guerra
Junqueiro
Guilherme
Braga
Guilherme
Rebello
Guiomar
Torrezo
H. Eliza
Herminia de
Menezes / H. de
Menezes
B
Pseudnimo de Henrique Marinho. Vd. LAPA, Albino; VIDIGAL, Teresa Op. cit.
J. A. da Costa
Braga
J. A. da Graa
Barreto
J. de M.
J. de Napoles
J. Gaspar de
Lemos
J. J. Rodrigues
de Freitas
J. P. Oliveira
Martins
J. Simes Dias
Joo de Brito
Joo de Deus
Joo Penha
Joaquim
dAraujo / J. dA.
Redao /
Annimo
Joaquim de
Vasconcellos
Joaquim
Fontellas
Jos do Amaral
Jos Manoel
Fernandes / J.
M. Fernandes
Jos Pinto de
Mesquita
Julio Alves
Barboza e Silva
/ Julio Barboza
e Silva
Julio Cesar
Machado
Justino Guerra
L. T. de Freitas e
Costa / Freitas
Costa
Lopes de
Mendona
Luciano
Cordeiro
Luiz dAndrade
Luiz de Campos
Luiz de
Mesquita / L.
de M.
Luiz Guimares
Junior /
Guimares
Junior
Maximiano A.
O. Lemos Junior
/ M. A. O. Lemos
Junior
M. J. de Castro
Machado de
Assis
Magalhes
Lima
Manoel
dArriaga
Manoel Duarte
dAlmeida /
M. Duarte
dAlmeida
Manoel
Emygdio Garcia
Manoel Maria
Rodrigues
Manuel
Sardenha
Marianna
dAndrade
Mattos
Carvalho
Nogueira Lima
P.
Pedro de Lima
Pedro Gasto
Mesnier
R. de Souza
R.R.
Rangel de Lima
Rodrigo de
Bessa
Sergio de Castro
Silva Pinto
Simo
Rodrigues
Ferreira
Simo Vellozo
Souza Balreira
Teixeira Junior
Theophilo
Braga
Tito de
Noronha
V. de M.
Vicente Novaes
/ V. Novaes
Visconde
dOuguella
Ao todo, colaboraram cerca de centena e meia de autores, ligados aos mais variados quadrantes
estticos e ideolgicos. O objetivo de Arajo era convocar o maior numero de nomes possivel23
e, semelhana do que Joo Penha conseguira fazer nA Folha de Coimbra24, abrir a sua revista
multiplicidade de gostos e tendncias estticas da altura, conciliando os sacerdotes e os neophytos
do Bello (II, n 1, p.1); a Musa que tinha por ideal a Humanidade e a que batia palmas nas libaes
dos outeiros25.
Assim, por um lado, vamos encontrar, nas pginas dA Harpa, numerosas manifestaes de uma
persistente sensibilidade romntica, exageradamente sentimental e desde logo protagonizada por
um nmero significativo de colaboradoras femininas (que iam dando azo a rplicas corteses, por
parte dos seus companheiros de letras)26. Inscreve-se ainda na mesma linha uma srie de autores com
predisposio para o lirismo amoroso, incluindo alguns poetas menores, como o barcelense Antnio
Malheiro, que chega a dedicar uma composio, A Lamartine (I, n 16, p. 120), em explcito tributo
esttica romntica.
23
A expresso do prprio Joaquim de Arajo, em carta posterior para Tefilo Braga (FERRO, Antnio Op. cit., p. 85).
24
A este propsito, vd. PEREIRA, Elsa Maria Gomes da Silva Obras de Joo Penha: Edio Crtica e Estudo. Porto: [s.n.], 2012.
Max. vol. I, pp. 119-137.
25
A expresso de Joaquim Arajo retirada do prembulo dA Renascena (n 1, p. 2), mas o mesmo programa estava j
bem implcito nA Harpa.
26
Colaboraram na revista autoras como Augusta de Lemos, H. Eliza, Guiomar Torrezo, Amlia Janny, Mariana de Andrade,
Ernestina da Fonseca ou Hermnia de Menezes. Esta ltima distincta poetisa de Penafiel (I, n 1, p. 8) protagonizou,
de resto, com Gerardo de Vasconcelos, uma troca de composies amorosas e mensagens pessoais, como a que aparece
reproduzida no rodap do n 2: G. de V. leu os versos que a Sr D. Herminia de Menezes teve a bondade de lhe dedicar e
agradece penhorado a dedicatria. Foi comprehendido. Em todo o caso deseja, e muito, responder Ser-lhe-ha attendido
este pedido? (I, n 2, pp. 14-16).
Amigo leal e dedicado de V. Ex. cia vou mais uma vez provar-lhe que o sou. Tenho ensejo de
publicar na Harpa escritos de Alexandre Herculano e Anthero de Quental. [] eu exponho-lhe
isto muito lealmente [], de contrario no iria offender as suas susceptibilidades e perder um
dos primeiros collaboradores do meu jornal. [] eu podia muito bem publicar os escritos dos
individuos em questo []. Mas primeiro que tudo eu sou amigo dos meus amigos e tenho V.
Ex.cia nesta conta28.
Alis, a mesma correspondncia d ainda conta de outros obstculos ultrapassados por Joaquim
Arajo, no sentido de harmonizar as desavenas que o gnio conflituoso de Tefilo Braga ia travando
com alguns dos seus adversrios29. Em carta datada de 27 de outubro de 1875, por exemplo, o jovem
procurava mediar um desentendimento entre Tefilo e Adolfo Coelho, apelando ento continuidade
de ambos os colaboradores, com uma frase que ilustra bem a sua conduta no meio onde comeava
a dar os primeiros passos:
[] a questo com o Coelho puramente particular []. A meu vr a sciencia no merece ser sacrificada
a estas pequenas questes30.
Assente numa viso que, antes de mais, pretendia ser de grande pluralidade, A Harpa conseguiu
enfim impor-se no panorama literrio da altura, apesar de uma certa conspirao do silncio31 por
parte da crtica, que levou Arajo a queixar-se nalgumas cartas. Durante trs anos, o projeto vingou
27
Vd., e.g., o caso de Accio Antunes, autor de poemas sentimentais como o intitulado No chores (I, n 10, p. 75), mas
tambm de um poema Nova Ideia, sugestivamente intitulado Lux! (I, n 20, p. 147). O caso mais clebre ser talvez o
de Guerra Junqueiro, cuja inverso de rumo aparece testemunhada nA Harpa, no confronto de colaboraes aparecidas
nos nmeros iniciais (soneto Flor da noite I, n 5, p. 34), com os Versos satanicos (II, n 6, p. 84) do ltimo nmero.
28
Arajo apud FERRO, Antnio Op. cit., p. 85.
29
Ibidem, pp. 80-81.
30
Ibidem, p. 81.
31
Ibidem, p. 87. Duas das poucas notas elogiosas que saram na imprensa da altura foram assinadas por colaboradores da
revista (Silva Pinto e Alfredo Carvalhais), tendo j sido transcritas por Alberto Moreira, a partir do n 193 da Gazeta do
Porto. Vd. MOREIRA, Alberto A Harpa: uma ligeira resenha deste interessante peridico portuense desde h muito
considerado como raridade bibliogrfica. O Tripeiro. Porto: [s.n.]. A. XIV, S. V, 11 (1959), p. 337.
32
Arajo apud FERRO, Antnio Op. cit., pp. 75-76.
33
Ibidem, p. 77.
34
Ibidem, p. 85.
35
Vd., a este respeito, BRITO, Ferreira de Joaquim de Arajo e a Expanso da Cultura Portuguesa. Porto: Instituto de Estudos
Franceses da Universidade do Porto, 2000.
36
E.g., tradues de Heine, por Jlio Csar Machado (I, n 17, pp. 126-127) e Gonalves Crespo (II, n 5, p. 48); traduo de
um conto de Grimm, no assinada (I, n 19, p. 138); traduo de uma poesia de Thophile Gautier, por Gonalves Crespo
(I, n 20, p. 145); traduo de um epigrama espanhol, por Joo de Deus (I, n 20, p. 152).
37
Vd. poemas de G. Borges dAvelar (I, n 13, p. 92), Antnio Malheiro (I, n 16, p. 120) e Cndido de Figueiredo (I, n 20, p. 148).
38
Vd. poemas de Manuel Sardenha (I, n 15, p. 112; II, n 6, p. 81).
39
Vd., a este propsito, FERRO, Antnio Op. cit., p. 82.
40
A Renascena: Orgo dos Trabalhos da Gerao Moderna (dir. Joaquim dAraujo). Porto: [s.n.]. I, n 1 (1878), p. 2.
41
SANTOS, Alfredo Ribeiro dos Histria Literria do Porto, atravs das Suas Publicaes Peridicas. Porto: Edies Afronta-
mento, 2009, p. 85.
42
BRITO, Ferreira de A Renascena e a Escola do Porto. Penafiel: [s.n.], 1982. Separata do Boletim Municipal de Cultura (1982),
p. 25.
Tnia Moreira
A cidade do Porto ocupa um lugar inalienvel no universo ficcional camiliano1. Alm da afinidade
biogrfica que manteve com a cidade, Camilo atribuiu invicta um protagonismo ficcional que
transcende, em grande medida, o papel instrumental de mero cenrio onde as suas narrativas tm
lugar2. Representao de mentalidades, de configuraes sociolgicas, de acontecimentos histricos, de
caracteres sociais, enfim, tambm da experincia do comum que anima a Histria, a obra romanesca
de Camilo seduz-nos com experincias sensoriais ligadas aos espaos, numa combinao eficaz de
estratgias por meio das quais o escritor nos d a ver a cidade do Porto3. Nesse sentido, Camilo foi o
grande pintor da vida moderna4 portuense de meados do sculo XIX5.
1
Na primeira edio deste congresso, em 2011, a conferncia da Professora Maria de Ftima Marinho visou justamente
demonstrar a fortuna do topos portuense na fico camiliana: vd. MARINHO, Maria de Ftima Representaes do
Porto na obra romanesca de Camilo Castelo Branco. In SOUSA, Gonalo de Vasconcelos e, dir. I CONGRESSO O PORTO
ROMNTICO: actas. Porto: Universidade Catlica Portuguesa, 2012, vol. 2, pp. 11-20.
2
O topos da cidade assume, na literatura do sculo XIX, um protagonismo indito na medida em que engendra uma teia
multifuncional, e de modo particular no romance (cf. SEIXO, Maria Alzira A potica da cidade na composio do romance:
alguns exemplos na fico portuguesa no sculo XX. In O IMAGINRIO DA CIDADE: actas. Lisboa: Fundao Calouste
Gulbenkian, 1989, esp. pp. 268-269). Com efeito, a valorizao da categoria de contemporaneidade temtica [] vai
permitir algo de espectacular na criao romanesca do sc. XIX (em obras de Camilo, Ea, Fialho de Almeida, nos naturalistas
e at a um Carlos Malheiro Dias) que a emergncia da descrio com uma funo dupla: cenogrfica (desenhadora do
espao) e diegtica (confirmadora de um tempo que aco, histria, intriga) (IDEM, Ibidem, p. 268).
3
A crtica camilianista tem-se dividido na avaliao do potencial descritivo da prosa de Camilo. Na verdade, as estratgias
diferenciadas com que o escritor opera as suas descries exigem um trabalho aturado e sistemtico que ainda est por realizar.
Neste sentido, no poderia estar mais de acordo com o Professor Cndido Oliveira Martins, quando, nos I Encontros Camilianos
de So Miguel de Seide, ocorridos a 10 e 11 de outubro de 2014, proferindo uma comunicao intitulada Lugar da Paisagem na
Fico de Camilo Castelo Branco, defendeu a necessidade de uma investigao em torno do espao literrio camiliano, observado
numa multiplicidade de campos disciplinares e a partir de perspetivas metodolgicas diversificadas. Sobre o equvoco, lanado
por Guerra Junqueiro, de se ver em Camilo um romancista pouco dado descrio, vejam-se os seguintes juzos: BRANDO,
Raul Memrias. Lisboa: Relgio dgua, 1998, vol. 1, tomo 1, p. 58; BRANDO, Raul Memrias. Lisboa: Relgio dgua, 1999,
vol. 1, tomo 2, p. 167; CORTESO, Jaime A paisagem na obra de Camilo. A guia, 35, Novembro de 1914, artigo que teve
continuao no nmero seguinte da revista: A guia, 36, Dezembro de 1914; e MENESES, Bourbon e A paisagem na obra
de Camilo e de Ea. Lisboa: A Peninsular, [1920?]. Estava certo Alberto Pimentel, quando escreveu na sua biografia do autor:
Acusam Camilo de no ter pintado a paisagem. Pois algumas vezes a descreveu em poucas palavras, o que representa uma alta
qualidade de condensao (In O torturado de Seide: Camilo Castelo Branco. Lisboa: Livraria de Manoel dos Santos, 1921, p. 102).
4
Este epteto de inspirao baudelairiana aparece, de resto, sugerido por Henri Lacape, no terceiro captulo da sua dissertao
de doutoramento: Camilo Peintre de Porto, ao qual se segue Camilo Peintre du Minho (vd. LACAPE, Henri Camilo
Castelo Branco. Paris: Maurice Lavergne, 1941, vol. 1, pp. 270-339 e 340-375). A natureza pictrica do romance camiliano
consta a amplamente documentada, carecendo embora de uma aprofundada anlise.
5
Na fico, o Porto de Camilo mantm-se em limites cronolgicos relativamente estreitos. Na observao caricatural e
mordaz dos costumes ou como cenrio de novela, como espao de vivncias ou de memria, a cidade de meados do sculo
que sobressai da obra do romancista, dir-se-ia que incapaz de ultrapassar os anos da sua juventude (PEREIRA, Gaspar
Martins No Porto romntico, com Camilo. Porto / Vila Nova de Famalico: Casa Comum Centro Cultural / O Progresso
da Foz Grupo Cultural / Casa-Museu de Camilo Castelo Branco / Cmara Municipal de Vila Nova de Famalico, 1997,
p. 19). Esta monografia essencial para compreendermos, numa perspetiva global, o Porto romntico plasmado no
universo camiliano. Alis, como sugere Anbal Pinto de Castro, no prefcio, o Porto de Camilo e o Porto do Romantismo
so sinnimos (vd. CASTRO, Anbal Pinto de Em Jeito de Prefcio. In IDEM, Ibidem, pp. 10-11).
6
O camilianista Alexandre Cabral designou por ciclo da felicidade essa trade de romances que tem Guilherme do Amaral
como protagonista (vd. CABRAL, Alexandre Nota Preliminar a CASTELO BRANCO, Camilo Memrias de Guilherme do
Amaral. Lisboa: Parceria A. M. Pereira, 1966, p. 5).
7
Sobre as reflexes metaliterrias levantadas pela trilogia da felicidade, vd. BUESCU, Helena Carvalho Discurso e
constituio do sujeito: o caso de memrias de Guilherme do Amaral. In CONGRESSO INTERNACIONAL DE ESTUDOS
CAMILIANOS (24-29 DE JUNHO DE 1991): actas. Coimbra: Comisso Nacional das Comemoraes Camilianas, 1994; e
MOREIRA, Tnia O mal de ler: reflexes sobre a literatura e o mal a partir de uma leitura do ciclo da felicidade. In
SOUSA, Srgio Guimares de; BRAGA, Joo Paulo, dir. Fices do mal em Camilo Castelo Branco. Vila Nova de Famalico:
Cmara Municipal de Vila Nova de Famalico / Centro de Estudos Camilianos [no prelo].
8
Vd., entre outras, estas passagens ilustrativas: CASTELO BRANCO, Camilo Onde est a felicidade? Lisboa: Parceria A.
M. Pereira, 1965, pp. 68, 72, 73, 84, 89, 99, 100, 126, 134, 135. De rapaz da provncia a leo, passando pela alcunha de
parvalheira, as designaes do agente atribudas quer pelo narrador, quer por personagens, so funcionais ao nvel da
evoluo da intriga.
9
IDEM, Ibidem, p. 73.
10
IDEM, Ibidem, p. 103. Entre outros, revelam-se eloquentes os passos que ilustram o ganncia de populares que aproveitaram
a invaso das tropas francesas para levar a cabo saques, facto especialmente ilustrado a partir da sequncia da morte de
Joo Antunes da Mota no desastre da ponte das barcas a 29 de maro de 1809 (cf. IDEM, Ibidem, pp. 121-122).
11
IDEM, Ibidem, p. 23.
12
Cf. LOPES, scar Os valores de Camilo. In Ensaios camilianos. Porto: Fundao Engenheiro Antnio de Almeida, 2007; e
CASTRO, Anbal Pinto de Balzac e Camilo Castelo Branco. In Balzac em Portugal: contribuio para o estudo da influncia
de Balzac em Portugal e no Brasil. Coimbra: [s.n.], 1960. Enquanto o primeiro crtico aponta liminarmente que (trao
balzaquiano caracterstico) a caa universal ao dinheiro , desde 61, uma das maiores evidncias do mundo romanesco
camiliano (art. cit., p. 66), o segundo apresenta a convico de que Camilo foi para o Porto o que Balzac fora para o Paris
da Restaurao francesa (art. cit., p. 127).
13
Cf. BENJAMIN, Walter A Paris do Segundo Imprio na obra de Baudelaire: II O flneur. In A modernidade. Lisboa: Assrio
& Alvim, 2006, p. 42.
Pictoricamente, o quadro vivo oferece uma variedade plstica de motivos estticos, do belo ao
ascoroso, do grotesco ao ertico:
No longo quarteiro de casa, que se estende ao longo do arraial, vereis nessa noite caras suportveis,
que o reflexo meio fantstico da iluminao vos afigura belas. Vereis outras, realmente belas, colo-
cando-se de modo que a projeco da tbia da luz as favorea, na exposio nocturna, aclarando-as
aos olhos do paciente amador, que passeia em baixo sorvendo pelos ps a humidade da areia15.
desta malha fsica e social que vemos emergirem, com surpresa, os contornos do corpo do
protagonista. Guilherme vagueia ao acaso por entre o fluxo de gente, deambulao que o leva em
direo ao rio, na freguesia de Miragaia. Misantropo entre a multido, decide enveredar por um beco
despovoado. Est perdido. Os cheiros nauseabundos e os espaos imundos do bairro de Miragaia
pautam o seu percurso, que o narrador acompanha atravs de focalizao interna. Est sozinho. Agora,
o silncio e a solido do lugar ao frmito excitado dos populares. E esse lugar estranho torna-se a
sua consolao:
Achou-se bem, apesar do ftido nauseento que ressumava das fisgas das portas. No via ningum,
ningum o via, nem o mais ligeiro sussurro: era caminhar na escavao duma rua de Pompeia, pela
vista, e no aqueduto de despejos duma cidade, pelo cheiro. O romanesco tem seus caprichos srdidos.
Amaral no trocava aquela atmosfera enjoativa por os perfumes de nardo e rosas do toucador de
alguma das suas numerosas admiradoras16.
14
CASTELO BRANCO, Camilo Onde est a felicidade? Op. cit., pp. 103-104.
15
IDEM, Ibidem, p. 104.
16
IDEM, Ibidem, p. 105.
17
A funo detetivesca do flneur advm da leitura de um conto de Poe, The Man of the Crowd, por Baudelaire e explorada
por Walter Benjamin (cf. BAUDELAIRE, Charles O pintor da vida moderna: III O artista, homem do mundo, homem das
multides e criana. In A inveno da modernidade. Lisboa: Relgio dgua, 2006, esp. pp. 285-289; e BENJAMIN, Walter
art. cit., pp. 42-50). Para uma perspetiva diacrnica da figura do flneur, vd. o estudo de TRUCOT, Laurent Promenades
et flneries Paris du XVIIe au XXIe sicles: La marche comme construction dune identit urbaine. In THOMAS, Rachel,
dir. Marcher en ville: faire corps, prendre corps, donner corps aux ambiances urbaines. Paris: ditions des Archives
Contemporaines, 2010.
Esta inscrio toponmica, que surgira logo no primeiro pargrafo do Prlogo aquando da apre-
sentao do usurrio Joo Antunes da Mota, comea aqui a ganhar uma dimenso paradigmtica de
certa geografia fsica e humana que Camilo vai descobrindo ao longo deste ciclo romanesco. Desde
logo, atravs da importncia que assume na designao dos agentes: Joo Antunes da Mota havia
sido designado o morador na Rua dos Armnios e Augusta ser apelidada a costureira da Rua dos
Armnios. As personagens caracterizam-se atravs dos lugares que habitam, numa simbiose fisiolgica
que lhes vai traando o destino.
Na ligao que estabelece entre as duas cenas, a do incio do Prlogo e a do captulo V com o
encontro de Guilherme e Augusta na noite do arraial de So Pedro, Camilo mantm alguns motivos
que merecem especial ateno. A escurido noturna, o silncio e a solido em que se encontram as
personagens no mesmo lugar lgubre, com os trinta e seis anos que medeiam as duas cenas, contribuem
no somente para a descrio dos caracteres, como para a representao de todo um espao social
mantido margem pela cosmoviso burguesa. Isto numa cidade cujo atraso civilizacional se fazia
acompanhar por uma expanso acrtica do tecido urbano, ao sabor das necessidades da pulsante
demografia empurrada pela industrializao emergente. A escurido que predomina na Rua dos
18
Augusta diz a Guilherme: O senhor mandado por Deus e o narrador reitera a crena do enviado de Deus. Quando,
dois dias depois, regressa casa da costureira, o primo desta, ao ser apresentado a Guilherme do Amaral, comenta com
exibida ironia: Tu dizias que era uma alma vinda do cu, e eu sempre acreditei que era pessoa deste mundo (CASTELO
BRANCO, Camilo Onde est a felicidade?. Op. cit., pp. 107, 112 e 116, respetivamente).
19
Cf. BAUDELAIRE, Charles Art. cit., p. 286.
20
Se, todavia, pudesse abstrair os olhos do esprito daquela cena, e fixar os do rosto na filha dessa mulher morta, teria visto
uma linda rapariga (CASTELO BRANCO, Camilo Onde est a felicidade?, op. cit., p. 108).
21
IDEM, Ibidem, p. 110. A Rua dos Armnios, tambm conhecida por Rua Armnia, situa-se na antiga freguesia de Miragaia,
e vem do Largo de So Pedro de Miragaia Rua Nova da Alfndega. No terceiro volume do ciclo da felicidade, Camilo altera
a designao de Rua dos Armnios, que invariavelmente havia usado nos dois primeiros volumes, para Rua Armnia.
Comea a paixo de Guilherme, e Augusta torna-se definitivamente sua presa. Guilherme descobre
nela um carter invulgar e uma rara autenticidade romanesca que o estimula a prosseguir com a sua
investigao26. Em pouco tempo, Augusta ser seduzida e levada para uma casa decorada moda da
poca e localizada na paisagem to buclica quanto recatada do Candal, nas margens do rio Douro,
22
As primeiras intenes de se introduzir a iluminao a gs na cidade do Porto datam de 1843. No entanto, s a partir
de 1852 que viria a planificar-se efetivamente o projeto, que seria implementado na cidade em 1855 (cf. MATOS, Ana
Cardoso, dir. O Porto e a electricidade. Porto: EDP, 2003, pp. 20-22). No obstante a substituio dos lampies de azeite
pelos candeeiros a gs, s lentamente que a cidade alcanaria uma iluminao noturna satisfatria e abrangente. A
propsito, lembre-se o efemerssimo projeto de um semanrio humorstico concebido por Camilo, O Bico de Gaz, de que
saiu apenas o primeiro nmero, em maio de 1854.
23
Vd., a ttulo de exemplo, CASTELO BRANCO, Camilo Onde est a felicidade?, op. cit., pp. 36, 51, 56.
24
IDEM, Ibidem, p. 113.
25
IDEM, Ibidem, p. 114; itlicos meus.
26
Vd. IDEM, Ibidem, pp. 117 e 119: Amaral compreendeu-a, e julgou descobrir naquela mulher uma coisa especial, um instinto
no vulgar, reprimido pelas circunstncias; [] com um gesto natural de aborrecimento, que agradou muito a Guilherme;
porque nem as estudiosas mulheres da sala exprimiriam melhor um nojo fingido.
Data ainda do reinado de D. Joo VI, a inaugurao na cidade do Porto do primeiro sistema de
ensino oficial de Medicina e Cirurgia, substituindo o anterior modelo oficioso de aulas de Anatomia
e Cirurgia no Hospital Real de Santo Antnio da Misericrdia do Porto. Pelo Alvar de 25 de junho de
1825, na sequncia de uma dotao presenteada Coroa pela resoluo da questo jurdica relativa
ao monoplio do contrato de tabaco, foram fundadas as Rgias Escolas de Cirurgia em Lisboa e na
Invicta2. Durante cerca de uma dcada, um plano de estudos mais consistente garantiu assim a
formao de cirurgies civis e militares, mas na prtica educativa e profissional sempre suplantados
pelos bacharis da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra.
Em estreita correlao com o profundo desenvolvimento da Medicina no mundo ocidental ao
longo de Oitocentos, o governo setembrista de Passos Manuel ditou uma reformulao geral da
Instruo Pblica em Portugal, obedecendo a alguns dos princpios capitais do Liberalismo para a
desejada modernizao nacional em vrios nveis, nomeadamente o valor da Educao: procurando
difundi-la por todas as classes de Cidados; conscientes de que um Povo ignorante s pode convir aos
dspotas e aos retrgrados, que prosperam e subsistem no meio da servido, dos abusos, da misria, e
do embrutecimento geral.3 Sem, contudo, rivalizar com o monoplio universitrio de Coimbra, pro-
mulgou-se a criao das Escolas Mdico-Cirrgicas em Lisboa e no Porto, com equiparao a estudos
de grau superior, que comutaram as instituies precedentes em finais de 1836.4
Desde 1837 a 1911, enfrentando vicissitudes de vria ordem, a Escola Mdico-Cirrgica do Porto
trilhou e consolidou um modelo formativo e pedaggico distintivo para o seu reconhecimento pblico,
constituindo com a Academia Politcnica do Porto a cpula da oferta educativa da cidade at funda-
1
Francisco Miguel Arajo, doutorando na Faculdade de Letras da U. Porto com projeto de investigao financiado pela
Fundao para a Cincia e a Tecnologia, (FCT/POPH/QREN/UE), investigador do CITCEM Centro de Investigao Trans-
disciplinar Cultura, Espao e Memria.
2
Alvar de 25 de junho de 1825: criao das Rgias Escolas de Cirurgia de Lisboa e do Porto e aprovao do respetivo
regulamento. Coleco de legislao das Crtes de 1821-1828 (1843), pp. 56-63.
3
O NOSSO estado actual. O Nacional. (13 de setembro de 1836), n 536.
4
Decreto de 29 de dezembro de 1836: criao das Escolas Mdico-Cirrgicas de Lisboa e do Porto. Coleco de leis e outros
documentos oficiais, 7 Srie (1837), pp. 9-14. Pelo seu artigo 145 estava prevista tambm a abertura de estabelecimentos
educativos similares em todas as Misericrdias das capitais dos distritos administrativos do Ultramar, as quais s foram
concretizadas no Funchal, Madeira, e em Goa, ndia Portuguesa.
5
Vd., a este propsito e entre muitos outros, LEMOS, Maximiano Histria do ensino mdico no Porto. Porto: Tip. Enciclopdia
Portuguesa, 1925. MONTEIRO, Hernni Histria do ensino mdico no Porto: suplemento. Porto: Tip. Enciclopdia Portuguesa,
1925. PINA, Lus de Uma poca notvel da histria mdica portuense: 1825- 1959. Porto: [s. n.], 1961. SANTOS, Cndido
dos Universidade do Porto: razes e memria da instituio. Porto: Universidade do Porto, 1996. FERRAZ, Amlia Ricon A
Real Escola e a Escola Mdico-Cirrgica do Porto: contributo para a Histria da Faculdade de Medicina da Universidade
do Porto. Porto: U.Porto Editorial, 2013. ALVES, Lus Alberto; ARAJO, Francisco Miguel Rumos da internacionalizao
na histria da U.Porto. In TEIXEIRA, Pedro, ed. Percursos da internacionalizao na Universidade do Porto: uma viso
centenria. Porto: U.Porto Editorial, 2014.
6
Vd. SANTOS, Cndido dos Op. cit., pp. 80-92.
7
Decreto de 23 de abril de 1840: aprovao do regulamento da Escola Mdico-Cirrgica do Porto. Coleco de leis e outros
documentos oficiais, 10 Srie (1840), pp. 104-125.
8
Esse edifcio primitivo, construdo na cerca do extinto Convento de Nossa Senhora do Carmo, seria arrasado para construo
da atual construo, inaugurada em 1935, pela qual passaram as Faculdades de Medicina, a 2 de Letras e, at h muito
pouco tempo, o Instituto de Cincias Biomdicas Abel Salazar.
9
Decreto de 19 de julho de 1902: aprovao da reforma do ensino farmacutico, que passa a ser ensino superior. Coleco
oficial de legislao portuguesa (1902), pp. 621-623.
10
Decreto de 22 de fevereiro de 1911: elevao da Escola Mdico-Cirrgica do Porto a Faculdade de Medicina. Coleco oficial
de legislao portuguesa (1911), pp. 177-184. Decreto de 22 de maro de 1911: criao das Universidades de Lisboa e do
Porto. Coleco oficial de legislao portuguesa (1911), pp. 547-550.
11
Vd. SANTOS, Cndido dos Santos A Mulher e a Universidade do Porto: a propsito do centenrio da formatura das primeiras
mdicas portuguesas. Porto: Afrontamento, 1991. ARAJO, Francisco Miguel Docentes e Estudantes da Escola Mdico-Cirr-
gica do Porto: Laurinda de Moraes Sarmento; Aurlia de Moraes Sarmento; Guilhermina de Moraes Sarmento; Maria Leite
da Silva Tavares Paes Moreira. In http://sigarra.up.pt/up/pt/web_base.gera_pagina?P_pagina=1006632(2014.08.17; 18h).
12
ALVES, Lus Alberto; ARAJO, Francisco Miguel Op. cit., p. 108.
13
Vd. IDEM, Ibidem, pp. 104-110.
14
LIMA, Joaquim Pires de Catalogo da Bibliotheca da Escola Medico-Cirurgica do Porto. Porto: Typ. Encyclopedia Portugueza
Illustrada, 1910, p. XVII.
15
A presente anlise teve por base a Classificao de domnios cientficos e tecnolgicos utilizada pelo Sistema Estatstico
Nacional, fundamentada no modelo internacional Fields of Science and Technology (FOS).
16
LIMA, Joaquim Pires de Op. cit., pp. 427-461.
17
Vd., entre outros, CATROGA, Fernando de Almeida Os incios do positivismo em Portugal. O seu significado poltico
social. Revista de Histria das Ideias. Coimbra: Instituto de Histria e Teoria das Ideias, 1 (1977), pp. 287-393. LUZ, Jos
Lus Brando da A propagao do positivismo em Portugal. In CALAFATE; Pedro, dir. Histria do pensamento filosfico
portugus. Lisboa: Editorial Caminho, 2004, vol. IV, tomo I, pp. 239-261.
18
MAGALHES, Antnio Pereira Dias de; OLIVEIRA, Manuel Alves Positivismo. In http://www.citi.pt/cultura/literatura/
poesia/j_g_ferreira/positivi.html (2014.08.19; 16h).
19
ARAJO, Francisco Miguel LEMOS, Maximiano Augusto de Oliveira L. Jnior. In http://dichp.bnportugal.pt/historiadores/
historiadores_lemos.htm (2014.08.19; 16h).
20
Sugere-se a consulta das biografias de parte destas personalidades no separador Antigos Estudantes Ilustres da Univer-
sidade do Porto, sob coordenao de Eugnia Matos Fernandes e autoria de Susana Pacheco Barros e Francisco Miguel
Arajo, disponibilizadas online pela unidade de Gesto de Informao da U. Porto. In http://sigarra.up.pt/up/pt/web_base.
gera_pagina?P_pagina=1001539 (2014.08.19; 17h).
21
BARROS, Susana Pacheco Antigos estudantes ilustres da Universidade do Porto: Antnio Plcido da Costa. In http://
sigarra.up.pt/up/pt/web_base.gera_pagina?P_pagina=1006702 (2014.08.19; 17h).
22
ALVES, Jorge Fernandes; ARAJO, Francisco [Miguel] Alfredo de Magalhes, IV Reitor da Universidade do Porto. In SILVA,
Francisco Ribeiro da, dir. Os Reitores da Universidade do Porto: 1911-2011. Porto: Universidade do Porto e Fundao Eng.
Antnio de almeida, 2011, pp. 84-97.
23
Vd. ARAJO, Francisco Miguel Lus de Pina. In NEVES, Antnio Amaro, dir. Biografias Vimaranenses. Guimares:
Fundao Cidade de Guimares e A Oficina, 2013, pp. 403-404.
5. Consideraes finais
Ser indiscutvel a importncia da Escola Mdico-Cirrgica do Porto no plano educativo nacional
durante o seu funcionamento, quer na promoo das novas correntes cientficas e culturais do sculo
XIX, quer na formao de personalidades que viriam a animar e revitalizar os crculos cientficos e
intelectuais portugueses. O prestgio institucional conquistado dentro e fora do pas pelo seu pioneirismo
e internacionalizao subsistiria na predecessora Faculdade de Medicina do Porto, a qual colhendo
muitos dos seus frutos manteve na sua essncia esse arqutipo acadmico e do qual comungaram
de imediato outros nomes proeminentes: Hernni Monteiro, Amndio Tavares, Lus de Pina, Eduardo
Santos Silva, Amrico Pires de Lima, Rolando van Zeller, Joo de Arajo Correia, entre outros.
Pelo menos, duas ideias-chave podem ser imputadas laboriosa ao deste estabelecimento
educativo: a imutvel atualizao cientfica, metodolgica e profissional da sua comunidade acad-
mica e o estmulo na abertura dos horizontes culturais dos seus alunos. A primeira, articulada com
24
ARAJO, Francisco Miguel CORREIA, Antnio Augusto Esteves Mendes. In http://dichp.bnportugal.pt/historiadores/
historiadores_m_correia.htm (2014.08.19; 17h).
25
FREITAS, Joana Gaspar de TELES, Baslio. In http://dichp.bnportugal.pt/historiadores/historiadores_teles8.htm
(2014.08.19; 17h).
26
MAGALHES, Joaquim Romero CORTESO, Jaime Zuzarte. In http://dichp.bnportugal.pt/historiadores/historiadores_cor-
tesao16.htm (2014.08.19; 17h).
27
Vd. CUNHA, Luciana Abel Salazar. In NEVES, Antnio Amaro, dir. Op. cit., pp. 411-436.
28
Vd. ARAJO, Francisco Miguel Joo de Meira. In NEVES, Antnio Amaro, dir. Op. cit., pp. 299-334.
Introduo
O Porto de Oitocentos, urbe activa e empreendedora, atraiu pessoas oriundas das mais variadas
partes do pas e do estrangeiro movidos pelas mais diversas razes, pessoais e/ou profissionais.
Francisco Antnio Silva Oeirense2 foi um destes homens. O estudo da sua vida e actividades como
pintor retratista e homem de mltiplas facetas tem-nos interessado desde 2007. Recentemente, novos
contributos vieram trazer mais luz sobre esta figura oitocentista que dividiu a sua vida entre as duas
principais cidades portuguesas. Esta comunicao rene as pesquisas feitas para o nosso primeiro
estudo sobre o artista, enriquecidas com novas achegas.
Oeirense
Francisco Antnio da Silva explica, pelo seu prprio punho, a razo do nome Oeirense, segundo
ele, por haver varios Artistas appelidados Silvas, juntei ao meu nome de Francisco Antnio da Silva, o
apelido de Oeirense, por ter nascido em Oeiras, e isto ser costume dentro e fora de Portugal3.
O artista viu pela primeira vez a luz do dia em Oeiras, a 24 de Dezembro de 1797, numa poca em
que o mundo, e particularmente o continente europeu, atravessavam uma fase especialmente difcil e
complexa. Internacionalmente, o final do sculo XVIII trouxera consigo a Revoluo Francesa e, com ela,
a total dissoluo do Feudalismo, uma ordem produtiva e social primordialmente agrcola e submetida
a uma rgida hierarquia que sobrevivera durante sete sculos4 que, de um momento para o outro, deixa
de existir para surgir uma nova elite de contornos econmico-sociais marcadamente burgueses; o poder
1
Investigadora Convidada do Centro de Investigao em Cincia e Tecnologia das Artes (CITAR) e doutoranda em Estudos
do Patrimnio (UCP-Porto).
2
Vd., para informao mais detalhada, o trabalho da autora em NUNES, Ana Paula Bandeira Morais Valongueiro Francisco
Antnio Silva Oeirense (1797-1868): o pintor e o poder. [S.l.: s.n.], 2009. Dissertao de Mestrado em Histria da Arte
Portuguesa apresentada Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
3
NUNES, Ana Paula Bandeira Morais Valongueiro Francisco, , op. cit., p. 7.
4
EISENMAN, Stephen F; et al. Historia critica del arte del siglo XIX. Madrid: Ediciones Akal, 2001, p. 7. Traduo livre da autora.
5
FRANA, Jos-Augusto A arte em Portugal no sculo XIX. 3 ed. Lisboa: Livraria Bertrand, 1990, vol. 1, pp. 124 e 125.
6
CARVALHO, Jos Alberto Seabra O retrato ao servio da Histria [ca.8]. [Em linha]. Lisboa: Secretaria-Geral do Min.
Finanas e Adm. Pblica, 2006 actual. 06 Set. 2009. Disponvel em: http://www.sgmf.pt/Institucional/Historia/Indice/
Documents/f887640b0ab547b9a92bfd35fc8f19f9ensaios2_josalbertoseabracarvalho.pdf.
7
SOARES, Ernesto Histria da gravura artstica em Portugal: os artistas e as suas obras. Lisboa: Instituto para a Alta
Cultura, 1940-1941, vol. II, p. 388.
8
NUNES, Ana Paula Bandeira Morais Valongueiro Francisco, op. cit., p. 6. Declarao e cedencia da pena que recebia
pelo Tesouro o Lente de Gravura e Desenho da Academia Portuense de Belas Artes. Documento que julgamos indito. Ver,
no final, Anexo I.
9
Declaracoes dos Empregados da Academia dos Lugares que Servia antes de ser despachado p esta Academia e que fora
pedidos p Governo (1840), AFBAUP, Cota 61, f. 1. Ver no final Anexo II.
10
MACHADO, Cirilo Volkmar Colleco de Memrias relativas s vidas dos Pintores e Escultores. Coimbra: Imprensa da
Universidade, 1823, p. 233.
11
RACZYNSKI, A. Dictionnaire historico-artistique du Portugal pour faire suite louvrage ayant pour titre: Les Arts en
Portugal. Lettres adresses la Socit artistique et scientifique de Berlin accompagnes de documents. Par Le Comte A.
Raczynski. Paris: Jules Renouard et C.ie, Libraires-diteurs, et Commissionnaires pour l tranger, 1847, p. 102.
12
RACZYNSKI, A. Dictionnaire, op. cit., p. 276.
13
Vd. O Toureiro, n 175, de 29 de Novembro de 1837, p. 699. Este artigo surge assinado por um amigo dos concursos.
Sublinhado nosso.
14
Vd. O Toureiro, Ibidem. Sublinhado nosso.
15
Vd O Examinador, Lisboa, n 92, 9 de Junho 1837, pp. 371 e 372. Sublinhados nossos.
16
Vd. O Examinador, Ibidem. Sublinhados nossos.
Oeirense Pintor
A opo pela actividade de pintor clara desde bem cedo. As referncias sua aco profissional
nesta rea so constantes. Oeirense assume-se claramente como pintor retratista nos vrios anncios
que recolhemos na imprensa daquele tempo. Em 1830, publicita os seus servios como pintor, em
anncio na Gazeta de Lisboa (o mais antigo que at agora encontrmos), apresentando-se disponvel
para ensinar desenho e pintura, bem como para mostrar as suas obras a qualquer interessado, como
referncia do seu trabalho; Francisco Antnio Silva Oeirense, Artista Pensionario do Estado, Pintor
Historico, e Retratista em grande e em pequeno, mudou a sua habitao para a rua nova do Carvalho,
ao arco pequeno do Marquez, proximo ao ces do Sodr n 31, 2 andar: o mesmo artista acceita em sua
casa discipulos de Desenho, e Pintura, e mostrara as suas obras, para poderem ajuizar do seu merito, s
pessoas que precisarem dos seus trabalhos21.
17
LISBOA, Maria Helena As Academias e Escolas de Belas Artes e o Ensino Artstico (1836-1910), Edies Colibri; Instituto
de Histria da Arte / Estudos de Arte Contempornea, F.C.S.H.U.N.L., 2007, p. 206.
18
NUNES, Ana Paula Bandeira Morais Valongueiro Francisco, op. cit. Vd. doc. n 3, de 20 de Novembro de 1836, Torre do
Tombo, Pasta Academia Portuense de Belas Artes 1836/1843.
19
IDEM, Ibidem, docs. n 1 e n 2, Torre do Tombo, Pasta Academia Portuense de Belas Artes 1836/1843. Proposta de
Joaquim Rodrigues Braga e de Oeirense, respectivamente, para leccionar as diversas aulas.
20
LISBOA, Maria Helena As academias, op. cit., p. 103. J no texto de Oeirense no se encontra o reflexo de uma prtica
profissional; observa-se, no entanto, o conhecimento de variados mtodos de aprendizagem que, muito provavelmente,
recolheu nas academias europeias por onde passou enquanto pensionista viajante pago pelo Estado.
21
Vd. Gazeta de Lisboa, Lisboa, n 25, 29 de Janeiro 1830, p. 100.
22
Vd. O Nacional, Lisboa, n 196, 13 de Julho de 1835, p. 921
23
Vd. Diario do Governo, Lisboa, n 163, 13 de Julho 1835, p. 681.
24
Vd. Periodico dos Pobres no Porto, n 40, 28 de Maio de 1844, p. 157
25
Vd. O Athleta. Porto, n 167, 24 de Dezembro de 1838.
26
No nos referimos ao caso da gravura de que encontrmos trs exemplares de diferentes temticas: uma gravura de
tipos/cenas populares e duas outras representando putti.
27
PINHEIRO, Magda Lus Mousinho de Albuquerque. Um intelectual na Revoluo. Lisboa: Fundao Maria Manuela e
Vasco de Albuquerque dOrey; Quetzal Editores, 1992, pp. 8-9. A autora nota que esta importante figura do liberalismo,
das artes e das cincias completamente esquecida, na descrio do tecto de Columbano no Museu Militar (na edio
de 1913 do catlogo), assim como o noutras obras de referncia no campo da Histria e da Literatura.
28
Para informao mais detalhada sobre esta figura, vd. NUNES, Ana Paula Bandeira Morais Valongueiro Manuel de
Cerqueira Vilaa Bacelar (1766-1860). Uma figura do Porto Romntico. In Actas do Congresso O Porto Romntico. Porto:
UCE-Porto; CITAR, 2012, pp. 299-320.
29
Em virtude das condicionantes de espao, limitar-nos-emos a referir algumas das concluses e remetemos para a leitura
da nossa dissertao.
30
Vd. NUNES, Ana Paula Bandeira Morais Valongueiro Francisco, op. cit., para uma leitura mais aprofundada deste
assunto.
Oeirense Gravador
Tivemos j oportunidade de ver que o percurso formativo de Oeirense foi feito na rea especfica da
gravura, sob a orientao e ensino de Bartolozzi. Recordemos que, at chegada deste italiano, a gravura
tem uma histria algo irregular e, de forma geral, sem reflexos de grande implantao ou popularidade
no nosso pas. Mesmo at no que concerne ao conhecimento dos mtodos de gravar que vo surgindo
Europa fora, Portugal parece sempre atrasado vrios anos relativamente realidade europeia. S com
a criao da Aula de Gravura (24 de Dezembro de 1768), conjuntamente com a Impresso Rgia e a
Real Fbrica de Cartas de Jogar, com a finalidade de ter um especialista que ensinasse a arte de gravar
em chapa metlica,33 se verificar algum incremento. Justificava-se esta criao com a necessidade
de que nada faltasse impresso rgia, sendo a gravura uma arte de grande utilidade para variados
fins, inclusivamente os de propaganda. Nomeado como mestre desta aula, Joaquim Carneiro da Silva
deveria aceitar ensinar todos os que a quisessem aprender. O mtodo usado era essencialmente o buril
e gua-forte. Formou alguns nomes conceituados, mas com a sua sada, em 1786, termina esta aula.
At 1801 funciona a escola de gravura do Arco do Cego, continuando com o ensino do mesmo
processo, que se tornava satisfatrio para as necessidades existentes. No sculo XIX, D. Joo VI encarrega
D. Rodrigo de Sousa Coutinho da reforma da Imprensa Rgia, o qual contrata, em Londres, o gravador
Bartolozzi, que traz consigo a inovadora tcnica do pointill34. Com a morte do italiano, passa a direco
do ensino para o seu ajudante, Gregrio Assis e Queiroz. A litografia, cujo conhecimento em Portugal
31
KULMACZ, Maria Clara Loureiro Borges Paulino Arte e patrimnio em Portugal: olhares norte-europeus (da segunda
metade do sculo XVIII a meados do sculo XIX). Porto: FLUP: Edio de 2001, vol. II, p. 120. Dissertao de mestrado em
Histria da Arte em Portugal. Gustav Adolf von Heeringen, de pseudnimo Ernst Wodomerius, nasce em 1800, em Mehlra
bei Muelhausen, numa famlia tradicional de altos funcionrios administrativos. Estuda Direito e Cincias Polticas em Jena
e logo ocupa funes de bibliotecrio, conselheiro e Camareiro em Coburgo, funo em que acompanhou os prncipes de
Coburgo, Fernando e Alberto, nas sua respectivas viagens de casamento a Lisboa e a Widsor, .
32
Apud KULMACZ, Prof Dr Maria Clara (notas pessoais gentilmente cedidas) HEERINGEN, Gustav Adolf von, (1799-1851)
Meine Reise nach Portugal im Fruehjare 1836. Leipzig: Brockaus, 1838, 2 vol., p. 57.
33
SOARES, Ernesto Francisco Bartolozzi e os seus discpulos em Portugal. V. N. Gaia: Ed. Apolino, 1930, p. 11.
34
SOARES, Ernesto Francisco Bartolozzi, op. cit., pp. 12-15. Notamos o desconhecimento, ou antes, a omisso total de
qualquer referncia a Silva Oeirense na listagem dos discpulos de Bartolozzi, apesar de ser citada como uma das fontes
a obra de Cirilo onde, como vimos, referido o seu nome.
35
SOARES, Ernesto A Oficina Rgia Litogrfica: pequenas achegas para o estudo da Histria da Litografia em Portugal.
Arqueologia e Histria, vol. X. Lisboa: 1932, pp. 7-8.
36
IDEM, Ibidem, pp. 7-12. No possuo elementos probatrios que me habilitem a indicar com preciso as razes que levaram a
Academia a proceder deste modo que julgo injusto, mas o excessivo liberalismo tantas vezes patenteado nas actas acadmicas,
[] faz-me supor que no foi estranha a esse esbulho a poltica.
37
Vd. Torre do Tombo, MAO 2122 Ministrio do Reino e Instruo Pblica. Pasta A. N. B. A. L. 1838/1839. Tanto o
Coronel Ferreira Lima (citando Ernesto Soares, na sua obra A Oficina Rgia Litogrfica: pequenas achegas , a p. 8), como
o prprio Ernesto Soares parecem ter-se equivocado nas datas desta nomeao. Efectivamente, Ferreira Lima refere a
data de 3 de Fevereiro de 1837 e remete-nos para a leitura da obra de Soares. Este, na pgina referida, indica a data de 9
de Dezembro de 1836.
38
Vd. Torre do Tombo, MAO 2122 Ministrio do Reino e Instruo Pblica op. cit.
39
Vd. Torre do Tombo, MAO 2122 Ministrio do Reino e Instruo Pblica op. cit.
40
SOARES, Ernesto Histria da Gravura op. cit., vol. II, p. 389.
41
Vd. Diario da Regncia, Lisboa, n 91, 16 de Abril 1821, s/p.
42
Vd. Diario do Governo, Lisboa, n 196, 20 de Agosto 1821, em, CORTES Sesso 161 p. 255. Vd. Anexo II-C, Tabela 3
com a relao, por ordem de entrada, para a associao.
43
Vd. Diario do Governo, Lisboa, n 207, 1 de Setembro 1821, p. 326. Em CORTES Sesso 171
44
Vd. NUNES, Ana Paula Bandeira Morais Valongueiro Francisco , op. cit.
45
Cf. LIMA, Henrique de Campos Ferreira O artista Silva , op. cit., p. 31.
Oeirense Coleccionador
As primeiras referncias que encontrmos sobre a sua actividade de coleccionador foi no j citado
Raczynski, que indica a coleco de Oeirense, vista no Porto, como um conjunto de obras dignas de
nota e que destacou por serem bastante numerosas e com algumas peas particularmente valiosas:
M. Silva Oeirense, peintre, possde aussi de bonnes choses. Il faut remarquer dans sa collection, qui est
assez nombreuse, deux fort tableaux de fleurs, plusieurs vieux portraits et une bonne esquisse de Vieira
Portuense, reprsentant Viriatus qui jure sur le cadavre dune jeune fille de se venger des Romains49.
Nesta poca (1844), Oeirense vive no Porto, na desaparecida Praa de D. Pedro, n 94.
Em 1846, surge em grande destaque, no Almanak da cidade do Porto, no s na sua faceta de Lente
de Gravura e Desenho (morando, agora, na Rua do Almada, n 13 e 14), mas ainda como proprietrio
de uma Galeria de Pinturas nessa mesma morada, referida logo aps o Museu Portuense e o Museu
Allen. Tambm aqui indicado como Retratista, juntamente com outros lentes ou agregados de Belas
Artes. No item dedicado aos Gravadores, o seu nome no mencionado50. Tambm no Directorio para
esse ano igualmente referida a sua coleco e a sua actividade profissional, mas neste, a morada
corresponde apenas ao n 13 da Rua do Almada51.
Em 1849, novamente instalado em Lisboa, s Portas de Santo Anto, ao que parece rodeado da sua
coleco, abre a sua casa e respectiva galeria de arte ao reprter do jornal A Unio, o qual faz uma
extensa descrio do que viu, realando algumas das telas, quer devido ao autor, quer qualidade da
pintura, quer ainda ao tamanho da tela e sua raridade: Caravaggio, Van der Werff, Rembrandt Van
Ryn, Rubens e, entre os portugueses, Gro Vasco e Sequeira. Possui ainda diversos esboos e muitas
miniaturas, algumas delas muito antigas. De acordo com o artigo, muitas mais coisas haveria a
46
Esta coleco, mandmo-la digitalizar na Biblioteca Publica do Porto.
47
O conjunto foi-nos gentil e graciosamente enviado, j digitalizado, pelos servios do arquivo do Museu da Assembleia da
Repblica.
48
SOARES, Ernesto Dicionrio de Iconografia op. cit., 5 vols.
49
RACZYNSKI, A. - Les Arts en Portugal. Lettres adresses a la Socit Artistique et Scientifique de Berlin, et accompagnes de
documents. Par Le Comte A. Raczynski. Paris: Jules Renouard et C.ie, Libraires-diteurs, et Commissionnaires pour l tranger,
1846, p. 385.
50
Vd. Almanak da cidade do Porto para o anno de 1846, pp. 20-102.
51
Vd. Directorio Civil, Poltico, Commercial, Histrico e Estatstico da cidade do Porto e Villa Nova de Gaya para o anno de
1846. Porto, 1846, pp. 66-67 e 165-166.
52
Vd. A Unio, Lisboa, n 374, 11 de Abril 1849, p. 1508. [NdA] Julgamos que aps to elogioso texto, quer em relao
coleco quer a Oeirense, o autor quereria usar, no a palavra improbo, tal como aparece no texto, mas antes probo, como
parece ser bvio.
53
Apud KULMACZ, Prof Doutora Maria Clara (notas pessoais cedidas pela) HEERINGEN, Gustav Adolf von (1799-1851)
Meine Reise nach , op. cit., 2 vol., pp. 60-64.
54
Boletim da Academia Nacional de Belas-Artes Documentos. vol. III: Documentos relativos recolha e distribuio dos
quadros e livros aps a extino dos conventos (1 Parte). Lisboa: Academia Nacional de Belas-Artes, 1938, p. 85. Para tal,
so investidos dessa responsabilidade o Conde da Taipa, Vasco Pinto Balsemo, Francisco de Sousa Loureiro, Antnio
Nunes de Carvalho, Antnio Jos de Lima Leito, Lus Duarte Vilela da Silva, Andr Monteiro da Cruz, Manuel Srgio da
Silveira e Jos Gregrio Lopes da Cmara Sinval, formando a Comisso que iria orientar os trabalhos.
55
Boletim da Academia Nacional de Belas-Artes, op. cit., p. 92.
56
Ibidem, pp. 111-112.
57
Vd. NUNES, Ana Paula Bandeira Morais Valongueiro Francisco, op. cit., Anexo I Doc. n 132.
58
Vd. IDEM, Ibidem, Anexo I Doc. n 139.
59
Assunto que desenvolvemos no nosso anterior trabalho.
60
Vd. AFBAUP, Doc. n 81 Officios do Snr. Mendes (1840 6).
61
Ibidem.
Concluso
Muito ficou por dizer daquilo que j pesquismos, mesmo do mais recente e daquilo que julgamos
ainda haver para estudar. Optmos por abordar alguns aspectos da vida de Oeirense em detrimento
de outros igualmente interessantes, no porque menos importantes, mas sim porque era foroso
que o fizssemos em vista das limitaes de espao. Trata-se, reforamos, de uma figura importante
para a Histria da arte e cultura portuguesas, no s pelas suas actividades, mas tambm pelo seu
perfil multifacetado, conquanto polmico, e ainda pela relevncia de algumas das suas funes. Pelas
mesmas condicionantes anteriormente referidas, neste trabalho no nos foi possvel analisar a sua
obra pictrica, especialmente os quadros que identificmos, ou reproduzi-los convenientemente.
pois, um trabalho em aberto que deve ser continuado.
Declaro que fui despachado em 5 de Novembro de 1811, com a peno de 480 r.s diarios, como Alumno
da Aula de Gravura de que era Professor Francisco Bartolozzi; que depois desta pocha por haver
varios Artistas appelidados Silvas, juntei ao meu nome de Francisco Antnio da Silva, o apelido de
Oeirense, por ter nascido em Oeiras, e isto ser costume dentro e fora de Portugal, continuando com
tudo a assignar os recibos, e verbas de pagamento da ditta pena, com o simpres nome com que fui
despachado; que em 1836, ou 1837 esta pena foi diminuida por ordem Superior; que ath o fim
de Janeiro de 1840 a recebi em titulos, ou cedulas passadas na competente repartia, q. se acha na
Administraa Geral de Lisboa, e que se a posse desta pena me pode prejudicar de algum modo na
concervaa da totalid.e dos meos ordenados de Lente de Gravura, e de Desenho Historico da Academia
Portuense das Bellas Artes, nesse caso eu desde ja cedo da mesma pena em beneficio do Estado.
No verso: Porto em 13 de Maio de 1841 Francisco Antnio Silva Oeirense, (assinatura) Lente de
Gravura, e de Desenho Histrico.
62
Vd. AFBAUP, Doc. n 127 - 1868 Outros documentos.
Francisco Antonio Silva Oeirense, Director Honorario da Academia de Lisboa, por Decreto de 13 de
Maio de 1837, actual Lente de Gravura, e Desenho Historico da Academia Portuense das Bellas Artes,
foi despachado pensionista do Estado com480 reis dirios, em 13 dAgosto de 1811. Na formao
da Academia de Lisboa, em 25 de Outubro de 1836, foi despachado por Decreto da mesma dacta,
Pensionista Viajante com 800$000 reis de ordenado; servio em comisso por Portarias, e ordens do
Governo, em reunir os elementos, de que se compe hoje a Academia de Lisboa, foi Fiscal da Officina
Lithographica, pertencente Academia, nomeado igualmente pelo Governo e por estas comisses, de
que estava encarregado, recebeu o mesmo ordenado de 800$000 reis athe dacta de 7 dAgosto de
1838, em que por Sua Magestade foi nomeado lente de Gravura Historica desta Academia, e tomou
posse em (falta texto). Assinado: Francisco Antonio Silva Oeirense
Susana Moncvio1
Introduo
O nome de Christina Amlia Machado (1860-1884) associa-se histria da Academia Portuense
de Belas-Artes, e aos estudos de gnero, como a primeira mulher a matricular-se na instituio, no
ano letivo de 1882/1883. Este facto no displicente sob a perspetiva da transio da sua condio de
Amadora para a de uma Aluna que projeta um destino artstico-profissional no mbito acadmico,
circunstncia que encerra questes de ordem legal e da tradio, dita a barreira dos costumes, mas
tambm de ordem simblica e de representao, que a tornam instauradora de uma nova realidade.
Apesar de pouco expressivo no quadro da crtica artstica feminista, este estudo de caso objetiva
aspetos da sociedade portuense e da histria cultural da Arte do sculo XIX, com impacto nos processos
historiogrficos que se lhe associam, nomeadamente, a reviso de assunes como a funo e o destino
social dos gneros no meio artstico2.
1
Investigadora em Histria da Arte. Doutoranda da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
2
Consideramos que alguns aspetos deste caso se inserem na perspetiva crtica inaugurada por Linda Nochlin (n. 1931)
com o artigo de 1971 Why have there been no great women artists? A autora estabelece os fundamentos disciplinares da
teoria da arte feminista questionando uma historiografia construda a partir do ponto de vista do ensino acadmico, que
afastou as mulheres do estudo nu at finais de Oitocentos, o que as excluiu do discurso crtico da grande arte (temas de
histria, mitologia, etc.). Cf. MAYAYO, Patrcia Em busca de la mujer artista. In MAYAYO, Patrcia Historias de mujeres,
historias del arte. 2 Ed. Madrid: Ediciones Ctedra, 2007, pp. 21-87.
3
Vd., a este propsito, ALVIM, Maria Helena Villas-Boas e Em busca da Histria das Mulheres. Lisboa: Livros Horizonte, 2006.
4
Nas primeiras dcadas do sculo XIX surgem: Da Educao, de Almeida Garrett, publicada em Londres (1829), e Mentor da
Mocidade ou Cartas sobre a Educao, de Borges Carneiro, redigida na priso (1828) e publicada em 1844. Cf. CARVALHO,
Rmulo de Histria do ensino em Portugal. Desde a fundao da nacionalidade at o fim do regime de Salazar-Caetano.
3 ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2001, pp. 544-545.
5
o autor que refere: Convida-me o exemplo do Emlio a seguir este, []. Cf. ALMEIDA-GARRETT, Visconde de Da educao.
Cartas dirigidas a uma senhora ilustre encarregada da educao de uma jovem princeza. 3 ed. Porto: Ernesto Chardron,
Editor, 1883, pp. XVII-XXX.
6
Um pensamento que modelou a funo dos gneros. Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques Emlio. Mem-Martins: Publicaes
Europa-Amrica, 1990, vol. 2, pp. 182-183; pp. 244-245.
7
O trabalho dever do homem social e a condio de artfice aproxima o homem do estado natural, permitindo-lhe sub-
sistir sem depender de outrem ou de meios de fortuna. Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques Emlio. Mem-Martins: Publicaes
Europa-Amrica, 1989, vol. 1, pp. 146-147; pp. 202-216.
8
Cf. ALMEIDA-GARRETT Op. cit., p. XXII; pp. 28-30.
9
Cf. IDEM, Ibidem, p. 235.
10
Vd. COLEGIO Francez para Meninas, Madame de Souto. Peridico dos Pobres no Porto. Porto. III Srie. XVIII Ano, n 155 (4
jul. 1851), p. 637.
11
Cf. CRUZ, Maria Antonieta Os Burgueses do Porto na segunda metade do sculo XIX. Porto: Fundao Eng. Antnio de
Almeida, 1999, pp. 398-409.
12
Vd. COLEGIO Francez para Meninas, Madame de Souto. Almanak do Porto e seu districto administrativo, para o anno de
1854-1855. [Porto]: [s. n.], [185?], p. 294.
13
Vd. COLEGIO Francz para Meninas, Madame Podest. Cf. IDEM, Ibidem, p. 293.
14
Vd. COLEGIO Francz e Inglz, Mlle. Aucta Pawley de Arajo. Cf. IDEM, Ibidem, p. 295.
15
Cf. PRAA, J. J. Lopes A Mulher e a Vida ou a mulher considerada debaixo dos seus principais asptos. Lisboa: Edies
Colibri, 2005, pp. 30-38.
16
Cf. AIM-MARTIN, L. Educao das mes de famlia ou a civilisao do gnero humano pelas mulheres. 2 Edio. Porto:
Em Casa de F. Gomes da Fonseca Editor, 1865, Tomo I, pp. 83-85.
17
[] tanto mais valeremos, quanto melhores ellas forem; e, pela sua parte, ellas no nos tornaro melhores sem serem mais
felizes. Cf. AIM-MARTIN, L. Op. cit., 1865, pp. 72-75.
18
Cf. PRAA, J. J. Lopes Op. cit., pp. 245-246.
19
No artigo LXXV, Mar. 1872, de As Farpas, o autor cita Michelet e traa um quadro da instruo e dos costumes relativos
s mulheres. Cf. QUEIRS, Ea de Uma campanha alegre. II. De As Farpas. Mem-Martins: Publicaes Europa-Amrica,
1987, pp. 81-96.
20
Cf. QUEIRS, Ea de Op. cit., p. 81.
21
Cf. RIBEIRO, Jos Silvestre Os paes de famlias: algumas indicaes para o desempenho da sua misso. Lisboa: Imprensa
de J. G. de Sousa Neves Editor, 1878, p. 181.
22
Cf. FRIAS, D. C. Sanches de A Mulher, sua infncia, educao e influencia na sociedade. Par: Editores Tavares Cardoso,
1880, pp. 121-126.
23
Em 1875, a percentagem de escolas femininas era de 19 % no ensino oficial, e de 61% no ensino particular, relativamente
ao total nacional. Cf. DIAS, Lus Pereira As outras escolas. O ensino particular das primeiras letras entre 1859 e 1881.
Lisboa: Educa, 2000, p. 51, p. 116.
24
Vd. ALMANACH histrico, commercial, administrativo e industrial da Cidade do Porto para 1883. 1 Ano. Porto: Jos Antnio
Castanheira, 1882, p. 423.
25
Vd. ALMANACH histrico, commercial, administrativo e industrial da Cidade do Porto para 1884. 2 Ano. Porto: Clavel &
C Editores, 1883, p. 371.
26
Vd. ALMANACH histrico, commercial, administrativo e industrial da Cidade do Porto para 1885. 3 Ano. Porto: Empreza
Editora, 1884, p. 316.
27
Vd. ALMANACH histrico, commercial, administrativo e industrial da Cidade do Porto para 1886. 4 Ano. Porto: Empreza
Editores, 1885, p. 325.
28
Cf. MOREIRA, Gabriela Macedo Ser mulher: a construo social de um gnero. A representao social de mulher do sculo
XVIII ao sculo XIX. Porto: [s.n.], 2005, pp. 131-132. Dissertao de Mestrado em Histria Contempornea apresentada na
Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
29
Pode corresponder a Antnio Joaquim Ferreira Margarido (1842-1922), nascido em Moncorvo; formado em Medicina
pela Universidade de Coimbra (1866), tendo exercido em Figueira de Castelo Rodrigo (1868) e em Mrtola (1871), antes
de se fixar em Moncorvo. Ingressou no partido regenerador (1889), ocupou o cargo de Governador Civil do distrito de
Bragana (1890), em diversos mandatos, at 1908; e foi deputado (1901). Cf. FONTE, Barroso da Dicionrio dos mais
ilustres Transmontanos e Alto Durienses. Guimares: [s.n.], 1998, p. 340.
30
Neta paterna de Jos Raimundo e Teresa de Jesus e materna de Jos de Almeida Dias e de Maria Jlia Guedes. Cf.
Arquivo-Museu Diocesano de Lamego, Registos Paroquiais, Freguesia de Coriscada, Batismos, 1860, n 13. URL: PT-AMDL-PRQ-
-MDA05-001-0004_m0014. Acesso ao arquivo de Lamego facilitado por Jos Jlio de Morais Sarmento, a quem agradecemos.
31
Arquivo Nacional da Torre Tombo (A.N.T.T.), Registo Geral de Mercs, D. Lus I, L 10, f. 121v. URL: PT/TT/RGM/J/300730.
32
Alta burguesia: negociantes e os industriais ricos, altos funcionrios do Estado, oficiais generais, categorias superiores das
profisses liberais, quadros das empresas privadas e um nmero importante de proprietrios. Mdia burguesia: retalhistas
e donos de oficinas, as patentes militares mdias, alguns profissionais liberais e os empregados das empresas privadas e
dos servios pblicos. Na base: os empregados mais modestos, tendeiros, e outros agentes econmicos de parcos recursos
e pequeno nvel cultural. Cf. CRUZ, Maria Antonieta Os Burgueses do Porto na segunda metade do sculo XIX. Porto:
Fundao Eng. Antnio de Almeida, 1999, p. 498.
33
Estatutos da Academia Portuense de Belas Artes: Da Exposio Art. 69 Cada trs anos, depois da distribuio dos
prmios, se proceder a uma Exposio Pblica das Obras das Bellas Artes, em que tero logar: 1 as que tiverem sido
executadas na Academia: 2 as dos alumnos da Academia, que por ella houveram sido approvados: 3 as de quaesquer
pessoas, que quizerem expor as suas composies approvao, ou censura do Pblico. Esta Exposio durar por dous mezes.
Cf. PORTUGAL. Ministrio da Educao Reformas do ensino em Portugal (1835-1869). Lisboa: Ministrio da Educao.
Secretaria-Geral, 1989, p. 53.
34
O nosso estudo identificou 56 das 75 expositoras (cerca de 75%), com idade entre os 10 e os 61 anos (a moda na segunda
dcada de vida), solteiras e casadas, extrao na mdia e alta burguesia; de famlias associadas ao grande comrcio, a
licenciados e ao professorado. Cf. MONCVIO, Susana Maria Simes Prenda ou Arte? A participao feminina nas Exposies
Trienais da Academia Portuense de Belas Artes (1842-1887). Porto: [Ed. do Autor], 2009, 1 vol., pp. 94-96. Dissertao de
mestrado em Histria da Arte Portuguesa apresentado Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
35
Espanhol estabelecido na rua de Santo Antnio, 200, com produtos qumicos para fotografias. Vd. ALMANAK do Porto e
seu Districto para 1882. (27 Ano). Porto: Livraria Archivo Juridico de A. G. Vieira Paiva, Editor, 1881, p. 363.
36
Ator natural de Lisboa, onde se estreou em 1860; trabalhou em todos os teatros do Porto. Cf. BASTOS, Sousa Diccionario
do theatro portuguez. Lisboa: Arquimedes Livros, 2006, p. 274.
37
Vd. NOTICIARIO: Retrato. A Actualidade. Porto. 8 Ano, n 94 (28 abr. 1881), p. 1.
38
Cf. RODRIGUES, Francisco Assis Diccionario Technico e Historico de Pintura, Esculptura, Architectura e Gravura. Lisboa:
Imprensa Nacional, 1876, p. 33.
39
Vd. NOTICIARIO: Retrato. A Actualidade. Porto. 8 Ano, n 236 (16 out. 1881), p. 2.
40
Vd. IDEM, Ibidem, p. 2.
41
IDEM, Ibidem, p. 2.
42
As memrias jornalsticas desse perodo no referem qualquer colaborao feminina nesse peridico. Cf. GOMES, Luiz
F. (Compilador) Jornalistas do Porto e a sua associao. Porto: Associao dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto,
1925, pp. 93-99.
43
Constance de This, Princesse de Salm-Dyck (1767-1845). Cf. THIS, Constance de ptre aux femmes, 1797. In http://
fr.wikisource.org/wiki/%C3%89p%C3%AEtre_aux_femmes (06 abr. 2014).
44
Em Frana, quando a Assembleia Constituinte aprovou, em out. 1791, uma Constituio que exclua as mulheres dos
direitos de cidadania, Olympe de Gouges (1748-1793) publicou a sua prpria Dclaration des droits de la femme et de la
citoyenne, inspirada na Declarao dos Direitos do Homem, dando incio a uma corrente literria de ndole feminista, em
defesa da interveno poltica da mulher. Cf. GOUGES, Olympe [et al.] Direitos da mulher e da cidad. Textos fundadores
do feminismo moderno. Seleo, comentrios e traduo de Ana Barradas. Lisboa: Ela por Ela, 2002.
45
Vd. NOTICIARIO: Retrato. A Actualidade. Porto. 8. Ano, n. 236 (16 out. 1881), p. 2.
46
Maria Leite da Silva Tavares Pais Moreira (27 anos) foi a primeira mulher na Academia Politcnica do Porto, no ano letivo de
1884/1885. As irms Morais Sarmento, Aurlia e Laurinda ingressam na A.P.P. em 1885/1886 e concluem Medicina em 1891;
em 1886/1887 matriculam-se Rita (mdica) e Guilhermina (engenheira civil). Cf. SANTOS, Cndido A Mulher e a Universidade
do Porto. A propsito do centenrio da formatura das primeiras mdicas portuguesas. Porto: Universidade do Porto, 1991.
47
Falecida a 25 de junho, foi mandada rezar missa de 7 dia a 1 de julho de 1882, na igreja dos Congregados. Subscrevem o
marido, Joo Jos dos Reis Jnior; os pais, Incio Jos Machado, Maria Jlia Guedes Machado; e a irm, Christina Amelia
Machado. Vd. NOTICIARIO: Suffragio. A Actualidade. Porto. 9 Ano, n 114 (29 jun. 1882), p. 2; ANNUNCIOS (1482): Missa
do setimo dia. A Actualidade. Porto. 9 Ano, n 144 (29 jun. 1882), p. 3.
48
Vd. NOTICIARIO: Academia de bellas-artes. A Actualidade. Porto. 9 A., n 216 (23 set. 1882), p. 1.
49
A Academia de Lisboa foi criada em 25 out. e a do Porto a 2 nov. 1836, pelo governo de Passos Manuel. Eram requisitos
de admisso: ter mais de 10 anos, saber ler, escrever e contar, e apresentar atestado de bons costumes. Cf. PORTUGAL.
Ministrio da Educao Op. cit., pp. 23-36; pp. 48-55.
50
Decreto de 22 mar.1881. Cf. PORTUGAL. Ministrio da Educao Reformas do ensino em Portugal (1870-1889). Lisboa:
Ministrio da Educao. Secretaria-Geral, 1991, Tomo I vol. I, 1991, p. 79; p. 83.
51
Frequentaram o Curso de Desenho: elementar, de figura, do antigo e de ornato. Cf. LISBOA, Maria Helena As Academias
e Escolas de Belas Artes e o ensino artstico (1836-1910). Lisboa: Edies Colibri. Universidade Nova de Lisboa. Faculdade
de Cincias Sociais e Humanas. IHA Estudos de Arte Contempornea, 2006, p. 137.
52
CASTRO, Zlia Osrio de; ESTEVES, Joo (Dir.) Dicionrio no feminino (sculos XIX-XX). Lisboa: Livros Horizonte, 2005,
pp. 34-35.
53
Relatrio de 18 set. 1882, do Conde de Samodes ao ministro e secretrio de Estado dos Negcios do Reino, f. 9. Cf. Arquivo
da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (A.F.B.A.U.P.), Correspondncia enviada para diversas autoridades,
Cx. 212 (1881-1883), 1882 (150).
54
A.F.B.A.U.P., Processo do Aluno: Cristina Amlia Machado [1) Requerimento de 12 out. 1882].
55
NOTICIARIO: Academia Portuense de Bellas-Artes. O Commercio do Porto. Porto. XXIX Ano, n 313 (23 dez. 1882), pp. 1-2.
56
A.F.B.A.U.P., Livro de matrculas (1865-1888): Aula de Desenho. Classe de Ordinrios, f. 115v.
57
O concurso, a nomeao e o parecer da Junta Consultiva da Instruo Pblica foram sancionados por Carta de D. Lus de
18 de janeiro de 1883. Cf. Biblioteca Pblica Municipal do Porto, Reservados, MA Marques de Oliveira 163.
58
1 Ano: desenho por estampas, elementos e cabeas pelo gesso, em contorno. Perspetiva e Anatomia. Exame: desenho
por estampa, contorno de figura inteira e, pelo gesso, contorno de cabea; 2 Ano: desenho por estampa ou de figuras
assombradas, e, pelo gesso, []. Perspetiva e Anatomia. Exame: desenho de figura inteira assombrada por estampa ou
desenho, e uma cabea assombrada, pelo gesso; 3 Ano: desenho pelo gesso, troncos e extremidades assombradas, e
por estampas de autores clssicos composies, contornadas com exatido, e indicadas as sombras gerais por planos;
4 Ano: desenho do gesso, e do modelo vivo na aula do nu. Uso de cadernetas para desenho do natural. Exame: dese-
nho pelo gesso de uma esttua, a dois contornos (esqueleto e msculos); 5 Ano: desenho pelo gesso e modelo vivo,
composies. Exame desenho pelo modelo vivo, aula do nu, figura de estudo. Cf. A.F.B.A.U.P., Copiador dos Ofcios para
o Governo, f. 47-48.
59
Vd. NOTICIARIO: Academia Portuense de Bellas-Artes. O Commercio do Porto. Porto. XXIX Ano, n 313 (23 dez. 1882), pp. 1-2.
60
O Centro Artstico Portuense, projeto de ensino artstico livre inaugurado em 1880 e tema do nosso doutoramento, prev
a admisso de alunas s aulas de ateli, embora no se confirme a sua concretizao.
61
WEISBERG, Gabriel P.; BECKER, Jane R. Overcoming all obstacles. The women of the Acadmie Julian. New York: Gabriel
P. Weisberg and Jane R. Becker, Editors, 1999, p. 3.
O bom aproveitamento nos exames leva Christina Amlia a matricular-se no ano letivo seguinte
no 4 Ano, a 10 de outubro de 188362. Mas, de acordo com o atestado mdico entrado na secretaria da
escola, passado por Antnio de Oliveira Monteiro (1842-1903)63, a frequncia foi interrompida entre
15 de maio e 25 de julho de 1884, devido a uma bronquite crnica64, pelo que no ter concludo o
ano, e tambm no procedeu renovao da matrcula para 1884/1885. A doena pode ainda t-la
impossibilitado de comparecer ao momento solene na vida de qualquer aluno da Academia, debutar
na Exposio Trienal da Academia Portuense de Belas Artes.
62
A.F.B.A.U.P., Processo do Aluno: Cristina Amlia Machado [2) Requerimento de 10 out. 1883].
63
Lente proprietrio da Escola Mdico-Cirrgica do Porto, filiado no Partido Progressista, membro da comisso executiva
partidria do Porto que ocupou diversos cargos na municipalidade e como deputado, entre outros. Cf. Universidade do
Porto, Antnio de Oliveira Monteiro (1842-1903), mdico, professor universitrio e presidente da Cmara Municipal do
Porto. URL: http://sigarra.up.pt (27 mar. 2014).
64
A.F.B.A.U.P., Processo do Aluno: Cristina Amlia Machado. [3) Atestado mdico de 27 jul. 1884).
65
RODRIGUES, Manuel M. Exposio de Belas Artes no Porto. O Occidente. Lisboa. 7 Ano. vol. VII, n 215 (11 dez. 1884),
[pp. 277-279], p. 278.
66
Cf. IDEM, Ibidem, p. 278.
67
O presidente da Cmara Municipal do Porto, Correia de Barros, compra para o Museu Municipal o quadro de Marques de Oliveira
Entre o almoo e o jantar. Cf. NOTCIAS DO DIA: Bellas Artes. O Dez de Maro. Porto Ano V, n 1544 (10 dez. 1884), p. 2.
68
Expositoras Amadoras, em Desenho: Albertina Rios da Natividade e Maria de Jesus Alvite Reis, discpulas de Thereza de
Lima Vieira Fernandes, diretora do Colgio do Rosrio [expositora no passado]; Maria Emlia do Valle e Virgnia da Silva,
discpulas de Jlio Costa. Em Aguarela: Francisca de Almeida Furtado, Maria Amlia Vieira Ramos. Em Pintura: Amlia
Rangel Maia e Rita Ricardina da Costa. Cf. CATALOGO das obras apresentadas na decima-quarta Exposio Triennal e
discurso pronunciado pelo Ill.mo e Exc.mo Snr. Conde de Samodes na respectiva sesso publica e distribuio de prmios da
mesma Academia no da 31 de Outubro de 1884. Porto: Typographia de Antnio Jos da Silva Teixeira, 1884; Cf. MONCVIO,
Susana Maria Simes Op. cit., 3 volumes.
69
Vd. Desenho: D. Christina Amelia Machado, natural de Coriscada, concelho da Meda, districto da Guarda, discpula da
Academia Portuense das Bellas-Artes. 1 Cabea de Alexandre, copia do gesso, e 2 Cincinato, cpia de estampa para exame
do 1 anno, estudos pelos quaes foi julgada digna delogio, com 16 valores, em conferncia geral de 31 dagosto de 1882.
Alt. 0m,62. Largura 0m,47; 3 Mercrio sentado, desenhado do antigo no concurso ao premio anual, estudo pelo qual foi
julgada digna de meno honrosa em conferencia geral de 31 dagosto de 1883. Cf. CATALOGO Op. cit., p. 25.
Fig. 3 CATALOGO das obras apresentadas na decima-quarta Fig. 4 Cabea de Alexandre. Gesso.
Exposio Triennal []. Museu da Faculdade de Belas Artes da
Porto: Typographia de Antnio Jos da Silva Teixeira, 1884, p. 25. Universidade do Porto. Inv. 99.3.344.
Mais do que um percurso artstico como o que se vincula aos seus condiscpulos: Antnio Teixeira
Lopes, Joo Augusto Ribeiro, Joo Jos Nogueira, Jos de Almeida e Silva Jnior, Jlio Costa, Miguel
Ventura Terra, Toms Costa, Joaquim Augusto Marques Guimares, Serafim de Sousa Neves, Arnaldo
Redondo Ades Bermudes, Joel da Silva Pereira, Rodrigo Soares e tantos outros, este passo inaugural
encerra-se num destino ditado pela expectativa coletiva. De forma espontnea, na conformao entre
a volio pessoal e a funo social da mulher como educadora, ao fim, professora, abre-se a porta a
um discurso historiogrfico estruturado e perpetuado pelo gnero, o masculino.
70
RODRIGUES, Manuel M. Op. cit., (11 dez. 1884), pp. 277-278.
71
Faleceu em sua casa, na Rua Formosa, 66, Porto, sem receber os sacramentos, tinha 24 anos, solteira, domstica, foi
sepultada na Lapa. Cf. A.D.P., Registos Paroquiais, Freguesia de Santo Ildefonso (Porto). L 48-b., 1884, f. 105.
Fig. 5-5a Cemitrio da Venervel Irmandade de Nossa Senhora da Lapa. Seco Lateral. Diviso 1.Capela-jazigo, n 37.
72
Vd. NOTICIARIO: Necrologia. A Actualidade. Porto. 11 Ano, n 281 (2 dez. 1884), p. 2.
73
Citamos: Os alunos da Academia de Bellas-Artes resolveram mandar celebrar amanh, quinta-feira, pelas 9 horas da
manh, na igreja de Santo Ildefonso, uma missa em sufrgio da alma da sua presada condiscpula D. Christina Amelia
Machado; por isso pedem a assistncia a este acto religioso, das pessoas das relaes da finada, ou de quaisquer outras que
se queiram dignar acompanhal-os nesta manifestao de sentimento. Porto, 10 de Dezembro de 1884. Vd. ANNUNCIOS
DIVERSOS (378) Convite. O Dez de Maro. Porto, Ano V, n 1544 (quarta-feira, 10 dez. 1884), p. 3.
74
Arquivo Histrico da Venervel Irmandade de Nossa Senhora da Lapa (A.H.V.I.N.S.L.), Lista de entradas de irmos entre
os anos econmicos de 1873 a 1893, f. 36. Registo de entrada como irm no ano econmico de 1884-1885, com a patente
8460 tendo pago 5.040, f. 36.
75
Citamos: 1133 / Christina Amelia Machado N.I. como consta do L.o 3 das entradas a fl 43 sob o n 8460, natural de Pinhel,
filha de Ignacio Jos Machado, e de D. Maria Jlia Guedes Machado, de edade 24 annos, solteira, moradora que foi na rua
Formosa; falleceu pelas 4 horas da tarde do dia 30 de Novembro de 1884, sendo no dia 2 de Dezembro do dito anno, encerrada
em caixo chumbado e depositada na capella do cemitrio de baixo pertencente ao Snr. Antnio Jos Lopes Antunes. Cf.
A.H.V.I.N.S.L., Livro 3 de bitos (18-06-1875 a 14-02-1891), n 1133, p. 227.
76
Cemitrio da Venervel Irmandade de Nossa Senhora da Lapa. Seco Lateral, n 37, Diviso 1, est localizada a capela
construda em finais da dcada de 1860, pertencente a Antnio Jos Antunes Navarro (1803-1867), Visconde de Lagoaa,
num setor dedicado a capelas monumentais. Cf. QUEIROZ, Jos Francisco Ferreira O ferro na arte funerria do Porto
oitocentista. O cemitrio da Irmandade de Nossa Senhora da Lapa (1833-1900). Porto: [s.n.], 1997, p. 24, p. 126. Dissertao
de Mestrado em Histria da Arte apresentada Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
77
Incia Ermd C. Antunes (1850), Antnio Jos Antunes Navarro (1867), Cristina Amlia Machado (1884), restantes a partir
de 1920s. Cf. A.H.V.I.N.S.L., Capela Jazigo. Seco Lateral. Div. D001. N 37.
Concluso
Ao romper a barreira dos costumes, Christina Amlia Machado obriga a Academia Portuense de
Belas Artes a compaginar a sua rotina e a estruturar os espaos de acordo com a nova realidade. A
morte precoce interrompeu uma formao que seria pioneira e consequente, mas o seu nome fica
para sempre associado a um passo disruptivo e de charneira, o da passagem da prtica amadora, sob
a forma de lazer comprometido, ao de aluna com aspiraes legitimadas pela instituio que tutela
percursos profissionais. A crtica contempornea cerceia o seu percurso individual e prefigura um
destino coletivo, abrindo uma nova perspetiva quanto funo e destino social dos gneros no meio
artstico portuense.
A porta fora aberta, as alunas voltam a marcar presena no ano letivo de 1885/1886, quando
se regista a matrcula de Maria da Graa Vieira Soares, juntamente com o irmo, Joo Carlos Vieira
Soares, de Marco de Canaveses, no 1 Ano de Desenho Histrico81, e no mais se fecharia.
78
O estudo identifica os Ss, de Bragana; os Mendes, de Viseu; os Campos, de Vila Nova de Foz Ca; os Pessoas, do Fundo
(ou Montemor o Velho); os Navarros (Nunes Navarros, Navarros de Andrade, Antunes Navarro); e os Castros, de Bragana.
Cf. VALADARES, Paulo Uma teia familiar: Cristos-Novos Portugueses nobilitados no sculo passado. Geraes/Brasil.
Boletim da Sociedade Genealgica Judaica do Brasil. vol. 5, n 1/2 (mai. 1999), pp. 6-11.
79
Segundo o autor, nas guerras liberais, em Vila Nova de Foz Ca, onde a populao crist-nova era numerosa, houve
expropriaes e desterro das famlias: Campos Henriques, Lopes Cardoso, Cavalheiros, Almeidas, Navarros, Margaridos,
Saraivas e os Tavares. Cf. VALADARES, Paulo Op. cit., pp. 6-11.
80
Antnio Jos Antunes Navarro, filho de Manoel Jos Antunes e de Helena Teresa Lopes Antunes, irmo de Antnia
Margarida Antunes Navarro e de Teresa Maria Antunes Navarro Pereira da Silva. Cf. VALADARES, Paulo Op. cit., pp. 6-11.
81
No ano letivo de 1886/1887 frequentam o 2 Ano. Em 1887/1888 ingressam no 1 Ano, as alunas Emlia Teixeira Lopes,
filha de Jos Joaquim Teixeira Lopes; Sophia Ignez Pieper, filha de Georg Albert Adolpo Leuschner, e Adelaide Fontes,
filha de Antnio de Fontes Soares; no 2 Ano, de novo, Maria da Graa Vieira Soares. Em 1888/1889, no 1 Ano, Emlia
Ernestina da Silva, filha de Manoel Narciso da Silva; no 2 Ano, Adelaide Fontes e Emlia Teixeira Lopes; no 3 Ano, Sophia
Ignez Pieper. Cf. A.F.B.A.U.P., Livro de matrculas Desenho Histrico (1865-1888). Classe de Ordinrios, f. 115, f. 123, f. 155v.,
f. 163v., f. 175, f. 176, f. 180, f. 180v., f. 189, f. 189v., f. 191, f. 192v., f. 194.
A cidade do Porto e seus arredores assistiram, na segunda metade de Oitocentos, a um surto construtivo
importante que se prolongou pelas primeiras dcadas da centria seguinte. Ao longo das numerosas
vias abertas ou melhoradas, levantaram-se edifcios para servir de habitao burguesia emergente;
na malha urbana mais antiga, muitos imveis foram totalmente remodelados para se adequarem s
regras da vida de ento, que oscilava entre a preservao da intimidade e a promoo de momentos
de sociabilidade inter pares. Os ltimos conservavam as suas fachadas de aspecto tradicional coroadas
por platibandas granticas e pontuadas por vos simtricos adornados por guardas em ferro, enquanto
as construes, entretanto levantadas, oscilavam entre a adopo deste figurino tradicional e os novos
modelos construtivos de influncia estrangeira, dispondo, muitas vezes, de espaos ajardinados face
da rua2. Se a sua singularidade permitia intuir acerca do requinte interior (de que os palacetes da zona
ocidental da cidade so um paradigma), a sobriedade das restantes construes escondia a riqueza das
solues decorativas e a diversidade das matrias-primas. Destacavam-se as destinadas alta burguesia
na quantidade e qualidade das manifestaes artsticas, exequvel pela generosidade das reas e pelo
acesso a artfices de renome quer nacionais quer estrangeiros3; no entanto, as habitaes menores
levantadas um pouco por toda a cidade exibiam uma mesma panplia de recursos, remetidos, contudo,
a concretizaes mais modestas e confinadas, quase sempre, aos ambientes de recepo.
A casa no era, apenas, encarada como o local de habitao e abrigo, assumindo-se, igualmente,
como reflexo da identidade do proprietrio, da sua posio social e das suas experincias de vida. O
1
Investigadora do CITAR Centro de Investigao em Cincia e Tecnologia das Artes (EA-UCP).
2
No grupo das edificaes com fachada face da rua e logradouro nas traseiras, distinguem-se as que apresentam projecto
individualizado e as que se dispem em banda, sendo que, dentro do segundo grupo, algumas se destinavam a arrendamento.
Destacando-se pela sua exuberncia dimensional e decorativa, evidenciam-se as construes que, dividindo uma parede
de meao, dispem de entrada lateral e jardim na parte posterior (Ruas de lvares Cabral, de D. Joo IV e de Costa Cabral,
a ttulo de exemplo).
3
Os proprietrios com maior poder econmico recorriam aos melhores artfices do Norte do Pas, mas tambm importavam
bens e servios, quer directamente quer atravs de outros profissionais. Assim aconteceu com o conde de Silva Monteiro,
com Boaventura Rodrigues de Sousa, com o conselheiro Pedro Arajo, com Joo Henrique Andresen e com Bernardo Pinto
Abrunhosa, para citar alguns exemplos.
4
Vd. CASCO, Rui O quadro material: entre paredes. In MATTOSO, Jos, dir. Histria da vida privada em Portugal. A
poca contempornea. 3 ed. [S. l.]: Crculo de Leitores e Temas e Debates, 2011, p. 25.
5
Com a obrigatoriedade de licenciamento das construes ou transformaes feitas face da rua, a direco das obras foi
mudando de mos: os mestres-de-obras e construtores formados no terreno deram lugar a arquitectos, engenheiros e
condutores de obras pblicas que aliavam vrios anos de estudos sua experincia emprica.
6
Na criao e projeco de ambientes, quer para clientes particulares quer para instituies, vrios nomes se comearam
a impor na cidade do Porto. Sem formao especfica, tinham a seu favor o gosto inato e/ou burilado por viagens e
leituras e estavam, por vezes, ligados a marcenarias artsticas ou a outros mesteres do mbito da construo e decorao.
No universo portuense, destacaram-se Fiel Viterbo, lvaro Miranda, Barbosa da Fonseca e os proprietrios dos grandes
armazns e oficinas de mobilirio.
Os metais
A incluso das construes em espaos ajardinados suscitou novas oportunidades para exibir
a arte do trabalho dos metais, que teve exmios artesos no Porto e seus arredores7. Os portes e
gradeamentos cumpriram uma funo primordial de separao do espao pblico, mas o ferro forjado
ou fundido ultrapassou, em muito, a utilizao prtica, corporizando-se em guardas de janelas, grupos
escultricos, taas, prgulas, luminrias, galerias, marquises e adornos de telhados8. No interior,
manteve-se a vertente utilitria nas proteces de escadas, acompanhada pela preocupao esttica
nos remates de corrimo, consubstanciada em estatuetas ou luminria nas casas da alta burguesia9.
Um lugar destacado foi ocupado pela extica figurao naturalista do negro remetendo para a vida
em terras brasileiras de muitos encomendantes desse tempo.
Fig. 2 Suporte de corrimo em bronze na casa de Casimiro Jos da Silva (Avenida Rodrigues de Freitas).
7
So desta poca as inmeras devantures metlicas apostas s casas comerciais que atestam do vigor das indstrias do ferro
na zona do Porto: vd. BRANCO, Lus Aguiar Lojas do Porto. Porto: Edies Afrontamento, 2009, volume 1, p. 66. Dentro
do permetro da cidade e na zona de Arcozelo em Vila Nova de Gaia, existiam inmeras fundies que se dedicavam a
trabalhos em ferro e bronze, quer de cariz esttico quer utilitrio.
8
Sobre a importncia do ferro na mudana das fisionomias das cidades de Oitocentos, vd. CERVERA SARD, MARIA ROSA
El hierro en la arquitectura madrilea del siglo XIX. Alcal de Henares: Ed. La Librera, 2006, p. 142.
9
Na generalidade das casas da alta burguesia, elegeu-se o ferro para realizar as guardas de escada; nas casas da mdia
burguesia, adoptaram-se, preferencialmente, os balastres de madeira de modelo tradicional.
10
Devido importao de madeiras exticas do Brasil, os soalhos das zonas de recepo da maioria das casas apresenta
desenhos geomtricos realizados com o auxlio de espcies de diferentes tonalidades.
11
A variedade de modelos de puxadores de portas reflecte os gostos da poca. Numa mesma habitao, convivem tipos
decorativos e matrias-primas que no parecem obedecer a nenhum critrio especfico a no ser o da procura da beleza
e diversidade. No que se refere ao metal, comuns placas com repuxados em C e S e concheados convivem com originais
assimetrias e ondulaes Arte Nova e suportam desde simples maanetas estriadas a globos em vidro colorido ou em
porcelana; no que diz respeito madeira, o modelo mais vulgar o da superfcie lisa enfeitado com um pequeno centro
em osso, mas existem placas decoradas com embutidos em madreprola e madeiras exticas.
12
A residncia dos viscondes de S. Joo da Pesqueira insere-se no grupo das casas remodeladas, enquanto a de Boaventura
Rodrigues de Sousa foi levantada de raiz. Em comum, o facto de pertencerem a proprietrios viajados e com meios para
congregarem artistas de renome e talento, embora na primeira se possa adivinhar a interaco entre o encomendante e
o arquitecto eleito, o arquitecto Gerard van Kriken, e nada se saiba do processo construtivo da segunda. Muito distintas
entre si, j que na segunda casa a madeira se limita s portas e ao lambril, so, contudo, dois exemplos do eclectismo
da poca e da profuso ornamental, com registos que vo dos mais variados neos de matriz europeia ou oriental at s
linguagens surgidas nas Exposies Universais.
13
Em ambientes civis, o uso pontual da talha dourada s foi contrariado pelo coleccionador Fernando de Castro, que revestiu a
quase totalidade dos alados da sua residncia com elementos dispersos de provenincias variadas que foi justapondo at
obter um conjunto onde imperam o horror vacui e a originalidade.
O vidro
Em estreita relao com as portas, o vidro gravado, martelado ou colorido preencheu muitas
almofadas cumprindo duas funes: permitir a passagem da luz natural para o interior das habita-
es e conferir-lhe maior leveza e modernidade. Painis exibindo cenas galantes, pssaros e temas
vegetalistas assomaram nas zonas de recepo, enquanto os outros acabamentos se confinaram a
espaos de menor relevncia ou a bandeiras de portas. Imbudo de exotismo, um nico exemplar
na casa de Bernardo Pinto Abrunhosa (Avenida da Repblica, V. N. de Gaia) que ostenta pequenos
pagodes chineses, reservado, no entanto, a uma rea de servio. A grande inovao foi a conjugao
com o ferro para formar as exticas marquises que protegiam as entradas, assim como as estufas,
fruto do interesse crescente pela floricultura de que o Porto foi pioneiro, realizando exposies com
participao marcante de profissionais e amadores.
O gesso relevado
A ornamentao em estuque relevado afirmou-se como uma das caractersticas distintivas da deco-
rao interior nos ambientes domsticos deste perodo. Preenchendo tectos ou assomando em meros
apontamentos, contaminou construes de todo o gnero, desde as mais requintadas s mais simples.
Malevel, de aplicao rpida e assumindo facilmente qualquer linguagem decorativa, tornou-se o material
de eleio para dar um toque de actualidade e refinamento s habitaes burguesas concentrando-se,
principalmente, nas zonas de representao social14. A sua ductilidade permitiu uma resposta eficaz aos
14
A limitao da ornamentao estucada s zonas de receber foi apangio das casas da mdia burguesia, j que as casas da alta
burguesia a utilizaram em quase todas as dependncias. Semelhante nos motivos fitomrficos mais usuais tal como nos frisos
e rosetas, variava muito na riqueza dos programas decorativos e na exuberncia, diversidade e quantidade dos ornatos.
Fig. 6 Composio estucada com motivos referentes msica (Quinta da Boeira, V. N. de Gaia).
15
As vivncias alm-fronteiras de muitos proprietrios tornaram obrigatria a presena de motivos tropicais como a banana e
o anans mistura com as frutas correntes no pas e os despojos de caa e pesca.
16
As representaes de temas da mitologia, quer em pintura quer em gesso, foram apangio das casas da alta burguesia e, entre
elas, a mais apetecida revelou-se a figura de Mercrio ou os seus atributos, explicveis pela ligao da grande maioria dos
proprietrios a actividades comerciais desenvolvidas alm-fronteiras.
17
Esta residncia alberga, hoje, o Museu Militar que, nos trabalhos para a sua instalao, ps a nu alguns recursos decorativos at a
escondidos. Entre eles, esto alados parietais com pintura a stencil como o provam fotografias pertencentes coleco do Museu,
cedidas pela Dr Alexandra Anjos, a quem agradecemos.
Fig. 7 Pintura em trompe loeil no painel azulejar que forra a parede do jardim de Inverno
da casa do visconde de S. Joo da Pesqueira (Rua D. Manuel II).
18
No interior das habitaes urbanas, o azulejo formava, maioritariamente, faixas ou quadros; os lambris eram deixados a cargo
da madeira ou da pintura de fingimento. Na habitao de Fernando Matias Feuerheerd (Avenida de Montevideu) aparece,
contudo, nessa funo: todos os alados da sala de jantar e dos seus acessos esto recobertos por silhar constitudo por reservas,
divididas por colunas encimadas por vasos com flores, dispostas sobre banda de padronagem nos mesmos tons. O conjunto,
encerrando cenas da vida campestre, est identificado com a assinatura de Jorge Colao. Um outro exemplo merecedor de
destaque o forro integral das paredes do jardim de Inverno da casa do visconde de S. Joo da Pesqueira. Trata-se de uma
paisagem em trompe-loeil da autoria de Gerard van Kriken, o arquitecto que projectou as modificaes operadas no edifcio.
19
Dada a sua facilidade de manuteno, o azulejo foi aplicado em muitas zonas de servio, onde a escolha recaiu, primordial-
mente, em motivos de tapete; encontram-se, tambm, decoraes com figura avulsa e as mencionadas faixas naturalistas
de feio Arte Nova.
20
Dentro da mesma filosofia de vida que preconizava a higiene de vida e de corpo, meno para a presena de salas de
banho nas casas da alta burguesia. Forradas a azulejo ou mrmore, dispunham de artefactos sanitrios em cermica lisa
ou ornamentada com ramagens floridas, de origem britnica.
21
Dois mveis de espelho e floreira que adornavam a escadaria nobre desta casa mantm-se em casa da bisneta, que dispe
de uma fotografia que as exibe no seu ambiente original.
Fontes de inspirao
Perduraram poucos ambientes totalmente preservados e, ainda menos, os projectos decorativos
a eles subjacentes. So, tambm, inexistentes ou escassas as fontes documentais e iconogrficas
facturas, anotaes, desenhos ou fotografias que nos permitam conhecer a configurao original
dos aposentos da grande maioria destas habitaes. Quando existem, limitam-se s casas da alta
burguesia, mas como estas serviriam de modelo, ainda que longnquo, s casas mais simples, ajudam,
em conjunto com testemunhos de pessoas que vivenciaram a poca, a concluir sobre o gosto que
presidiu concepo dos ambientes burgueses.
22
So raros os casos de clientes particulares em que tal situao tenha, reconhecidamente, ocorrido. J foi mencionada
a parceria entre o visconde de S. Joo da Pesqueira e o arquitecto Gerard van Kriken e torna-se indispensvel citar a
colaborao do arquitecto Marques da Silva com Joaquim Ayres de Gouveia Allen na edificao da casa de S. Miguel.
23
Pelos testemunhos de pessoas que recordam a instalao de casas no incio da centria de Novecentos e pela consulta de
licenas de construo e/ou alteraes, conclui-se que esses trabalhos eram, principalmente, entregues a mestres-de-obras
e bastante menos a engenheiros e arquitectos. A nvel de concepo de interiores, tambm o recurso a decoradores era
escasso, sendo o aconselhamento feito por estofadores e marceneiros ou mesmo pintores ou estucadores. Esta matria
carece, contudo, de aprofundamento, dado que a escassez de documentao no permite concluses definitivas.
24
No esplio da Casa-Museu Teixeira Lopes, residncia do escultor homnimo, conservam-se vrios exemplares que teriam
sido utilizados por si e por seu irmo, o arquitecto Jos Teixeira Lopes, entre os quais destacamos THIBAULT, ALFRED
Motifs de dcorations: intrieure & extrieure: pierre, bois, marbre, carton pierre et staff. Paris-Auteuil: 73-75, Avenue de
Versailles. (Mdaille dor Exposition de 1889). As 145 estampas que o constituem percorrem os mais variados motivos
ornamentais e indicam as matrias-primas a empregar na sua concretizao. Na biblioteca do Museu Nacional de Soares
dos Reis, conserva-se, igualmente, um catlogo da firma de lvaro Miranda, que forneceu peas e elaborou projectos
integrais de decorao para muitos clientes de renome na cidade. No esplio de Domingos Enes Baganha, o ltimo dono
da Oficina de Escultura Decorativa que tinha pertencido a seu pai, Antnio Enes Baganha, existem vinte e nove obras
versando temas ligados arquitectura ou arte (a este respeito, vd. LEITE, Maria de So Jos Pinto Os estuques no sculo
XX no Porto. A oficina Baganha. Porto: CITAR, 2008, pp. 140-155). Da coleco de Maria Aline Meira, descendente da Oficina
de Avelino Ramos Meira, fazem, igualmente, parte obras em francs e alemo, entre as quais destacamos PRIGNOT,
Eugne Larchitecture. La dcoration et lameublement. Paris: Ch. Claesen diteur [s.d.].
25
Destinado a estes alunos surgiu um conjunto de manuais que, de modo sucinto, transmitia as principais caractersticas
de cada estilo, alm de compilar tcnicas para cada arte. Nos primeiros, salientamos ALCNTARA, MRIO Elementos
decorativos dos estilos egpcio, grego, romano, romnico, gtico, renascena. Lisboa: Livraria S da Costa, [s.d.] e, nos segundos,
os manuais da Biblioteca de Instruo Profissional, fundada por Toms Bordallo Pinheiro.
26
Os mltiplos manuais de economia domstica, destinados ao pblico feminino e editados nesses anos, congregavam noes
de comportamento e regras de conduta, mas tambm de governo e arranjo do lar e de sociabilizao. Salientamos A arte
de viver em sociedade de Maria Amlia Vaz de Carvalho (1 ed. em 1897), entre as inmeras tradues estrangeiras. A este
respeito, vd. VAQUINHAS, Irene; GUIMARES, Maria Alice Pinto Economia domstica e governo do lar. Os saberes domsticos
e as funes da dona de casa. In MATTOSO, Jos, dir. Op. cit., pp.194-220. No mundo de lngua inglesa, e dedicando-se ao
cuidado e arranjo da casa, teve grande sucesso a obra da escritora americana DE WOLFE, Elsie The house in good taste. New
York: The Century Co., 1913, que conheceu sucessivas reedies.
Onde se comprava?
O recurso importao de peas decorativas, materiais de construo ou mesmo de artesos
especializados30 era apangio de um pequeno escol de clientela viajada e possidente que pretendia
criar ambientes que se distinguissem dos demais, mas no se inclua no horizonte da maioria das
pessoas que mandavam erigir uma habitao. Esta faixa populacional recorria a casas comerciais que
expunham artigos de importao lado a lado com o que de melhor se fabricava a nvel nacional. Os
almanaques fizeram-se eco desta oferta, de incio com simples listas de moradas, mas, rapidamente,
os comerciantes entenderam o valor da imagem e comearam a fazer acompanhar a sua publicidade
de desenhos e encmios aos produtos publicitados31. Algumas casas distinguiram-se pela qualidade
e diversidade dos artigos expostos e tinham uma clientela requintada e fiel. Entre elas, citamos
os Grandes Armazns Nascimento32, a Casa Cypriano & C Bernardino dAlmeida & Silva, Lda. 33, o
27
Nas pginas das revistas A Ilustrao Portuguesa (publicada entre 1903-1924) e A Construo Moderna (publicada entre
1900-1919) apresentavam-se tipologias arquitectnicas e ornamentais e peas de mobilirio e luminria, dava-se a conhecer
a produo de artistas e artfices ligados arquitectura e decorao e publicitavam-se inovaes tcnicas no domnio da
construo. No mundo de lngua inglesa, teve grande sucesso a obra da escritora americana DE WOLFE, Elsie The house
in good taste. New York: The Century Co., 1913, que conheceu sucessivas reedies.
28
Salientamos os catlogos britnicos Ilustrations of Furniture da firma Maple & Co e Guide to House Furnishing de Oetzmann
& Co, assim como o alemo Beleuchtungs-Gegenstnde zu elektr. Licht. In Bronze und Schmiedeeisen. [S.l.]: [s.n.], 1902,
pertencentes coleco de Gonalo de Vasconcelos e Sousa, tal como catlogos oferecendo decoraes pr-fabricadas
pertencentes biblioteca da Oficina Baganha: vd. LEITE, Maria de So Jos Pinto Ob cit., pp. 144-145.
29
Do esplio do arquitecto Marques da Silva presente na Fundao Instituto com o mesmo nome, fazem parte imagens de
mosaicos e notas sobre peas de mobilirio que importava para a sua clientela: vd. pasta 1837, onde se guardam estampas
coloridas da Socit des Produits Cramiques et Rfractaires 1907?, assim como anotaes de encomendas para a casa da
famlia do conde de Lea.
30
Taas e grupos escultricos da renomada fundio de Val dOsne adornam jardins portuenses como os das casas de Joo
Henrique Andresen (Rua do Campo Alegre) e de Antnio Silva Monteiro (Rua da Restaurao). Alis, o ltimo fez deslocar
pintores franceses para a decorao de sua casa, como se pode ver na sala dourada atravs da assinatura aposta a um
alado: C. Lefebvre, 1873. J na centria de Novecentos, Joaquim Allen recorreu a operrios ingleses para a construo
dos foges de sala que pontuam as dependncias da sua casa (Rua Antnio Cardoso).
31
Dentro dos exemplares consultados, o primeiro caso a conjugar desenhos com texto encontra-se em. J. J. Vieira da Silva
Almanaque do Porto e seu distrito para 1896. Porto: Livraria e Tipografia Arquivo Jurdico de J. J. Vieira da Silva, Editor,
1896.
32
Sito no gaveto da Rua de Santa Catarina com a Rua de Passos Manuel, o edifcio que albergou Os Grandes Armazns
Nascimento, inaugurado em 1927, saiu da pena do arquitecto Marques da Silva e a sua monumentalidade era um reflexo
perfeito da importncia da firma que albergava.
33
A primeira casa de mobilirio e decorao sob o nome Cipriano abriu portas durante o sculo XIX nos n.os 39 a 44 da Praa
Carlos Alberto, onde conjugava loja e oficina, tendo sofrido grandes obras de remodelao em 1930 segundo projecto
Concluso
O progresso das ideologias individualistas, o valor crescente concedido vida domstica e a
privatizao do lazer provocaram mudanas substanciais na forma de projectar as casas e no modo
como a vida privada nelas se passou a desenrolar36. Tornando-se o centro de um mundo familiar cada
vez mais restrito, a casa fechou-se sobre si mesma e as transformaes a efectuadas reflectiram
as novas prticas e comportamentos: aumentou-se o nmero das divises com uma consequente
especializao dos espaos, investiu-se em mobilirio e ornatos, convidou-se a natureza a entrar
atravs das bow-windows ou de simples floreiras e instaurou-se uma preocupao higienista com a
luz e o arejamento das divises, tudo manifestaes de um modo distinto de viver e de estabelecer
relaes com o mundo.
Os revivalismos historicistas de carcter eclctico publicitados nos lbuns e catlogos europeus
mesclados com as influncias exticas de origem oriental ou rabe estiveram no centro das decora-
es da poca, cedendo difcil e pontualmente s linguagens modernistas surgidas nas Exposies
Universais de 1900 e 1925. O gosto pela variedade e, qui, a dificuldade de escolha entre as mltiplas
propostas levaram a que o estilo das casas burguesas se traduzisse numa convivncia mais ou menos
harmoniosa entre elementos e motivos diversos, reinterpretados luz das novas tecnologias e buscando
um equilbrio nem sempre fcil entre a qualidade esttica e a funcionalidade.
Esta pluralidade originou uma verdadeira exploso ornamental37, que constituiu o cerne dos
ambientes decorativos da segunda metade da centria de Oitocentos e que, na linha do tradicional
conservadorismo nacional, se alongou centria de Novecentos adentro.
do arquitecto Leandro de Moraes. Outros espaos comerciais importantes foram a Iluminadora, com amplo sortido de
candeeiros e sita Rua de S da Bandeira, e o Depsito de Papis Pintados da Foz, na Rua de 31 de Janeiro, que, tal como o
nome indica, expunha a produo da Fbrica de Carreiros, fundada em 1887, e que foi renovada em 1906, sob orientao
do mestre-de-obras, Joo Gomes da S. Guerra. Sobre os estabelecimentos do Porto, vd. BRANCO, Lus Aguiar Op. cit.,
volumes 1 e 2.
34
Barbosa da Fonseca manteve casa aberta na Rua Ferreira Borges, conservando a fbrica na vizinha Rua de O Comrcio do
Porto, onde funcionava o atelier de carpintaria de seu pai.
35
lvaro Miranda, que morava na Granja, concebeu um chalet para expor peas de mobilirio e decoraes completas. No
seu catlogo (Museu Nacional de Soares dos Reis), anunciava um variado sortido de estofos, cortinas, tapetes e outros,
das melhores casas de Londres, para alm de autnticas antiguidades e disponibilidade para procurar qualquer objecto de
bric brac. Esteve, ainda, ligado indstria de tapetes, gnero Arraiolos. A este respeito, vd. CASTRO, Antnio Sande
e A Granja de todos os tempos. Vila Nova de Gaia: Ed. da Cmara Municipal, 1973, p. 515 e, sobre a sua actividade, vd.
ainda CALEM, Vera O Salo Silva Porto e a vida cultural do Porto no segundo quartel do sculo XX. In PINTO, Jorge Ricardo,
coord. O 285 da Rua de Cedofeita. Porto: Ed. Afrontamento, 2014, pp. 150-285.
36
Sobre esta matria, vd. VAQUINHAS, Irene Histria da vida privada em Portugal. A poca contempornea. Introduo.
In MATTOSO, Jos, dir. Op. cit., pp. 6-20; vd. ainda CASCO, Rui O quadro material: entre paredes. In MATTOSO, Jos,
dir. Op. cit., pp. 22-30.
37
Expresso utilizada por BRAGA, Pedro Bebiano A exploso ornamental nos ambientes decorativos do perodo romntico:
o mobilirio e o interior domstico. In SOUSA, Gonalo de Vasconcelos e, dir. Matrizes da investigao em Artes Decorativas
V. Porto: UCE-Porto e CITAR, 2013, p. 175.
Introduo
O que se segue uma primeira abordagem histrica e artstica ao que podemos designar como o
conjunto dos edifcios portuenses da Fbrica de Cermica e de Fundio das Devesas, visto a fbrica
e demais prdios anexos se situarem em Vila Nova de Gaia, subsistindo ainda as runas da sucursal
fabril na Pampilhosa do Boto.
Apesar de vulgarmente designado como o antigo depsito da Fbrica das Devesas, o conjunto
edificado que nos propomos abordar nesta comunicao , na verdade, mais complexo. Corresponde
a trs edifcios: um edifcio maior, concebido para escritrio, depsito de produtos, loja, salo de
exposio e mostrurio, que neste trabalho mencionaremos simplesmente como o depsito; outro
edifcio, que foi oficina de mrmores, mas que possua tambm valncia de habitao no piso superior;
e ainda uma casa que pertenceu a Feliciano Rodrigues da Rocha, um dos trs scios da Fbrica das
Devesas. Esta casa situa-se na Rua Jos Falco, imediatamente a sul do edifcio do depsito, ao passo
que a oficina de mrmores se situa na Rua da Conceio, havendo um ptio comum a este edifcio e
ao do depsito, funcionando como rtula entre ambos (fig. 1).
Alm da singularidade e do inegvel impacto esttico das fachadas e de partes dos interiores
sobretudo no edifcio do depsito , assume grande importncia o todo do conjunto edificado que
tratamos neste trabalho.
De facto, no conhecido em Portugal qualquer outro edifcio subsistente edificado de raiz para
oficina de mrmores, sobretudo com decorao cermica na fachada a evocar parcialmente a referida
funo. Esta fachada singular em termos de risco arquitectnico, ostentando um relevo alegrico,
1
Este trabalho tem como base uma ficha de inventrio que elabormos no mbito do projecto Repertrio Fotogrfico
e Documental da Cermica Arquitectnica Portuguesa (2007-2011), do Instituto de Promocin Cermica (Castelln,
Espanha), projecto esse que tambm coordenmos. A elaborao da referida ficha contou ento com a colaborao de
Rosrio Salema de Carvalho, da Rede Temtica em Estudos de Azulejaria e Cermica Joo Miguel dos Santos Simes
(Instituto de Histria da Arte Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa) e ainda a reviso tcnica de Maria Isabel
Moura Ferreira, do Atelier de Conservao e Restauro de Azulejos da Cmara Municipal de Ovar. Todas as fotos actuais
so do autor, que Doutor em Histria da Arte pela Universidade do Porto e Investigador Principal da linha Heritage,
Culture and Tourism do CEPESE. Agradecimentos: Ana Margarida Portela Domingues, Arquivo Histrico Municipal do
Porto, Casa-Museu Teixeira Lopes, Catarina Sousa Couto Soares, Centro Portugus de Fotografia, Emlia Braga (neta de
Feliciano Rodrigues da Rocha), Graciano Barbosa e Liliana Matilde Macedo.
diversos tipos de pedra mrmore, ornamentos cermicos e painis de azulejos figurativos de grande
qualidade, propositadamente para aqui concebidos, tal como o foram as bandeiras e guardas em
ferro fundido. O edifcio ter sido delineado em 1899 e sabemos que j funcionava como oficina por
volta de 19042.
Tambm no conhecido em Portugal qualquer outro edifcio subsistente, em enquadramento
urbano, edificado de raiz para salo de exposies e depsito de artefactos cermicos, sobretudo
tratando-se do edifcio de escritrio e venda daquela que foi a mais clebre e marcante fbrica
portuguesa de artefactos cermicos para ornamentao de edifcios, qual estiveram mais ou menos
ligados praticamente todos os artistas das primeiras duas geraes dos Teixeira Lopes e de seus
parentes prximos, assim como vrios outros artistas da chamada escola de escultura de Gaia3.
2
QUEIROZ, Jos Francisco Ferreira O ferro na arte funerria do Porto oitocentista. O Cemitrio da Irmandade de Nossa
Senhora da Lapa, 1833-1900. [S.l.: s.n.], 1997 (3 volumes policopiados). Dissertao de Mestrado em Histria da Arte
apresentada Faculdade de Letras do Porto, vol. 1, p. 67.
3
PORTELA, Ana Margarida; QUEIROZ, Francisco A Fbrica das Devesas e o Patrimnio Industrial Cermico de Vila Nova
de Gaia. Famalico: 2008 (separata de Arqueologia Industrial, 4 Srie, vol. IV, n 1-2).
4
VASCONCELOS, Joaquim de A cermica portuguesa e sua aplicao decorativa, 1907, pp. 3-37. In PROSTES, Pedro Indstria
de cermica. 2 ed. Lisboa: Biblioteca de Instruo Profissional, Livraria Aillaud e Bertrand, pp. 39-247.
o vrtice de contorno castanho e azul, inscrevendo, sobre fundo creme, floro recortado verde com
ncleo circular azul e castanho. O outro elemento de ligao dispe floro verde recortado, de ncleo
castanho, a partir do qual se projectam ramagens azuis que contornam o centro. Estes azulejos, tpicos
Em todos os vos do andar nobre, os umbrais so pontuados por invulgares meias-colunas marmoreadas
em tons de negro, castanho, branco e laranja, com capitis vidrados a negro e de inspirao mourisca.
O vo axial abre para uma notvel sacada, cujos balastres, e demais peas de guarnio da guarda,
so em faiana, profundamente relevados e reforando a inspirao mourisca, alternando motivos
geomtricos com fitomrficos estilizados, predominando os tons de branco, laranja, castanho e, em
zonas mais reentrantes, tambm o verde-escuro (fig. 4).
Na platibanda, podemos ver azulejos relevados, igualmente de inspirao mourisca, em tons de
castanho, rosa, preto e amarelo. Os arabescos sobre a platibanda talvez sejam em terracota, tal como
o so os trs remates da platibanda, tambm de inspirao mourisca, reforando o carcter nico e
extico desta fachada. Contudo, em vez destes remates, o projecto inicial previa trs figuras alegricas
(fig. 5). Supomos que fossem: o Comrcio, sobre o cunhal norte; a Indstria, sobre o cunhal sul; e o
Progresso, no eixo. A fotografia desta fachada que foi includa no catlogo fabril de 1910 mostra duas
esttuas alegricas, sim, mas expostas na sacada, presumivelmente sobre pedestais em meia coluna
(de algum dos vrios modelos produzidos pela fbrica), ladeando uma outra pea, no que se pode
considerar um transbordar para o exterior da funo de mostrurio do salo nobre.
Anteriormente, o depsito geral e escritrio situavam-se na Rua do Laranjal, n 169-175, no mesmo
edifcio onde se encontrava a oficina de mrmores, fundada algumas dcadas antes por Antnio
Almeida da Costa. No temos imagens deste edifcio anterior, at porque a rua j h muitas dcadas
que no existe. Porm, de supor que fosse um prdio em banda, sem grandes condies para assumir
a funo de depsito, salo de exposies e escritrio daquela que era, ento, a maior fbrica do pas
na rea da cermica decorativa para aplicao arquitectnica. Alis, em 1898, a Fbrica das Devesas
tinha um agente na Foz do Douro, Manuel de Oliveira & Ca., na Rua Nossa Senhora da Luz, n 124-126,
com armazm de materiais de construo, mas onde tambm se vendiam vernizes, brochas e pincis,
vidros e outros materiais no fornecidos pela empresa cermica liderada por Antnio Almeida da Costa.
Atendendo ao facto do projecto para o novo depsito e oficina de mrmores ter sido aprovado em
1899, supomos que a ornamentao cermica foi concebida por volta de 1900, provavelmente por
Jos Joaquim Teixeira Lopes, ou por algum artista sob sua orientao, no sendo de excluir a hiptese
de Antnio Almeida da Costa ter determinado a opo pelo gosto mourisco neste edifcio, atendendo
ao facto de, sensivelmente na mesma poca, ter mandado fazer um palacete para si, em Vila Nova
de Gaia, tambm no mesmo gosto5. Quanto a Feliciano Rodrigues da Rocha, a tradio oral familiar
atribui-lhe a responsabilidade pelo projecto do edifcio do depsito. Porm, no temos qualquer
5
QUEIROZ, Francisco; SOARES, Catarina Sousa Couto O palacete de Antnio Almeida da Costa. In Actas do IV Congresso
Internacional A Casa Nobre: Um Patrimnio para o Futuro (Arcos de Valdevez, 27-29 de Novembro de 2014), no prelo.
6
CORDEIRO, Jos Manuel Lopes As fbricas portuenses e a produo de azulejos de fachada (sculos XIX-XX). In Azulejos
no Porto, Catlogo da exposio temporria realizada no Mercado Ferreira Borges, entre 10 de Outubro de 1996 e 5 de
Janeiro de 1997. Organizao da Diviso de Patrimnio Cultural. Porto: Edies ASA, 1996.
7
Segundo Regina Anacleto, o neomourisco em Portugal assume caractersticas prprias, ficando a meio caminho entre
a feio extica que detinha na Europa e o nacionalismo Espanhol, at porque, na arquitectura nacional, existem
elementos decorativos importados da arte muulmana. A autora refere que a reinterpretao arquitectnica da esttica
oriental comeou a sentir-se pela primeira vez, em Portugal, no Palcio da Pena, volta de 1840 (ANACLETO, 1994: 70-72).
8
QUEIROZ, Francisco Os Cemitrios do Porto e a arte funerria oitocentista em Portugal. Consolidao da vivncia romntica
na perpetuao da memria. [S.l.: s.n.], 2002. Tese de Doutoramento em Histria da Arte apresentada Faculdade de
Letras da Universidade do Porto. 2 volumes em 3 tomos policopiados.
9
NAVASCUS PALACIO, Pedro Fundamentos da Arquitectura neomedieval. In AA. VV. O neomanuelino ou a reinveno
da arquitectura dos Descobrimentos. Lisboa: I.P.P.A.R., Comisso Nacional para as Comemoraes dos Descobrimentos
Portugueses, 1994, pp. 29, 40-41.
10
QUEIROZ, Jos Cermica portuguesa e outros estudos [1907]. Organizao, apresentao, notas e adenda iconogrfica
de Jos Manuel Garcia e Orlando da Rocha Pinto. 3 ed. Lisboa: Presena, 1987.
11
VASCONCELOS, Joaquim de A cermica portuguesa e sua aplicao decorativa, 1907, pp. 3-37. In PROSTES, Pedro Indstria
de cermica. 2 ed. Lisboa: Biblioteca de Instruo Profissional, Livraria Aillaud e Bertrand, pp. 39-247.
12
IDEM, Ibidem.
13
IDEM, Ibidem.
14
IDEM, Ibidem.
existncia de uma garagem, mas no sabemos se foi empreendida ainda quando o edifcio pertencia
Fbrica das Devesas. Seguramente que foi uma transformao posterior a 1910.
O desenho para a fachada da oficina submetido aprovao da Cmara do Porto no inclui estes
painis, mas o mesmo tambm sucede com o desenho para a fachada do depsito. Era habitual, na
poca, a omisso de detalhes decorativos (fig. 8). Contudo, h detalhes deste desenho para a fachada
da oficina que no foram seguidos. Por exemplo: o frontispcio com o relevo alegrico no consta do
projecto tal como foi construdo.
No registo superior da fachada da oficina de mrmores, os vos laterais apresentam, sob o peitoril,
simulao de balaustrada, com os interstcios pintados de marmoreados, de forma a sugerir profundi-
dade e destacamento dos balastres. Em redor dos vos, de remate semicircular, dispem-se volutas e
enrolamentos de folhagem, que terminam, superiormente, em motivos e centros diferenciados. Assim,
no pano da esquerda, sobre o arco da primeira janela vemos volutas e espagnolette de longos cabelos
que se prolongam lateralmente, ao passo que sobre a segunda janela existe um busto de perfil, com
coroa de louros, rodeado por livros, uma palma e cartelas a complementar as volutas. No pano da
direita, simtrico em relao ao anterior, sobre o arco da primeira janela vemos outro busto de perfil,
por entre livros, pincis e uma paleta. Trata-se, certamente, de uma evocao de Minerva, deusa da
Sabedoria e das Artes, que assim faz correspondncia com a figura anteriormente mencionada, que
parece ser uma alegoria Literatura. Neste caso, as volutas laterais foram substitudas por animais
Todos estes painis de azulejos, com temas exticos e apropriados ao gosto arquitectnico do
edifcio, so raros no contexto portugus e internacional, atendendo poca em que foram pintados
e sua funo. Claramente reforam o efeito de deslumbre que se pretendia obter junto de todos os
que visitavam o salo.
Mais raros ainda so os ltimos painis figurativos do salo nobre do depsito, pintados a mangans.
Representam duas perspectivas de um mesmo edifcio, de cariz neo-rabe, precisamente o palacete
do principal proprietrio da Fbrica de Cermica das Devesas: Antnio Almeida da Costa15.
Quer no salo grande do andar nobre, quer nas duas salas que ladeiam a entrada principal, no piso
trreo, observa-se ainda uma cercadura relevada em azulejo, de bordos a azul e creme, desenvolvendo
continuamente linhas perladas, a laranja e castanho, enroladas e entrelaadas, terminando em
folhagem castanha e unindo-se seguinte atravs de anel azul, resultando numa reserva com conta
azul ao centro. Sobre a cercadura, foi aplicado um friso tambm relevado, de bordos laranja e azul,
desenvolvendo arcos polilobados abertos em fundo rosa, intercalando com conta azul, e preenchidos
por motivo vegetalista castanho. Estas cercaduras servem de guarnio aos vos e, no caso do salo
nobre, tambm guarnecem o nico armrio-vitrina de grandes dimenses que ainda resta, embora
parcialmente, pois os remates em arco j foram substitudos. Tero existido quatro armrios-vitrina
a toda a altura do salo tambm de gosto neo-rabe e, em conjunto, certamente que concorriam
bastante para o aspecto deslumbrante deste espao. No armrio-vitrina subsistente, situado na parede
norte, os vrios tipos de azulejos relevados tero sido pintados com monocromia, quando o edifcio
deixou de pertencer Fbrica das Devesas, de modo a que os funcionrios no se distrassem com
15
QUEIROZ, Francisco; SOARES, Catarina Sousa Couto O palacete de Antnio Almeida da Costa. In Actas do IV Congresso
Internacional A Casa Nobre: Um Patrimnio para o Futuro (Arcos de Valdevez, 27-29 de Novembro de 2014), no prelo.
Fig. 10 Detalhe de um projecto aprovado em Setembro de 1899, com o corte dos edifcios
do depsito e da oficina de mrmores (A.H.M.P.).
16
DOMINGUES, Ana Margarida Portela Antnio Almeida da Costa e a Fbrica de Cermica das Devesas. Antecedentes,
fundao e maturao de um complexo de artes industriais (1858-1888). [S.l.: s.n.], 2003, (2 vols. policopiados). Dissertao
de Mestrado em Histria da Arte em Portugal apresentada Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
O ptio
No ptio que articula os edifcios da oficina e do depsito, nos respectivos telhados e no interior da
oficina (ou seja, no piso trreo do edifcio da oficina), pontua tambm a ornamentao cermica. H
Concluso
Nesta primeira abordagem ao conjunto dos edifcios portuenses da Fbrica das Devesas, incidimos
na sua ornamentao cermica. Porm, vrios aspectos decorativos requerem ainda estudo mais
17
PORTELA, Ana Margarida; QUEIROZ, Francisco A Fbrica das Devesas e o Patrimnio Industrial Cermico de Vila Nova
de Gaia. Famalico: 2008 (separata de Arqueologia Industrial, 4 Srie, vol. IV, n 1-2).
18
Depois destas obras, esteve aqui sediada a empresa txtil Fortiustex, S.A., e ainda um restaurante e um bar, no piso inferior
do depsito, os quais encerraram, tendo reaberto o espao do restaurante em 2014. No momento em que escrevemos
estas linhas, prev-se a abertura ao pblico de um bar, no andar nobre e guas-furtadas do edifcio do depsito. Em parte
do edifcio da oficina de mrmores, abriu recentemente um restaurante.
Fontes e bibliografia
A.D.P., Notariais, PO5, 7 srie, L 231, 1906, f. 29v.-34v.
A.H.M.P., Plantas de casas, 1899, licena de obra n 233/1899, Cota: D-CMP/7(158), f. 187-192.
A.H.M.P., Processos de obras, 1928-1929, licena n 470/1928, Cota: D-CMP/9(537), f. 411-414.
A.H.M.P., Registo de testamentos da Administrao do Bairro Ocidental, Registo do testamento com
que faleceu Feliciano Rodrigues da Rocha, 1930, Cota: A-PUB/5446, f. 60-66.
ANACLETO, Regina Arquitecturas medievais. Memria e retorno. In AA. VV. O neomanuelino
ou a reinveno da arquitectura dos Descobrimentos. Lisboa: I.P.P.A.R., Comisso Nacional para as
Comemoraes dos Descobrimentos Portugueses, 1994.
Catalogo da Fbrica Cermica e de Fundio das Devezas. Antnio Almeida da Costa & Ca., Vila Nova
de Gaya, Portugal. Vila Nova de Gaia: Real Typ. Lith. Lusitana, 1910.
Fbrica Cermica e de Fundio das Devezas, com succursal no Entroncamento da Pampilhosa, de Antnio
Almeida da Costa & Ca. Catlogo de artefactos de barro, fosco e vidrado, material para construces,
gesso, cal, areia e cimento, especialidade em mosaico hydraulico, fundio em ferro e bronze e obras
de ferro forjado. Porto: Typographia de Antnio Jos da Silva Teixeira, s.d. [c. 1905-1908].
Companhia Cermica das Devezas. Relatrio, balano e contas da administrao e parecer do Conselho
Fiscal relativos ao exerccio findo em 30 de Junho de 1923. Porto: Tipografia Barros & Costa.
CORDEIRO, Jos Manuel Lopes As fbricas portuenses e a produo de azulejos de fachada (sculos
XIX-XX). In Azulejos no Porto, Catlogo da exposio temporria realizada no Mercado Ferreira
Borges, entre 10 de Outubro de 1996 e 5 de Janeiro de 1997. Organizao da Diviso de Patrimnio
Cultural. Porto: Edies ASA, 1996.
DOMINGUES, Ana Margarida Portela Antnio Almeida da Costa e a Fbrica de Cermica das Devesas.
Antecedentes, fundao e maturao de um complexo de artes industriais (1858-1888). [S.l.: s.n.],
19
O edifcio do depsito, reconhecido como de interesse municipal, teve processo de classificao aberto no extinto IPPAR,
posterior IGESPAR. Em 2011, foi arquivado o mencionado processo, na sequncia de um parecer tcnico que o considerava
pouco relevante no panorama da arquitectura portuguesa. Tivemos, na altura, oportunidade de contestar o referido parecer,
juntando trs pareceres favorveis reabertura do processo, um do director do Instituto de Promocin Cermica (Jos Lus
Porcar), outro do responsvel pela Rede Temtica em Estudos de Azulejaria e Cermica Joo Miguel dos Santos Simes
(Vtor Serro), e outro do representante em Portugal do TICCIH (Jos Manuel Lopes Cordeiro). O processo seria reaberto
em 2012 (Dirio da Repblica, 2 Srie, n 143, 25 de Julho de 2012, p. 26387, Anncio n 13300/2012). Infelizmente,
a reabertura do processo incluiu tambm o edifcio da oficina de mrmores, mas no a casa de Feliciano Rodrigues da
Rocha.
Introduo
Neste trabalho, abordamos sucintamente os edifcios subsistentes relacionados com a Fbrica de
Santo Antnio do Vale da Piedade, sob o ponto de vista dos seus aspectos decorativos, e como estes,
de forma mais ou menos explcita, constituem um autntico mostrurio, especialmente de azulejos
e de cales em faiana3.
Os dois edifcios subsistentes de que nos ocupamos situam-se, o primeiro, na Rua Viterbo de
Campos, em Vila Nova de Gaia, doravante designado por edifcio da fbrica ainda que tenha servido
de habitao e os edifcios fabris propriamente ditos j no existam; e o segundo no Porto, na Rua
de Miragaia, n 12, com traseiras para a Rua Armnia, n 11, doravante designado por loja, ainda que
no tenha sido o nico espao que a Fbrica de Santo Antnio do Vale da Piedade teve para vender
os seus produtos, j que, durante anos, os vendeu na prpria fbrica e, efemeramente, num depsito
geral de vrias fbricas do Porto e Gaia4.
1
Historiador de arte.
2
Ceramista, com experincia no restauro de azulejos e telhes em faiana.
3
De modo a respeitar as normas enviadas aos autores, o presente texto uma verso muito resumida do texto original,
que contamos publicar integralmente numa outra oportunidade, com eventuais aditamentos. Todas as fotos so de
Francisco Queiroz e datam de 2012 (as do edifcio subsistente da fbrica) ou de 2014 (as do edifcio da loja), excepto a
foto do interior do edifcio da loja, que de Jos Teixeira.
4
DOMINGUES, Ana Margarida Portela A ornamentao cermica na arquitectura do Romantismo em Portugal. [S.l.: s.n.], 2009,
vol. 1, pp. 168-180. Tese de Doutoramento em Histria da Arte apresentada Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
5
IDEM, Ibidem, vol. 1, pp. 168-180.
6
IDEM, Ibidem, vol. 1, pp. 437-448.
7
LEO, Manuel A cermica em Vila Nova de Gaia. Vila Nova de Gaia: Fundao Manuel Leo, 1999, p. 471.
outras cores, como o laranja, o amarelo, o vinoso, e mesmo o verde, sempre sobre um vidrado branco
opaco estanfero.
possvel que os padres predominantes, no revestimento do edifcio, sejam de produo da
dcada de 1870 (ou at da dcada anterior), e que os padres colocados de forma mais avulsa, em
lacunas, correspondam a azulejos de produo posterior, mas ainda oitocentista (alguns dos quais,
alis, de concepo to antiga como a dos padres predominantes).
Quer nos azulejos do alado principal, quer nos do alado posterior, os padres so quase todos
neoclssicos, privilegiando os motivos florais e alguns motivos geomtricos. Estampilhados e mais ou
menos retocados mo livre representam bem o estilo de Santo Antnio do Vale da Piedade, embora
no esgotem minimamente a variedade de produo azulejar que esta fbrica teve. Basta lembrar,
por exemplo, que no constam aqui padres de azulejos relevados.
So trs os padres predominantes no alado posterior, arrumados em painis devidamente
separados por cercaduras, correspondendo ao alinhamento dos vos e dos pisos. Aqui, nota-se uma
certa preocupao com a arrumao dos padres, ainda que o seu reduzido nmero no sugira uma
funo explcita de mostrurio. Num dos padres, nota-se o tom de laranja que foi bem tpico da
produo desta fbrica.
Nas guas-furtadas e, sobretudo, no apndice da fachada posterior e respectivo canto, subsiste
maior variedade de padres, embora dispostos de forma pouco lgica, parecendo tratar-se de restos,
preenchendo lacunas. Ainda assim, pela variedade de padres, pelo carcter documental dos mesmos,
pela histria do edifcio e pelo seu significado, estas aplicaes azulejadas so um dos mais importantes
conjuntos do gnero em Portugal.
Acresce ainda o facto dos alados laterais, norte e sul, apresentarem um revestimento com telhas
vidradas, de canudo, achatadas, em cermica com vidrado plumbfero, fixadas alvenaria com
parafusos. Artefactos cermicos no decorados e destinados sobretudo a impermeabilizar, ainda
assim, tambm publicitavam a produo da fbrica.
No mesmo edifcio, refira-se ainda os encanamentos de grs para guas pluviais, junto ao cunhal
sudeste, em toda a altura da fachada. No sendo elementos decorativos, documentam um tipo de
produo muito comum no ltimo tero do sculo XIX, na qual a Fbrica de Santo Antnio do Vale
da Piedade obteve algum reconhecimento.
Mas os artefactos mais interessantes neste edifcio subsistente do complexo fabril cermico
encontram-se nos beirais dos alados e das guas-furtadas: os cales, ou telhes decorativos, em
faiana, estampilhados em tons de azul sobre fundo branco opaco, com retoques de pintura mo
livre. Observam-se vrios modelos de cales, ainda que sem uma preocupao clara de os distribuir
uniformemente. Nas extremidades, vrios destes modelos so relevados e um deles, infelizmente j
no subsistente, era mesmo todo em relevo e com pintura policroma. Num dos cunhais, sob os cales,
observa-se ainda uma invulgar bacia em faiana, estampilhada a azul, para recolha de guas pluviais.
No interior do edifcio, vrios padres de azulejos podem ser observados na cozinha e ainda no
recebimento. Contudo, o modo como foram aqui aplicados no indicia a intencionalidade de constituir
um mostrurio formal, visto que predomina um padro policromo, e os restantes azulejos, de outros
padres, parecem sobretudo preencher lacunas.
O mostrurio da loja
Essa intencionalidade existe, sim, no edifcio da loja da Fbrica de Santo Antnio do Vale da Piedade,
embora no em todos os seus revestimentos azulejares. Esta loja, ou depsito, situava-se na antiga
Praia de Miragaia e perto da desaparecida Porta Nobre. No ter sido o nico edifcio em Miragaia
no qual se venderam os produtos da fbrica. De qualquer modo, possvel que os azulejos desta loja
sejam de produo coetnea, ou at ligeiramente mais antiga que os do edifcio subsistente da fbrica
que acabmos de analisar sumariamente.
A fachada do edifcio da loja, em banda e sob um dos arcos da antiga praia de Miragaia, de
dimenses reduzidas. Ainda assim, apresenta um padro estampilhado a azul sobre fundo branco.
O alado que se apoia no arco imediatamente em frente chegou a possuir cales decorados no beiral,
os quais foram retirados no final do sculo XX.
No piso trreo, o edifcio da loja est hoje dividido entre um espao comercial e o recebimento
que d acesso ao vo de escadas, permitindo subir at aos pisos superiores. precisamente neste
recebimento, num estreito corredor, que se conserva boa parte de um mostrurio de padres de
azulejaria, alguns dos quais policromos. Trata-se do mais formal de todos os mostrurios, pois os
vrios painis, todos mostrando exemplares de um determinado padro, encontram-se divididos por
faixas de azulejos brancos e lisos (fig. 6).
Fig. 6 Mostrurio no acesso aos pisos superiores, no interior do edifcio da antiga loja da fbrica.
As traseiras deste edifcio da loja confrontam com a escura Rua Armnia. Neste alado de traseiras,
na pouca superfcie que sobra entre os vos, encontramos tambm um revestimento que mistura
vrios padres, sem uma ordem especfica, sendo todos eles estampilhados e pintados a azul sobre
fundo branco.
Concluso
Com a unidade produtiva situada em Gaia e a loja dos seus produtos localizada no Porto, o Rio Douro
acabou por ser a principal estrada para escoamento de produtos da Fbrica de Santo Antnio do Vale
da Piedade, sobretudo em direco ao outro lado do Atlntico, tendo sido grande a sua influncia no
Brasil. Porm, o seu impacto em Portugal foi tambm muito forte. No seu perodo ureo de meados
de Oitocentos, as peas para ornamentao de edifcios e jardins, desde azulejos a vasos e esttuas,
constituram a produo mais emblemtica desta fbrica que, naturalmente, usou os seus edifcios
Fontes e bibliografia8
DOMINGUES, Ana Margarida Portela A ornamentao cermica na arquitectura do Romantismo
em Portugal. Tese de Doutoramento em Histria da Arte apresentada Faculdade de Letras da
Universidade do Porto em 2009.
LEO, Manuel A cermica em Vila Nova de Gaia. Vila Nova de Gaia: Fundao Manuel Leo, 1999.
8
Foram consultadas diversas outras fontes e bibliografia. Apresentamos somente as referncias citadas ao longo do texto,
reservando as demais referncias para o mbito de um texto de maior flego.
Introduo
A Venervel Irmandade de Nossa Senhora da Lapa foi fundada no sculo XVIII. Nasceu como
uma instituio religiosa, mas o seu campo de interveno rapidamente se estendeu para alm das
funes de culto. Dos meados de Oitocentos aos princpios do sculo XX, assistiu-se concretizao
dos principais sonhos do instituidor da Irmandade, o Padre ngelo Sequeira, que no seu livro Botica
Preciosa, e Thesouro Precioso da Lapa3 confessava querer achar todos os remdios para o corpo, para
a alma e para a vida. Esta baliza cronolgica compreende, assim, a afirmao do Seminrio-Colgio
da Lapa, a construo do Cemitrio da Irmandade, a concluso das obras da Igreja e, mais tarde, a
edificao do seu Hospital.
A Irmandade da Lapa vivenciou, por isso, o Porto romntico das seguintes formas:
participando nos seus acontecimentos polticos e sociais, como no episdio do Cerco do Porto,
criando um elo entre D. Pedro IV e esta cidade, elo consubstanciado pelo facto de o corao do
rei repousar na Igreja da Lapa;
integrando as suas alteraes urbansticas, paisagsticas e arquitetnicas mais significativas,
nomeadamente atravs da construo da igreja, do cemitrio e do hospital;
conservando no esplio a memria de protagonistas da vida da urbe portuense, personalidades
ilustres e benfeitoras, tais como o Conde de Ferreira, Ea de Queirs e Ramalho Ortigo, e de
artistas, como Vitorino Ribeiro, Francisco Jos Resende, Joo Marques de Oliveira ou Jos de Brito.
1
Mestre em Arte, Patrimnio e Teorias do Restauro, FLUL
2
Mestre em Histria da Arte Portuguesa, FLUP
3
SEQUEIRA, ngelo de Botica Preciosa, e Thesouro Precioso da Lapa, em que como em Botica, e Thesouro se acha todos
os remedios para o corpo, para a alma, e para a vida, e huma receita das vocaoens dos Santos para remedio de todas as
enfermidades, e vrios remedios, e milagres de N. Senhora da Lapa, e muitas Novenas In http://purl.pt/17322 (2014.09.05;
09h32).
O patrimnio da Irmandade da Lapa pode ser subdividido em dois grandes campos: o seu patrimnio
imaterial e o seu patrimnio material.
Liberalismo
A Irmandade da Lapa, para alm da sua prpria histria, no deixou de estar, como afirma Costa
Leite, [] ligada a acontecimentos memorveis do nosso pas, principalmente locais, []4. A sua
proximidade a eventos como o Cerco do Porto e fao liberal so evidentes. O corao de D. Pedro
IV repousa no lado do Evangelho da Capela-mor da Igreja da Lapa no s porque o rei o doou cidade
do Porto, mas tambm porque em vida, o Duque frequentara esse Templo, ouvindo a a missa militar
semanal. Essa circunstncia, alis, levara-o a fazer a doao Igreja da Lapa de vrios paramentos e
alfaias litrgicas procedentes de Mosteiros abandonados` da cidade do Porto, []5.
A relao de estima foi recproca, pelo que a Irmandade sempre se manifestou uma defensora da
Liberdade e da memria do monarca que descreveu como o homem mais sublime, sem igual, na Histria do
nosso Paiz, Rey Filosofo, amigo do Povo e guerreiro no vencido que sacrificou a sua vida para fundamentar a
liberdade legal6. A corroborar tal apreo ficam para a Histria as exquias fnebres realizadas anualmente,
durante o sculo XIX, por aniversrio da morte do Imperador7. A conotao da Irmandade com a causa
liberal fica, ainda, patente no facto de albergar na sua galeria de retratos, bem como no seu cemitrio, D.
Manuel de Santa Ins (1762-1840), [] Bispo eleito do Porto pelo Immortal Duque de Bragana []8.
Brasil
A vida da Irmandade da Lapa cruza-se com os acontecimentos locais, nacionais e, tambm, com
a histria internacional, mantendo com o Brasil um forte lao, cujo elemento de unio foi D. Pedro IV
de Portugal/D. Pedro I do Brasil. Se na Igreja da Lapa que repousa o corao do monarca, no Brasil
que esto depositados os seus restos mortais. Paralelamente a esta cumplicidade alm-fronteiras, a
4
LEITE, Gaspar Costa A Venervel Irmandade de Nossa Senhora da Lapa erecta na cidade do Porto. Extractos do seu Arquivo
Notas bibliogrficas. Porto: Empresa Industrial Grfica do Porto, 1939, p. 7.
5
SILVA, Francisco Ribeiro da D. Pedro IV e a Venervel Irmandade de Nossa Senhora da Lapa da cidade do Porto. In D.
PEDRO, IMPERADOR DO BRASIL, REI DE PORTUGAL. DO ABSOLUTISMO AO LIBERALISMO: Actas do Congresso Internacional.
Porto: 2001, pp. 253-282.
6
Ibidem.
7
Ibidem.
8
Retrato do Bispo, D. Manuel de Santa Ins, atribudo a Jos Gomes Ribeiro Galvo (c. 1802-1863), com a seguinte inscrio na
zona superior da tela: D. F.r Manoel de S.ta Ignez, Religiozo da extincta Congregao dos Agostinhos reformados, Governador,
e Vigario Capitular, Bispo eleito do Porto pelo Immortal Duque de Bragana [].
Burguesia portuense
Se a histria da Irmandade da Lapa se cruza com acontecimentos, dos locais aos internacionais,
no menos se entrecruza com os protagonistas desses mesmos acontecimentos. A prpria Irmandade
da Lapa foi sendo construda por personalidades que, atravs da sua participao, contriburam para
o crescimento e engrandecimento da Instituio. Desde os benemritos, atravs das suas doaes, aos
Mesrios, atravs das suas iniciativas e projetos, pela Irmandade foram passando alguns dos nomes
mais relevantes da burguesia portuense do sculo XIX. Destes ilustres, a Irmandade preserva, em
alguns casos, os seus legados materiais, em outros casos a sua memria, simbolicamente eternizada
nas capelas-jazigo e nos monumentos ptreos que decidiram erguer no Cemitrio da Instituio para
deles fazer a sua ltima morada.
Bastar consultar alguns dos trabalhos do investigador Francisco Queiroz para verificar como o
Cemitrio da Lapa foi, durante anos, o cemitrio da burguesia portuense. Bastar, inclusive, o simples
exerccio de olhar o ndice da tese de doutoramento Os cemitrios do Porto e a arte funerria oitocentista
em Portugal: consolidao da vivncia romntica na perpetuao da memria, de Queiroz11, para
verificar, no que ao Cemitrio da Lapa diz respeito, quantos indivduos e famlias respeitadas da urbe
portuense foram Irmos da Lapa e escolheram repousar no cemitrio da sua Irmandade.
9
SILVA, Francisco Ribeiro da O Colgio da Irmandade da Lapa: um elo histrico da ligao portuense ao Brasil. O Tripeiro,
7 srie, ano XIX, n 4, Porto, 2000, pp. 118-126.
10
Os alunos provenientes do Brasil, j independente, vieram do Maranho (8), do Rio de Janeiro (10), Pernambuco (4), da Baa
(9), da vila de S. Salvador de Campos (3 todos irmos) e de S. Paulo (1). Com todas estas cidades a do Porto manteve intenso
intercmbio comercial e humano durante o perodo em questo. Como os meninos que vinham da Amrica necessitavam de
um tutor na cidade do Porto, no raro esse papel era desempenhado por negociantes portuenses com interesses no Brasil..
Cf. Ibidem.
11
QUEIROZ, Jos Francisco Ferreira Os cemitrios do Porto e a arte funerria oitocentista em Portugal: consolidao da
vivncia romntica na perpetuao da memria. Porto: [Edio do Autor], 2002, 2 vols. Tese de Doutoramento apresentada
na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
Fig. 2 Nossa Senhora da Conceio, s/ autor. Escultura em madeira, (34 cm x 16 cm). S/ data. Coleo da V.I.N.S.L. Fot. de V.I.N.S.L.
Patrimnio Artstico
O patrimnio artstico da Irmandade da Lapa pode ainda ser subdividido em outros quatro campos:
Arte Sacra, Escultura, Cermica e Pintura (retratstica). de notar que estas subcategorias servem,
sobretudo, como um meio de orientar a nossa leitura sobre uma coleo rica na sua diversidade
tipolgica e tcnica. tambm de ressalvar que, neste caso em particular, falamos do esplio da
Irmandade, excluindo patrimnios to importantes como o da Igreja ou o do prprio Cemitrio, pela
simples razo que tais patrimnios no devem ou no podem ser retirados do seu contexto pelo que
deve ser o museu a ir ao seu encontro. Assim, concentramo-nos acima de tudo nas peas avulsas e
dispersas pelo edifcio da Casa da Irmandade, as quais necessitam de uma releitura e reinterpretao
luz da sua funo e existncia atuais.
Arte Sacra
A coleo de arte sacra existente na Casa da Irmandade composta por quatro grandes conjuntos:
imaginria, pintura, paramentaria e outros objetos. Tal como nas categorias a analisar adiante
sabe-se que, em alguns casos, na origem deste esplio esto doaes e ofertas. No entanto, e no caso
da arte sacra em especial, algumas destas peas podero tambm ser provenientes da Igreja ou at
da primitiva Capela da Lapa, peas estas que, por estarem danificadas ou por j no se adequarem s
funes de culto, encontraram espao nos armrios e prateleiras do Salo Nobre da Casa da Irmandade.
No campo da imaginria, encontramos imagens devocionais de santos e santas de pequena
dimenso, como Nossa Senhora da Conceio (fig. 2). Trata-se de peas no datadas, que remetem
para os altares domsticos e para a produo em barro ou madeira. No contexto do esplio da Lapa,
estas peas representam uma tcnica/atividade profissional (de santeiro), atualmente em vias de
extino, e enriquecem as colees da Irmandade pela sua beleza e detalhe, sobretudo nas vestes das
figuras femininas marcadas pelas cercaduras ondulantes em folha de ouro.
No mbito da pintura sacra, e para alm de todas as telas de natureza religiosa que decoram o
interior da Igreja, a Irmandade possui um interessante conjunto de quadros que registam episdios
bblicos. Esta coleo composta por obras na sua maioria oferecidas por benfeitores comerciantes
e negociantes, tais como Gaspar Borges de Castro da Costa Leite (1873-1948) e Jos Gaspar da Graa
(1815-1887). Neste contexto, h ainda um grupo de quatro belssimas pinturas que podero corres-
ponder queles quatro valiosos quadros a leo que O Tripeiro12 afirma terem sido oferecidos pelo
Dr. Rebelo Valente (1883-1950)13.
12
27.02.1915: A Mesa da Ordem da Lapa aprova um voto de muito reconhecimento ao Dr. Rebelo Valente pela oferta
instituio de quatro valiosos quadros a leo. Aconteceu h 50 anos (Dirio retrospetivo, fevereiro de 1915). O Tripeiro,
srie VI, ano V, n 2, Porto, fevereiro de 1965, p. 64.
13
A notcia dO Tripeiro referir-se-, certamente, ao Dr. Antnio Vasco Rebelo Valente, conhecido, nomeadamente, por ter
dirigido, entre 1932 e 1950, o Museu Nacional Soares dos Reis.
Fig. 3 Livro de Missa, s/ autor. Madreprola e veludo, (11 cm x 7,5 cm). S/ data. Coleo da V.I.N.S.L. Fot. de V.I.N.S.L.
Escultura
A escultura constitui uma outra categoria inserida naquilo que denominmos Patrimnio Artstico.
No esplio da Irmandade no existem muitos exemplares, sendo esta escassez claramente compen-
sada pela escultura e pela estaturia de grande qualidade que ornamentam a Igreja e abundam em
todo o Cemitrio, por excelncia. Na Casa da Irmandade podemos contemplar bustos que retratam,
como habitual, figuras que participaram ativamente nos rgos da Irmandade, caso de Ezequiel
Vieira de Castro, Diretor da Irmandade de 1897 a 1910, grosso modo.
14
Essa circunstncia, alis, levara-o [a D. Pedro IV] a fazer doao Igreja da Lapa de vrios paramentos e alfaias litrgicas
procedentes de Mosteiros abandonados` da cidade do Porto. SILVA, Francisco Ribeiro da D. Pedro IV [], Op. cit.
Cermica
A cermica constitui um ncleo de grande relevncia na coleo da Irmandade, no s pela
quantidade, como pela diversidade em que se apresenta. Paralelamente a uma produo mais recente
que ostenta o smbolo da Irmandade e que ter servido/serve para ornamentar o Cemitrio da Lapa, o
ncleo de cermica preserva peas belssimas e em bom estado de conservao, produzidas pelas mais
conhecidas fbricas de cermica que marcaram a arte industrial dos sculos XIX/XX. So disto exemplo
vasos e jarres das Fbricas de Miragaia e de Santo Antnio de Vale da Piedade (fig. 4), cuja aparncia
nos permite no s ficar a conhecer as caractersticas tcnicas e estilsticas das respetivas fbricas
produtoras, como tambm nos d a oportunidade de apreciar o legado desta excelente arte industrial.
Fig. 5 S/ ttulo, de Julio Martins Fig. 6 Jos Lopes Martins, de Joo Fig. 7 Joaquina de Moura Veloso
(1833-1907). Pintura a leo sobre Marques de Oliveira (1853-1927). Guimares, de Eduardo de Moura. Pintura
tela (96,5 cm x 67,5 cm). 1874. Pintura a leo sobre tela (131 a leo sobre tela (96 cm x 73 cm). 1917.
Coleo da V.I.N.S.L. Fot. de V.I.N.S.L. cm x 90 cm). S/ data. Coleo Coleo da V.I.N.S.L. Fot. de V.I.N.S.L.
da V.I.N.S.L. Fot. de V.I.N.S.L.
15
Julio Martins ou Martinez (1833-1907) foi um retratista. Nasceu em Tui, na Galiza, fixando-se desde 1854 em Viana do
Castelo. Porm, produziu trabalhos em outras cidades portuguesas, tais como o Porto.
16
Antnio Barbosa de Sousa Faria (12.05.1821-29.11.1870) foi juiz de direito de instncia e juiz do Tribunal Comercial do Porto.
Patrimnio Arquitetnico
Recuperando o organigrama que nos guia nesta anlise cabe-nos agora referir o patrimnio
arquitetnico da Irmandade, o qual composto por quatro grandes estruturas: a Igreja, o Cemitrio,
o Hospital e o Centro de Cultura e Arte da Lapa.
A Igreja tal como a conhecemos foi edificada, grosso modo, entre 1756 e 1863, segundo traa do
arquiteto Jos de Figueiredo Seixas (?-1773). Constitui um dos mais importantes bens patrimoniais
da Irmandade, no s pela sua antiguidade e valor material, como tambm pela promoo cultural
que leva a cabo, nomeadamente, atravs dos concertos realizados, desde 1995, com o majestoso
rgo de Tubos17.
O Cemitrio da Irmandade merece destaque no mbito do patrimnio da Lapa e mesmo do
patrimnio da cidade do Porto, dado que o mais antigo cemitrio romntico portugus. O seu valor
arquitetnico e artstico est patente nas magnficas capelas funerrias que fazem deste cemitrio um
17
Para saber mais sobre a Igreja de Nossa Senhora da Lapa, cf. LEITE, Gaspar Costa A Venervel Irmandade de Nossa Senhora
da Lapa ereta na cidade do Porto. Extratos do seu arquivo notas bibliogrficas. Porto, 1939.
SILVA, Francisco Ribeiro da A Igreja da Lapa. Arte, culto e histria. O Tripeiro, 7 srie, ano XXI, n 9, Porto, setembro de
2002, pp. 264-268.
SILVA, Francisco Ribeiro da Os primrdios da Irmandade de Nossa Senhora da Lapa. O Tripeiro, 7 srie, ano XVII, n 5,
Porto, 1998, pp. 130-138.
Patrimnio Arquivstico
O Arquivo documental da Irmandade constitui naturalmente um outro tpico de elevada riqueza
patrimonial, no residisse nele toda a documentao que auxilia na narrao da sua histria, desde a
fundao no sculo XVIII at construo do Hospital. Apesar dos hiatos temporais de que sofre, nele
encontramos cadernos de encargos do longo perodo de edificao da Igreja e notas da angariao de
fundos para a realizao das exquias fnebres de D. Pedro IV, para alm dos sempre muito importantes
livros de atas, onde cada deciso da Mesa Administrativa ficou firmada. Paralelamente, o Arquivo
assume-se como um patrimnio de duas faces, rico do ponto de vista da informao que conserva e
belssimo do ponto de vista dos livros e documentos em reserva, os quais merecem destaque pelas
suas encadernaes artsticas e caligrafia.
18
Para saber mais sobre o Cemitrio de Nossa Senhora da Lapa, vd. QUEIROZ, Jos Francisco Ferreira O ferro na arte funerria
do Porto oitocentista: o Cemitrio da Irmandade de Nossa Senhora da Lapa 1833-1900. [S.l.: s.n.], 1997. Tese de Mestrado
em Histria da Arte apresentada Faculdade de Letras da Universidade do Porto; QUEIROZ, Jos Francisco Ferreira Os
cemitrios do Porto [], Op. cit.
19
Para saber mais sobre o Hospital de Nossa Senhora da Lapa, cf. SILVA, Francisco Ribeiro da O Hospital da Irmandade da
Lapa 1904-2004. Apontamentos histricos. Porto: [s.n.], 2004.
SILVA, Francisco Ribeiro da O Hospital da Lapa ou a utilidade social das Irmandades. O Tripeiro, 7 srie, ano XXIII, n 12,
Porto, dezembro de 2004, pp. 360-363.
SILVA, Francisco Ribeiro da Os primrdios [], Op. cit.
Concluso
Como ficou patente nas ltimas pginas, o esplio da Irmandade da Lapa divide-se em duas
componentes principais (imaterial e material), primando pela sua diversidade temporal, tipolgica e
tcnica. Atravs deste patrimnio possvel contar a histria da Instituio e da cidade que a acolhe. As
colees da Lapa, dentro da sua heterogeneidade, parecem partilhar entre si uma perspetiva romntica,
patente na prpria ideia do legado e da doao como forma de perpetuao do indivduo. Este culto
do indivduo est ainda claramente representado na srie de retratos que compem uma galeria de
benfeitores que, na falta da fotografia, encontraram no retrato pintado o modo de se eternizarem
materialmente na histria da Irmandade a que pertenceram. O cemitrio materializa todo o esprito
do romantismo, desde as suas arquiteturas e esculturas s histrias trgicas e combativas dos seus
jazentes. A Irmandade da Lapa participou ativamente no Porto Romntico do sculo XIX, contribuindo
ainda para as suas reminiscncias, presentes naquilo que herdou e preserva do passado e que, de
forma romntica, continua a exaltar. Entre os seus expoentes mximos, encontramos os versos do
ultrarromntico Soares de Passos, os quais, at hoje, coroam a entrada do Cemitrio da Lapa:
Bibliografia
COELHO, Cesrio Venervel Irmandade de Nossa Senhora da Lapa: factos da sua histria. [S.l.: s.n.],
1965.
LEITE, Gaspar Costa A Venervel Irmandade de Nossa Senhora da Lapa ereta na cidade do Porto.
Extratos do seu arquivo notas bibliogrficas. Porto: [s.n.], 1939.
MENEZES, Mrio de Arquitetura civil portuense: II A A muralha fernandina; B O muito que,
para sempre, j no h. Ainda na Relao O caso de Urbino Freitas (Concluso). O Tripeiro, VI
srie, ano X, n 6, Porto, junho de 1970, pp. 216 a 219.
QUEIROZ, Jos Francisco Ferreira O ferro na arte funerria do Porto oitocentista: o Cemitrio da
Irmandade de Nossa Senhora da Lapa 1833-1900. [Porto: s.n.], 1997. Tese de Mestrado em Histria
da Arte apresentada Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
20
Para ficar a conhecer a identidade das personalidades ali sepultadas, vd. MENEZES, Mrio de Arquitetura civil portuense:
II A A muralha fernandina; B O muito que, para sempre, j no h. Ainda na Relao O caso de Urbino Freitas
(Concluso). O Tripeiro, VI srie, ano X, n 6, Porto, junho de 1970, pp. 216 a 219.
21
Cf. http://www.camilocastelobranco.org/index2.php?co=60&tp=3&cop=66&LG=0&mop=144&it=paginas.
Adelina Valente1
Introduo
A construo do edifcio para albergar a Associao Comercial do Porto o Palcio da Bolsa (fig. 1) foi
um desafio para artistas e artfices portugueses. As actas da Associao indicam que, no ano de 1834, uma
reunio da Comisso Provisria presidida por Arnaldo van Zeller deliberou a sua edificao nas runas do
antigo Convento de S. Francisco2. Com esse propsito foi instituda uma comisso instaladora3. As obras
iniciaram-se em 1841, dando corpo necessidade de albergar no s os membros do corpo do comrcio
nortenho4, mas tambm o funcionamento das bolsas na cidade do Porto5, que, at data, se resumiam ao
nmero de vinte, denominando-se Juntina6. No ano de 1842 foi colocada a primeira pedra da estrutura
arquitectnica e, em 1846, j existia, na construo em curso, uma sala privativa para a actividade bolsista7.
A inaugurao do edifcio ocorreu em Novembro de 1891, com a real presena de D. Carlos e de D. Amlia.
Foi apelidada de catedral do trabalho por Manuel Pinheiro Chagas8.
1
Doutora em Estudos do Patrimnio. Investigadora do CITAR, Centro de Investigao em Cincia e Tecnologia das Artes,
Escola das Artes, Universidade Catlica Portuguesa.
2
Vd. CARDOSO, Antnio Palcio da Bolsa. Porto: Associao Comercial do Porto, 1994, p. 14. O convento de S. Francisco
tinha desempenhado funes de aquartelamento de tropas sendo, entretanto, destrudo por um incndio.
3
Vd. PASSOS, Carlos Associao Comercial do Porto. Resumo histrico da sua actividade desde a sua fundao. Porto:
[Associao Comercial do Porto], 1947, p. 26.
4
Vd. BONIFCIO, Maria de Ftima A Associao Comercial do Porto no contexto poltico-econmico nortenho e nacional
(segundo quartel do sculo XIX). Anlise Social, vol. XXII (91), 1986-2., pp. 331-367. No Norte imperava o comrcio de
vinho do Porto, bem como as actividades de importao e exportao de diversas mercadorias. Os problemas vinhateiros
eram objecto de primazia na actividade da instituio.
5
Vd. ALVES, Jorge Fernandes Alves D. Manuel II no Palcio da Bolsa. O Tripeiro, 7 srie, Ano XXVII, n 11, 2008, pp. 324-325.
At essa data, os leiles bolsistas efectuavam-se na praa defronte Rua dos Ingleses, existindo um nico corrector
diplomado naquela poca Antnio Elias Urpia.
6
Vd. PASSOS, Carlos Associao Comercial do Porto. Resumo histrico da sua actividade desde a sua fundao. Porto: [Asso-
ciao Comercial do Porto], 1947, pp. 76-78. O autor refere que a Juntina fazia arrematao de navios, de mercadorias
por grosso e de bens imveis. No andar que servia a Antnio Elias Urpia de escritrio, existia um gabinete de leitura onde
se achavam, entre os raros peridicos do Pas [] algumas publicaes e revistas estrangeiras de comrcio e navegao.
7
Vd. PASSOS, Carlos Associao Comercial do Porto. Resumo histrico da sua actividade desde a sua fundao. Porto:
[Associao Comercial do Porto], 1947, p. 34.
8
Vd. PASSOS, Carlos de Guia histrica e artstica do Porto. Porto: Livraria Figueirinhas, 1935, p. 279.
9
Vd. PASSOS, Carlos de Guia histrica e artstica do Porto. Porto: Livraria Figueirinhas, 1935, p. 280.
10
Vd. PASSOS, Carlos de Guia histrica e artstica do Porto. Porto: Livraria Figueirinhas, 1935, p. 280. Carlos de Passos fornece
esta informao mas no indica de que constou a prestao de Jos Lus Nogueira Jnior, filho de Jos Lus Nogueira, que
dirigiu as obras de incio do projecto. Nogueira Jnior teve intervenes na cidade, entre elas, na Capela do Bonfim.
11
Vd. SOARES, Andreia Sofia da Rocha Estudos de histria do mobilirio em Portugal: os projectos do arquitecto Marques da
Silva para a Associao Comercial do Porto. Dissertao de mestrado em Histria da Arte Portuguesa. Faculdade de Letras
da Universidade do Porto. Departamento de Cincias e Tcnicas do Patrimnio. Porto, 2011. Texto policopiado, p. 24.
12
Vd. PASSOS, Carlos de Guia histrica e artstica do Porto. Porto: Livraria Figueirinhas, 1935, p. 284.
13
Vd. SOARES, Andreia Sofia da Rocha Estudos de histria do mobilirio em Portugal: os projectos do arquitecto Marques da
Silva para a Associao Comercial do Porto. Dissertao de mestrado em Histria da Arte Portuguesa. Faculdade de Letras
da Universidade do Porto. Departamento de Cincias e Tcnicas do Patrimnio. Porto, 2011. Texto policopiado, p. 55.
14
Vd. BONIFCIO, Maria de Ftima A Associao Comercial do Porto no contexto poltico-econmico nortenho e nacional
(segundo quartel do sculo XIX). Anlise Social, vol. XXII (91), 1986-2., p. 334.
15
Vd. Arquivo da Associao Comercial do Porto, Livro n 9 das Actas da Direco. Acta da sesso de 17 Janeiro de 1863, f.
38-39. Presidiu o visconde de Lagoao.
16
Vd. A.A.C.P., Livro n 9 das Actas da Direco. Acta da sesso de 17 Janeiro de 1863, f. 49. Joaquim Ribeiro de Faria Guimares,
Justino Ferreira Pinto Basto, Jos de Almeida Campos Jnior, Domingos Manuel Barbosa Brando e Joo Marinho Alves
eram os associados que superintendiam as obras.
17
Vd. A.A.C.P., Livro n 9 das Actas da Direco. Acta da sesso de 17 Janeiro de 1863, f. 50.
18
Vd. A.A.C.P., Livro n 9 das Actas da Direco. Acta da sesso de 17 Janeiro de 1863, f. 75. A redaco da acta referente a
esta questo reza o seguinte: Tendo ponderado a comisso da sobras que em sesso de 23 de Maro deste ano fora encar-
regada de comprar os mveis indispensveis para adorno das salas que j esto prontas, mas que o dinheiro existente em
cofre apenas chegaria para uma pequena parte deles, por isso que os que desde j se julgam necessrios para aquele efeito
devem importar aproximadamente em 6.000$000 rs., resolveu a Direco que a mesma Comisso ficasse encarregada de
realizar desde j a compra dos mveis para que chegue a quantia que existe em cofre e que faa a compra dos restantes
peas convocada a Assembleia-geral, e se obtivesse a sua autorizao para se contrair um emprstimo logo que se julgue
oportuno, a qual deve ser amortizado pelos rendimentos sucessivos da Associao.
19
Vd. A.A.C.P., Cx. do ano 1891, Doc. 2.20.
20
Vd. A.A.C.P., Cx. do ano 1891. Esta expresso usada no recibo do pintor Francisco Jos Resende.
21
Vd. A.A.C.P., Cx. do ano 1891, Doc. 2.
22
Vd. Braz Tisana de 11 de Maio de 1852. Apud PASSOS, Carlos Associao Comercial do Porto. Resumo histrico da sua
actividade desde a sua fundao. Porto: [Associao Comercial do Porto], 1947, pp. 113-114.
23
Vd. PASSOS, Carlos Associao Comercial do Porto. Resumo histrico da sua actividade desde a sua fundao. Porto:
[Associao Comercial do Porto], 1947, pp. 116-122.
24
Vd. A.A.C.P., Livro n 9 das Actas da Direco, Acta de 5 de Junho de 1871, f. s/ numerao.
25
Vd. A.A.C.P., Livro n 9 das Actas da Direco, Acta de 5 de Junho de 1871, f. 91-92.
26
Vd. ALVES, Jorge Fernandes Alves D. Manuel II no Palcio da Bolsa. O Tripeiro, 7 srie, ano XXVII, n 11, Novembro de
2008, pp. 324-325.
27
Vd. ALVES, Jorge Fernandes Alves D. Manuel II no Palcio da Bolsa. O Tripeiro, 7 srie, ano XXVII, n 11, Novembro de
2008, pp. 324-325.
28
Vd. ALVES, Jorge Fernandes Alves D. Manuel II no Palcio da Bolsa. O Tripeiro, 7 srie, ano XXVII, n 11, Novembro de
2008, p. 324.
29
Vd. A.A.C.P., Doc. s/ numerao. Inventrio das moblias, tapearias, ferramentas ferragens e utenslios, existentes no edifcio
da Praa e Tribunal do Comrcio do Porto em 1885. Este inventrio manuscrito em duas folhas soltas, em duplicado, foi
assinado por Antnio Jos Vieira Coelho Cons.or. (Consultor?) Fiscal das Obras, em 3 de Julho do mesmo ano de 1885.
Numa das cpias esto registados valores a lpis com caligrafia que no nos parece coeva do documento.
30
Transcrevemos aqui os bens referidos: Gabinete do Arquitecto: 1 secretria, 1 mocho estofado, 4 cadeiras de palhinha,
1 estirador para desenho, 1 plancheta (sic) idem, 1 escrivaninha, 1 esteira de palhinha de cobrir pavimento, 2 capachos de
esparto, 1 aparadeira de porcelana, 1 Gramtica d ornamentos (sic) ilustrada com vrios estilos em 1 volume, 8 volumes
com estampas ilustradas intitulados a Biblioteca do Arquitecto -140.000, 2 volumes ilustrados com planos, alados e cortes
do Palcio de Alhambra, 1 volume intitulado Atlas universal de histria, geografia, cronologia e genealogia, 3 volumes,
contendo os brases de armas das cidades e vilas da monarquia portuguesa, 1 secretria do mogno.
31
Vd. SNODIN, Michael The V&A book of Western ornament. London: V&A Publications, 2006, p. 90.
32
Vd. A.A.C.P., Certificado da participao na Exposition Universelle de 1867, Paris. Doc. s/ numerao.
33
Vd. O Archivo Rural, vol. 10, p. 46.
34
Vd. DALY, Csar Larchitecture prive au 19e. sicle sous Napolon III. 2 vols. Paris: A. Morel et C.ie, Libraires-diteurs, 1864.
In http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k866074.r=Daly (23.01.2015; 19h00).
35
Vd. DALY, Csar Larchitecture prive au 19e. sicle sous Napolon III. 1 vol. Paris: A. Morel et C.ie, 1864, p. 12. In http://
gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k866074.r=Daly (23.01.2015; 19h00).
36
Veja-se o fac-simile de um anncio deste entalhador em MATOS, Loureno Correia de Os fornecedores da Casa Real
(1821-1910). Lisboa: Dislivro Histrica, 2009, p. 216.
37
Vd. LEO, Manuel Artistas antigos do Porto. Vila Nova de Gaia: Fundao Manuel Leo, 2002, p. 150.
38
Vd. LEO, Manuel Artistas antigos do Porto. Vila Nova de Gaia: Fundao Manuel Leo, 2002, p. 175.
39
Vd. LEAL, Pinho Portugal antigo e moderno. Lisboa: Editora de Matos Moreira, 1875, vol. 6, p. 63. In https://archive.org/
details/portugalantigoe04ferrgoog, (7/11/2014; 15h00).
40
Vd. Catlogo Oficial da Exposio Internacional do Porto em 1865, p. 98.
41
Vd. O Archivo Rural, vol. 10, pp. 45 e 47.
42
Vd. MATOS, Loureno Correia de Os fornecedores da Casa Real (1821-1910). Lisboa: Dislivro Histrica, 2009, p. 165. Este
ttulo era obtido mediante o registo de um alvar nos livros da mordomia-mor da Casa Real, e o beneficirio pagava um
determinado emolumento para o obter. A Casa Real no tinha qualquer obrigatoriedade de adquirir os servios do bene-
ficirio do ttulo. Este era pessoal, no transmissvel, podendo, no entanto, ser requerido pelo continuador da actividade.
43
Vd. PAMPLONA, Fernando de Dicionrio de pintores e escultores portugueses. Lisboa: Livraria Civilizao, 1954, vol. 4,
p. 338. Este autor, por exemplo, refere como nica esta actividade de Zeferino Jos Pinto.
44
Anlise minuciosa e detalhada da decorao parietal do So rabe revela uma combinao de trabalho de gesso e de
madeira.
45
Vd. A.A.C.P, Livro n 9 das Actas da Direco. Acta da sesso de 13 de Outubro de 1875, f. sem numerao. Foi apresentado
Um requerimento do chefe da oficina de entalhadores, Zeferino Jos Pinto, pedindo aumento de jornal, fundando-se no preo
elevado de todos os gneros alimentcios, e de tudo o mais concernente s necessidades da vida, e alegando que tendo entrado
h 13 anos p dirigir aquela oficina, ainda no tivera melhora de salrio: Este requerimento subiu acompanhado de um ofcio
do arquitecto das obras, no qual julga justo o pedido do requerente, e entende que a mais alguns mestres deve estender-se o
aumento. A Direco resolveu que ao requerente sejam aumentados duzentos reis em cada dia de trabalho, com a clusula,
porm, de que ele seja assduo na oficina, e de modo nenhum a abandonar dias seguidos, salvo caso de fora maior.
46
Vd. Semanrio Ilustrado Branco e Negro, n 84, 2 ano (7 de Novembro de 1897), pp. 81-84.
47
Vd. Semanrio Ilustrado Branco e Negro, n 84, 2 ano (7 de Novembro de 1897), p. 83.
48
Vd. Semanrio Ilustrado Branco e Negro, n 84, 2 ano (7 de Novembro de 1897), p. 83.
49
Vd. Semanrio Ilustrado Branco e Negro, n 84, 2 ano (7 de Novembro de 1897), p. 84.
5. Concluso
As Artes Decorativas portuenses devem a sua evoluo e progresso pliade de arquitectos, artistas
e artfices que trabalharam nas obras de construo e decorao do edifcio da Associao Comercial do
Porto. Concebido para marcar a importncia da actividade mercantil, os seus membros pretenderam
afirmar, atravs da construo arquitectnica, um marco na histria da segunda metade do sculo
XIX. As casas de negcio, os armazns de mltiplas reas de laborao50, a importao, o pequeno
comrcio e as diversas actividades a jusante de qualquer obra semelhante tiveram, nesta edificao,
o ensejo de contribuir para o desenvolvimento da cidade, tomando conhecimento de realidades a
que, de outro modo, no teriam acesso. As classes dos marceneiros, dos entalhadores, dos pintores
e dos homens dos estuques aqui se embrenharam em tcnicas e estilos que os intermedirios do
encomendante os arquitectos trouxeram atravs da sua instruo e informao internacionais. Essa
comunicao foi contnua durante cerca de sete dcadas, permitindo que a sociedade civil e as Artes
Decorativas portuenses beneficiassem, quase em tempo real, das novidades na rea da arquitectura e
decorao europeias, concedendo-lhe, no entanto, o cunho regional que tornou a cidade um arqutipo
da modernidade oitocentista e do incio de Novecentos.
50
Caso, por exemplo, da Casa Vilarinha, de Cypriano de Oliveira e Silva & C, de Antnio do Nascimento & Filho ou de
Venncio do Nascimento & Filho.
Artur Vasconcelos
Introduo
O presente texto surge na sequncia da investigao realizada em torno do pintor Joo Antnio
Correia, desenvolvida desde 2007 e sistematizada numa dissertao de mestrado concluda em 20091.
Voltamos a este tema de forma assdua, procurando completar e consolidar o trabalho iniciado com
esse ciclo de estudos.
A desmultiplicao de selfies, executadas de forma mecnica e imediata, na urgncia de um gesto
que, insistentemente, materializa a vontade de afirmao individual, recorrente no nosso quotidiano.
Desde esta constatao estabelecemos o paralelismo, pela persistncia e atualidade do tema da
autorrepresentao, remetendo para o exerccio deste modo particular de (se) retratar no contexto
do Porto romntico, debruando-nos especificamente sobre a prtica do pintor Joo Antnio Correia.
O pretexto anterior precede e d forma proposta de revisitao do percurso de um artista do
sculo XIX que, na nossa opinio, se revela incontornvel para o entendimento do contexto do ensino
das belas artes na cidade do Porto, em particular, mas tambm, de um modo mais abrangente, para
o contexto artstico do pas.
Focamos a nossa abordagem especificamente sobre a produo de autorretratos, sobre os dois
nicos exemplares conhecidos, para refletir sobre as principais caractersticas e influncias deste
pintor e apreender as especificidades da sua expresso artstica.
Sntese cronolgica
O reconhecimento do percurso formativo de Joo Antnio Correia, atendendo igualmente s suas
funes na Academia Portuense das Belas Artes (APBA), impe-se como um procedimento necessrio
para melhor entendermos o contexto que envolve a produo dos autorretratos.
1
VASCONCELOS, Artur Mestre Joo Antnio Correia (1822-1896): entre a construo acadmica e a expresso romntica,
3 vols. Porto, [Edio do Autor], 2009. Dissertao de Mestrado em Histria da Arte Portuguesa, apresentada Faculdade
de Letras da Universidade do Porto, sob orientao cientfica do Prof. Dr. Agostinho Rui Marques de Arajo.
Do percurso formativo de Joo Antnio Correia destacamos, desde logo, a sua formao inicial em
Desenho, concretizada na Academia Real da Marinha, onde ingressa no ano de 1835. Da planificao
cronolgica apresentada (Tab. 1), verificamos que em 1848 Joo Correia parte para Paris, aps a fre-
quncia do curso de pintura na APBA (1839-1846), de forma a cumprir a sua formao complementar.
A viagem e o perodo de permanncia naquela cidade so suportados por um grupo de personalidades
da cidade do Porto, sendo apontado como seu principal patrono o Pe. Manuel de Cerqueira Vilaa
Bacelar (1766-1860)2, colecionador e reconhecido apoiante das artes. Encontraremos entre as obras
realizadas pelo pintor a meno a dois retratos representando o ilustre patrono, um desenhado e
outro retrato pintado a leo.
Fig. 1 Acadmia, de Joo Antnio Correia. Desenho a Fig. 2 Acadmia, de Joo Antnio Correia. Desenho a carvo e
carvo e crayon negro sobre papel (61 x 46 cm). 1851. crayon negro sobre papel (60 x 45 cm). 1848-55. Coleo do Museu
Coleo do Museu da Faculdade de Belas Artes da da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Fot. MFBAUP.
Universidade do Porto. Fot. de Artur Vasconcelos.
2
BASTOS, Carlos (org.) Nova monografia do Porto. Porto: Companhia Portuguesa Editora, 1938, p. 179. Sobre o Pe. Vilaa Bacelar
vd. NUNES, Ana Paula B. M. Valongueiro Manuel de Cerqueira Vilaa Bacelar (1766-1860). Uma figura do Porto Romntico.
In I CONGRESSO O PORTO ROMNTICO: actas. Porto: Universidade Catlica Portuguesa; CITAR, 2012, vol. 2, pp. 771-793.
3
Para alm da meno a Ingres, como orientador da acadmia representada na fig. 1, e a Chassriau relativo fig. 2,
encontramos ainda a referncia a Etienne-Jules Ramey (1796-1852) e Celestin Nanteuil (1813-1873). Estes nomes
aparecem mencionados no conjunto de Acadmias que integra a coleo do MFBAUP, em notas manuscritas, marginais
aos desenhos, ou no verso dos mesmos, referindo, na maior parte dos exemplares, a respetiva data de execuo. Vd.
VASCONCELOS, Artur Op. Cit., vol. 3, pp. 5-10.
4
Vd. Arquivo da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (AFBAUP), Livro Coppiador dos Processos dAposentadoria,
AFBAUP16, fl. 48v.
Fig. 3 Autorretrato, de Joo Antnio Correia. Desenho Fig. 4 Autorretrato, de Joo Antnio Correia. Pintura a leo
a tinta preta sobre papel (31 x 22cm). 1846. Coleo do sobre tela (41,5 x 29,8 cm). ant. 1863. Coleo do Museu
Museu Nacional de Arte Antiga. Fot. de Lusa Oliveira. Nacional de Soares dos Reis. Fot. de Carlos Monteiro.
No autorretrato desenhado (fig. 3), o observador surpreendido pelo jogo dplice estabelecido
entre autor e retratado. A frase J.A.C. aos 24 annos de idade, manuscrita no canto inferior esquerdo,
identifica e assume, vez, a identificao do retratado e a identidade do autor. Por um lado, as siglas
J.(oo) A.(ntnio) C.(orreia) referem a identificao do retratado; no entanto, constituem, do mesmo
modo, uma das formas de assinatura do autor. O recurso contrao aos que une a assinatura
expresso 24 annos de idade informa-nos que o autor constri uma fico que se projeta no desenho,
deixando de ser ele prprio para passar a ser uma representao do eu. Do mesmo modo, informa-nos
que o desenho ter sido executado no ano de 1846.
Sobre o segundo exemplar (fig. 4), o autorretrato pintado, constatamos que no est datado. Sabemos,
pela leitura dos catlogos das exposies trienais da APBA, que foram apresentados autorretratos do
pintor nas exposies de 1848 e 18635. No catlogo da exposio de 48, referido que se trata de uma
pintura a leo; j no catlogo da exposio de 63, a referncia omissa em relao tcnica.
5
Vd. VASCONCELOS, Artur Op. cit., vol. 2, pp. 16-21.
Detenhamo-nos alguns momentos sobre esta fotografia de Joo Antnio Correia (fig. 5) que integra
o esplio do pintor Marques de Oliveira, cuja fisionomia do pintor remete para o ano de 1871. Em 1863,
Joo Correia teria 43 anos, distanciando-se da imagem pintada (fig. 4) e aproximando-se da fisionomia
retratada na fotografia de 1871, correspondente aos 49 anos de idade. Acrescentamos ainda que a
foto (fig. 5) remete para a imagtica derivada de descries vrias que fomos encontrando, onde a
barba farta e a cabeleira abundante compem a sua imagem exuberante e inconfundvel. Este registo
fotogrfico corresponde a um dos poucos exemplares conhecidos, at ao momento, que representam
o pintor6. Estas consideraes em torno da iconografia de Joo Correia levam-nos a sugerir uma baliza
cronolgica para a execuo do autorretrato pintado (fig. 4), situada entre o ano de 1848 e o de 1858,
em Paris, ou imediatamente aps o regresso cidade do Porto.
O exerccio da autorrepresentao orienta-se pelo desejo de imortalidade, traduzindo uma vontade
de perpetuao da memria. No ser, portanto, mais uma tipologia do registo pictrico, uma vez
que implica necessariamente uma relao diferente entre o sujeito e o objeto da representao. O
artista, visto por si prprio, constri uma fico e desmultiplica-se em reflexos vrios, consolidando
uma outra personagem que, por sua vez, reinterpretada por cada um de ns, que observamos.
6
Existe uma outra fotografia de rosto, mais tardia (1881), que integra o mesmo esplio de Marques de Oliveira e uma foto de
conjunto onde Joo Correia se deixa fotografar com um grupo de estudantes, certamente relativa APBA, que apresenta
a datao genrica finais do sc. XIX , pertencente coleo da Casa de Sarmento, Guimares, disponvel em http://
www.csarmento.uminho.pt/ (2014.09.17; 13h).
7
Vd. INGRES, Jean Auguste Dominique, Autoportrait lge de vingt-quatre ans, leo sobre tela, (77 x 63 cm), 1814, Muse
Cond, Chantilly. Disponvel em: http://www.chateaudechantilly.com (2014.09.17; 14h).
Relembramos ainda o pintor Roquemont pela importncia que teve na introduo e consolidao da
prtica, e do gosto, do retrato no Norte do pas. Percorrer a sua obra pictrica, incidindo objetivamente
sobre a retratstica, equivale a reconhecer uma conceo particular sobre este campo de atuao da
pintura. Em Roquemont, o retrato estrutura-se numa construo conceptual de afirmao social,
onde os seus retratados so pintados com verdade objetiva, num registo naturalista, que valoriza a
semelhana. As encenaes so contidas, simplificadas formalmente, com o recurso a poucos objetos
associados personagem, distanciando-se do retrato de aparato, colocando a nfase no retratado.
Traz consigo um domnio tcnico irrepreensvel e um colorido preciso, identitrio face ao seu autor.
Os argumentos anteriores convergem para a definio de uma tipologia de retrato, muito popular
entre o pblico, e procurada pelos retratados. Este modo de fazer, inaugurado por Roquemont, ter
Joo Correia como seu principal herdeiro8.
A retratstica ser justamente um dos campos mais prolficos da expresso artstica de Joo Correia,
que ir render-lhe muitas encomendas e prestgio. A comparao entre os dois autores, experincia
que pode ser ampliada pela visita ao Museu Nacional de Soares dos Reis, onde ambos se encontram
expostos em salas contguas, reveladora da grande afinidade entre os dois pintores. Verificamos o
mesmo tipo de enquadramento dos retratados, a paleta de cores semelhante, e o recurso a esquemas
formais de composio similares.
8
Vd. FRANA, Jos Augusto O retrato na arte portuguesa. Lisboa: Livros Horizonte, 1981, p. 56.
9
Vd. CARNEIRO, M[anuel] J[os] Apontamentos para a biographia de J. A. Corra. In Miscellanea Litteraria, n 7. Porto:
J. L. de Sousa, 1860, p. 101.
10
Documento manuscrito e assinado por Chassriau. Vd. Achives Nationales / Beaux Arts de Paris lcole Nationale Suprieure
(AN / BAPENS), Dossier scolaire de Jean Corra (AJ52256), 1849, 6 f.
11
Sobre Thodore Chassriau, para reconhecimento da sua biografia e obra plstica vd. GUGAN, Stphane; [et al.] Chas-
sriau: un autre romantisme. Paris: Runion des Muses Nationaux; Estrasburgo: Muses de Stasbourg, 2002.
Consolidar
O retrato de Manuel Pereira da Silva constitui um caso exemplar no conjunto da obra de Joo
Antnio Correia. A observao das trs imagens (figs. 8, 9 e 10) permite analisar, em paralelo, vrios
estdios do registo do pintor sobre uma mesma temtica, sobre uma mesma imagem, trabalhada
em diferentes tcnicas e distintos graus de aproximao ao retratado.
12
Vd. CORREIA, Joo Antnio, Cabea de homem oriental, desenho a tinta preta sobre papel, (29,1 x 20,8 cm) 1865, (MC-MNAC
176-B), Museu do Chiado Museu Nacional de Arte Contempornea, Lisboa. Disponvel em: http://www.matriznet.dgpc.
pt. (2014.09.17; 16h).
Fig. 8 Retrato de Manuel Pereira da Silva, Fig. 9 Retrato de Manuel Pereira da Fig. 10 Retrato de Manuel Pereira da
de Joo Antnio Correia. Desenho a tinta Silva, de Joo Antnio Correia. Pintura Silva, de Joo Antnio Correia. Desenho a
preta sobre papel (41 x 22 cm). 1877 aprox. a leo sobre tela. 1877 aprox. Coleo carvo e giz branco sobre papel (46,5 x 36
Coleo da Casa Museu Fernando de da Universidade do Porto. Fot. UP. cm). 1877. Coleo do Museu Nacional de
Castro/MNSR. Fot. de Artur Vasconcelos. Soares dos Reis. Fot. de Artur Vasconcelos.
13
Sobre Manuel Pereira da Silva, dados biogrficos e a visualizao da imagem aqui apresentada (fig. 9), vd. ALVES, Jorge
Fernandes (rev. cient.) Salo Nobre da Universidade do Porto Galeria de Retratos / Manuel Pereira da Silva. Disponvel
em: http://sigarra.up.pt/up/pt/web_base.gera_pagina?P_pagina=1010535 (2014.09.17, 18h).
Bibliografia selecionada
CARNEIRO, M[anuel] J[os] Apontamentos para a biographia de J. A. Corra. Miscellanea Litteraria,
n. 7 e 8. Porto: J. L. de Sousa, 1860.
FRANA, Jos Augusto A arte em Portugal no sculo XIX, 2 vols. Lisboa: Livraria Bertrand, 1966.
Introduo
Mestre Edmund Leach dizia que o processo criativo se caracterizava por uma oscilao contnua
entre dois extremos o metonmico e o metafrico que correspondem distino que se faz em
msica entre a melodia e a harmonia. O discurso racional de tipo analtico e acadmico fundamen-
talmente metonmico, como o matemtico, sequencial e diacrnico, enquanto que o discurso potico
(do gr. poiesis, criao) e de imaginao , pelo contrrio, metafrico4.
Ora, o processo de criao e de edio da obra A Sociedade Orpheon Portuense (1881 2008).
Tradio e Inovao implicou, ele prprio, desde o incio do seu projecto em 2005, aquela ambiva-
lncia de que falava Edmund Leach. Cientfica e artstica nos seus discursos musical (matemtico),
musicolgico, histrico, econmico, psicolgico, biogrfico, iconogrfico e grfico , esta obra foi-se
tornando cada vez mais naquilo que , uma obra cultural, na justa medida do encontro criativo nela
dessas duas linguagens.
No incio da abordagem ao estudo do Orpheon Portuense e ao que poderia ser o seu patrimnio
cultural imaterial (PCI) foi necessrio delimitar o objecto de anlise. Para o fazer, tornava-se necessrio
escolher a metodologia mais adequada e eficaz. Foi assim que os dois antroplogos autores do presente
texto decidiram utilizar uma das ferramentas de trabalho da sua disciplina cientfica, o mtodo
etnogrfico, para recolha de dados e uma primeira aproximao ao objecto de estudo.
Deste modo, o primeiro objectivo desse texto o de apresentar a metodologia etnogrfica (baseada
em entrevistas udio e vdeo levadas a cabo pelos seus dois autores e tendo como suporte escrito os
Suplementos dos Anais do Orpheon Portuense), utilizada para melhor compreender os contextos
scio-culturais do Orpheon Portuense, sociedade coral de instruo musical e, mais tarde, sociedade
de concertos criada no perodo tardo-romntico. Para tal, foi constitudo um corpus conceptual (com
1
A autoria da Introduo e das Concluses comum aos dois autores.
2
Doutoranda em Antropologia pelo ISCTE-IUL e bolseira da FCT.
3
Doutor em Antropologia pelo ISCTE-IUL e investigador integrado do Centro de Investigao em Cincia e Tecnologia das
Artes da Universidade Catlica Portuguesa (CITAR UCP).
4
LEACH, Edmund Cultura / Culturas. In GIL, Fernando, (dir.) Enciclopdia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da
Moeda, 1985, vol.5, pp. 123-124.
Ora, o que revelou a aplicao do mtodo etnogrfico realizao das entrevistas que os autores
deste texto fizeram no mbito do projecto?
Em primeiro lugar, que o presente etnogrfico o ponto de partida da reversibilidade da leitura
antropolgica do tempo vivido e social, o que significa dizer que esta inversa da leitura histrica
do mesmo.
Em segundo lugar, que esta leitura parte do tempo breve do presente para o tempo longo do passado.
Em terceiro lugar, que a leitura cronolgica da antropologia permite reconstruir a progressiva
lentificao do tempo interior dos actores e das temporalidades sociais quando o lemos do presente
para o passado.
Centremo-nos aqui no presente etnogrfico das sociedades globalizadas dos dias de hoje. Como
j noutro local5 referi, os problemas mais evidentes deste tempo so, segundo autores to diferentes
como Elena Lasida ou Hermnio Martins: o aumento da conflitualidade, regional e inter-regional, tnica
e inter-tnica, familiar e inter-geracional; o desejo exacerbado de consumo; a desindustrializao de
amplas regies; a acentuao da degradao ambiental; a desigualdade crescente na repartio6; a
computarizao e a digitalizao da comunicao e da informao. Se estes configuram o aspecto diurno
da liberdade do tempo breve do nosso presente etnogrfico, j outros se encontram agrilhoados
nos subterrneos do tempo longo do passado, sem direito a uma expresso prpria, remetidos,
quando muito, expectativa prometaica que a investigao antropolgica possa trazer ao aspecto
nocturno7 da sua condio.
5
Vd. ARAJO, H. L. Gomes de Do tempo longo ao tempo acelerado: A Sociedade Musical de Guimares na Guimares
Capital da Cultura. In Guimaramus 2014. Simpsio Musical de Guimares. Guimares: Sociedade Musical de Guimares;
Universidade do Minho, 2014, pp. 105-121.
6
Vd. LASIDA, Elena Le got de lautre. La crise, une chance pour rinventer le lien. Paris: ditions Albin Michel, 2011, p. 311.
7
Vd. CABRAL, Joo Pina A difuso do limiar: margens, hegemonias e contradies. In Anlise Social. Lisboa: Instituto de
Cincias Sociais da Universidade de Lisboa, vol. XXX (153), 2000, pp. 865-892.
8
Vd. MARTINS, Hermnio Tecnocincia e arte. In Experimentum humanum. Civilizao tecnolgica e condio humana.
Lisboa: Relgio dgua Editores, 2011, p. 335.
9
ARAJO, H. L. Gomes de; ANDRADE, Constana Vieira de Memria oral e patrimnio imaterial da sociedade de concertos
Orpheon Portuense. Comunicao apresentada a 17 de Novembro de 2012 ao II Encontro Nacional de Investigao em
Msica (ENIM 2012), realizado em Castelo Branco.
10
GOODY, Jack A lgica da escrita e a organizao da sociedade. Lisboa: Edies 70, 1986. E Domesticao do pensamento
selvagem. Lisboa: Editorial Presena, 1988.
11
STEINER, Georges O silncio dos livros. Lisboa: Gradiva, 2005.
12
Vd. MARTINS, Hermnio Tecnocincia e arte. In Experimentum humanum. Civilizao tecnolgica e condio humana.
Lisboa: Relgio dgua Editores, 2011, p. 165.
13
WEBER, Max Economy and society. 2 ed. Berkeley, Los Angeles; London: University of California Press, 1978, p. 1114.
14
BRUNI, Luigino A ferida do outro. Economia e relaes humanas. 2 ed. So Paulo: Editora Cidade Nova, 2010, p. 154.
15
ARAJO, H. L. Gomes de Carismas e inovaco social. Mercado e gratuitidade dos dons artsticos nas elites do Porto
oitocentista. In SOUSA, Gonalo de Vasconcelos e (org.) Actas do 1 Congresso Romntico do Porto. Porto: UCE-Porto,
2012, pp. 813-823.
16
Vd. ARAJO, H. L. Gomes de (dir.) O projecto A Sociedade Orpheon Portuense (1881-2008) tradio e inovao. Porto:
CITAR; UCE-Editora, 2013, pp. 4 e 5.
17
Ao contrrio do que acontece, por norma, nas sociedades de cariz rural, o que tem justificado o recurso ao mtodo
etnogrfico para recolha de memria oral.
[] Depois havia um primeiro contacto [com os artistas] quando se ia aos autgrafos, j havia um
primeiro contacto com as pessoas e normalmente era a que s vezes se convidava o artista para
qualquer coisa. E depois, quando havia isso, no eram todos que eram privilegiados [].
Lus lvares Ribeiro, 21.6.2012
18
Vd. WEBER, Max From Max Weber: essays in sociology. New York: Oxford University Press, 1946.
A minha famlia toda era scia do Orpheon Portuense, e scios assduos e no s, havia um concerto
e depois no dia seguinte se comentava ao almoo como era o artista, como ia vestido, como ele
tocava, se era possvel transmitir por palavras a forma como tocava, e enfim, era uma apreciao
crtica nossa, mas crtica no sentido de apreciao, no com aspectos negativistas, como ns sempre
associamos palavra crtica, e crtica apreciarmos uma coisa, no propriamente dizer mal. A
mim isso criava um apetite muito grande na medida em que ouvia as pessoas mais velhas, pais e
outros familiares, falarem do Orpheon.
Maria Teresa de Macedo, 22.1.2013
Na altura as pessoas conheciam-se quase todas, pelo menos uma grande quantidade, porque os
scios estavam muito limitados em nmero. E estavam limitados pela capacidade do Teatro S. Joo.
E no se contava normalmente, a no ser para concertos especiais, com as galerias l em cima.
Contava-se com a plateia, os camarotes, o balco, o 1 e o 2 balco. Portanto o nmero de scios
era compatvel com o nmero de lugares que havia disponvel para os scios, os filhos, etc. Os filhos
dos scios entravam automaticamente, de maneira que tinha de haver sempre uma margem de
segurana para poderem entrar scios por essa via. s vezes havia pessoas que queriam ser scias
e esperavam anos.
Lus lvares Ribeiro, 21.6.2012
Estes convvios familiares tiveram a funo no s de estreitar laos, como de educar segundo os
critrios vigentes no seio deste grupo de status.
A preservao do patrimnio imaterial do Orpheon que se conseguiu aferir at ao momento passa
pela gravao das entrevistas, mas tambm pela conservao e valorizao do esplio documental
albergado pela Casa da Msica. Os documentos completam os testemunhos orais, mas servem
igualmente como fonte de revivncia e renovao: atravs deles que se podem recriar no presente
repertrios ouvidos e sentidos por antigos scios. As fotografias autografadas oferecidas pelos artistas
permitem tambm ilustrar algumas memrias ouvidas nas entrevistas, que sublinharam o forte
impacto visual que alguns dos msicos causaram. Estas memrias do a entender que, por vezes, a
esttica na utilizao do corpo indissocivel da vivncia esttica da msica.
Constana Vieira de Andrade
Daniela Filipa Duarte Alves1, Hlder Filipe Sequeira Barbosa2, Jorge Ricardo Pinto3
Introduo
Ao longo do sculo XIX, o Porto e a Maia tinham funes distintas, mas complementares. A cidade
do Porto era a Manchester Portuguesa, nas palavras de Sousa-Reis, e, de h muito, era erguida
pelo comrcio e por uma burguesia competitiva, muitas vezes com dinheiro brasileiro. A Maia era
essencialmente um concelho perifrico de feio rural e agrcola de abastecimento cidade.
Embora distintos, estes dois territrios mantinham uma estreita relao de interdependncia.
A circunstncia geogrfica da Maia permitiu-lhe fornecer, das mais diversas formas, a cidade do
Porto com os mais variados produtos e recursos humanos, quer, por exemplo, atravs de gneros
alimentcios que posteriormente eram escoados nos mercados da cidade, nomeadamente o Anjo e o
Bolho, ou nas muitas feiras dispersas pela cidade, quer atravs de mo-de-obra ligada construo
ou tecelagem, como o Inqurito Industrial de 1881 to bem documenta. Estabeleceu-se, portanto,
uma relao de interdependncia entre ambos: por um lado, o Porto absorvendo matrias-primas
e populao, e, por outro, a Maia escoando os seus produtos e os excedentes demogrficos. Para a
compreenso desta realidade, cruzamos os dados paroquiais e de registo militar com outras fontes,
como a compra, venda e arrendamento de lugares de venda nos mercados da cidade do Porto.
Na dcada de 80 do sculo XIX, a Maia assiste ao regresso de um dos seus filhos, vindo do Brasil.
Jos da Silva Figueira, brasileiro de torna-viagem, mais tarde conhecido por Visconde de Barreiros,
assume um papel de extrema importncia para o desenvolvimento da sua freguesia de S. Miguel de
1
CHIP - ISCET, Portugal. danielafdalves@hotmail.com. Licenciada em Turismo e Mestre em Turismo e Desenvolvimento
de Negcios pelo Instituto Superior de Cincias Empresariais e do Turismo (ISCET). Estagiou no grupo de investigao
CHIP (Culture, Heritage and Identity in Porto) sediado no CIIIC (Centro de Investigao Interdisciplinar e Interveno
Comunitria).
2
CHIP ISCET, Portugal. helder.filipe.barbosa@hotmail.com. Licenciado em Turismo e Mestre em Turismo e Desenvolvimento
de Negcios pelo Instituto Superior de Cincias Empresariais e do Turismo (ISCET).
3
CHIP ISCET, Portugal. mirpinto@iscet.pt. Licenciado, mestre e doutor em geografia na FLUP. Docente coordenador no
ISCET e docente na Utad. Investigao centrada na morfologia e histria urbana e na geografia social, tanto no CEGOT
como no CIIIC, onde o investigador responsvel pelo projeto de investigao CHIP. autor de dois livros: O Porto Oriental
no final do sculo XIX, Bonfim Territrio de Memrias e Destinos, coordenador de O 285 da rua de Cedofeita, e, em
co-autoria na coordenao, Turismo, Patrimnio e Inovao. Subdiretor da revista cientfica portuguesa: Percursos e
Ideias.
4
OLIVEIRA, lvaro Aurlio do Cu Temas Maiatos Visconde de Barreiros. Maia: Cmara Municipal da Maia, 1984.
5
LEAL, Augusto Soares dAzevedo Barbosa de Pinho Portugal Antigo e Moderno: diccionrio geographico, estatistico,
chorographico, heraldico, archeologico, historico, biographico e etymologico de todas as cidades, villas e freguezias de
Portugal e de grande numero de aldeias. Lisboa: Mattos Moreira & Companhia, 1875, vol. 5, p. 35.
6
DIONSIO, Santana Guia de Portugal Entre Douro e Minho Douro Litoral. 3 ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian,
1985, vol. 2, p. 450.
7
A.D.P., Recenseamento militar da Maia, de 1870 at 1890, e de 1899.
8
A.D.P., Registos paroquiais, todo o concelho da Maia, Registos de casamento 1875.
9
A.D.P., Recenseamento militar da Maia, de 1870 at 1890, e de 1899.
10
MAIA, Rui Leandro Alves da Costa So Miguel de Barreiros e a sua populao 1700-1925: estudo demogrfico. Porto:
Universidade Fernando Pessoa, 1996, p. 37.
11
A.D.P., Registos paroquiais, Freguesia de Maia (Maia), Registos de casamento, 1881.
12
SELLERS, Charles Oporto, old and new. London: Herbert E. Harper, 1899, p. 26.
13
MARQUES, Jos Augusto Maia Moreira da Maia no sculo XIX segundo o manuscrito do Padre Joaquim Antunes de
Azevedo, Maia: Cmara Municipal da Maia, 1998.
14
MONTEIRO, Ablio Poesias e Canes Populares do Concelho da Maia, Porto: Livraria Portugueza, 1900, p. 119.
Ainda hoje, como ha trinta anos, nos dias de feira, teras, quintas e sabbados, que os lavradores e
as lavradeiras dos arrabaldes costumam ir cidade vender os productos dos seus campos e comprar
tudo aquillo que a aldeia lhes no pde fornecer. Pelas barreiras entram aos grupos essas robustas
e esveltas cachopas, de canastra cabea, que vo levar ao mercado as bellas aves, as magnificas
hortalias, os excellentes legumes creados em S. Cosme, na Maia, nos Carvalhos, em Grij.
Todavia, no foi possvel encontrar muita documentao da poca que espelhasse este movimento
de maiatos para o Porto com o intuito de escoarem os seus produtos hortcolas. Foram consultados
os alugueres de bancas do Mercado do Bolho, em 1878 e 1883, e o aluguer de bancas do Mercado
Ferreira Borges, de 1888 e 1891, e apenas neste ltimo mercado (concretamente em 1888) foi possvel
encontrar uma escassa referncia a um morador de Pedrouos (Maia). Nos vrios registos de aluguer
consultados so vrios os vendedores que no possuem morada, sendo que uma parte destes poderia
efetivamente ser da Maia. De qualquer forma, este facto parece mostrar que: ou, por um lado, os
maiatos no vendiam os seus produtos diretamente ao cliente final, mas forneciam aos vendedores
estabelecidos nos mercados da cidade; ou, por outro, os alugueres das bancas poderiam ser efectuados
atravs de intermedirios, ocultando assim a presena de maiatos nos registos consultados.
Num territrio de produo agrcola e cerealfera, no surpreende a elevada quantidade de moinhos
que compunham a sua paisagem. Segundo o Inqurito Industrial de 1881, uma boa parte da produo
de farinhas da Maia era sobretudo escoada no Porto, o principal consumidor das mesmas no distrito18.
Como prova da capacidade de exportao da Maia. Veja-se o caso da oficina do padeiro Reis, que se
situava na Rua Formosa, e que consumia diariamente entre 150 a 200 quilogramas de farinhas, sendo
a Maia a sua maior fornecedora, contribuindo com 100 quilogramas de farinha diariamente.
15
PDM Plano Diretor Municipal: Introduo, Anlise Histrica e Anlise Fsica, volume I, Maia: Cmara Municipal da Maia,
1994, p. 44.
16
PDM Plano Diretor Municipal: Introduo, Anlise Histrica e Anlise Fsica, volume I, Maia: Cmara Municipal da Maia,
1994, p. 33.
17
PIMENTEL, Alberto O Porto h trinta annos. Porto: Livraria Universal, 1893, pp. 23-24.
18
AAVV Relatrio apresentado Exc.mo Snr Governador Civil do Districto do Porto pela Sub-Comisso encarregada das visitas
aos estabelecimentos industriaes, Porto: Typ. de Antnio Jos da Silva Teixeira, 1881.
Valongo, Bouas, Maia e Gaia contam conjuntamente 4234 pedreiros, carpinteiros e estucadores,
porque na mxima parte esses operrios, residindo nos arrabaldes da cidade, trabalham semana
no Porto. [] O operrio dos arrabaldes vem aos bandos segunda-feira de madrugada carregado
com a saca onde traz a broa para toda a semana; vive durante ela arranchando pelas obras a caldo;
e ao sbado regressa a passar o domingo em casa com a famlia que entretanto cuida da lavoura e
da engorda dos bois. Em grande parte os operrios so tambm lavradores, pequenos proprietrios
e as economias do salrio consolidam-se na terra21.
Ou seja, muito do patrimnio edificado da cidade do Porto ter sido erguido pelas mos de inmeros
maiatos, que passavam a semana na cidade do Porto e regressavam Maia no final da semana.
No inverno, as florestas e bosques da Maia eram exploradas por lenhadores que enviavam a lenha
e o tabuado para o Porto. Parte dessas madeiras (sobretudo pinho), utilizadas para a construo de
casas e moblias, eram provenientes principalmente dos pinhais da Maia, [e vendiam-se] nas estaes
de caminho-de-ferro do Porto (Pinheiro e Boavista), em tabuado, a preo entre os 6 e 6$500 reis o metro
cbico22. Da madeira faziam-se tambm bas que depois eram vendidos na popular Feira das Caixas,
que se realizava, em meados do sculo XIX, na atual praa de Carlos Alberto, onde, se vendiam as
caixas, bancos, mesas, beros e camas toscamente fabricadas, de pinho, por artistas daldeia23, como
aqueles que vinham da Maia.
A indstria manufatureira do algodo estava tambm em perfeita ligao com o Porto, visto
que as fiadeiras e dobadeiras de Bouas e da Maia [] trabalham para as fbricas do Porto, vindo
semanalmente cidade buscar a matria-prima e levando o produto fabricado24.
Madeireiros, fiadeiras, dobadeiras, artesos, mas tambm peixeiras e ardinas, so memrias
plasmadas em poesias e cantares da Maia, como neste exemplo recolhido, em 1900, por Ablio Augusto
Monteiro:
19
SELLERS, Charles Oporto, old and new. London: Herbert E. Harper, 1899.
20
Cf. PINTO, Jorge Ricardo O Porto oriental no final do sculo XIX, Porto: Afrontamento, 2007.
21
Cf. Inqurito Industrial de 1881, p. 27.
22
AAVV Relatrio apresentado Exc.mo Snr Governador Civil do Districto do Porto pela Sub-Comisso encarregada das visitas
aos estabelecimentos industriaes. Porto: Typ. de Antnio Jos da Silva Teixeira, 1881, pp. 253-254.
23
Cf. O Tripeiro, Srie I, Ano II, n 60 (20 de Fevereiro de 1910), p. 384.
24
AAVV Relatrio apresentado Exc.mo Snr Governador Civil do Districto do Porto pela Sub-Comisso encarregada das visitas
aos estabelecimentos industriaes. Porto: Typ. de Antnio Jos da Silva Teixeira, 1881, p. 43.
Nesta malha de ligaes, nem tudo era um mar de rosas. A criminalidade fazia tambm parte do
quotidiano do concelho da Maia, muito embora se situasse longe da grande agitao e movimentao
do Porto e mantivesse a ruralidade como refgio. Vrias notcias apontam para a presena de quadri-
lhas de ladres que viam os lavradores e as igrejas como bons alvos26 para os seus ataques furtivos.
Os roubos eram frequentes e quase quotidianamente apareciam vadios do Porto pelas freguesias
do concelho, que se abatem rezes doentes, que passeiam imponentemente pelos caminhos e estradas
indivduos armados, sem a competente licena27.
A anlise aos recenseamentos militares da Maia28 permite compreender a relao entre os dois
territrios em diferentes dimenses.
O grfico 1 representa os indivduos que foram recenseados no concelho da Maia entre 1870 e 1890
e que mantinham uma relao com o Porto. Por um lado, so identificados maiatos que se encontravam
a viver no Porto (Maia-Porto); e, por outro, portuenses que se encontravam a viver na Maia (Porto-Maia).
Assim sendo, neste perodo (1870-1890) foram detetadas 24 pessoas com naturalidade maiata mas
com residncia no Porto e 15 pessoas naturais do Porto, mas que se encontravam a residir na Maia.
25
MONTEIRO, Ablio Poesias e Canes Populares do Concelho da Maia, Porto: Livraria Portugueza, 1900, p. 121.
26
Cf. Correio da Manh, 13 de outubro de 1904 e Dirio de Notcias, 18 de fevereiro de 1887.
27
Cf. Revista dos Acontecimentos da Maia, abril de 1883.
28
A.D.P., Recenseamento militar da Maia, de 1870 at 1890, e de 1899.
Centremo-nos primeiro no brasileiro Jos da Silva Figueira, que ficou conhecido como o Visconde
de Barreiros (fig. 1). Nascido a 21 de maro de 1838, na freguesia de So Miguel de Barreiros (atual
freguesia da Maia), o futuro Visconde era filho de lavradores, residentes no Lugar da Estrada, na Maia. A
partida para o Brasil (outrora visto como a terra prometida) aconteceu quando Jos da Silva Figueira
ainda tinha a tenra idade de 14 anos. Em 1852, o futuro Visconde abandonou o seu lar e a sua terra
e partiu em busca de riqueza, como tantos outros jovens que saam de Portugal rumo ao El Dorado
brasileiro. Ao chegar ao Brasil, mais precisamente ao Rio de Janeiro, dedicou-se ao comrcio, tendo sido
29
TRINDADE, Maria Beatriz Rocha; CAEIRO, Domingos Jos Alves Portugal-Brasil: migraes e migrantes, 1850-1930, Lisboa:
Edies INAPA, 2000.
30
OLIVEIRA, lvaro Aurlio do Cu Temas Maiatos Visconde de Barreiros, Maia: Cmara Municipal da Maia, 1984, p. 17.
31
IDEM, Ibidem, p. 17.
32
ALVES, Daniela Filipa Duarte, et al. A Maia nas transies de sculo: Visconde de Barreiros e Vieira de Carvalho. In PINTO
CORREIA, Teresa; HENRIQUES, Virgnia & JULIO, Rui (org.) IX Congresso da Geografia Portuguesa Geografia: espao,
Natureza, Sociedade e Cincia. Universidade de vora; APGEO, 2013.
33
IDEM, Ibidem, p. 387.
34
A.D.P., Escritura Pblica de 20 de Fevereiro de 1883.
Ao contrrio de Jos da Silva Figueira (Visconde de Barreiros) que da Maia se fixou no Porto, um
seu conhecido de nome Ablio Augusto Monteiro (fig. 2) viu-se na necessidade de fazer o oposto,
isto , deixar a cidade do Porto e fixar residncia na Maia. Ablio Augusto Monteiro nasceu a 25 de
novembro de 1851, e era filho de Antnio Lus Monteiro (conhecido tabelio da cidade do Porto, e um
dos 7.500 Bravos do Mindelo) e de Ana Maria da Glria.
35
OLIVEIRA, lvaro Aurlio do Cu Temas Maiatos Visconde de Barreiros, Maia: Cmara Municipal da Maia, 1984.
36
Cf. O Comrcio do Porto, 27 de dezembro de 1892.
37
A.D.P., Caderno de recenseamento dos mancebos para recrutamento do Exrcito, referente ao Bairro Ocidental do Porto,
1871.
38
VICTORINO, Pedro Os Bombeiros Voluntrios. O Tripeiro. Porto. Srie I, ano I, 1908, pp. 121-122.
39
AZEVEDO, Padre Joaquim Antunes de Memrias de Tempos Idos, 1 volume, Maia: Clube UNESCO da Maia, 2014.
40
Cf. Revista dos Acontecimentos da Maia, 2 trimestre de 1882.
41
AZEVEDO, Padre Joaquim Antunes de Memrias de Tempos Idos, 3 volume, Maia: Clube UNESCO da Maia, 2015, pp. 93.
Concluso
Apesar da proximidade ao Porto, o concelho da Maia era, no sculo XIX, um territrio bastante
distinto da cidade Invicta. De um lado, o bucolismo e a ruralidade que marcavam a paisagem da Maia;
do outro, uma cidade em franca expanso, movida pelo desejo de progresso e pelo dinheiro que vinha,
em grande parte, do Brasil. No entanto, e embora estejamos perante dois territrios com caractersticas
muito distintas, o Porto e a Maia mantinham uma mtua dependncia. A Maia assumia-se como um
territrio fornecedor, respondendo necessidade que a cidade do Porto tinha de alimentos e tambm
de mo-de-obra, essencialmente ligada construo e tecelagem.
Para alm do fluxo de bens e de uma populao flutuante que trabalhava no Porto durante a
semana e regressava Maia ao sbado, a relao entre os dois territrios era feita tambm de outras
permanncias e de outros movimentos, como aqueles protagonizados por Jos da Silva Figueira, o
Visconde de Barreiros, e por Ablio Augusto Monteiro.
Estas duas figuras de destaque, tanto no Porto como na Maia de Oitocentos, ilustram o papel da
Maia enquanto prolongamento territorial do Porto, numa antecipao ao papel metropolitano que
o futuro trar, construdo numa teia de relaes econmicas, culturais e sociais que ajudaram a criar
uma paisagem urbana distinta do Porto, embora complementar e dela herdeira.
Fontes e Bibliografia
Fontes manuscritas
A.D.P., Caderno de recenseamento dos mancebos para recrutamento do Exrcito, referente ao Bairro
Ocidental do Porto, 1871.
A.D.P., Escritura Pblica de 20 de Fevereiro de 1883.
A.D.P., Recenseamento militar da Maia, de 1870 at 1890, e de 1899.
A.D.P., Registos paroquiais, Freguesia de Maia (Maia), Registos de casamento 1881, f. 4.
A.D.P., Registos paroquiais, Freguesia de Maia (Maia), Registos de baptismo 1817-1845, f. 125.
A.D.P., Registos paroquiais, Freguesia de Maia (Maia), Registos de bito 1892, f. 10.
A.D.P., Registos paroquiais, Freguesia de Miragaia (Porto), Registos de baptismo 1845-1857, f. 85.
A.D.P., Registos paroquiais, Freguesia de Pedroso (Vila Nova de Gaia), Registos de casamento 1873-1875,
f. 128.
A.D.P., Registos paroquiais, todo o concelho da Maia, Registos de casamento 1875.
42
MONTEIRO, Ablio Augusto O Carcter Revelado: Sciencias e Phantasias. Porto: Typ. Universal, 1908.
Publicaes Peridicas
Correio da Manh 13 de Outubro de 1904
Dirio de Notcias 18 de Fevereiro de 1887
Revista dos Acontecimentos da Maia 2 Trimestre de 1882
Revista dos Acontecimentos da Maia Abril de 1883
Jornal O Comrcio do Porto 27 de dezembro de 1892
Bibliografia
AAVV Relatrio apresentado Exc.mo Snr Governador Civil do Districto do Porto pela Sub-Comisso
encarregada das visitas aos estabelecimentos industriaes. Porto: Typ. de Antnio Jos da Silva
Teixeira, 1881.
ALVES, Daniela Filipa Duarte, et al. A Maia nas transies de sculo: Visconde de Barreiros e Vieira
de Carvalho. In CORREIA, Teresa Pinto; HENRIQUES; Vrgnia; JULIO, Rui (org.) IX Congresso da
Geografia Portuguesa Geografia: espao, Natureza, Sociedade e Cincia. Universidade de vora,
APGEO, 2013.
AZEVEDO, Antnio Pedaos do Tempo. Maia: Pelouro da Cultura da Cmara Municipal da Maia, 2002.
AZEVEDO, Padre Joaquim Antunes de Memrias de Tempos Idos. Maia: Clube UNESCO da Maia,
2014. 1 volume.
AZEVEDO, Padre Joaquim Antunes de Memrias de Tempos Idos, 3 volume, Maia: Clube UNESCO
da Maia, 2015.
DIONSIO, Santana Guia de Portugal Entre Douro e Minho Douro Litoral. 3 ed. Lisboa: Fundao
Calouste Gulbenkian, 1985, vol. 2.
LEAL, Augusto Soares dAzevedo Barbosa de Pinho Portugal Antigo e Moderno: diccionrio geographico,
estatistico, chorographico, heraldico, archeologico, historico, biographico e etymologico de todas as
cidades, villas e freguezias de Portugal e de grande numero de aldeias. Lisboa: Mattos Moreira &
Companhia, 1875, vol. 5.
MAIA, Rui Leandro Alves da Costa So Miguel de Barreiros e a sua populao 1700-1925: estudo
demogrfico. Porto: Universidade Fernando Pessoa, 1996.
MARQUES, Jos Augusto Maia Moreira da Maia no sculo XIX segundo o manuscrito do Padre Joaquim
Antunes de Azevedo. Maia: Cmara Municipal da Maia, 1998.
MONTEIRO, Ablio Poesias e Canes Populares do Concelho da Maia. Porto: Livraria Portugueza, 1900.
MONTEIRO, Ablio Augusto O Carcter Revelado: Sciencias e Phantasias. Porto: Typ. Universal, 1908.
OLIVEIRA, lvaro Aurlio do Cu Temas Maiatos Visconde de Barreiros. Maia: Cmara Municipal
da Maia, 1984.
1
Instituto Universitrio da Maia/CIAC
2
CONCEIO, Alexandre da Guilherme Braga. A Renascena. Orgo dos Trabalhos da Gerao Moderna, p. 103.
3
IDEM, Ibidem, p. 104.
4
CASTELO BRANCO, Camilo Cancioneiro Alegre de Poetas Portuguezes e Brazileiros commentado por Camillo Castello
Branco. Porto e Braga: Livraria Internacional de Ernesto Chardron Editor, 1879, p. 445.
5
BRUNO, Sampaio Antes de lr. In BRAGA, Guilherme O Bispo. 2 ed. Porto: Livraria Cames de Fernandes Possas, p. XXV.
6
ARAJO, Joaquim Guilherme Braga. A Renascena. Orgo dos Trabalhos da Gerao Moderna. Porto: fasc. VIII, IX, X
(Agosto, Setembro e Outubro de 1878), p. 160.
7
CONCEIO, Alexandre da Op. cit., p. 106.
8
IDEM, Ibidem.
9
Disponvel em www.e-poeticae.com.
10
Apud OLIVEIRA, Roberto Vaz de Homens do Porto Barcelos e Vila da Feira. Aveiro e o seu distrito. N 12. Publicao
Semestral da Junta Distrital de Aveiro, Dezembro de 1971. Disponvel em http://www.prof2000.pt/users/avcultur/
AveiDistrito/Boletim12/page51.htm.
11
Cf. BRAGA, Guilherme Heras e Violetas. Poesias. Porto: Typographia da Livraria Nacional, 1869.
12
Cf. CASTELO BRANCO, Camilo Op. cit.
13
Cf. BRAGA, Tefilo Parnaso Portuguez Moderno. Lisboa: Francisco Arthur da Silva Editor, 1877.
14
Cf. CASTELO BRANCO, Camilo Op. cit., p. 445.
15
PATO, Raimundo Antnio de Bulho Sob os Ciprestes. Vida intima de homens illustres. Lisboa: Livraria Bertrand, 1879.
16
FORMONT, Maxime Le Mouvement Potique Contemporain en Portugal. Lyon: Imprimerie A. Storck, 1892.
17
Apud OLIVEIRA, Roberto Vaz de Op. cit.
18
PESSOA, Fernando Pginas de Esttica e de Teoria e Crtica Literrias. Lisboa: Edies Atica, 1966, p. 236.
19
SARAIVA, Antnio Jos; LOPES, scar Histria da Literatura Portuguesa, 17 ed. cor. e act. Porto: Porto Editora, 1996,
p. 764.
20
COELHO, Jacinto do Prado Guilherme Braga. In Dicionrio de Literatura. Literatura Portuguesa. Literatura Brasileira.
Literatura Galega. Estilstica Literria. 4 ed. Porto: Figueirinhas, 1989, vol. 1, p. 119.
21
Apud OLIVEIRA, Roberto Vaz de Op. cit.
22
Cf. OLIVEIRA, Roberto Vaz de Op. cit.
23
REIS, Carlos; PIRES, Maria da Natividade Histria Crtica da Literatura Portuguesa, Volume V O Romantismo. Lisboa:
Editorial Verbo, 1993.
24
MACHADO, lvaro Manuel Guilherme Braga. In MACHADO, lvaro Manuel (dir.) Dicionrio de Literatura Portuguesa.
Lisboa: Editorial Presena, 1996, pp. 71-72.
25
SILVEIRA, Pedro Guilherme Braga. In Dicionrio do Romantismo Literrio Portugus. Lisboa: Editorial Caminho, 1997,
pp. 54-55.
26
VIEIRA, Clia; RIO NOVO, Isabel Guilherme Braga. In Literatura Portuguesa no Mundo. Dicionrio Ilustrado. Porto: Porto
Editora, 2005, vol. II, p. 50.
27
Disponvel em www.e-poeticae.com.
28
Devemos, com efeito, a Antnio Ferreira de Brito o primeiro estudo de fundo acerca da chamada Escola do Porto, em BRITO,
Antnio Ferreira de A Escola do Porto e Victor Hugo (O Grupo de A Grinalda). In BRITO, Antnio Ferreira de Victor Hugo
e Portugal. Actas do Colquio (no centenrio da sua morte). Porto: FLUP, 1987, pp. 91-120.
29
BRUNO, Sampaio O Bispo por Guilherme Braga. A Harpa. Porto: 1874, pp. 146-147.
30
Em carta a Jos Palmela datada de abril de 1870, Vtor Hugo referia a necessidade de colaboradores para o seu apostolado:
Dissiper tous les prjugs, dissoudre toutes les erreurs, deshonorer tous les mensonges, voil la tche que je me suis impose.
Je mefforce de faire le jour dans la conscience humaine; je me dvoue ce grand devoir, tirer toutes les consquences de la
Rvolution; aboutir en politique aux tats-Unis dEurope, en socialisme au bien tre moral et matriel des Travailleurs, en
philosophie, Dieu, dlivr des rligions. Cette uvre est rude; jy dpense le peu que je puis et le peu que je suis. Je npargne
aucune superstition. De l un grand combat. On me hait beaucoup, mais on maime un peu. Dans cette ardente mle, jai
besoin dauxiliaires. Cf. HUGO, Vtor Carta a Jos Palmela, 24-4-1870, apud Expediente. A Folha. 2 srie. 9 (1870), p. 72.
31
Cf. ARAJO, Joaquim Op. cit., pp. 158-160. A revoluo potica analisada por Joaquim de Arajo neste artigo relacio-
nada com a receo da poesia social hugoliana: a epopeia victor-huguana encontrra no Porto uma valente legio que a
recebera com os braos abertos como quem recebe a boa nova, e quando as Odes Modernas e a Viso dos Tempos [] foram
conhecidas do publico, j as valentes e heroicas estrophes de Custodio Jos Duarte tinham atrahido todos os moos poetas
do norte, como o sino grande das communas chamava outrora os populares (IDEM, Ibidem, p. 158).
32
Cf. PIMENTEL, Alberto Atravez do Passado. Paris e Lisboa: Guillard Aillaud e C, 1888, pp. 1-31. semelhana de Joaquim
de Arajo, no artigo supracitado de Alberto Pimentel, neste texto, de Tefilo Braga, no opsculo Historia do Poesia
Moderna em Portugal.Carta a J. M. Nogueira Lima sobre A Grinalda. Porto: Typographia da Livraria Nacional, 1869, e de
Alexandre da Conceio Op. cit., tambm Sampaio Bruno realou a importncia da revista A Grinalda, onde se pode
ver como, passo a passo, aos velhos ideais poticos e s velhas frmulas romnticas, cadas to depressa no ridculo, quem o
pensasse?, se vai substituindo, lentamente, a poesia que acha mais digna de suas estrofes as lutas gigantescas das sociedades
modernas pela existncia progressiva do que as castels medievas, cruzados, monges, torneios, tristezas ascticas, catedrais
sombrias, amores funestos, virgens histricas e homens precitos (Cf. BRUNO, Sampaio A Gerao Nova (Ensaios Crticos).
Os Novelistas. 2 edio. Porto: Livraria Chardron de Lello & Irmo Editores, 1984, p. 65.) J no sculo XX, Maria Manuela
Gouveia Dellille chamou a ateno para o modo como observmos na revista portuense A Grinalda a sobreposio
progressiva de um novo estrato huguesco (o Victor Hugo dos Chtiments, das Contemplations e da Lgende des Sicles)
ao estrato lamartiniano. (Vd. DELLILLE, Maria Manuela A Recepo Literria de H. Heine no Romantismo Portugus (de
1844 a 1871). Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1984, p. 163. Tivemos, ns prprias, a oportunidade de nos
debruarmos sobre esta mesma publicao e a sua importncia no quadro do romantismo portuense na primeira edio
deste congresso; cf. RIO NOVO, Isabel; VIEIRA, Clia Textos tericos do Romantismo literrio nos peridicos portuenses:
do Repositrio Literrio (1834-1835) Grinalda (1855-1869). In Actas do I Congresso O Porto Romntico. Porto: UCE-Editora;
CITAR, 2012, vol. II, pp. 67-84.
33
Cf. CASTELO BRANCO, Camilo Op. cit., p. 387.
34
Cf. BRAGA, Guilherme Heras e Violetas. Poesias, ed. cit., p. 61.
35
Vd. BRAGA, Guilherme Eccos de Aljubarrota. Porto: Typographia Lusitana Editora, 1868, pp. 7-9.
36
Cf. OUTEIRINHO, Maria de Ftima Os poemas narrativos. In Histria da Literatura Portuguesa. Volume 4 O Romantismo.
Mem Martins: Publicaes Alfa, 2003, p. 279.
37
Apud OUTEIRINHO, Maria de Ftima Op. cit., p. 280.
38
Cf. BRAGA, Guilherme Heras e Violetas. Poesias, ed. cit., pp. 199-203.
Enquanto prossegue o seu caminho solitrio de ser excecional, o poeta que lega humanidade
Um verso, uma esperana, uma estrophe, uma beno. Em jeito romntico, a sua interveno redentora
s perturbada pela crtica, que surge alegoricamente representada sob a forma de uma an cxa e
cega, / Cujo aspecto disforme incommda e faz mal. Porm, as censuras, a inveja, os torpes folhetins,
pagos pelo rancor, no podem roubar ao poeta a glria futura: Depois o teu porvir se alargar, e,
ento, / Por cada insulto vil, por cada imprecao/ Onde, luz da verdade, um odio se revela, / A gloria
ha de atirar-te uma flr, uma estrella!40.
Tanto pela potica de combate assim delineada, como pelos libelos anticlericais O Bispo e Os Falsos
Apstolos, compreende-se que a dimenso panfletria da obra de Guilherme Braga seja aquela que
sobrelevada pelos crticos contemporneos. Segundo o juzo algo severo de Cndido de Figueiredo, por
exemplo, No seu vigoroso talento havia alguma coisa de impaciente e febril. A sua penna tornava-se
por vezes um cauterio crudelissimo que se embebia cegamente nas chagas sociaes. Em vez de sarar a
pustula, accendia a febre. Da febre, o delirio; e do delirio a lucta ingloria41.
No entanto, a potica de Guilherme Braga est longe de perfilhar os pressupostos da escola realista-
naturalista que por essa altura j concitava tanto os seus adeptos como os seus opositores. Na obra
memorialista Sob os ciprestes, Bulho Pato transcreve o excerto de uma carta de Guilherme Braga,
em cujas linhas se insurge contra o que denomina de escola satnica, apresentando os argumentos
que, ao longo das dcadas seguintes, iro ser reiterados pelos seus opositores:
Eu no posso aturar uma cousa que h ahi que intenta insurreccionar-se contra a frma, e apenas se
revolta contra o senso commum. Para que h de a gente cansar-se com elles, com os propagandistas
daquelle paradoxo erradamente attribuido a V. Hugo: Le beau cest la laideur! No valem o trabalho,
nem o tempo perdido, nem a paciencia gasta. Para mim o poeta deve ser como o esculptor, e seria
39
IDEM, Ibidem, p. 201.
40
IDEM, Ibidem.
41
Cf. FIGUEIREDO, Cndido de Guilherme Braga. A Harpa. Porto, 1874, p. 105.
Razes de sobejo teria, pois, por exemplo, Alberto Pimentel, para distinguir o autor de Heras e
Violetas do enxame de poetas pseudo-revolucionrios do seu tempo, que, na generalidade, tentaram
assassinar a poesia subjectiva43, a mesma que Guilherme Braga cultivou e inclusivamente defendeu,
em artes poticas como aquela que se intitula A um poeta, onde o vemos rejeitar o ceticismo e o
satanismo e defender a inspirao, a idealizao da realidade e a conceo do poeta como ser superior44.
Em suma, Guilherme Braga foi um poeta em crise de passagem, vivencial e intelectual, do roman-
tismo para o realismo. Nas palavras de Camilo, Homens assim suicidam-se ou morrem de cansados
na lucta, peito a peito, com a Fatalidade, sua ultima e absurda crena na desesperana de Deus e do
diabo45. E Camilo sabia bem do que estava a falar.
Referncias bibliogrficas:
ARAJO, Joaquim Guilherme Braga. A Renascena. Orgo dos Trabalhos da Gerao Moderna. Porto,
fasc. V, VI, VII (1878), pp. 158-160.
BRAGA, Guilherme Heras e Violetas. Poesias. Porto: Typographia da Livraria Nacional, 1869.
Vd. BRAGA, Guilherme Eccos de Aljubarrota. Porto: Typographia Lusitana Editora, 1868.
BRAGA, Tefilo Historia do Poesia Moderna em Portugal. Carta a J. M. Nogueira Lima sobre A Grinalda.
Porto: Typographia da Livraria Nacional, 1869.
BRITO, Antnio Ferreira de A Escola do Porto e Victor Hugo (O Grupo de A Grinalda). In BRITO, Antnio
Ferreira de Victor Hugo e Portugal. Actas do Colquio (no centenrio da sua morte). Porto: FLUP,
1987, pp. 91-120.
BRUNO, Sampaio O Bispo por Guilherme Braga. A Harpa. Porto: 1874, pp. 146, 147.
BRUNO, Sampaio Antes de lr. In BRAGA, Guilherme O Bispo. 2 ed. Porto: Livraria Cames de
Fernandes Possas, 1895, pp. IX-XXVI.
BRUNO, Sampaio A Gerao Nova (Ensaios Crticos). Os Novelistas. 2 ed. Porto: Livraria Chardron
de Lello & Irmo Editores, 1984.
CASTELO BRANCO, Camilo Cancioneiro Alegre de Poetas Portuguezes e Brazileiros commentado por
Camillo Castello Branco. Porto e Braga: Livraria Internacional de Ernesto Chardron Editor, 1879.
COELHO, Jacinto do Prado Guilherme Braga. In Dicionrio de Literatura. Literatura Portuguesa.
Literatura Brasileira. Literatura Galega. Estilstica Literria, 4 ed. Porto: Figueirinhas, 1989.
CONCEIO, Alexandre da Guilherme Braga. A Renascena. Orgo dos Trabalhos da Gerao Moderna.
Porto: fasc. VIII, IX, X, (1878), pp. 103-106.
DELLILLE, Maria Manuela A recepo literria de H. Heine no Romantismo portugus (de 1844 a 1871).
Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1984.
42
PATO, Raimundo Antnio de Bulho Op. cit., p. 321.
43
PIMENTEL, Alberto Homens e Datas. Porto e Rio de Janeiro: Editora Livraria Portugueza e Estrangeira, [s. d.], pp. 113, 114.
44
Vd. BRAGA, Guilherme Heras e Violetas. Poesias, ed. cit.
45
Cf. CASTELO BRANCO, Camilo Op. cit., p. 444.
La msica, los estados de felicidad, la mitologa, las caras trabajadas por el tiempo, ciertos crepsculos
y ciertos lugares, quieren decirnos algo, o algo dijeron que no hubiramos debido perder, o estn por
decir algo; esta inminencia de una revelacin, que no se produce, es, quiz, el hecho esttico.
Jorge Luis Borges, 1952
A grande obra de arte total, que h-de compreender todos os gneros da arte para de certo modo
usar cada um desses gneros como meio e suprimi-lo em favor da realizao do objectivo conjunto
de todos eles, a saber, o da representao incondicionada e imediata da natureza humana na sua
perfeio, essa grande obra de arte total, o esprito no a v como facto arbitrrio passvel de ser
realizado pelo indivduo singular, mas sim como obra dos homens do futuro, que necessariamente
tem de ser pensada como obra coletiva.
Richard Wagner, 1849
1. Aspetos preliminares
Como sabido, a Arte Contempornea relaciona-se de forma problemtica com o sculo XIX, em
virtude do atoleiro do historicismo e do academismo em que aquele tempo, em mltiplos aspetos,
se viu atascado, oferecendo resistncia tenaz sntese do novo que as transformaes que o mesmo
sculo aceleradamente foi introduzindo, afinal, clamavam.
Ao mesmo tempo, porm, importa interrogarmo-nos se faz sentido falar de Arte Contempornea
como categoria histrica, fora da taxonomia especializada dos Museus de Arte. Ser que existe mesmo
uma Arte Contempornea para l dos crculos e dos meios que lhe do corpo e enunciado e, como
tal, a constituem?
Para elucidar a questo, importa convocar o trabalho da sociloga da arte Nathalie Heinich, obser-
vando como resiste a noo de Arte Contempornea ao duplo exame do enquadramento cronolgico
e da fundamentao esttica.
Eis como a autora coloca o problema:
Lobservation des usages effectifs du terme montre que le critre nest pas rductible la simple
priodisation, puisquune grande partie des uvres postrieures 1945 ou 1960 sont de facto exclues
de ce qui circule sous la dsignation art contemporain: chromos, images dcoratives vendues en srie,
uvres de tendance classique ou moderniste (postimpressionnisme, post-cubisme, post-surralisme),
exposs dans les Salons ou dans certaines galeries, notamment en province. Implicitement, il sagit donc
bien dune catgorie esthtique, analogue ce quon appelait du temps de la peinture figurative un
genre: genre qui occupe une position analogue de celle qui fut impartie autrefois peinture dhistoire1.
1
HEINICH, Nathalie Le triple jeu de lArt Contemporain. Paris: Les ditions du Minuit, 1998, p. 11.
Parlant, donc, dune dfinition purement factuelle et descriptive est art contemporain ce qui
est dsign comme tel par les acteurs , nous allons nous apercevoir que cet usage correspond bien
une ralit esthtique: si lart contemporain est bien un genre de lart actuel, ce que nest pas
seulement par les caractristiques sociologiques qui viennent dtre numres, mais aussi par ses
proprits artistiques2.
Como acabmos de ver, segundo Heinich, a Arte Contempornea no uma categoria histrico
-artstica, mas antes uma modalidade de produo esttico-sociolgica: um gnero artstico, como
defende a autora.
A pertinncia destas consideraes parece-nos, ao mesmo tempo, bvia e acutilante. que, em
ltima anlise, se a Arte Contempornea no decorre de uma classificao histrica, torna-se legtimo
interrogar-se sobre a validade, quando no sobre a legitimidade, que h em circunscrever a perodos
histricos estanques outras correntes de produo artstica.
No ser que, ao faz-lo, em vez de se estabelecerem segmentos determinados por critrios claros
e bem fundamentados de classificao, no corremos o risco de proceder a uma mera adjetivao da
produo artstica? E, no fim, no ser que em vez de contribuir para um mais apurado e estruturado
conhecimento da Arte, no estaremos a contribuir, afinal, para um seu inesperado ofuscamento?
Interrogaes e questionamentos como estes afiguram-se-me particularmente pertinentes
quando se trata de examinar a problemtica da ocorrncia romntica na criao artstica, desde logo
porque o romantismo por inerncia uma corrente que tende a complicar, quando no a transgredir,
delimitaes formal ou conceptualmente estabelecidas, a partir de instncias exteriores prpria arte.
De resto, se classificar a obra de arte for apenas adjetiv-la, o exerccio acabar por tornar-se estril,
j que nenhuma forma de arte logra obter pela adjetivao o direito existncia separada que essa
mesma adjetivao lhe pretende conferir, desde logo porque a Arte no pode ser adjetivada, pois s
a Arte , por si s, a nica e vlida adjetivao.
Comeo assim pelo enunciado que serve de esteio presente comunicao: o romantismo nas
artes no se reduz s obras produzidas na poca romntica, da mesma forma como o surrealismo,
como notara Breton, no se circunscrevia ao perodo moderno, dentro do qual ele se constitua e se
fundamentava enquanto tal.
Abundam na Histria da Arte teorizaes que tomam como premissa a existncia de alternncias
e de recorrncias. Os trabalhos de Heinrich Wlfflin3 (1846-1945), depois de tipificarem uma oposio
fundamental entre os programas formais da arte clssica e os da arte barroca, reconhecem que nos
restantes estilos artsticos se verifica uma alternncia entre fases clssicas e fases barrocas, postulando
uma pulsao de continuidade artstica que desemboca numa Histria da Arte tendencialmente mais
autnoma da prpria cronologia.
2
HEINICH, Nathalie Le triple jeu, op. cit., pp. 11-12.
3
Cf. WLFFLIN, Heinrich Dictionary of Art Historians. URL: https://dictionaryofarthistorians.org/wolfflinh.htm.
Massiveness and movement are the principles of the baroque style. It did not aim at the perfection
of an architectural body, nor at the beauty of growth as Winckelmann would put it, but rather
at an event, the expression of a directed movement in that body. [] The functions of lifting and
carrying, once performed as a matter of course, without haste of strain, now became an exercise of
violent and passionate effort. At the same time this action was not left to the individual structural
members, but infected the whole mass of the building; its whole body was drawn into de momentum
of the movement5.
Contudo, apesar da oposio radical entre clssico e barroco, Wlfflin descobre que essas mesmas
discrepncias se manifestam de igual modo noutros estilos, como explica:
There is classic and baroque not only in more modern times and not only in antique building, but
on so different ground as Gothic. In spite of the fact that the calculation of forces is totally different,
High Gothic, in the most general aspect of creation, can be defined by the concepts which we developed
for the classic art of the Renaissance. It has a purely linear character6.
Quer isto dizer que, mesmo para um formalista como Wllflin, a noo de estilo no uma noo
historicamente compartimentada. Pelo contrrio, em vez de compartimentao, deve falar-se de
oscilao, ou melhor, de trnsito e/ou recorrncia.
precisamente nesse sentido que Marshall Brown interpreta a dialtica de Wlflin, pondo-a em
paralelo com a dialtica de Hegel, como explica:
Hegels logic is precisely that of Wlflins art history as well. The baroque is fulfillment of the classic.
But is a fulfillment in the sense of a crossover from essence to existence, from death into life and
hence, the absolute negation of the classic. Finally, it is the condition of the possibility of the classic
that of which the classic is defined as the ever remote, alien ground7.
History is always moving toward the baroque and away from the classic. This means that each age
serves as the baroque to some earlier age and as the classic to some later one8.
Estas consideraes permitem-nos postular que uma dialtica idntica se manifesta de modo
similar noutros domnios que condicionam, para l dos aspetos formais, tambm a produo artstica,
e que a teoria de Wlflin no considera dialeticamente: os contedos narrativos ou expressivos que
se encontram plasmados na obra de arte.
4
No cabe aqui esgotar a totalidade dos aspetos da dialtica entre o clssico e o barroco em Wlfflin, que para o autor se
estrutura segundo um feixe de cinco caractersticas opostas: linear vs pictrico; plano vs recessivo; fechado vs aberto;
unitrio vs mltiplo; clareza vs obscuridade.
5
WLLFLIN, Heinrich Renaissance and Baroque. London: Fontana Library, 1964, p. 58.
6
WLLFLIN, Heinrich Principles of Art History. The problem of the development of Art in later times. 7th Ed. New York:
Dover Publications, 1950, p. 231.
7
BROWN, Marshall The Classic is the Baroque. On the principle of Wllflin Art History. Critical Inquiry. vol. 9, n 2 (Dec.
1982). Chicago: The University of Chicago Press, p. 401.
8
IDEM, Ibidem.
No caso de O Desterrado, encontramo-nos perante a figura de um jovem solitrio, sobre o qual afloram
apontamentos romnticos que recobrem (e ensombraam) a apolnea figurao neoclssica, apontamentos
romnticos esses cujos signos, como j indicmos, so a acentuada curvatura do torso [que] reflecte o
abatimento do esprito da personagem; os dedos entrecruzados, [que] parecem denotar uma crispao e ao
mesmo tempo desenhar uma grade; o olhar fixo e vazio mais a lgrima que do olho direito se desprende,
[que] parecem sugerir um profundo e constante sofrimento; o rochedo batido pelas ondas do mar, [que]
parece indicar a ideia de terminus, de beco sem sada e, portanto, de problema sem soluo9, signos esses
que constituem a exteriorizao de um estado de alma quebrado pela dolor e pelo abatimento do desterro.
Em O Desterrado encontramo-nos portanto perante uma mutao do modelo clssico, que surge
recoberto de lgubres devaneios romnticos cujo nico apontamento menos sombrio se descobre
na farta cabeleira que romanticamente cai sobre os olhos em abundantes e sofisticados cachos,
emprestando uma nota de leveza e subtileza figurao.
No caso de A Viva, observamos o episdio de uma cena maternal, em que uma jovem me,
desalentada pela perda, parece esquecer-se da criana que ansiosamente busca o alimento do seu
peito. A presena dessa criana, se por um lado acentua o dramatismo da cena, por outro lado introduz
a nota realista que impede o alheamento romntico de uma viuvez prematura.
Em A Viva encontramo-nos, portanto, perante a incluso na obra de referncias do contexto
real que explicitam e agravam, com o seu recorte narrativo, o sofrimento romntico da personagem.
Incluso realista que, de resto, vai a par com o naturalismo da prpria figurao, que se reconhece na
9
ABREU, Jos Guilherme A esttua O Desterrado de Soares do Reis. Notas para um estudo transdisciplinar. In SOUSA,
Gonalo de Vasconcelos e (coord.) Actas do I Congresso O Porto Romntico. Porto: UCE-Porto, vol. 1, p. 227.
Fig. 3 Amrico Gomes, 1934-38, O Homem do Fig. 4 Henrique Moreira, O Salva-Vidas, 1926-
Leme, bronze Avenida de Montevideu, Porto. 37, bronze, Avenida do Brasil, Porto.
10
ABREU, Jos Guilherme A Escultura no espao pblico do Porto. Classificao e interpretao. Porto: UCE-Porto, 2012, p. 200.
11
ABREU, Jos Guilherme A Escultura no espao pblico , op. cit., p. 203.
12
IDEM, Ibidem.
Fig. 5 Barata Feyo, Rosala de Castro, Fig. 6 Barata Feyo, Almeida Garrett, 1951-54,
1951-54, granito rosa, Praa da Galiza, Porto. bronze, Praa de Humberto Delgado, Porto.
13
O projeto Mar Novo foi um projeto de musealizao e de monumentalizao da Fortaleza do Promontrio de Sagres, onde
o setor nacionalista da historiografia oficial sediava a Vila do Infante, e em cujos registos mais apaixonados (tambm eles
romnticos) se afirmava que existira a Escola de Sagres, local de iniciao dos navegantes portugueses de Quatrocentos nas
cincias nuticas e na navegao astronmica. Tendo vencido o concurso internacional lanado pelo Governo portugus
em 1 de julho de 1954, o Projeto Mar Novo foi concebido por uma equipa de tcnicos e artistas liderada pelo arquiteto Joo
Andresen, pelo escultor Barata Feyo e pelo pintor Jlio Resende, e que logrou arrebatar com mrito, e sem contestao, o
1 prmio, mas cuja execuo viria a ser descartada, por resoluo do Conselho de Ministros de 9 de novembro de 1956.
Sobre este assunto, consultar ABREU, Jos Guilherme Sagres Saga. CITAR Journal. Porto: CITAR, n 4, pp. 11-25.
14
CIAM, sigla de Congresso Internacional de Arquitetura Moderna. No VI CIAM de Bridgewater, 1947, e no VII CIAM de Brgamo,
de 1949, foi abordada a sntese das trs artes, sendo apresentado no ltimo um relatrio elaborado por uma Comisso
criada para esse efeito. Sobre este assunto consultar ABREU, Jos Guilherme Escultura pblica e monumentalidade em
Portugal (1948-1998). [S.l.; s.n.], 2007, pp. 48-56. Tese de Doutoramento apresentada Faculdade de Cincias Sociais e
Humanas da Universidade Nova de Lisboa. URL: https://www.academia.edu/554640/Escultura_P%C3%BAblica_e_Monu-
mentalidade_em_Portugal_1948-1998_
Fig. 7 Jos Rodrigues, O Guardador do Fig. 8 Ildio Fontes, Astronauta, 1964, ferro fundido,
Sol, 1963, Bronze, FBAUP, Porto. Caf Astronauta, Rua de Passos Manuel, n 188, Porto.
Na sua tese de doutoramento, Maria Leonor Soares descreve e interpreta assim esta pea:
O Guardador do Sol a expresso dessa dor [da Guerra Colonial] mas tambm das recordaes
do tempo anterior guerra dando forma a uma afirmao de esperana e de liberdade. um
guerreiro mas tambm um feiticeiro. No sol e particularmente, o sol de Angola encontra a fora
e a inspirao. Erguendo o escudo absorve e reflete a luz. []
O tratamento do corpo do guerreiro/feiticeiro, nas alteraes de dimenses e propores, no infor-
malismo da superfcie, no tratamento do torso que se abre e integra a paisagem, indica-nos a sua
ligao com as foras e os ritmos da vida e da morte da natureza. []
O seu corpo, como entidade mgica, mantm-se em ntima comunicao com a terra envolvente,
sensual, em permanente mudana. Apreende lies de outras formas de vida e, tambm, apreende
outras sensaes de vida, estabelece dilogos silenciosos com a natureza. Tem acesso a outras
dimenses de sensualidade15.
Tentando sintetizar o que no texto se refere, comeamos por assinalar o sentido duplo que a
autora descobre na pea, e que se manifesta por sucessivos pares de oposies, perpassando por essas
dualidades a dita tenso patente na musculatura e na crispao do gesto com que a figura se ergue,
parecendo pairar acima do solo, empunhando o escudo e as azagaias.
Sucede, no entanto, que para l dos contrastes e das oposies, para l da tenso e da crispao, a
esttua patenteia uma inequvoca leveza e elevao que sublima e transcende as dualidades, e que
15
SOARES, Maria Leonor Barbosa Jos Rodrigues. Tradues do ser apaziguando o tempo. Vertentes e modos de um percurso.
[S.l.: s.n.], 2010, vol. 1, p. 44. Tese de Doutoramento apresentada Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
Nesta imagem, Nossa Senhora figurada com a juventude associada Sua invocao de Virgem,
de cabea descoberta e com os braos em posio de orante. Os seus ps pousam sobre uma rosa
que se refere ao ttulo de Rosa Mstica, simbolizando a maternidade divina ou, ainda Rosa sem
espinhos, pois ficou isenta do pecado original. A rosa, com 15 ptalas tambm evoca o Rosrio. Esta
imagem de Nossa Senhora da Maia induz elevao e orao, tem, no entanto, os olhos descidos
sobre aqueles que a Ela se dirigem. De facto, a Virgem Maria a medianeira entre os homens e Deus.
Aquela que acolhe e encaminha. Tem um resplendor em ouro, fruto de muitssimas e diversas ddivas
de ouro de todos quantos sentiram vontade de Lhe oferecer16.
No deixa de ser significativo que uma imagem to irrepreensivelmente sacra tenha sido esculpida
por uma artista que, dezoito anos antes, havia participado na exposio de Arte Contempornea
Aternativa Zero, onde exps uma escultura designada Mulher-Terra-Vida, cujos materiais usados
eram terra, relva, madeira e acrlico.
16
SANTOS, Rita Nossa Senhora da Maia sai rua pela primeira vez. Maia Hoje, 23/10/2009. URL: http://web-archive-pt.
com/page/340537/2012-09-0/http://www.maiahoje.pt/noticia.php?id=2949.
Sou de algum modo responsvel por este ciclo de desenhos de Jos Rodrigues fui seu detonador.
H alguns meses, entreguei-lhe umas linhas, escritas a seu pedido, sobre o S. Joo do Porto. O texto
fugia descaradamente ao tema, que no era do meu agrado, refugiando-me em Joo Baptista e na
fascinao que sobre mim exercem essas criaturas capazes de viver do instvel, pelo instvel no
instvel18.
17
O interesse de Jos Rodrigues pela temtica crist remonta a 1984, na sequncia de uma encomenda da Direo-Geral dos
Edifcios e Monumentos Nacionais, donde resultou a modelao da imagem de Nossa Senhora das Neves para a Pousada
de Almeida. No se tratando de uma iniciativa pessoal, esta no se reveste de igual significado, como o autor reconhece
quando refere que, para responder quela encomenda, se baseou em imagens de cunho popular.
18
ANDRADE, Eugnio de Salom e Joo Baptista nos desenhos de Jos Rodrigues. In Catlogo Salom e Joo Baptista. Porto:
Cooperativa rvore, 1989.
portanto na linhagem de Salom e Joo Baptista que deve inscrever-se a Anja, manifestando-se em
ambas as esculturas idntico contraste de cores e de texturas e idntica associao entre sensualidade
(Eros) e sofrimento (Thanatos), visando aquela superar (e justificar) este.
Que sentido atribuir a ambas as peas? Haver nelas algum inesperado avatar de romantismo?
A primeira evidncia prende-se com o facto de o tema Salom e Joo Baptista ser tratado conjunta-
mente, como metfora de uma unio frustrada a unio do Profeta (esprito) com a Arte (dana) no
sendo por acaso, como observa Leonor Sores, que na Interpretao de Jos Rodrigues a degolao no
corresponde morte de Joo Baptista. Joo Baptista pensa, deseja, esteja embora o seu corpo mutilado.
Ele e Salom encontram-se em olhares e toques, memrias e projeces, compondo um conjunto de
registos de sentimentos extremos, excessivos mas tambm fronteiros do nada19.
No a denegao da morte e a projeo metafsica de uma realizao perfeita do amor, a partir
da brutal e fatal separao fsica, na sua essncia, um tema absolutamente romntico?
No cabe nestas linhas desenvolver uma sondagem aprofundada sobre o tema, mas unicamente
apontar alguns vetores interpretativos. De resto, Maria Leonor Soares procedeu a um estudo exaustivo
sobre a evoluo do tratamento do tema de Salom na Arte Ocidental, no artigo que acabmos de
citar, e para cuja leitura remetemos.
Parece-nos, no entanto, que Jos Rodrigues no um artista cuja produo se conote com um
entendimento culturalista, e muito menos historicista, da criao artstica, no buscando as suas
19
SOARES, Maria Leonor Barbosa Movimentos dentro do olhar. Perspectivas sobre a Interpretao de Salom por Jos
Rodrigues. In FERREIRA-ALVES, Natlia Marinho (coord.) Artistas e Artfices no Mundo de Expresso Portuguesa [actas].
Porto: Cepese, 2008, p. 190.
A primeira fenda apareceu numa grande laje natural, lisa como a mesa dos ventos, algures nestes
Montes Alberes que, no extremo oriental da cordilheira, compassadamente vo baixando para o
mar e por onde agora vagueiam os mal-aventurados ces de Cerbre, aluso que no descabida
no tempo e no lugar, pois todas estas coisas mesmo quando o no parecem esto ligadas entre si21.
Porque precisamente todas as coisas esto ligadas entre si, importa ter presente que a integrao
de Portugal na CEE ocorria no auge do incremento das tenses Leste-Oeste, induzidas, no domnio
militar, pelo retorno corrida aos armamentos e Guerra Fria, circunstncias agravadas, no domnio
poltico, pelas declaraes do Presidente Ronald Reagan, com destaque para aquela em que designava
o Poder Sovitico como o Imprio do Mal22, naquele que haveria de ser o prembulo instigador da
Perestroika e que, no final, abriria o caminho que viria a provocar a queda do Muro de Berlim e a
desagregao da URSS.
20
O Milagre segundo Salom viria ser transposto para o Cinema em 2004, numa realizao de Mrio Barroso.
21
SARAMAGO, Jos A Jangada de Pedra. Lisboa: Editorial Caminho, 1986, p. 19.
22
Discurso de Ronald Reagan na National Association of Evangelicals, Orlando, Flrida, em 8 de maro de 1983.
Ambas as obras denotam portanto um revivalismo equvoco. Na esttua da Repblica, uma figura
feminina (a portuense Maria do Carmo, de 22 anos) retratada a caminhar descala, com a cabea
coberta por um discreto barrete frgio, erguendo numa mo um ramo de oliveira e na outra uma
esfera armilar. O vestido cola-se ao corpo da figura, e esta projeta-se com energia para a dianteira.
Na notcia da inaugurao da obra, a figura que inspirou o escultor assim apresentada:
Foi nela [Maria do Carmo] que Bruno [Bruno Marques] encontrou as caractersticas que identifica
com a Repblica e que descreve assim: uma mulher de para a frente que o caminho, inde-
pendentemente das dificuldades. Tem bons ideais.
O que a esttua no tem tudo aquilo a que nos habituamos a identificar com a representao
feminina da revoluo. Porque que no tem a maminha ao lu?, perguntou ao artista uma
curiosa, que se identificou como sendo tambm artista plstica. Queria saber se era por pudor. Ele
admitiu que talvez tenha sido um pouco por pudor, mas tambm por o vestido da figura, colado ao
corpo, j revelar muito das formas desta Repblica23.
A resposta do escultor esclarecedora. Por ela parece detetar-se, por um lado, o absoluto menos-
prezo (ou ignorncia?) pelo culto da figura de Marianne praticado durante os tempos da Revoluo
Francesa e, por outro, a conceo eminentemente realista de uma escultura que, partida, se pretendia
simblica, e que s retoricamente declara s-lo.
23
CARVALHO, Patrcia Maria do Carmo transformou-se em bronze e mudou-se para a Praa da Repblica do Porto. Pblica,
edio de 03/02/2011.
Fig. 14 Rui Sanches, Madame Rcamier, segundo Fig. 15 Rui Chafes, Vera Montero, Comer o
David, 1989, madeira, pano e bronze, 164 x 180 x 167 Corao, 2005, Ferro pintado, CCB, Lisboa.
cm, Coleo Caixa Geral de Depsitos, Lisboa.
a conotao direta e explcita com obras de arte do perodo romntico, como por exemplo acontece
com a escultura Madame Rcamier, segundo David, de Rui Sanches24? Ou ser antes a conotao da
obra de arte com o carter romntico, como Comer o Corao, de Rui Chafes e Vera Mantero? O que
deve servir de critrio: a referncia temtica ou a recorrncia intencional?
Mais do que responder, parece-nos pertinente colocar a questo, e interrogar-se sobre o alcance
e a consequncia de preferir uma ou outra.
24
J-L. David foi um pintor neoclssico, mas Madame Rcamier era uma burguesa, esposa de um banqueiro.
Gosto de olhar o meu trabalho como se fosse uma espcie de sombra, como aquelas silhuetas negras
que os romnticos alemes faziam uns dos outros: uma silhueta negra e recortada. Os meus trabalhos
recortam-se num espao branco, mas so silhuetas negras contra o espao. Independentemente do
seu tamanho, esto muito mais relacionados com o corpo de quem as v, do que propriamente com
uma existncia monumental no espao. Comer o Corao debate-se com um problema com que
j me debati, sobretudo na pea com a Orla Barry e nos trabalhos que estou a preparar com o Pedro
Costa, que o problema do tempo.
[]
Convm no escrever deus com letra maiscula e convm esclarecer mal entendidos. Isto , penso
que na altura houve pessoas que entenderam que eu sou um cristo com uma grande f e que ouo
uma voz divina que me diz para fazer as coisas. A ideia no , de todo, essa. Pelo contrrio, no tenho
f em nenhum tipo de religio e a minha nica religio, o meu nico centro e a minha nica razo
de viver e de me transcender a arte. No que haja algum deus que me diga para fazer as coisas,
mas o nico deus em que acredito a arte. A reconhecer alguma divindade na arte25.
Nesta entrevista, Rui Chafes ajuda-nos a compreender o sentido da recorrncia romntica na obra
de arte ou, pelo menos, na sua escultura: uma dana de ferro contra a morte.
Ou seja, na arte, em toda a arte, que separao pode ser introduzida pela distncia temporal?
Nenhuma. Pelo menos em esprito!
Mas se permanecermos apegados forma e mergulhados na matria, s mesmo a separao existe.
portanto, no fim, a eterna metfora da luta contra a morte que, desde Gilgamesh, vem atormen-
tando o ser humano, e um poderoso antdoto contra a morte , como afirma Rui Chafes, a arte. No,
eventualmente, toda a arte. Mas seguramente aquela que no seu ntimo tem inscrita a recorrncia
romntica: uma recorrncia que fundamentalmente uma atualizao.
Em sntese, ao longo dos exemplos analisados, podemos detetar outros tantos modelos de recor-
rncias, que tentarei a seguir esquemtica e provisoriamente distinguir.
Termino, apenas relembrando que esta se trata de uma linha de investigao experimental, e
que como tal carece de maiores e mais aprofundados desenvolvimentos, podendo por isso vir a ser
objeto de acrescentos e/ou de correes, no se encontrando fora de hiptese a possibilidade de vir
a reconhecer a sua inviabilidade, e inclusive de poder deneg-la.
Mas se tal vier a suceder, importa manter presente que provar a inadequao de hipteses antes
formuladas no deixa de ser trabalho cientfico igualmente vlido.
25
CHAFES, Rui Uma dana de ferro contra a morte. Entrevista de Nuno Crespo e Vanessa Rato. Jornal Pblico, Suplemento
Mil Folhas, 04/09/2004.
Laura Castro
Nas dcadas finais do sculo XX e na transio para o sculo XXI adensam-se leituras contempo-
rneas dos valores estticos e artsticos do perodo romntico, em apropriaes explcitas e citaes
intencionais, claramente perceptveis em prticas como a pintura e a fotografia, o vdeo e a instalao1.
A construo de um discurso fragmentrio, de referncias e de aluses, cumpre o papel caracterstico
da contemporaneidade, no carcter intelectual das opes tomadas, ao mesmo tempo que satisfaz
um destino tipicamente romntico de fidelidades espirituais.
numa certa paisagem, numa certa figurao e na homenagem aos grandes romnticos que se
traduz a leitura do passado, s vezes tema, as vezes forma e modelo, outras vezes atitude.
Entre os artistas que tm vindo a desenvolver a sua actividade no Porto, em cuja obra se apercebe
a recepo de elementos do Romantismo, sero abordados dois artistas de diferentes geraes
Domingos Pinho (1937) e Rita Magalhes (1974).
Para l de consideraes acerca de obras destes artistas que respondem ao dilogo entre o presente
e o passado romntico, a anlise dos trabalhos identificados permite equacionar problemas da prtica
artstica, nomeadamente o modo como alguns autores se abrigam noutros, explorando formas de
identificao e de desidentificao, de fantasmagoria autoral e at de invisibilidade.
Um Porto romntico
Enunciem-se, primeiramente, os pressupostos desta comunicao.
Em primeiro lugar, os pressupostos de ordem funcional: a comunicao responde, de forma lateral e
indirecta, ao apelo para o aprofundamento do conhecimento da cidade do Porto no perodo romntico.
Em segundo lugar, os pressupostos de ordem conceptual: a comunicao assenta na ideia de que
a arte do presente se expande atravs da citao, da apropriao, da incorporao de referncias do
passado.
Resulta deste posicionamento que a comunicao no se debrua sobre o Romantismo portuense,
o que envolveria o tratamento de artistas e de obras produzidas na cidade, no perodo do Romantismo;
nem sobre o tardo-romantismo portuense, o que envolveria o estudo de fenmenos de desenvolvimento
1
O revivalismo do cnone romntico tem sido objecto de diferentes actividades culturais como a exposio Ideal Worlds
New Romanticism in Contemporary Art, realizada em 2005 [V. catlogo editado por Max Hollein, Martina Weinhart,
Ostfildern: Hatje Cantz, 2005] precedida, em 2004, de um ciclo de conferncias sobre a mesma temtica que teve lugar
em Frankfurt. Mais recentemente, sobre temtica afim, um seminrio intitulado Romantisme et Contemporanits foi
organizado em 2013 e 2014 pelo Centre dEtudes et de Recherches Compares sur la Cration.
Um campo de apropriaes
As imagens comentadas permitem esclarecer o procedimento da apropriao romntica na
obra destes artistas portuenses. Apropriar-se de algo visa conferir-lhe um cunho prprio, pessoal; a
apropriao consiste em tornar nosso o que no nosso; em adequar e aproximar de ns o que nos
2
NELSON, Robert S. Appropriation. In NELSON, Robert S.; SHIFF, Richard (ed.) Critical Terms for Art History. Chicago:
The University of Chicago Press, 2003, pp. 162.
3
O dilogo entre romantismo e conceptualismo, a incompatibilidade ou a possibilidade de convergncia tm sido objecto
de discusso. Ver, por exemplo: HEISER, Jrg All of a Sudden: Things that Matter in Contemporary Art. Berlin and New
York: Sternberg Press, 2008. O autor foi igualmente curador da exposio Romantic Conceptualism, em 2007. Ver: An
Interview with Jrg Heiser, Art&Research, Vol 2, N 1, Summer 2008.
Fig. 1 Domingos Pinho - Pintura Ocidental, 1977, Fig. 2 Domingos Pinho - Homenagem a Caspar David Friedrich,
leo sobre tela, 192x128 cm. Coleco particular 1978, leo sobre tela, 116 x 89 cm. Coleco particular
Fig. 5 Domingos Pinho - Tempestade, 1984, grafite e aguarela sobre papel. Coleco particular
Fig. 7 Domingos Pinho - Homenagem a Bocklin, 1987, Fig. 8 Domingos Pinho - Ciprestes, 1990, leo sobre
leo sobre tela, 97 x 130 cm. Coleco particular papel colado em tela. Coleco particular
Fig. 9 Domingos Pinho - Floresta misteriosa, dptico, 1993-94, leo sobre tela, 92x147 cm. Coleco particular
J. M. Vieira Duque
Este tema , na essncia, uma reflexo sobre o percurso de Dionsio Pinheiro (1891-1968), que se
pautou pelos cnones e axiomas do Tardo-Romantismo.
impossvel ignorar que entre a produo artstica de uma determinada poca e a situao social,
cultural, religiosa, econmica e poltica esto sempre presentes relaes de ntima cumplicidade
levando, no estudo da histria de arte, a uma obrigatria abordagem e conhecimento do meio social
em que surgem, na respetiva contemporaneidade.
Ento, a arte e o seu reflexo presente e futuro so um produto do dilogo entre ela e o ente social
e o respetivo poder, sem determinismos ltimos ou um condicionalismo fatal que lhe extrairiam
qualquer autonomia imaginativa.
Na sua vertente de colecionista e filantropo, Dionsio Pinheiro instituiu, por herana, a Fundao
Dionsio Pinheiro e Alice Cardoso Pinheiro, que, tal como a ele, pudesse vir a providenciar, na sua
cidade natal de gueda, objetivos duma vivncia em princpios romnticos: assistncia social em
percursos acadmicos e de instruo pela arte, sem hierarquizao do saber e acesso democrtico,
livre de preceitos sociais e religiosos.
Dionsio Pinheiro nasceu em gueda, a 24 de setembro de 1891 e faleceu em 7 de outubro de
1968, no Porto. De origem bastante humilde, desde muito jovem comeou a trabalhar, logo aps ter
completado a 3 classe, tendo vindo para o Porto aos 11 anos de idade para trabalhar como marano
nos Armazns Almeida e Cunha.
Frequentou o Curso noturno da Escola Comercial Raul Dria, tornou-se scio e, mais tarde,
proprietrio dos armazns. Posteriormente, funda a Fbrica de Tecidos de Rebordes, em Santo Tirso.
Teve uma intensa atividade comercial e industrial que, aliada a uma enorme sensibilidade, o
conduziram a um grande enriquecimento material e cultural, desenvolvendo aes caritativas na sua
terra natal e constituindo um valioso patrimnio artstico. Casou com Alice Cardoso Pinheiro em 1920.
Nos anos seguintes, foi aumentando a sua ao empresarial, na Empresa Fabril de Vermoim
Lda., Vila Nova de Famalico; na Gomes e Comp, Porto; e enquanto scio da Antiqulia, em Lisboa,
empresa que se dedicava ao comrcio de antiguidades, proporcionando-lhe um enriquecimento
financeiro que lhe permitiu uma incluso na classe emergente da burguesia do final do sculo XIX,
num tipicismo usual desse tempo. Vem a estabelecer relaes ntimas e de amizade com figuras de
nomeada, tais como: 1 e 2 condes de Vizela, de quem se tornou vizinho na fbrica de Rebordes;
Delfim Ferreira, de quem foi scio; os proprietrios dos Armazns Cunha; Agostinho Rica, arquiteto
1
FRANA, Jos-Augusto , 1990, p. 415.
2
BEATA, Ricardo Manuel Mendes Colees e colecionadores de arte na revista Ilustrao Moderna (1926-1932). Ensaios
e Prticas em Museologia. Porto, Departamento de Cincias e Tcnicas do Patrimnio da FLUP, 2012, vol. 2, pp. 218-232)
3
MONTEIRO, Campos, in Ilustrao Moderna, n 7, 1926.
4
Ilustrao Moderna, n 42, 1930.
5
Ilustrao Moderna, n 50, 1931.
6
MOURA, Manuel de, in Ilustrao Moderna, n 50, 1931.
Piangete, o figli dellItalia, che ne avete ben donde! Ospite dellestrema Lusitania, agli avr sempre il
cuore e i pensieri con noi; non potr giammai dimenticarsi del suo Piemonte che pur tanto lo amava
e che tutto avrebbe per lui volontieri dato e sacrificato, come ancora darebbe pel regnante su Figlio.2
1
Professor Auxiliar; membro do CITCEM Centro de Investigao Transdisciplinar Cultura, Espao e Memria Faculdade
de Letras da Universidade do Porto, Departamento de Histria e de Estudos Polticos e Internacionais.
2
Biografia di Re Carlo Alberto dedicata al Re Vittorio Emanuelle II. Firenze: Tipografia Eredi Botta, 1868, p. 33.
3
VITORINO, Pedro O rei infortunado. Doena e morte de Carlos Alberto. Porto: Separata do jornal O Mdico, n.os 68, 69, e
70, 1943, p. 3.
4
Mais pour crire ainsi, il fallait savoir o allait le Roi.
Santa Rosa nosait questionner. Charles Albert eut piti de son embarras.
Mon premier projet, dit-il, avait t daller en Terre sainte. Mais on naurait pas manqu de dire que je finissais mon rgne
para. Ici, il sarrta. Santa Rosa crut comprendre que le Roi sous-entendait: para un acte de folie religieuse.
Javais pens lAngleterre, continua Charles-Albert. Mais jy ai renonc pour ne pas y grossir le nombre de proscrits. Jai
enfin rsolu daller mtablir Oporto. Cette Ville est assez loigne du Pimont pour que jamais personne puisse croire que
je veuille encore me mler des affaires publiques . Cf. BEAUREGARD, Costa de Les dernires annes du roi Charles-Albert.
Paris: Librairie Plon, 1890, pp. 506-507.
Fig. 1 Viagem do Rei Carlos Alberto de Novara para o Porto. 24 de Maro a 19 de Abril de 1849.
5
XVIII
Atto di conferma dabdicazione verbale del Re Carlo Alberto
3 daprile 1849.
(Testo originale)
En la casa Fonda de Pedro Sistiaga, sita en la calle del Correo de esta villa de Tolosa, a tres de abril de mil ochociento cuaranta
y nuebe, ante mi Juan Fermin de Furumdarena, escribauo publico de S.M., notario de reynos y secretario del ayuntamiento de
esta capital, en presencia del Marques Carlos Ferrero de la Marmora, prncipe Macerano, primero ayudante de campo de S.M.
el rey de Cerdea, y del Conde Guztabo Ponza de san Martino intendente general: Personalmente constituido Carlos Alberto de
Savoya, rey abdicatario de Cerdea, declara querer confirmar y ratificar de su propia y libre voluntad el acto verval hecho por el
mismo en Novara la noche del veinte y tres de mayo ultimo, en virtud del cual abdic la corona del reyno de Cerdea y de todos
los dominios que de el dependen en fabor de su hijo primogenito Victor Manuel de Savoya. In fin de que esta declaracion tenga
la autenticidad que sea necesaria, y surta los efectos a que se dirige, firma de so puo juntamente con los individuos precitados,
y en presencia de los seores D. Antonio Vicente de Parga gefe superior poltico de esta provincia de Guipuzcoa, y D. Xavier de
Barcuiztegui, diputado general de la misma; y en f de todo, y de que se me ha asegurado por los dos ltimos la identidad de los
tres primeros, lo hice yo el scribano en union con los dichos seores C. Alberto Carlo Ferrero della Marmora Gustavo Ponza
di S. Martino Antonio Vicente de Parga Xavier de Barcuiztegui ante mi Juan Fermin de Furumdarena.
Yo Juan Fermin de Furumdarena escribano publico de S.M. notario de reynos y secretario del ayuntamiento de esta capital
de Guipuzcoa, presente fui al otorgamiento del acto original que queda protocolizada en el registro corriente de escrituras
y numeria que regenta mi hijo Jos Maria escribano asi bien de S.M. y numeral de esta villa de Tolosa, y con la remisin
necesaria de ello y de que esta primera copia corresponde buen y fielmente con la original, signo y firmo en este papel comn
por no usarse del sellado en esta provincia. Juan Fermin de Furumdarena. Vd. CIBRARIO, Luigi Ricordi duna missione
in Portogallo al re Carlo Alberto. Torino: Stamperia Reale, 1850, pp. 246-253, 447-348; BEAUREGARD, Costa de Op. cit.,
pp. 512-517; CABRAL, Lus O Palacete dos viscondes de Balsemo. Porto: Cmara Municipal do Porto; Direo Municipal
de Cultura e Turismo, 2000, pp. 14, 29.
6
Luigi Cibrario (1802-1870) foi um historiador e poltico italiano que se tornou Senador do Reino do Piemonte-Sardenha
em 1848 e era muito prximo do rei Carlos Alberto. Cf. Luigi Cibrrio, in Treccani.it. LEnciclopedia Italiana. Disponvel in
http://www.treccani.it/enciclopedia/tag/luigi-cibrario (2014.11.12; 2h05m); CIBRARIO Op. cit., p. 254.
7
ANTUNES, Manuel Engrcia Elementos para o estudo da estadia no Porto de Carlos Alberto, rei da Sardenha. Revista da
Faculdade de Letras. Cincias e Tcnicas do Patrimnio. Porto: Faculdade de Letras do Porto, 2003, I srie, vol. 2, pp. 545-573.
8
Pedro Vitorino, em nota de rodap, desvenda a identidade do pintor denominado de Vacca, escrevendo que Perino del
Vaga, eccelentissimo pittori e molto ingegnoso, morto em 1547 (Vasari). Cf. VITORINO, Pedro Op. cit., pp. 6-7.
9
IDEM, Ibidem, p. 14.
10
A esposa do cavaleiro di Collegno chamava-se Margarita Trotti Bentivoglio e o sobrinho desta era o marqus Ludovico
Trotti Bentivoglio. Cf. CIBRARIO, Luigi Op. cit., pp. 4-6.
11
CIBRARIO, Luigi Op. cit., pp. 263, 265.
12
IDEM, Ibidem; RATAZZI, Maria Portugal de Relance. Lisboa: Edies Antgona, 1997, p. 7.
13
RATAZZI, Maria Op. cit., pp. 9, 428-430.
14
Lajos Kossuth nasceu em 1802 e faleceu em 1894. Foi um poltico e patriota hngaro que chefiou a revolta de 1848-1849
contra a ustria. Cf. MACARTNEY, Carlile Aylmer Lajos Kossuth. In Encyclopaedia Britannica. Disponvel in http://www.
britannica.com/EBchecked/topic/322773/Lajos-Kossuth/3978/Exile (2014.11.12; 2h); CIBRARIO, Luigi Op. cit., pp. 6-7,
260,264-265; VITORINO, Pedro Op. cit., p. 10.
15
CIBRARIO, Luigi Op. cit., pp. 271-275; VITORINO, Pedro Op. cit., p. 6.
16
Na realidade, Luigi Cibrario escreve o seguinte: I medici dicevano chei si reggeva in piedi per prodigio: e molte volte
giudicammo chei rammentasse le parole duno dei Cesari romani: oportel imperatorem santem mori. Esta citao foi
retirada da Vida dos Doze Csares de Suetnio, de uma passagem em que o imperador Vespasiano, antes de falecer de
uma inflamao intestinal, teria dito que um imperador devia morrer de p: imperatorem ait stantem mori oportere.
CIBRARIO, Luigi Op. cit., p. 275; Jaime B. Latin Discussion. In http://latindiscussion.com/forum/latin/imperatorem-s-
tantem-mori-oportet.11848/ (2014.11.12; 2 h).
17
CIBRARIO, Luigi Op. cit., pp. 275-287; VITORINO, Pedro Op. cit., pp. 11-12.
I balconi e le finestre delle vie, per cui passava la funebre pompa, erano coperti di drappi neri di seta
e di lana. N vi si vedea signora che non fosse vestita a lutto. E a tali dimostrazioni era conforme la
mestizia che si leggeva negli occhi e nella fronte di tutti. O popolo pietoso e cortese, che comprendi i
grandi pensieri, e tintenerisci sugli infortunii Italiani, Dio ti renda merito degli omaggi che recasti alle
virt di CARLO ALBERTO; Dio ti conceda di goder a lungo vera libert e vera pace!.
18
Une demi-heure plus tard ( trois heures et demie) Sa Majest le Roi CHARLES ALBERT a rendu le dernier soupir, lge de
cinquante ans, neuf mois, vingt-sept jours, avec le calme et la rsignation dun hros, et avec les saintes esprances dun
chrtien, au milieu des pleurs et de la consternation des personnes prsentes. CIBRARIO, Luigi Op. cit., pp. 265, 285-286;
354; VITORINO, Pedro Op. cit., pp. 6, 16.
Aps as ltimas oraes, com a urna j a bordo, e depois do segundo regimento de infantaria ter
anunciado o fim das cerimnias fnebres, com trs disparos, o navio Mozambano rumou a Cdis, levando
o corpo do rei de regresso ptria19.
Vtor Emanuel II, filho do defunto, como forma de agradecimento por tudo quanto Portugal havia feito
pelo seu pai, enviou uma condecorao ao rei D. Fernando e agradeceu a D. Maria II. Por seu lado, muitas
outras autoridades civis, militares e religiosas, bem como os mdicos que assistiram ao rei, tambm
foram condecorados. Alm disto, o rei da Sardenha no se esqueceu do povo do Porto, tendo encarregado
o Prncipe de Carignano de entregar ao presidente da Cmara, Antnio Vieira de Magalhes, baro de
Alpendurada, uma carta em francs, na qual o monarca exprimia cidade todo o seu reconhecimento
pelo acolhimento dado ao pai, no pouco tempo em que viveu no burgo portuense20.
19
CIBRARIO, Luigi Op. cit., pp. 296-297, 304, 353-355; VITORINO, Pedro Op. cit., p. 21; SANTOS, Cndido dos Histria da
Universidade do Porto. Porto: Universidade do Porto, 2011, p. 88.
20
Porto le 17 septembre 1849
Monsieur le Prsident,
Les habitans de cette ville ont donn au monde de nobles exemples de valeur, de dvouement et dhroisme, de ces mmes
vertus dont feu le ROI CHARLES ALBERT a t la personification durant un rgne fcond en vnements glorieux.
Fidles eux-mmes, ils devaient tre des justes apprciateurs du vritable mrite.
Aussi faisant une respectueuse violence lincognito du Comte de Barge, ils se joignirent spontanment aux autorits pour
le recevoir dans leurs murs avec tous les hommes royaux, avec les dmonstrations de la plus vraie sympathie. Dans cette
retraite volontaire pendant sa maladie, on continua lentourer de nombreuses preuves du respect et de laffection inspirs
par ses qualits minentes, par son caractre lev; vingt-quatre heures avant son dcs, S.M. disait encore combien Elle tait
touch des marques dattention et dintrt de ce peuple si hospitalier.
La douloureuse nouvelle de sa mort a rpandu une consternation gnrale, et lattitude de toutes les classes lors des crmonies
funbres du 31 juillet et du 1.er aot comme aujourdhui, est un indice certain de la sincrit de leurs regrets.
De son cot la Chambre municipale, qui reprsente dignement cette ville, a mis le comble ses procds de courtoisie par
une lettre de condolance adresse au Roi, mon auguste souverain, dont le cur filial a t si cruellement prouve en suite
de cette perte irrparable.
S.M. le ROI VICTOR-EMMANUEL ma charg dexprimer publiquement sa reconnaissance la plus vraie et la plus sentie pour
tant de tmoignages de haut intrt pour son bien aim Pre.
Veuillez, monsieur le Prsident, tre linterprte de ce sentiment auprs de la population dOporto.
Voulant en outre donner la chambre municipale une marque de son estime et de sa bienveillance dans la personne de
son Prsident, S. M. a daign, monsieur le Baron, vous nommer commandeur de son ordre religieux et militaire des Saints
Maurice et Lazare, dont les enseignes sont ci-jointes.
Des mots ne peuvent rendre tout ce que jai prouv en prsence de limmense concours de peuple qui se pressait aujourdhui
autour du cercueil de lillustre dfunt pour lui apporter le tribut de ses regrets, la promesse de la fidlit du souvenir. En disant
un suprme adieu la prcieuse dpouille mortelle de S.M. le ROI CHARLES ALBERT, la ville dOporto aura trouv quelque
consolation dans la douce pense quil lui reste lamour et la reconnaissance ternelle de la maison royale de Savoie, et de
toute une nation qui vnrera jamais la mmoire de ce Roi magnanime.
Je vous offre, monsieur le Prsident, lassurance de ma haute considration. EUGNE DE SAVOIE. Cf. CIBRARIO, Luigi Op.
cit., pp. 298-299.
Desta forma, a figura do rei Carlos Alberto do Piemonte-Sardenha e pai do primeiro monarca da
Itlia unificada, Vtor Emanuel I, uma velha pretenso dos italianos, entre os quais, entre outros, se
conta o prprio Nicolau Maquiavel, ficou indelevelmente marcada na memria e no imaginrio da
cidade do Porto.
Na realidade, o soberano tinha tudo para agradar aos portuenses seus contemporneos, sempre
dispostos a lutar pela liberdade. Durante a doena que o afligiu, nos ltimos dias era vulgar muitos
populares perguntarem pelo estado de sade do Senhor Carlos Alberto, alm de que, quando alguma
das pessoas que acompanhavam esta figura entrava numa loja, o dono, antes de mais, informava-se
da sade do ex-rei22. Alis, a passagem da carruagem com o bispo D. Jernimo, e com o padre Antnio
Peixoto Salgado, em direo casa de Entre Quintas, no dia 23 de julho, alertou a populao para um
possvel agravamento do estado do monarca, levando a que fossem feitas preces pblicas, e particulares
nos conventos das religiosas portuenses23.
O Porto, como dissemos atrs, foi o bero das mais importantes revolues oitocentistas, a comear
pela de 1820. No ser, portanto, por acaso que o governador civil e o governador militar, acompanhados
pela totalidade da guarnio militar, por um grupo de portuenses a cavalo e por uma grande multido,
foram ao encontro do monarca, no dia da chegada, a fim de lhe agradecer ter escolhido a sua cidade como
lugar de residncia e oferecer-lhe para o transportar uma carruagem puxada por seis cavalos ricamente
ornados. Humildemente, tal como seria prprio de um esprito heroico e abnegado, o ex-soberano
recusou as honras e o transporte, entrando no burgo a cavalo, para se ir hospedar numa estalagem
pblica, depois de tambm no ter aceitado as ofertas para se alojar, quer no pao episcopal, quer na
casa do baro Joseph James Forrester24.
A onda de simpatia popular que criou em torno de si ficou a dever-se ao facto de durante a vida ter
lutado pela liberdade do seu pas. Por outro lado, a morte precoce, depois de uma longa agonia, fizeram dele,
quanto a ns, o heri romntico por excelncia. , de facto, o tpico lutador da liberdade, o injustiado,
que tem de deixar a ptria para se acolher a uma terra distante e desconhecida, onde chega depois de uma
difcil e cansativa viagem de mais de 2.000 km. A, depois de ter conquistado o corao do povo, ao deixar a
vida terrena, d incio imortalidade, pois ficar para sempre ligado memria e lenda. Exemplo disto
o que escreve Pedro Vitorino, quase um sculo depois, em 1943: Heri e mrtir, morria como um santo25.
21
IDEM; Ibidem, pp. 296-297, 304, 353-355; SANTOS, Cndido dos Op. cit., p. 88.
22
CIBRARIO, Luigi Op. cit., pp. 275-276.
23
VITORINO, Pedro Op. cit., p. 13.
24
CIBRARIO, Luigi Op. cit., p. 253.
25
VITORINO, Pedro Op. cit., p. 14.
1. Introduo
A fbrica de Santo Antnio de Vale de Piedade foi criada pelo genovs Jernimo Rossi, que, a partir de
1783, instalou a sua fbrica de loua fina no lugar de Gaia, junto ao rio Douro, actual cais Capelo Ivens
e Rua Viterbo de Campos na freguesia de Santa Marinha (Vila Nova de Gaia, Porto). Iniciou laborao no
primeiro dia do ano de 1785 e integra o conjunto das primeiras manufacturas de loua criadas em Portugal,
afirmando-se, conjuntamente com as de Massarelos, Miragaia e Cavaquinho, como uma das principais
unidades de produo da denominada cermica portuense. No obstante o clima privilegiado que marcou
a sua fundao, revelou posteriormente viabilidade e capacidade de adaptao, sobrevivendo s difceis
vicissitudes que marcaram o dealbar de Oitocentos e laborando at s primeiras dcadas do sculo XX.
Trabalhos arqueolgicos realizados em 2007 e 2010, pela empresa Empatia Arqueologia, Lda., em
terreno contguo ao edifcio principal da fbrica, puseram a descoberto um nvel de aterro constitudo
por diversos materiais cermicos produzidos naquela unidade. O caqueiro encontrado compe-se de
louas utilitrias e decorativas, azulejos, estaturia e outros elementos de ornamentao de fachada
e jardim, em chacota (biscoito) ou j finalizados, bem como de alguns objectos associados ao processo
produtivo. Contabilizmos 74260 fragmentos cermicos, que perfazem mais de uma tonelada de peso1.
O facto de este esplio ter sido usado para entulhamento e desactivao de uma estrutura de cariz fabril,
a anlise tipolgica das peas, a presena de marcas de fabrico nalguns fragmentos e uma aprofundada
anlise documental permitiram-nos datar este contexto arqueolgico da dcada de 1840, de uma fase
de laborao associada gerncia de um dos seus maiores impulsionadores Joo de Arajo Lima.
Este conjunto cermico de natureza arqueolgica revela-nos, sem dvida de datao e centro de
fabrico, a faiana largamente produzida num perodo temporal especfico. Dos cacos arqueolgicos
passamos aos objectos guardados nos museus e transportamo-nos para os ambientes e gostos que
2
Esta tcnica executa-se com recurso a uma estampilha, isto , um papel encerado ou folha metlica recortado com os
desenhos do padro. A estampilha colocada sobre a superfcie vidrada, ainda crua, da pea, passando-se uma trincha
sobre ela. A tinta passa pelos espaos vazados da estampilha, ficando o desenho pintado na pea. Para a realizao de
padres monocromticos usava-se apenas uma estampilha; para os padres policromticos as estampilhas eram tantas
quanto as cores representadas. A pintura manual completava este processo, retocando-se e finalizando-se os contornos
e outros elementos do desenho. A referncia mais antiga tcnica da estampilhagem em Portugal relativa fbrica
de Miragaia, onde j se utilizava em Janeiro de 1822. Vd. FERNANDES, Isabel Maria A Fbrica de Loua: anlise social,
processos de fabrico e conspecto social. In CORREIA, Margarida Rebelo, coord. Fbrica de Loua de Miragaia. Catlogo
da exposio. Lisboa: Instituto dos Museus e da Conservao, 2008, p. 34.
3
A introduo de prensas para o fabrico de azulejos verifica-se, em Portugal, a partir de 1870 (vd. FERREIRA, Lus Mariz O
azulejo na arquitectura da cidade do Porto [1850-1920]. Caracterizao e interveno. [S.l.; s.n.], 2009, p. 12. Dissertao de
doutoramento apresentada Universidad del Pas Vasco), sendo possvel comprovar o uso de dois destes maquinismos na
fbrica de Vale de Piedade aquando do Inqurito Industrial de 1881 (Vd. RELATORIO apresentado ao Exc.mo Snr. Governador
Civil do Districto do Porto [] pela sub-comisso encarregada das visitas aos estabelecimentos industriaes. Porto: Typographia
de Antnio Jos da Silva Teixeira, 1881, p. 296).
4
Arquivo Distrital do Porto Cartrio Notarial do Porto (Po-8): Notas para escrituras diversas, Livro 474, f. 44v. Este
documento encontra-se publicado por Manuel Leo (vd. LEO, Manuel A Cermica em Vila Nova de Gaia. Vila Nova de
Gaia: Fundao Manuel Leo, 1999, pp. 467-470, Apndice 83); procedemos, contudo, leitura e transcrio do original.
5
Cf. nota 2. Desconhecemos a data em que a fbrica de Santo Antnio ter adoptado esta tcnica, porm no dever ser
muito distante da de Miragaia. De referir que a partir de 1830, a fbrica deixou de ser explorada pelas filhas de Jernimo
Rossi e foi arrendada, primeiro, a Francisco de Sousa Galvo, antigo caixeiro da de Miragaia, e, depois, a Francisco da Rocha
Soares e Joo da Rocha e Sousa, gerentes tambm da de Miragaia.
6
De realar que no identificamos no conjunto nenhuma telha vidrada, apenas em chacota.
7
ARTE da Loua Vidrada, extrahida do Tomo II. A folhas 578. da Enciclopedia Methodica. Traduzido do francs por Antonio
Velloso Xavier. Lisboa: Na Impresso Regia, 1805, p. 31.
8
DRDIO, Paulo; TEIXEIRA, Ricardo; S, Anabela Faianas do Porto e Gaia: o recente contributo da arqueologia. In MUSEU
NACIONAL DE SOARES DOS REIS, coord. Itinerrio da Faiana do Porto e Gaia. Lisboa: Instituto Portugus de Museus,
2001, pp. 159-160.
9
Segundo os mesmos autores, Este fabrico nacional ficou conhecido como Canto Popular e tambm como Canto de Miragaia
por esta fbrica se ter destacado na sua produo. Mais tarde, seriam as oficinas de Coimbra a darem-lhe continuidade pelo
que chegou at ns popularizado como Canto de Coimbra. Cf. DRDIO, Paulo; TEIXEIRA, Ricardo; S, Anabela Faianas
do Porto e Gaia: o recente contributo da arqueologia. In MUSEU NACIONAL DE SOARES DOS REIS, coord. Itinerrio da
Faiana do Porto e Gaia. Lisboa: Instituto Portugus de Museus, 2001, p. 160.
10
DRDIO, Paulo; TEIXEIRA, Ricardo; S, Anabela Faianas do Porto e Gaia: o recente contributo da arqueologia. In MUSEU
NACIONAL DE SOARES DOS REIS, coord. Itinerrio da Faiana do Porto e Gaia. Lisboa: Instituto Portugus de Museus,
2001, p. 160.
11
CORREIA, Margarida Rebelo, coord. Fbrica de Loua de Miragaia. Catlogo da exposio. Lisboa: Instituto dos Museus
e da Conservao, 2008, p. 102.
12
IDEM, Ibidem, pp. 216-224, 245.
13
DRDIO, Paulo; TEIXEIRA, Ricardo; S, Anabela Faianas do Porto e Gaia: o recente contributo da arqueologia. In MUSEU
NACIONAL DE SOARES DOS REIS, coord. Itinerrio da Faiana do Porto e Gaia. Lisboa: Instituto Portugus de Museus,
2001, p. 161.
14
IDEM, Ibidem, p. 161.
15
Esta tcnica, como o prprio nome indica, consistia na aplicao de pequenas manchas coloridas com recurso a uma
esponja.
16
Agradecemos esta referncia Dra. Margarida Rebelo Correia, do Museu Nacional de Soares dos Reis.
17
REIS, Antnio Matos A Loua de Viana. [Lisboa]: Livros Horizonte, 2003, p. 97.
18
IDEM, Ibidem, p. 109, E124.
19
Cf. nota 8.
20
CORDEIRO, Jos Manuel Lopes As fbricas portuenses e a produo de azulejos de fachada (scs. XIX-XX). In VASCONCELOS,
Maria Joo, coord. Azulejos no Porto. Catlogo da exposio. Porto: [Cmara Municipal do Porto, Diviso de Patrimnio
Cultural], 1996.
21
CORDEIRO, Jos Manuel Lopes As fbricas portuenses e a produo de azulejos de fachada (scs. XIX-XX). In VASCONCELOS,
Maria Joo, coord. Azulejos no Porto. Catlogo da exposio. Porto: [Cmara Municipal do Porto, Diviso de Patrimnio
Cultural], 1996.
22
DOMINGUES, Ana Margarida Portela A ornamentao cermica na arquitectura do Romantismo em Portugal. [S.l.; s.n.],
2009, 2 vol., p. 290. Dissertao de doutoramento em Histria da Arte apresentada Faculdade de Letras da Universidade
do Porto.
23
HUGHES, G. Bernard English and Scottish earthenware 1660-1860. London: Lutterworth Press, 1961, p. 80.
24
IDEM, Ibidem, p. 86.
25
IDEM, Ibidem, p. 80.
26
CORREIA, Margarida Rebelo As coleces de faiana no Porto e em Gaia: Museu Nacional de Soares dos Reis. In MUSEU
NACIONAL DE SOARES DOS REIS, coord. Itinerrio da Faiana do Porto e Gaia. Lisboa: Instituto Portugus de Museus,
2001, p. 194.
27
GIRO, Lus Ferreira Estudo sobre a Indstria Cermica na 1 Circunscrio dos Servios Tcnicos da Indstria. Boletim
do Trabalho Industrial, n 167. Lisboa: Imprensa Nacional, 1913, p. 12.
28
CORDEIRO, Jos Manuel Lopes As fbricas portuenses e a produo de azulejos de fachada (scs. XIX-XX). In VASCONCELOS,
Maria Joo, coord. Azulejos no Porto. Catlogo da exposio. Porto: [Cmara Municipal do Porto, Diviso de Patrimnio
Cultural], 1996.
29
CORDEIRO, Jos Manuel Lopes As fbricas portuenses e a produo de azulejos de fachada (scs. XIX-XX). In VASCONCELOS,
Maria Joo, coord. Azulejos no Porto. Catlogo da exposio. Porto: [Cmara Municipal do Porto, Diviso de Patrimnio
Cultural], 1996.
30
DOMINGUES, Ana Margarida Portela A ornamentao cermica na arquitectura do Romantismo em Portugal. [S.l.; s.n.],
2009, 2 vol., p. 290. Dissertao de doutoramento em Histria da Arte apresentada Faculdade de Letras da Universidade
do Porto.
4. As marcas
Foram quatro as marcas de fabrico identificadas no depsito arqueolgico da fbrica de Vale de
Piedade; trs das quais julgamos serem novidade, pois no encontramos meno em nenhuma obra
da especialidade. Todas respeitam a Arajo Lima, gerente da fbrica a partir de 1835, em sociedade
com Bonifcio Jos de Faria e Costa, depois individualmente a partir de 1840, e seu proprietrio desde
1846. Tendo em conta o incio da administrao exclusiva de Arajo Lima e a datao do depsito
arqueolgico, as marcas aqui apresentadas situam-se cronologicamente entre os anos de 1840 e 1846,
embora pudessem continuar a ser usadas posteriormente, pelo menos at data da sua morte (1861).
A tcnica de gravao comum a todos os exemplares: por inciso na pasta, usando letras
maisculas. A colocao do vidrado torna estas marcas de difcil leitura, sobretudo quando a inciso
menos funda. Identificmos um total de 26 fragmentos, que pertencem a 23 objectos. As marcas
foram designadas por FSAVP-M-1, FSAVP-M-2, FSAVP-M-3 e FSAVP-M-4, correspondendo FSAVP a
Fbrica de Santo Antnio de Vale de Piedade, M a Marca e o nmero tipologia da mesma.
A marca de tipo 1 (FSAVP-M-1) vem publicada no catlogo da exposio da fbrica de Miragaia31
e apresenta a inscrio F. DO L[IMA], arqueada e sobrepujada por uma coroa. O nico exemplar que
recolhemos est em chacota e a marca partida sensivelmente a meio. Trata-se do fundo de um prato,
ficando a inscrio na base, ao centro. A sua leitura provvel FABRICA DO LIMA.
31
CORREIA, Margarida Rebelo, coord. Fbrica de Loua de Miragaia. Catlogo da exposio. Lisboa: Instituto dos Museus
e da Conservao, 2008, p. 246.
5. Consideraes finais
Embora no seja comum vermos a Arqueologia cruzar-se nos caminhos de estudo do Romantismo,
cremos que o presente caso pode trazer novos contributos ao que se conhece sobre esta poca,
particularmente quanto faiana portuguesa ento produzida que povoa hoje muitas das nossas
coleces pblicas e privadas.
Como j tivemos oportunidade de referir, o facto de se tratar de um contexto arqueolgico datado,
onde no h dvidas quanto ao centro produtor, permite-nos vislumbrar, atravs destes milhares
de fragmentos, a loua que era comummente produzida em Santo Antnio de Vale de Piedade e
nas outras fbricas da rea do Porto, pois sabemos que todas imitavam os mesmos modelos, e,
consequentemente, usada pela generalidade da populao, podendo assim apurar-se gostos e modas
ento correntes. De assinalar que muitos dos tipos decorativos aqui apresentados so normalmente
atribudos segunda metade do sculo XIX, porm a presena neste depsito arqueolgico prova a
Fig. 1 Nas linhas superiores, fragmentos de chvena, Fig. 2 Fragmentos de pratos, tigela e tampas com o padro
pires, travessa (em cima) e prato (em baixo) com o tipo decorativo Shell edged pearl ware, subtipos 4.1 ( esquerda) e 4.2.
decorativo Paisagem Canto Popular, subtipos 2.1 e
2.2 respectivamente. Na linha inferior, fragmentos de
travessa e tigelas pertencentes ao tipo Paisagem Pas.
Fig. 5 Fragmentos de chvenas e pires com o Fig. 6 Fragmentos de chvena e pires com
tipo decorativo Vegetalista Primavera, subtipos a decorao Vegetalista com urna.
8.1, 8.2, 8.3 e 8.4 (da esquerda para a direita).
Este estudo, Os agentes da moda no Porto (1830-1850), faz parte de uma investigao mais
alargada no mbito da Dissertao de Doutoramento em Histria da Arte Portuguesa: O Traje
Feminino em Portugal na primeira metade do sc. XIX: mercado e evoluo da moda1. Ao prepararmos
esta comunicao, aprofundmos a nossa investigao relativamente ao Porto Romntico, pelo que
acrescentamos alguns novos elementos que completam o nosso anterior trabalho.
O Cerco do Porto (1832-1833) uma referncia, indissocivel do Liberalismo, para uma nova
organizao social, cultural e econmica da urbe. Recuperou-se o ritmo do desenvolvimento da cidade
e uma burguesia, de cariz liberal, triunfante, que chefia as instituies, que pretende transferir
para a seu modo de vida um registo quase simblico da sua nova condio social. Uma classe que
comeou por ascender numa sociedade em mudana, cada vez mais pelo mrito e cada vez menos pelo
nascimento. Mesmo as famlias mais tradicionais da cidade tiveram que se adaptar a esta realidade.
Uma das expresses visveis de todos esses novos valores sociais que se impuseram aps esta
data foi, sem dvida, a moda: As modas sero um indicador dessas mudanas, provocando curiosas
reaces de imitao, usurpao e rejeio, segundo Maria Jos Moutinho dos Santos2.
A efemeridade associada moda, por vezes aliada teatralidade que tambm lhe est inerente,
funcionava como que uma espcie de camuflagem para todas as mulheres que pretendiam, atravs
do aparato e do luxo, ascender e ser reconhecidas socialmente, como uma tentativa de figurao de
um eu perante a exigncia da poca.
Mas como que estas senhoras acompanhavam a evoluo da moda? Onde compravam os seus
adereos? Quem lhes fazia os seus vestidos? Quem as penteava?
Discutir moda e traje implica levar em considerao todas aquelas personagens e processos que
estiveram direta ou indiretamente ligados e envolvidos na mutao e imposio de novos gostos e
tendncias, os agentes de moda, as publicaes de moda, os que estiveram envolvidos no processo
de confeo e criao de novos modelos (modistas e cabeleireiros), os que disponibilizaram os artigos
de moda (comerciantes de moda), at aqueles que produziram alguns componentes (gales, luvas,
chapus) nas suas pequenas oficinas de cariz artesanais.
1
MORAIS, Maria Antonieta Lopes Vilo Vaz de Morais O Traje Feminino em Portugal na primeira metade do sc. XIX:
mercado e evoluo da moda. [S.l: s.n.], 2014. Dissertao de Doutoramento em Histria da Arte Portuguesa apresentada
na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. 3 vols.
2
SANTOS, Maria Jos Moutinho O luxo e as modas em textos de cordel da segunda metade do sc. XVIII. Revista de
Histria. Porto: Centro de Histria da Universidade do Porto / Instituto Nacional de Investigao Cientfica, 1989, p. 146.
3
Alguns alfaiates do Porto ainda se dedicavam confeo de traje feminino, no princpio de Oitocentos. A prpria Confraria
dos alfaiates do Porto foi muito abalada pelo trabalho que era feito por indivduos que iam s casas particulares e que
no eram sujeitos a exames de habilitao profisso, mas, tambm, pelo trabalho das mulheres. Vd., a este propsito,
SILVA, Germano Porto. Caminhos e memrias. Lisboa: Casa das Letras, 2006, pp. 228-229.
Algumas mulheres surgem tambm registadas como alfaiates nos livros de passaportes, isto porque eram sujeitas a exames
pela Corporao de alfaiates e eram denominadas oficialas, podendo trabalhar para os alfaiates femininos. Ana Claudina
Martins, em 1833, registada como Mestre Alfaiate no Registo de Passaportes Internos dado pela Polcia Preventiva do Porto.
Cfr. Arquivo Distrital do Porto (A. D. P.). Livro de Passaportes dados na Polcia Preventiva no Porto. L 1, n 27, f. 27.
4
LEHNERT, Gertud Histria da moda do sculo XX. Colnia: Knemann, 2000, p. 9.
5
Segundo Jos Alberto Rio Fernandes, era usual os algibebes nas ruas do Loureiro e das Flores, ainda nos finais do sc. XIX,
colocarem nos passeios manequins com fatos expostos e, nos intervalos das portas, casacos, calas e coletes. Tambm nas
ruas de Santa Catarina e Carmelitas se expunham casacos de senhora em cruzetas e manequins. No Porto era comum
o aproveitamento do espao pblico em frente loja e da sua fachada para a exposio dos artigos em oferta. Vd, sobre
este assunto, RIO FERNANDES, Jos Alberto O comrcio retalhista na cidade do Porto de finais do sculo XIX (II parte).
O Tripeiro. 7 s., ano X, 8 (1991), p. 236.
6
Vd. BASTOS, Carlos, org. Livro de ouro do comrcio e indstria do Porto. [S. l.]: Carlos Bastos, 1943, p. 235.
7
Borbleta Constitucional. 118 (29 set. 1821).
8
Correio do Porto com Permisso do Supremo Governo Provisrio do Reino. 77 (30 mar. 1822). A disputa entre aqueles que
trabalhavam sujeitos a regulamentos e a pagamentos submetidos s corporaes e aqueles que, independentemente,
produziam novidades ou vendiam mercadorias concorrendo entre si era geralmente motivo de litgio. Acusavam-nos de
venderem mais barato, devido a no pagarem os direitos.
9
Segundo o registo de batismo do filho do casal, de nome Heitor Filho, conhecido por Heitor Guichard Jnior, nascido no dia
1 de fevereiro de 1835 e batizado a 8 do mesmo ms, cf. A.D.P., Registos Paroquiais, Freguesia da Vitria (Porto). L 8 Bapt.,
f. 170v. e 171.
Em 1864, Heitor Guichard ainda era vivo; foi padrinho do seu neto Raul, filho de Heitor Guichard Jnior, negociante, e de
D. Cndida Emlia Leal Cerqueira, cf. A.D.P., Registos Paroquiais, Freguesia de Cedofeita (Porto). L 42 Bapt., f. 51.
10
O Nacional. 99 (29 nov. 1847).
11
O Athleta. T.1, 112 (15 dez. 1838).
12
Peridico dos Pobres no Porto. T. 1, 54 (18 mar. 1834).
13
Peridico dos Pobres no Porto. T. 1, 90 (1 mai. 1834).
14
Gazeta de Lisboa. vol. 1, 119 (21 mai. 1831), p. 486.
15
Tambm Mr. P. Villaret, em 1828, ainda em Frana, foi o autor da obra Art de se coiffer soi-meme, enseign aux dames; dueve
du Manuel du Coiffer soi- mme, Enseign aux Dames; suive du Manuel du Coiffeur, preced deprceptes sur lentretien,
la beaut et la conservation de la chevelure () par P. Villaret. Ainda ter escrito: O Cabelleireiro da Corte e da Cidade;
Tratado hygienico do cabello, ou meios de qualquer se preservar de cabellos brancos e ruivos, sem os tingir, onde ensinava
o mtodo de fazer toucados para as diversas cerimnias, adaptado s diferentes fisionomias, estaturas e cor das pessoas, =
esta ultima he em Francez, e vende-se em casa do autor por 480 rs., cf. Gazeta de Lisboa. vol. 2, 229 (28 set. 1831), p. 943.
16
O Artilheiro. T. 2, 4 (2 set. 1835).
17
O Nacional. 273 (29 nov. 1848).
18
O Peridico dos Pobres no Porto. T. 2, 194 (18 ago. 1835).
19
O Gratuito, jornal dannuncios. 5 (1840).
20
Borbolta. 157 (9 ago. 1827).
21
Ibidem. 17 (19 ago. 1826).
22
O Nacional. 136 (15 jun. 1848).
23
Ibidem. 5 (8 jan. 1849).
24
Directorio, Civil, Politico, Commercial, Historico e Estatistico da Cidade do Porto e Vila Nova de Gaya para o anno de ().
Porto: Typographia Commercial, 1846, p. 154.
25
Peridico dos Pobres no Porto. T. 1, s. n (25 mai. 1850).
26
O Nacional. 138 (18 jun. 1848).
27
Vd. A.D.P. Livro de Passaportes dados na Repartio da Polcia Preventiva. L 3, n 137, f. 137.
28
Vd. A.D.P., Livro de Passaportes dados na Polcia Preventiva no Porto. L 2, n 255, f. 255.
29
Vd. MORAIS, Maria Antonieta Lopes Vilo Vaz de Op. cit., vol. 2, p. 244.
30
Gazeta de Lisboa. vol. 1, 110 (13 nov. 1830), p. 446.
31
Peridico dos Pobres no Porto. T. 1, 21 (25 jan. 1835).
32
Peridico dos Pobres no Porto. T. 2, 97 (19 ago. 1835).
33
O Estandarte. 574 (20 dez. 1849), p. 2690.
34
O Artilheiro. T. 1, 14 (9 jan. 1836).
Apresentamos alguns nomes de cabeleireiros que se destacaram na cidade neste perodo, por ns estudado: Jos Joaquim
da Costa; Mr. P. Villaret, Mr. Amable Godefroy, Joo Heitor Guichard (Heitor Guichard), Pedro Sure, Domingos Sebastio
Sanches, Pedro Antnio Cruz, Pedro Durant, Luiz Camroux, Mr. Leopoldo, Lucas dos Santos, Mr. Dubois/ Mr. Claude, Antnio
Pereira, etc.
35
Gazeta de Lisboa. vol. 2, 174 (26 jul. 1827).
36
Borbolta. 17 (16 jan. 1827).
37
O Artilheiro. T. 2, 26 (18 nov. 1835).
38
O Recreio, Jornal das famlias. T. 1, (1835), s/p.
39
Ibidem, pp. 305-315.
40
O Correio das Damas: jornal de litteratura e de modas. T. 1, 1 (1 jan. 1836), p. 8.
41
O Nacional. 6 (9 jan. 1849).
42
Entre 1834 e 1852 havia, no Porto, oficinas de chapelaria de to pequena dimenso e com cariz to artesanal, que no
foram recenseadas nos inquritos de 1845 e 1852, pois no eram reconhecidas como fbricas. Da que encontremos
muitos nomes ligados chapelaria, mas no de carter industrial.
43
Vd. Almanak Commercial, fabril, judicial, administrativo, eclesistico do Porto e seu districto para () Porto: Tipografia de
J. L. Sousa, 1857; Almanak portuense para o anno de 1867. Porto: Antnio Jos dOliveira, 1866.
44
Vd. MORAIS, Maria Antonieta Lopes Vilo Vaz de Op. cit., vol. 1, pp. 252-289.
45
O Artilheiro. T. 2, 16 (14 out. 1835).
46
O nmero destes armazns de fatos feitos, de proprietrios portugueses ou estrangeiros, foi crescendo a partir da 2
metade do sculo, segundo o Almanak da cidade do Porto e Villa Nova de Gaya para o anno de (), 1852-53.
47
AURORA, Conde d Itinerrio romntico do Porto. Porto: Domingos Barreira, 1962, p. 67.
O Nacional, com o subttulo Jornal Poltico, Literrio e Comercial, foi um carismtico dirio do
Porto publicado ao logo de quase um quarto de sculo, entre 25 de Maio de 1846 e 11 de Novembro
de 18702. Augusto Xavier da Silva Pereira apresentou-o como afecto ao partido cartista e depois ao
regenerador3, que proveio do peridico A Coalizo, seguindo-se-lhe O Progresso do Porto4. Essa referncia
a uma ligao inicial aos cartistas foi corrigida por Alberto Bessa, que o caracterizou como rgo dos
irmos Passos5 que, em virtude de diversas circunstncias, sofreu vrias interrupes.
O primeiro proprietrio e editor dO Nacional foi Joaquim Ribeiro de Faria Guimares (1807-1879),
um importante empresrio da cidade e tambm poltico com cargos a nvel do poder local e central.
Nascido no concelho de Lousada, estabeleceu-se jovem no Porto, exercendo a profisso de caixeiro, vindo
a fundar uma tipografia onde se imprimiram peridicos como O Atleta, A Coalizo e O Nacional. Em
1847 foi co-fundador da Fundio do Bolho e, dez anos mais tarde, um dos fundadores da Fbrica de
Lanifcios do Lordelo, na qual desempenhou a funo de director tcnico por vrios anos. O seu esprito
de iniciativa levou-o a integrar os grupos de indivduos que criaram a Associao Industrial Portuense
de cuja primeira direco foi presidente (1852-1854) e a Associao Promotora da Indstria Fabril;
foi tambm membro da Associao Comercial Portuense, da qual se tornou presidente em 1869. A par
desta intensa actividade empresarial e associativa, integrou diversas vereaes da autarquia portuense6
e foi eleito deputado em vrias legislaturas (1860-1871) pelo partido regenerador7. Justamente numa
1
CEPESE Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
2
Embora Artur Duarte Sousa Reis coloque o fim da sua publicao em 1 de Novembro de 1870 (Jornais do Porto. Edio
fac-similada. Porto: Biblioteca Pblica Municipal do Porto, 1999 [1896] p. 51). O acervo completo deste jornal encontra-se
na Biblioteca Pblica e Municipal do Porto, num total de 45 volumes.
3
PEREIRA, A. X. da Silva, 1896 O Jornalismo Portuguez. Lisboa: Antiga Casa Bertrand Jos Bastos, p. 55.
4
PEREIRA, A. X. da Silva, 1897 Os Jornaes Portuguezes. Sua Filiao e Metamorphoses. Lisboa: Imprensa de Libanio da Silva,
p. 104. Quanto ao Coalizo (2 de Janeiro de 1843 a 23 de Abril de 1846), considera-o histrico-progressista, enquanto
liga O Progresso do Porto (18 de Novembro de 1870 a 21 de Maro de 1871) ao partido conservador-progressista.
5
BESSA, Alberto Jornaes da Minha Terra. O Tripeiro. [Porto]. 47 (167), 3 srie, (1 Dez. 1927), p. 355.
6
SOUSA, Fernando de, coord. Os Presidentes da Cmara Municipal do Porto (1822-2013). Porto: CEPESE/Cmara Municipal
do Porto, 2013, pp. 90-91, 128, 138, 144-145.
7
MATOS, Ana Cardoso de GUIMARES, Joaquim Ribeiro de Faria. In MNICA, Maria Filomena, coord. Dicionrio Biogrfico
Parlamentar (1834-1910). Lisboa: Assembleia da Repblica, 2005, vol. 2, pp. 393-396.
8
Apud IDEM, Ibidem, p. 394.
9
Como refere Bessa, foi neste peridico que saiu o poema de Camilo, no dia 20 de Fevereiro de 1850, que alude ao seu
encontro, num baile, com Ana Plcido.
10
O Nacional. [Porto]. 29, (11 Set. 1847), pp. 1-3.
11
Cf. PEREIRA, Maria da Conceio Meireles O contrabando luso-espanhol no sculo XIX o discurso dos tericos. In O
contrabando e outras histrias. Porto: CENPA/FLUP, 2000-2001, pp. 25-51.
Mas at nem tais dios existem hoje. Por um desses milagres, que aparecem mais duma vez na
histria da humanidade, a providncia chegou aos seus fins pelo meio que menos prprio parecia.
A entrada do exrcito espanhol em terras de Portugal, que l fora se supunha nos levaria a uma
guerra de extermnio, deu-nos ocasio de ver de perto e conhecer os nossos vizinhos; e o mesmo foi
v-los e conhec-los, que abra-los, admiti-los no centro das nossas famlias, sent-los na nossa
mesa e trat-los e am-los como nossos irmos. Todos ns temos muito que lhes agradecer a uns
pouparam muitos sofrimentos a outros por ventura, muitos remorsos12.
Por outro lado, tendo conscincia da inelutvel associao entre a doutrina de unio econmica
e a de unio poltica, este texto separou-as cuidadosamente, preconizando exclusivamente uma
progressiva concertao econmica, bem como uma aliana de estratgia ofensiva e defensiva:
No gostamos de divagar pelos intermndios de Epicuro; somos muito prticos, muito positivos. No
pensamos numa Espanha nica e indivisvel, e ainda menos numa Confederao Ibrica teramos
remorsos de apagar com um correr de esponja a nossa histria, e passar a lngua de Cames para o
rol das mortas. Quereramos sim, que se estreitassem as nossas relaes, e nem isso de salto, mas
gradual e sucessivamente primeiro com regulamentos mais liberais para a navegao dos rios
depois com progressivas modificaes de pautas e em fim com a unio das alfndegas, quando a
experincia tivesse verificado a certeza dos clculos econmicos; e com uma ntima e insolvel aliana
ofensiva e defensiva, assentada no nos mudveis caprichos de duas frvolas e volveis camarilhas,
mas nas convices firmes e profundas de dois povos13.
Em 1850, a propsito de um artigo da Revue des Deux Mondes que denunciava um plano de
absoro de Portugal pela Espanha, este jornal acusou Costa Cabral de se entender com Narvaez e
de influenciar os nimos da rainha portuguesa contra a Inglaterra, a favor da Espanha e Frana, e
props o estreitamento dos laos entre Portugal e Espanha num sentido demoliberal, referindo que
aqum dos Pirenus era j tarde para o obscurantismo, mas cedo demais para o republicanismo14.
No sendo, porm, o monolitismo timbre do Nacional, os artigos de primeira pgina de Custdio
Jos Vieira preconizavam, em 1852, a federao ibrica republicana associando fortes crticas Rege-
nerao e a Rodrigo da Fonseca Magalhes15. Com efeito, afirmou que a Regenerao ia entregar o pas
12
O Nacional. [Porto]. 29, (11 Set. 1847), p. 2. Optou-se por actualizar a grafia das transcries.
13
O Nacional. [Porto]. 29, (11 Set. 1847), p. 3.
14
O Nacional. [Porto]. 42, (20 Fev. 1850), p. 1.
15
O Nacional. [Porto]. 158, (15 Jul. 1852), p. 1 e 118, (23 Maio 1853), p. 1. provvel que alguns dos artigos seguintes fossem
tambm da pena de Custdio Jos Vieira, mas facto que apenas os dois citados saram com o seu nome, situao alis
excepcional, j que todos os textos de primeira pgina do jornal, bem como os restantes, no eram assinados.
No vimos hoje fazer a apoteose da unio ibrica. No queiramos antecipar a obra do tempo, e
apressar o amadurecimento das ideias.
A Providncia tem marcado no seu eterno quadrante o destino dos povos. Bata a hora predestinada;
e ele h-de consumar-se a despeito dos esforos impotentes dos homens.
Sem nos aventurarmos aos sonhos humanitrios da unio de Portugal e Espanha, porque, mesmo
com as condies actuais de independncia poltica das duas naes, no se h-de estabelecer a
solidariedade dos interesses econmicos por sistemas combinados de vias de comunicao e por
uma liga comercial?
Por que, debaixo do ponto nico da solidariedade dos interesses comerciais, no se h-de apresentar a
Pennsula como uma nica famlia de produtores no hostilizando mas favorecendo-se mutuamente?18.
Nesta mesma linha integrava-se um artigo publicado na semana seguinte, que referia a unio das
alfndegas como um sistema de muita vantagem para ambos os pases moral e politicamente falando,
j que a experincia tem-nos mostrado que naes constitudas como a portuguesa e a espanhola no
podem estabelecer um fisco regular e que dessa impossibilidade nascem escandalosos roubos fazenda
nacional, nasce a runa da indstria, e nasce, mais do que tudo, a imoralidade e a corrupo19.
16
O Nacional. [Porto]. 158, (15 Jul. 1852), p. 1.
17
O Nacional. [Porto]. 118, (23 Mai. 1853), p. 1.
18
O Nacional. [Porto]. 167, (26 Jul. 1854), p. 1.
19
O Nacional. [Porto]. 185, (17 Ago. 1854), p. 1.
Para os que entendem que a unio ibrica um facto providencial e inevitvel, determinado por
causas geogrficas, econmicas e polticas, que nenhuma resistncia poder impedir no futuro, a
tendncia da revoluo concorre para entrever mais proximamente a aurora do federalismo ibrico.
Dir-se- doravante tudo o que a obcecao inspirar em detrimento do iberismo, mas no se h-de
poder dizer que a Espanha no digna de se associar aos nossos destinos, pela fereza e instintos
sanguinrios de seus filhos23.
Associada a este claro elogio da via federalista, encontrava-se a defesa do prvio entendimento
dos dois pases a nvel econmico, considerando o mesmo artigo que era chegado o momento para
os homens pblicos de Portugal e Espanha pensarem sobre as grandssimas vantagens da liga dos
interesses econmicos da Pennsula pela modificao das pautas de ambas as naes, pelo sistema
harmnico e concatenado dos caminhos-de-ferro, por todos os meios, finalmente, que aproximam os
sentimentos, as ideias, os produtos da inteligncia e do trabalho dos povos24.
Defendendo que a implementao do iberismo dependia da amplitude e profundidade do seu
debate e propagao, este peridico tentou promov-los na medida das suas possibilidades, pese
embora reconhecesse que a ideia estava ainda longe de concretizar-se:
O iberismo um facto inevitvel. Podem adi-lo certas circunstncias; mas no impedi-lo. E deve
dizer-se contudo que ele agita-se e vive mais no gabinete de alguns estadistas e escritores polticos,
do que nas casas dos cidados e cabanas aldes dos dois povos vizinhos.
() Acreditando, como dissemos, na unio ibrica pela federao; reputando-a auspiciosa aos destinos
de Portugal e Espanha; chamando-a mesmo com os nossos votos e ardentes simpatias, cremos que
no est to prxima, como seria para desejar; porque a no supomos suficientemente elaborada e
amadurecida no pensamento e na vontade de todos os portugueses e espanhis25.
20
O Nacional. [Porto]. 196, (30 Ago. 1854), p. 1.
21
Cf. PEREIRA, Maria da Conceio Meireles Concertao Econmica Peninsular e Unio Aduaneira na Imprensa Portuense
propostas e resistncias no 3 quartel de Oitocentos. Revista da Faculdade de Letras Histria. [Porto]: Faculdade de
Letras da Universidade do Porto, 2 Srie, 13, (1996 [1998]), pp. 423-462.
22
O Nacional. [Porto]. 191, (24 Ago. 1854); 221, (28 Set. 1854); 230, (9 Out.1854).
23
O Nacional. [Porto]. 191, (24 Ago. 1854), p. 1.
24
O Nacional. [Porto]. 191, (24 Ago. 1854), p. 1.
25
O Nacional. [Porto]. 221, (28 Set. 1854), p. 1.
E ns queremos a unio pela federao. A federao a ligao voluntria dos dois povos.
A federao a comunho dos seus interesses polticos, morais e religiosos; sem que nenhum dos
dois fique senhor ou escravo do outro.
() A federao no faz escravos: faz irmos todos os filhos da Pennsula.
() Se somos iberos pelo corao, porque amamos a fraternidade dos povos, que uma consequncia
da religio de Cristo27.
Cuando Espaa sea libre y feliz, el pueblo portugus quera compartir su suerte con la nuestra y
confederarse con nosotros, porque es el nico medio de que pueda hacerlo sin ningn menoscabo
de su dignidad, sin miedo de perder un solo tomo de su independencia y conservando intacta su
autonoma. Portugal ser entonces el duodcimo Estado federal de la Pennsula Ibrica29.
26
O Nacional. [Porto]. 221, (28 Set. 1854), p. 1.
27
O Nacional. [Porto]. 230, (9 Out. 1854), p. 1.
28
Refira-se que em 1858 os dois redactores polticos dO Nacional eram Gonalves Basto e Jos Luciano de Castro e o redactor
literrio Camilo Castelo Branco; a partir de 1861, Adriano Jos de Carvalho e Melo era o editor e administrador. Em 1863
deu-se uma mudana na administrao, constando como proprietrios Gonalves Basto, Custdio Jos Vieira e Agostinho
Lus Antnio Honorato, acumulando este ltimo as funes de administrador, enquanto Gonalves Basto e Custdio Jos
Vieira surgiam como redactores.
29
O Nacional. [Porto]. 102, (7 Mai. 1864), p. 1.
Sem emitirmos a nossa opinio sobre as notcias da retirada do bravo general, porque, falando com
franqueza, quando tentvamos ocuparmo-nos da questo, vacilmos, concorrendo talvez muito para
isto a nossa muita afeio pela grandiosa causa da liberdade, aceitamos a resoluo do governo,
que tem deveres que s vezes esto acima dos seus sentimentos de simpatia, por isso que, se deu
hospitaleiro agasalho aos emigrados, no deve faltar s obrigaes internacionais, aos deveres de
lealdade e ordem para com as naes aliadas30.
Paralelamente, O Nacional aplaudiu outras medidas do executivo de coligao como a carta circular
de Casal Ribeiro, ministro dos Negcios Estrangeiros, que privilegiava a aliana com a Espanha31. Mas, a
partir do Vero de 1867, a desiluso face ao governo de fuso comeou a acentuar-se, multiplicaram-se
as crticas a Casal Ribeiro, cujos escritos ibricos foram profusamente invocados, e O Nacional voltou a
apiedar-se dos emigrados espanhis. Em 1868-1869 sucederam-se os ataques a outros vultos acusados
de defender o iberismo como Carlos Jos Caldeira, no seguimento do escndalo das alfndegas, e
sobretudo Latino Coelho, apresentado como o primeiro ibrico de Portugal32.
O folheto de Joaquim Jos Ribeiro, A Unio Ibrica ou reflexes sobre a unio dos dois povos da
pennsula, provocou um verdadeiro coro de protestos, numa altura em que a oposio ao governo de
fuso atingia o seu clmax. O Nacional liderou esse movimento, publicando um srie de oito artigos
que contestava as asseres do folheto33, opinando que a unio ibrica de ndole monrquica condu-
ziria runa, mas admitindo ainda a soluo da federao, caso Portugal e Espanha se constitussem
previamente como repblicas.
A Janeirinha, que provocou a queda do gabinete, foi saudada pelO Nacional, que sobre o assunto
publicou artigos do filsofo e matemtico Pedro Amorim Viana, professor da Academia Politcnica
do Porto e figura charneira da tertlia intelectual da cidade.
O governo presidido por S da Bandeira, entre Julho de 1868 e Agosto de 1869, denominado
reformista, angariou particular averso dO Nacional. Em Setembro de 1868 eclodiu a revoluo
espanhola, que destronou a rainha e colocou a Espanha em demanda de um monarca, potenciando
30
O Nacional. [Porto]. 44, (25 Fev. 1866), p. 1.
31
Esta carta dirigida aos representantes de Portugal nas cortes estrangeiras valeu a Casal Ribeiro a acusao de querer
realizar a unio peninsular. O Nacional negou essa lgica da oposio e defendeu o ministro, afirmando que ningum
em Portugal queria a unio ibrica, nem o governo, nem o exrcito, nem o povo. Cf. O Nacional. [Porto]. 150, (6 Jul. 1866);
151, (7 Jul. 1866); 159, (27 Jul. 1866); 200, (4 Set. 1866).
32
O Nacional. [Porto]. 34, (16 Fev. 1869).
33
O Nacional. [Porto]. Nmeros 266 a 272 e ainda 276, entre 27 de Novembro e 8 de Dezembro de 1867.
34
O Nacional. [Porto]. 155, (12 Jul. 1861), p. 3.
35
O Nacional. [Porto]. 129, (10 Jun. 1861), p. 2.
36
O Nacional. [Porto]. 275, (2 Dez. 1861), p. 1.
37
O Nacional. [Porto]. 266, (5 Dez. 1868), p. 1.
38
O Nacional. [Porto]. 256, (21 Nov. 1868), p. 1.
39
O Nacional. [Porto]. 241, (4 Nov. 1868), p. 1.
40
O Nacional. [Porto]. 238, (30 Out. 1868), p. 1.
41
O Nacional. [Porto]. 34, (13 Fev. 1860), p. 2.
42
O Nacional. [Porto]. 47, (26 Fev. 1867), p. 2.
43
O Nacional. [Porto]. 97, (30 Abr. 1861), p. 4.
44
O Nacional. [Porto]. 270, (3 Dez. 1867), p. 1.
45
O Nacional. [Porto]. 283, (29 Dez. 1868), p. 2.
Ainda neste ano de 1861, quando se iniciaram em fora, por todos o pas, os festejos do 1 de
Dezembro, O Nacional fez questo de referir as vrias representaes cnicas que nessa noite tiveram
lugar nos vrios palcos portuenses, colocando a tnica na enorme e entusistica concorrncia que
tinham alcanado:
O palcio de Cristal, o teatro Baquet e o circo da rua de Santo Antnio, tomaram grande parte nas
demonstraes de regozijo. No teatro Baquet a mesma afluncia extraordinria, a mesma aglomerao
de povo, o mesmo entusiasmo e as mesmas ou mais ruidosas aclamaes.
Representou-se no Baquet o drama histrico A Restaurao de Portugal. Mais adequado quele dia
no podia a companhia nacional escolher drama algum. Imagine-se o que ali no iria. Por momentos
esteve para se perturbar a ordem por no caber mais gente no teatro. No fim do drama, quando
apareceu a bandeira nacional, o entusiasmo da multido era indiscritvel. A multido pediu to
repetidas vezes que aparecesse o pendo nacional, que muita gente cuidava no terminar aquele
espectculo. Houve vivas independncia, Corte, liberdade, ptria e no sabemos a quem mais.
Cuidam que o circo da rua de Santo Antnio foi indiferente s manifestaes do 1 de Dezembro?
Enganam-se. No circo, com a companhia do sr. Herzog, festejou-se com ruidoso estrondo aquele
dia. No faltou nada para a festa: houve bandeiras, grande iluminao, concorrncia a no caber
no circo, hinos, aclamaes, vivas, grande estrondo patritico, e para cmulo da festa apareceu a
padeira de Aljubarrota47.
Concluindo, ao longo de quase um quarto de sculo de existncia, O Nacional um dos mais longevos
peridicos portuenses da poca tratou com constncia e veemncia o tema ibrico, defendendo nos
seus primrdios a concertao econmica peninsular e at a federao ibrica republicana, no que
ento se aproximou do seu conterrneo Eco Popular e sofreu as crticas dos tambm tripeiros Braz
Tisana e Peridico dos Pobres do Porto.
Esta linha de pensamento no seria partilhada por todos os seus redactores, mas a diversidade
ideolgica parecia efectivamente existir, assente na premissa fundamental da liberdade de pensa-
46
O Nacional. [Porto]. 34, (11 Fev. 1861), p. 3.
47
O Nacional. [Porto]. 266, (5 Dez. 1868), p. 3.
Daniela Filipa Duarte Alves1, Hlder Filipe Sequeira Barbosa2 e Jorge Ricardo Pinto3
1
CHIP ISCET, Portugal. danielafdalves@hotmail.com. Licenciada em Turismo e Mestre em Turismo e Desenvolvimento
de Negcios pelo Instituto Superior de Cincias Empresariais e do Turismo (ISCET). Estagiou no grupo de investigao
CHIP (Culture, Heritage and Identity in Porto) sediado no CIIIC (Centro de Investigao Interdisciplinar e Interveno
Comunitria).
2
CHIP ISCET, Portugal. helder.filipe.barbosa@hotmail.com. Licenciado em Turismo e Mestre em Turismo e Desenvolvimento
de Negcios pelo Instituto Superior de Cincias Empresariais e do Turismo (ISCET). Estagiou no grupo de investigao
CHIP (Culture, Heritage and Identity in Porto) sediado no CIIIC (Centro de Investigao Interdisciplinar e Interveno
Comunitria).
3
CHIP ISCET, Portugal. mirpinto@netcabo.pt. Licenciado, mestre e doutorado em geografia na FLUP. Docente no ISCET
e na UTAD. Investigao centrada na morfologia e histria urbana e na geografia social, tanto no CEGOT como no CIIIC,
onde o investigador responsvel pelo projeto de investigao CHIP. autor de dois livros: O Porto Oriental no final do
sculo XIX, Bonfim Territrio de Memrias e Destinos, coordenador de O 285 da rua de Cedofeita, e, em co-autoria
na coordenao, Turismo, Patrimnio e Inovao. Subdiretor da revista cientfica portuguesa: Percursos e Ideias.
O inglez trabalhava e gozava a seu modo, passeiando depois de fechado o escriptorio, com os filhos,
a p, descendo por Vilar at beira do rio, e marchando a passos largos, intrepidamente, para as
praias da Foz ou de Lea. Cultivava as flres que a natureza lhe prodigalizava no jardim da prpria
casa, lia os romances do seu paiz, ouvia musica por gosto, quando as filhas noite se sentavam ao
piano, e concorria aos bailes da Feitoria, que tinham fama de bons (Pimentel, 1893: 7-8)
Fig. 1 Planta de uma pequena praa junto s Terras do Carregal que faz entrada rua dos Quartis,
de Jos Francisco de Paiva. s.d. AHP.
Encontra-se disponvel no Arquivo Histrico do Porto uma planta (fig.1) desenhada por Jos
Francisco de Paiva, catalogada como sendo de 1824, relativa ao entroncamento da rua dos Quartis
com as antigas ruas do Carranca e do Carregal. A anlise de vrios documentos e plantas cartogrficas
do final do sculo XVIII e da primeira metade do sculo XIX permitiram-nos concluir que o referido
projeto necessariamente anterior a 1805. A principal razo prende-se com o facto de a rua do Rosrio
ainda no estar ali representada. De qualquer forma, o catlogo da exposio A Planta da Cidade do
Fig. 2 Planta local da parte ocidental da cidade em que cruzam as ruas de Melo, Breyner, Rosrio,
Pombal, Boa Nova, etc. (extrato), de Luis Ignacio de Barros Lima.1805. AHP.
Observando agora a Planta Redonda de George Balck, de 1813 (fig. 3), possvel, desde logo,
detetar uma srie de novas edificaes, que se iam dispondo de forma alternada ao longo das duas
ruas em estudo, fruto do natural desenvolvimento da rea no arranque de Oitocentos. Apesar disto,
o nmero de lotes vagos era ainda bastante significativo. Entre o gaveto da rua do Rosrio e o Palcio
Fig. 4 Plano da Cidade do Porto, de Jos Francisco de Paiva. Anterior a 1824. AHP.
Na figura 4, podemos constatar que, face planta de 1813 (fig. 3), o espao permaneceu pratica-
mente sem grandes alteraes, notando-se contudo que a rua do Rosrio continha mais edifcios e,
no ngulo entre a dita rua e a rua dos Quartis, conseguimos ainda observar o lote retangular isolado,
sem qualquer construo contgua a norte.
Em 1830, a questo da indefinio entre a rua dos Quartis e a rua do Rosrio estava a terminar,
rumo a uma geometrizao do espao. Por esta data, Antnio Caetano da Silva Pedrosa Guimares
Fig. 5 Planta baixa da rua do Rosrio e rua dos Quarteis, de Luis Ignacio de Barros Lima. 1830. AHP.
Na legenda da planta (fig. 5), destaca-se a casa de Antnio Caetano da Silva Pedrosa, que corresponde
letra A. No lote imediatamente contguo, representado pela letra B, so identificadas umas cazas
que seacho principiadas s com soleiras (Livro Plantas de Casa n3, f.2, 1830, AHP) j h alguns anos.
Por ltimo, e relativamente ao cunhal entre a rua dos Quartis e a rua do Rosrio, o lote que surge a
amarelo representado pela letra C seria um terreno que o requerente pretendia comprar, e que,
data, estaria por ocupar. O Aboletamento do Bairro de Cedofeita de 1833 (Recenseamento do Bairro
de Cedofeita: aboletamento, AHP) indica que o lote com frente para a rua do Rosrio estava vago, j
que do n 1 ao n 5 so identificadas umas portas fechadas de quintal.
A planta de 1865, de F. Perry Vidal (fig. 6), que atualizava uma outra da mesma autoria de 1844,
evidencia ainda alguma irregularidade do gaveto, por provvel omisso de retificao da planta de
1844 para a de 1865. Isto porque, por esta altura, o proprietrio dos lotes de terreno que na planta
anterior (fig. 5) estavam representados pelas letras A, B e C j no era Antnio Caetano da Silva
Pedrosa Guimares, mas o negociante Gaspar Joaquim Borges de Castro que encetara, uns anos antes,
a sua efetiva regularizao. Nesse terreno de ngulo agudo, o negociante pretendia edificar uma casa
com duas frentes. No entanto, esse detalhe morfolgico originava problemas quer circulao das
carruagens, quer na organizao interna do edifcio. Assim sendo, a soluo encontrada foi o ligeiro
arredondamento da esquina do edifcio, de forma a este ficar mais funcional, permitindo tambm
haver mais espao para a paragem das carruagens, bem como para se realizarem as cargas e descargas
necessrias para o seu funcionamento (Livro Plantas de Casa n28 f.51, 1863, AHP). Este edifcio tinha
sido pensado e projetado para servir de armazm de vinhos, onde o proprietrio poderia guardar as
pipas e as garrafas que comercializava, mas o projeto foi alterado e, no seu lugar, acabou por nascer
um luxuoso hotel, o mais luxuoso que a cidade havia tido at data (O Tripeiro, srie I, ano II), que
se anunciava at como o melhor e mais rico estabelecimento desta ordem que conta actualmente
a cidade do Porto (Comrcio do Porto, 12-08-1865). O edifcio a poente deste, com frente para a rua
Em 1892, e como comprova a Cartografia de Telles Ferreira (fig. 7), o gaveto entre a rua do Rosrio
e a rua do Triumpho (antiga rua dos Quartis) estava j completamente edificado, em terrenos que
correspondem em boa parte aos lotes que outrora pertenceram a Antnio Caetano da Silva Pedrosa
Guimares.
O Hotel do Louvre
A inaugurao do Grande Hotel de Paris (primeira denominao do Hotel do Louvre) acontece a
1 de setembro de 1865, no mesmo ano e ms em que se inaugura o Palcio de Cristal, numa poca
de alguma euforia e esperana no futuro. O Hotel descrito no Jornal O Comrcio do Porto de 12 de
agosto de 1865, como tendo grandes salas, ricamente decoradas () e excellentes quartos, meza redonda,
comida a todas as horas, banhos de chuva e dos de tina. A casa tem as vistas mais pittorescas que podem
no Hotel do Louvre, o de melhor apparencia, no encontrei um nico rapaz ou rapariga que fallasse
uma lngua conhecida. A dona da casa estava ainda recolhida e ningum soube prestar-nos os
esclarecimentos necessriosAfinal, a senhora aparecceu. Era uma boa ingleza gorda, de physionomia
Apesar desta imagem um tanto esbatida que foi construindo no final da dcada de 70, o Hotel
do Louvre continuava a ser recomendado em muitos dos Guias do Viajante publicados na segunda
metade do sculo XIX. Um desses exemplos o Guia do Viajante nos Caminhos de Ferro ao Norte
do Douro publicado em 1879, da autoria de Jlio Cesar dAbreu Nunes.
No entanto, em 1880, o Hotel do Louvre acaba mesmo por fechar portas, na sequncia de um
processo que Joaquina Augusta Vieira Borges de Castro (filha de Gaspar Joaquim Borges de Castro)
move contra Maria Alvellos, por esta lhe estar a dever a prestao de arrendamento de 1879 e 1880
(Processo n3018/1880). Maria Alvellos morre no dia 16 de junho de 1904,num humilde tugrio,
rodeada da mais extrema miseria (O Comrcio do Porto, 17-06-1904).
Concluso
O remate sul da rua do Rosrio encerra em si aspetos geogrficos, morfolgicos e sociais de uma
grande complexidade e interesse para a compreenso daquela rea e da cidade como um todo, em
particular nas dinmicas de construo de uma imagem urbana do Porto Romntico. Ao longo deste
artigo, estabelecemos uma linha cronolgica que nos permitiu compreender a evoluo do espao
desde (possivelmente) finais do sculo XVIII at finais do sculo XIX.
Foi possvel compreender que o espao foi alvo de anlise e interveno municipal e privada ao
longo de vrias dcadas, devido ao remate peculiar que a dita parte sul da rua do Rosrio apresentava,
e que se tornava necessrio regularizar, tendo em conta, inclusivamente, a prometida (e nunca
efetivada) concluso poente do Hospital de Santo Antnio. O edifcio onde esteve instalado o Hotel
do Louvre (inicialmente designado de Grande Hotel de Paris), viu o seu projeto reformulado inmeras
vezes devido morfologia complexa que o remate sul da rua do Rosrio apresentava, num tempo de
geometria, regularizaes e alinhamentos.
No que diz respeito dimenso social, estamos perante um espao onde se destacam alguns
nomes bastante influentes do Porto Romntico e que marcaram inevitavelmente a configurao
social e cultural da rea, com reflexos na contemporaneidade. Destacamos Jos Joaquim da Silva
Pedrosa, Antnio Caetano da Silva Pedrosa Guimares e Gaspar Joaquim Borges de Castro. Ainda
nos dias de hoje, boa parte do patrimnio edificado que se encontra no remate sul da rua do Rosrio
foi-nos legado por Gaspar Joaquim Borges de Castro, um importante negociante de vinhos do Porto
cuja fortuna fazia dele, um dos maiores contribuintes da cidade do Porto.
Bibliografia
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O Comrcio do Porto 12 de Agosto de 1865
O Comrcio do Porto 17 de Junho de 1904
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Livros:
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A revisitao do passado luz dos factos e necessidades objectivas do presente constitui um passo
determinante para a compreenso da contemporaneidade. A caracterizao heterognea dos sculos
XIX e XX em Portugal e o carcter de construo intermitente do seu edifcio da democracia fundam-se
nos actos e nos factos que, desde a construo do Estado Liberal e do seu iderio romntico, narram
a existncia de dois pases em confronto permanente, formados pelos da situao e pelos excludos
da sorte, pelos detentores do poder e pelos outros.
Na decorrncia das mltiplas complexidades e idiossincrasias patentes nesse lento processo de
construo do espao democrtico portugus o qual atravessou trs regimes polticos (Monarquia
Constitucional, Repblica e Estado Novo) torna-se fundamental reflectir sobre as vrias formas de
expresso e difuso das ideias que, na esfera do espao pblico, foram acontecendo em contexto urbano.
O presente estudo, aplicado arena da cidade, permite-nos identificar momentos de maior ou
menor participao cvica e poltica, os quais, contextualizados por diferentes definies legais de
cidado e por diferentes exerccios de poder mais ou menos centralistas, foram incorporando maior ou
menor pluralidade na discusso da Cidade e na formalizao do seu Espao, revelando-se importantes
descodificadores para o entendimento do processo no seu todo. Recorrendo ao estudo dos perodos
scio-histricos da transio entre os sculos XIX/XX, apresentam-se permanncias e rupturas que
suportam a compreenso desses factores, na senda de um romantismo tardio, julgando contribuir-se
para a compreenso do tempo contemporneo.
Na decorrncia de um longo processo de investigao sobre a inveno, formao e consolidao
do espao da cidade portuense actual (cruzando e interpretando fontes primrias de informao e
atentando no contraditrio publicado sobre os destinos do espao da cidade, polticas e obras pblicas),
evidencia-se o facto de, maioritariamente, no haver correspondncia entre regime (Monarquia ou
Repblica) e prtica democrtica, verificando-se picos de participao poltica e cvica no mbito de
praxis ideologicamente antagnicas, dependendo das bases legais e legislativas vigentes. Da achar-se
premente contemporizar os qualitativos identificadores e interpretativos dos vrios contextos socio-
1
Arquitecto; Professor na FAUP.
1
Investigador no IHA (Instituto de Histria de Arte) da FCSH da Universidade Nova de Lisboa.
Da autoria do arquitecto Jos Lima da Costa Jnior, o Palcio da Bolsa tornar-se-ia um dos edifcios
mais luxuosos do Porto e at de todo o Norte, e possui um manancial de informao e de cultura visual
capaz de alimentar, durante anos, todos aqueles que se dedicam s artes decorativas, arquitectura at
decorao de interiores. Nele esto congeladas as artes decorativas do sculo de Oitocentos os reviva-
lismos e eclectismos dos finais do sculo XIX ganham aqui requintes e tm uma presena esmagadora.
Houve pocas, como todos sabemos, que estes estilos, tendncias e modas foram ostracizados, criti-
cados e at vistos como uma clara falta de bom gosto, de cultura e de exibicionismo de novos-ricos, mas,
nos incios do sculo XXI, j conseguimos olhar para esta poca de outra forma, fazendo novas leituras
e interpretaes refrescantes e libertas de preconceitos apriorsticos, tomadas de posio que foram em
crescendo ao longo do Modernismo e modernismos do sculo XX. E, como costumamos dizer, s vezes
os historiadores de arte contemporneos padecem de um mal: tornaram-se to ou mais conservadores e
acadmicos do que aqueles que tanto criticavam. J nem vou falar da boutade humorstica e um pouco
perversa que o professor Antnio Hespanha, a nos idos de 1990/91, numa cadeira na Universidade Nova
de Lisboa, dizia e em que afirmava: a Histria Contempornea no era bem Histria, era mais jornalismo.
Manini e Pereira Co
Quem eram um e outro? E quais os principais factos a destacar da sua obra e percurso?
Luigi Manini (1848-1932), artista italiano, nascido em Crema, uma pequena cidade na Lombardia
(muito parecida com Sintra), viera para Portugal em 1879, substituindo, como cengrafo, o velho e
famigerado mestre Cinatti (Siena, 1808 Lisboa, 1879), que trabalhara no So Carlos e em muitos dos
palcios e palacetes de Oitocentos da capital e arredores. Dava assim incio a uma carreira fulgurante
que frutificou em Portugal, tanto no campo da cenografia, como no campo da pintura decorativa, e
onde permaneceria at 1912, ano em que se retiraria para a sua ptria italiana.
Pintor genrico, decorador e scenographo, cultivando com distinco, h mais de meio seculo, o
ornato, e as flres, em que exmio, e a pintura cermica, especialmente os azulejos. Conhecendo e
praticando todos os gneros e processos, antigos, ou modernos, da pintura decorativa, interior ou
exterior, dos edifcios, taes como: o fresco, as temperas diversas, a oleo, a aguarela, etc., bem se pode
considerar pelo menos o nosso derradeiro pintor frescante e o mais operoso dos pintores decoradores
que ficaram do seculo XIX.
Quando foi contratado para decorar o Palcio da Bolsa, Pereira Co era j um artista consagrado
que dera sobejas provas do seu trabalho, tanto no campo da cenografia, como no da pintura decorativa
(e at na azulejaria).
Muitas vezes me perguntam porque Pereira Co assina como Pereira Jnior e, outras vezes, como
Pereira Co, e qual a origem de um to invulgar nome artstico3. A Pereira Co foi-lhe dado o nome de
baptismo de Jos Maria Pereira Jnior. Era filho do militar Jos Maria Pereira (natural de Setbal, Santa
Maria da Graa, 1804 Lisboa, Santos-o-Velho 1888), miguelista, que depois se tornaria construtor
civil, casado na freguesia de Cedofeita (Porto) com D. Rosalina de Jesus Costa (natural de Pedrouos
e baptizada na Freguesia de Nossa Senhora da Ajuda, em 1809, em Lisboa), filha do Major Antnio
Lus da Costa, que fora na Legio Portuguesa Rssia, no tempo de Napoleo, e que morrera com a
idade de 96 anos, como Governador da Fortaleza de So Filipe, em Setbal, o edifcio militar guardio
da cidade do Sado.
Tal como era costume e tradio na poca, o jovem Pereira Jnior herdou, como filho varo, o
nome prprio do pai e apenas o apelido do progenitor. Como ele prprio dir, anos mais tarde, numa
carta de seu punho, no gostando de ser Jnior, para me distinguir dos muitos Jniores que por a
h, a partir de agora sou Pereira Co. E o apelido Co foi busc-lo aos seus antepassados, famlia do
navegador Diogo Co, pois sabia descender deste personagem histrico e tinha, entre muitas outras,
2
VD. a entrada Pereira Junior (Jos Maria), in PEREIRA, Esteves; RODRIGUES, Guilherme Portugal: Dicionrio Histrico,
Corogrfico, Herldico, Bibliogrfico, Numismtico e Artstico Ilustrado. Lisboa: Edies Romano Torres, 1904-1915, vol. V, p. 635.
3
Pereira Co corresponde ao pseudnimo artstico que viria a utilizar e pelo qual se tornou conhecido, sobretudo no
mbito da azulejaria. Apaixonado pela genealogia, Pereira Jnior apenas herdou o apelido paterno, tal como era comum
na poca, mas sabendo-se descendente da famlia do navegador Diogo Co, quele antepassado foi buscar o apelido mais
carismtico, assim se distinguindo de muitos Juniores que por a h (vD. carta do esplio da famlia). O escritor D. Alberto
Bramo (da Academia das Cincias de Lisboa), numa das suas crnicas (Belcanto no mundanismo. Senhora D. Adelaide
de Victoria Pereira, apreciada pelo sr. D. Alberto Bramo), ao descrever uma das filhas do pintor, Maria Adelaide de Sousa
Pereira de Victoria Pereira, afirma: possuindo um timbre de prestigiosa tonalidade e o valor musical que lhe d o pleno
domnio da sua arte, a senhora D. Adelaide Vitria Pereira representa na sociedade portuguesa uma individualidade de alto
relevo, vivendo uma atmosfera espiritual, ao lado do seu marido, grande artista decorador e ceramista, e com a tradio
de seu pae, o notvel pintor Pereira Co, descendente da famlia ilustre em que figura com brilho, no pico perodo dos
Descobrimentos, Diogo Co o clebre navegador, p. 9.
Fig. 3 Luigi Pietro Manini (1848-1936). Photographia, Museu Vicentes. 02 de Agosto de 1887. Funchal, MFV (DIG.)
No palcio da Bolsa, estes dois artistas vo coincidir e criar um trabalho de grande qualidade: a
pintura que rodeia a clarabia e que ilumina o claustro da autoria de Manini, enquanto Pereira Co
pinta a sanca do vestbulo a partir de desenhos do mestre italiano. A imprensa da poca deu brado
destas pinturas e da grande riqueza e fausto deste palcio portuense.
No Porto, Pereira Co pintaria ainda a casa La-Roque (na Rua do Vilar), deixando-nos uma obra
vastssima desde Braga ao Algarve4, assim como o mestre Manini5 nos legaria um extraordinrio
patrimnio decorativo.
Nesta comunicao, como antes vos adiantei, procuraremos apresentar as relaes entre a cenografia
e a pintura decorativa, que deram origem a um autntico ressurgimento da pintura decorativa em
Portugal, em particular entre os anos da Regenerao e as vsperas da Repblica (1851-1910). Outro
objectivo, tambm, o de resgatar do esquecimento estes dois artistas que nos ficaram do sculo XIX,
to reconhecidos em vida, e agora to esquecidos e to pouco valorizados.
4
VD. a entrada Manini (Luiz), in PEREIRA, Esteves; RODRIGUES, Guilherme Portugal: Dicionrio Histrico, Corogrfico,
Herldico, Bibliogrfico, Numismtico e Artstico Ilustrado. Lisboa: Edies Romano Torres, 1904-1915, vol. V, p. 796.
5
PEREIRA, Denise; LUCKHURST, Gerald Luigi Manini: esboo de uma biografia, in Quinta da Regaleira, Luigi Manini,
Imaginrio & Mtodo, Arquitectura & Cenografia (catlogo da exposio Luigi Manini). Sintra: Fundao Cultursintra,
2006, pp. 10-19.
O tecto do trio
Vejamos agora o tecto em anlise, a sua qualidade, significado e importncia.
Em 1879, Toms Augusto Soller (1848-1883)7 encarrega-se da obra de mandar cobrir o chamado
Ptio das Naes8, espao onde antes existia o claustro do convento, criando assim uma rea onde
os comerciantes de grosso trato pudessem trocar impresses, tal como acontecia noutras cidades e
praas europeias com uma economia pujante de relevncia financeira e cidad.
Este trio-salo possui 506 m2 e com um p direito e profundidade de cerca de 19 m9.
Este talvez o local do palcio onde mais se eleva o esprito, ostentando uma imponente cpula
metlica envidraada, por onde jorra uma imensa luz, que transmite uma sensao de glria
verdadeiramente indescritvel e uma ntida impresso de verticalidade, acentuada pelas colunas
pompeanas em ferro forjado e pelo porte elevado das portadas e janelas.10
6
VD. PEREIRA, Esteves; RODRIGUES, Guilherme Portugal: Dicionrio Histrico, Corogrfico, Herldico, Bibliogrfico,
Numismtico e Artstico Ilustrado. Lisboa: Edies Romano Torres, 1904-1915, vol. V, p. 635.
7
O arquitecto Toms Augusto Soller tenta dotar o Porto de um edifcio majestoso e funcional, tal como j existiam na
grande maioria das cidades e praas europeias com alguma importncia.
8
O mesmo nome que dado ao trio do Palcio da Bolsa.
9
O equivalente rea de cinco apartamentos de 100 m2.
10
VD. GARCIA, Isabel Penha (coord.) Palcio da Bolsa. Porto: Arteditores, 2009, p. 57.
O pavimento foi desenhado por Toms Augusto Soller e revestido a mosaico cermico. Nele
predominam os motivos geomtricos, inspirados nos modelos greco-romanos descobertos na cidade de
Pompeia. Esta ornamentao invoca os quatro elementos e alude actividade da associao comercial,
com referncias nutica, marinha mercante, electricidade, s viagens, ao telefone e aos correios.
Luigi Manini fez os desenhos para este tecto e Pereira Co executou-os, sendo os trofus dos
ngulos da sua completa autoria e feitura. Diz-nos Esteves Pereira, o primeiro bigrafo de Pereira
Co, no Dicionrio Portugal11:
No Porto h trabalhos de Pereira Junior na casa La Roque, na rua de Villar; na de Thom Dias, em
Campanh; e no palcio da Bolsa, onde, segundo desenhos de Manini, pintou a ornamentao da
grande sanca do vestbulo. So notveis os quatro trophos dos ngulos, obra da sua concepo e
que imprensa portuense mereceu vrios elogios.
A sanca deste hall monumental decorada com o escudo nacional e as armas herldicas de vinte
pases (Grcia, E.U.A., Frana, Mxico, Dinamarca, Holanda, Blgica, Espanha, ustria-Hungria, Sucia,
Argentina, Rssia, Gr-Bretanha, Alemanha, Sua, Saxe, Itlia, Portugal, Brasil e Prsia) com os quais
Portugal mantinha relaes comerciais e diplomticas. As quatro fileiras de brases so divididas por
quatro cantoneiras, orientadas segundo os pontos cardeais, e que celebram importantes datas para o
comrcio do Porto: a promulgao do Cdigo Comercial, da autoria de Ferreira Borges (18/09/1833),
a criao do Tribunal do Comrcio no Porto (02/08/1834), a fundao da Associao Comercial do
Porto (24/12/1834) e a inaugurao das obras neste edifcio, a 6/10/184212.
11
VD. PEREIRA, Esteves; RODRIGUES, Guilherme Portugal: Dicionrio Histrico, Corogrfico, Herldico, Bibliogrfico,
Numismtico e Artstico Ilustrado. Lisboa: Edies Romano Torres, 1904-1915, vol. V, p. 636.
12
VD. GARCIA, Isabel Penha (coord.) Palcio da Bolsa. Porto: Arteditores, 2009, p. 57.
13
VD. a entrada Cinatti (Luiz), in PEREIRA, Esteves; RODRIGUES, Guilherme Portugal: Dicionrio Histrico, Corogrfico,
Herldico, Bibliogrfico, Numismtico e Artstico Ilustrado. Lisboa: Edies Romano Torres, 1904-1915, vol. V, p. 635.
Muito perde quem se no importa com o que j l vai. O passado a riqueza armazenada de que
nos aproveitamos no presente, riqueza de valores culturais, de experincias mil. Alm de que o
passado fornece-nos o modo de pressentir aquela gostosa sensao esquisita de continuidade no
tempo, - e quem no a saiba reconhecer e apreciar, fecha totalmente os olhos ao pouco que a nossa
imaginao consegue alcanar na perturbadora, perspectiva das idades que se sucedem no decurso
dos tempos sem fim14.
14
VD. CUNHA, Rodrigo Sobral (estudo introdutrio e seleco de textos) Raul Lino: Sintra. Sintra: Colares Editora, 2014,
pp. 34-35.
Nuno Henriques1
1
Investigador do Centro de Estudos do Pensamento Portugus (CEPP) da Universidade Catlica Portuguesa.
2
GUERREIRO, Jacinto Salvador A Imprensa Catlica no sculo XX em Portugal: apresentao de um projecto. Lusitania
Sacra. Lisboa: UCP. 2 Srie, n 10 (1998), p. 384.
3
REIS, Antnio do Carmo O poder da Imprensa no Porto Romntico. Revista de Histria. Porto: FLUP. vol. 9, 1989, p. 295.
4
Citao feita por Carmo Reis: IDEM, Ibidem, p. 296.
Senhor: Est hoje extinto o prejuzo que durou sculos, de que a existncia das ordens religiosas
indispensvel Religio Catlica e til ao Estado, e a opinio dominante que a Religio nada
lucra com elas e que a sua conservao no compatvel com a civilizao e luzes do sculo, e com
a organizao poltica que convm aos Povos5.
5
CLEMENTE, Manuel Igreja e sociedade portuguesa do Liberalismo Repblica. Lisboa: Grifo, 2002, p. 165.
6
IDEM, Ibidem, p. 166.
7
IDEM, Ibidem, p. 167.
Po para metade dos nossos sbios, dos nossos homens virtuosos, do nosso sacerdcio10.
Foi pois essa metade dos nossos sbios que faltou nas escolas, nos plpitos, mas tambm nos
jornais, privando Portugal da maioria dos seus missionrios internos ou, pelo menos, da sua aco
especfica e articulada. O que remanesceu de agentes de postulado foi pouco em nmero e deficiente
em formao: um clero secular com lacunas de cultura humanstica e doutrinal, dividido entre a
aceitao e a recusa do sistema constitucional, mas tambm dividido entre duas hierarquias: a dos
bispos expulsos por D. Pedro, depois do desembarque liberal de 1832. Seguiram-se dez anos de cisma
interno, de corte diplomtico com Roma e de desorganizao geral na estrutura eclesistica secular.
Neste contexto, no ser pois de surpreender que no Porto romntico, aps 1820, dois dos primeiros
peridicos sejam o Christianismo, cujo primeiro nmero data de 185211, e A Cruz, que durar 7 anos,
isto , at 1860. Trata-se, pois, de dois peridicos de expresso catlica dirigidos no por clrigos, mas
por leigos, e esta a primeira caracterstica comum; a segunda que Camilo Castelo-Branco ser a
principal figura de ambos. No segundo, ter como parceiro Augusto Soromenho; no primeiro, ser
8
IDEM, Ibidem, p. 167.
9
IDEM, Ibidem, p. 168.
10
GAMA, Jos Liberalismo e cristianismo em Alexandre Herculano. In Catolicismo e Liberalismo em Portugal (1820-1850).
Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2009, pp. 379-404.
11
Este peridico ter 89 nmeros e ser continuado, um ano depois, pela Familia Catholica.
Saudamos o futuro!
Ao longe, onde se fecham os horizontes escuros deste sculo que passa, vemos o anjo das crenas
descer, irradiante de luz, sobre o bero das geraoens porvir!
Salve! Homem de futuro, que levantas a fronte para o teu Deus, e no tens a nuvem da desanimadora
incerteza a enturvar-te a luz do entendimento!
Salve, filho da f! Que, rico de esperanas infallveis no premio da bemaventuranas, choras na
terra as lagrimas das tuas penas, e as penas de teus pes, que daqui partiram, almas saturadas de
amargura e incredulidade!
Chorai-nos, geraoens vindouras! Chorai-nos, que foi muito provado em aflioens, para a maior
parte dos homens, o drama de sangue que fundou as escoras do seu tablado nas ruinas do Altar!
[]
sombra desta arvore do bem, nasce o bustosinho, que no ousa bracejar to fructuosas frondes;
mas, nutrido da mesma seiva, promete em seus poucos frutos, a substancia saborosa e comum a
todos os fructos que germinam no seio da Religio Catholica, Apostolica, Romana.
o Chistianismo!
Se os seus redactores merecessem a Deus os bens lcitos da fortuna, hiriam de porta em porta, a
amigos e inimigos, pedir que lhes aceitassem gratuito um escripto, que roubaria aos seus trabalhos
teis, ou perigosos, meia hora em cada semana. O christianismo seria um motivo de meditao e
estudos para os incrdulos insipientes, um estimulo de disputa calorosa para os impios obliterados,
e um conforto aprasvel para os legtimos filhos da Egreja Catlica! [].
Valer tambm a pena transcrever um poema de Camilo onde se vislumbrar um Camilo pro-
fundamente religioso, mariano e inerentemente humano (antropolgico), logo na pgina 2 deste
primeiro nmero de O Christianismo:
No que diz respeito a artigos, sero cinquenta e oito e evidenciaro uma dimenso esttica, histrica
e teolgica, bem como eclesiolgica. Estes so os ttulos:
Com efeito, Camilo, ele prprio um dos grandes gnios da Literatura Portuguesa, preencheu uma
grave lacuna na imprensa peridica catlica, num determinado perodo, no Porto. Foi um breve perodo.
Mas apaixonante, problematizador e reflexivo.
Tnia Moreira, no I Congresso O Porto Romntico, afirmou que a experincia da escrita em Camilo,
sempre foi temperada pela experincia vivida12. Ora, esta experincia, nestes dois enunciados peridicos,
ser (tambm) uma experincia religiosa.
No mesmo Congresso, tambm a professora Maria de Ftima Marinho, no final da sua comuni-
cao, com o ttulo Representaes do Porto na obra romanesca de Camilo Castelo Branco, destac,a
12
MOREIRA, Tnia Subsdios para o estudo do sublime em Amor de Perdio, de Camilo Castelo Branco. In SOUSA, Gonalo
de Vasconcelos e (coord.) Actas do I Congresso O Porto Romntico. Porto: UCE-Porto; CITAR, vol. 2, p. 36.
13
MARINHO, Maria de Ftima Representaes do Porto na obra romanesca de Camilo Castelo Branco. In Ibidem, p. 19.
Durante o sculo XIX, a cultura musical do Porto atingiu um dos seus momentos histricos mais
significativos. Um dos fatores catalisadores deste desenvolvimento podemos encontr-lo, ainda na
ltima dcada dos Setecentos, na figura de Joo de Almada e Melo, cuja personalidade empreendedora
e pr-ativa impulsionou a vida artstica da cidade duma forma extraordinria. Sob a sua influncia
foram abertas ao pblico diversas salas de espetculo, incluindo o prprio Salo do Palcio de
Governo1, onde tinham lugar eventos culturais de diversa ndole e onde a msica, especialmente a
lrica, era protagonista indiscutvel. A interveno de Almada e Melo, cujas repercusses chegaram
at aos nossos dias, culminou com a construo do Real Teatro So Joo, que representou um ponto
de viragem decisivo na vida cultural portuense, dando incio a uma nova etapa caracterizada pela
proliferao das salas de espetculo, tanto no mbito institucional como privado, e o consequente
alargamento da oferta cultural.
Os efeitos deste conjunto de iniciativas rapidamente atingiram o pblico portuense, que progres-
sivamente comeou a desenvolver um acentuado gosto por todo tipo de manifestaes artsticas,
procurando avidamente novos eventos e, ao mesmo tempo, elevando o seu nvel de exigncia em
relao qualidade dos mesmos2. Uma cidade com uma vida cultural to ativa oferecia um ambiente
muito favorvel para o exerccio das artes em geral e, no caso que nos ocupa, da msica, em particular.
Atrados por esta atmosfera, artistas de grande talento, nacionais e estrangeiros, trasladaram nesta
poca a sua residncia para o Porto. A famlia Edolo foi uma das primeiras a chegar, por volta de 1770,
oriunda de Itlia, como tambm o eram os Napoleo, os Dubini e os Suggia, que chegaram a Portugal
j nas primeiras dcadas do sculo XIX. Por esta altura, em 1810 e 1820, respetivamente, chegaram
desde a vizinha Espanha os Ribas e os Arroio, duas famlias com uma longa tradio musical, unidas
por laos profissionais e afetivos, cuja interveno cultural no Porto oitocentista foi, sem lugar a
dvidas, a mais expressiva de todas.
1
Joo de Almada e Melo, nomeado Governador de Armas do Porto, instalou-se no Largo do Corpo da Guarda, no antigo
Palcio dos Condes de Miranda do Corvo, cujo proprietrio, o Duque de Lafes, o cedeu para ser transformado em Palcio
de Governo. Acabaria por transformar-se tambm num importante polo cultural da cidade do Porto.
2
Cfr. BASTO, Artur de Magalhes O Porto culto nos meados do sculo XIX. O Tripeiro. Srie III, ano II, n 33 (153), 01/05/1927,
pp. 136-137; n 35 (155), 01/06/1927, pp. 169-171.
3
Castillejo uma vila cordovesa pertencente ao distrito de Montilla, uma das mais prestigiadas regies vitivincolas de
Espanha, onde se produz o famoso vinho amontillado.
4
A Coalizo, n 149, 02/07/1845, p. 2; n 153, 07/07/1845, p. 1; n 154, 08/07/1845, p. 1. O Peridico do Pobres do Porto,
n 153, 01/07/1845, p. 2; n 156, 04/07/1845, p. 2; n 160, 09/07/1845, p. 2.
5
Temistocle Solera (1815-1878). Compositor, diretor de orquestra, poeta e romancista que, no entanto, acabaria por atingir
uma considervel notoriedade como libretista, especialmente como colaborador de Giuseppe Verdi (1813-1901). O grande
compositor italiano contou com Solera para os libretos de: Roberto, Conte di S. Bonifacio (1839), Nabucco (1842), I Lobardi
alla Prima Crociatta (1843), Giovanna dArco (1845) e Attila (1846).
6
Ordine dei Santi Maurizio e Lazzaro. Foi instaurada em 1572 pelo papa Gregrio XIII, com poder de concesso na Casa
de Saboia. A partir de 1860, com a unificao de Itlia, a condecorao da Ordem passou a ter carter nacional e a ser
atribuda por mrito civil ou militar.
Jos Diogo Arroio, com uma brilhante carreira docente que o levou a ocupar a direo da Facul-
dade de Cincias da Universidade do Porto; Antnio Jos Arroio, engenheiro e autor de numerosas e
notveis obras de crtica e reflexo musical; Rita Hilria, esposa do mdico algarvio Joo Bentes de
Castel Branco, com quem teve uma numerosa e bem-sucedida descendncia; o Doutor Joo Marcelino
Arroio, com formao jurdica, Deputado, Par do Reino, Ministro, mas sobretudo, e sempre, msico e
compositor arrebatado; e, por ltimo, Josefa Beatriz Arroio, uma jovem e precoce cantora lrica de
extraordinrio talento (fig. 2).
7
O Teatro de Variedades do Porto era o antigo Teatro Cames, tambm conhecido por Teatro de Liceiras, por se encontrar
situado na ento denominada Rua de Liceiras, junto Ordem da Trindade. A sua fundao pouco posterior a 1833.
8
Vd. RIGAUD, Joo-Heitor Joo Arroio (1861-1930) o homem e a obra. Dimenso cvica e atividade musical. Porto: [s.n.],
2011. Tese de Doutoramento em Histria apresentada Faculdade de Letras da Universidade do Porto, p. 49.
1
Aluno de doutoramento em Estudos do Patrimnio da Universidade Catlica do Porto Plo da Foz.
2
Durante a nossa investigao de mestrado e doutoramento pudemos j compulsar cerca de 4000 estudos bio-bibliogrficos.
3
So disto exemplo as caricaturas do Magalhes das Hortas e do visconde das Hortas. No caso do Desgraa e do
Macron, embora apaream no quadro Outros tempos, de Antnio Jos da Costa, so quase impercetveis.
4
Charivari. N 25, 5 Ano. Porto: 3 de Janeiro de 1891, p. 199.
5
PIMENTEL, Alberto O Porto h trinta anos. 2 ed. Porto: UCE-Porto, 2011, p. 69.
6
IDEM, Ibidem, p. 69.
7
PIMENTEL, Alberto A Praa Nova. Porto: Renascena Portuguesa, 1916, p. 229.
8
PIMENTEL, Alberto O Torturado de Seide. Lisboa: Livraria de Manoel dos Santos, 1922, p. 175.
9
PEREIRA, Firmino O Porto doutros tempos: notas historicas, memorias, recordaes. Porto: Livraria Chardron, 1914,
pp. 24-25.
10
PIMENTEL, Alberto O Porto h trinta anos. 2 ed. Porto: UCE-Porto, 2011, p. 69.
11
GUIMARES, Rodolfo Les mathmatiques en Portugal. Coimbra: Imprimerie de lUniversit, 1909, p. 86.
12
PIMENTEL, Alberto A Praa Nova. Porto: Renascena Portuguesa, 1916, p. 217.
13
Charivari. N 25, 5 Ano. Porto: 3 de Janeiro de 1891 (p. 199); PIMENTEL, Alberto A Praa Nova. Porto: Renascena Portu-
guesa, 1916, pp. 215-229 (c/ caricatura de Sanhudo, p. 218); Grande Enciclopdia Portuguesa e Brasileira. Lisboa: Editorial
Enciclopdia, Limitada, [s. d.], vol. 2, p. 411, col 1; PIMENTEL, Alberto O Porto h trinta anos. 2 ed. Porto: UCE-Porto,
2011, p. 69; O Sorvete. N 97, 3 Ano. Porto: 4 de Abril de 1880 (capa); PIMENTEL, Alberto Fitas de Animatgrapho. Lisboa:
Parceria Antonio Maria Pereira, 1909, pp. 184-188 (175 IL quadro, Outros Tempos, de Antnio Jos da Costa); OLIVEIRA,
Manuel Alves de; RGO, Manuela O grande livro dos portugueses. [Lisboa]: Crculo de Leitores, D.L. 1990, p. 50, col.as 2
e 3 (c/ caricatura de Sanhudo); VASCONCELOS, [Henrique Antnio Coelho], Dr. Anto de Memrias do Mata-Carochas.
Porto: Empreza Litteraria e Typographica Editora, 1907, p. 190; GUIMARES, Rodolfo Les mathmatiques en Portugal.
Coimbra: Imprimerie de lUniversit, 1909, p. 86; PIMENTEL, Alberto O Torturado de Seide. Lisboa: Livraria de Manoel dos
Santos, 1922, p. 175; PEREIRA, Firmino O Porto doutros tempos: notas historicas, memorias, recordaes. Porto: Livraria
Chardron, 1914, pp. 24-25; PIMENTEL, Alberto O romance do romancista Vida de Camillo Castello Branco. Lisboa:
Empresa Editora de F. Pastor, 1890, pp. 201-202 (IL); SOVERAL, Eduardo Abranches de A Situao de Amorim Vianna
(1822-1901) na Histria da Filosofia Portuguesa. Revista da Faculdade de Letras: Filosofia, srie II, vol. 7. Porto: Faculdade
de Letras da Universidade do Porto, 1990, pp. 290-296 e TEIXEIRA, Antnio Braz Pedro de Amorim Viana, in http://cvc.
instituto-camoes.pt/filosofia/rep3.html (2010/10/04; 23.06h).
14
BRANCO, Camilo Castelo Bohemia do espirito. Porto: Livraria Civilizao, 1886, p. 10 e Esboo incompleto da extraordi-
nria histria de La Paiva (1819-1884) Quem era Albino Francisco de Paiva Arajo?, in http://doportoenaoso.blogspot.
pt/2010/10/esboco-incompleto-da-extraordinaria.html (2012/11/02; 21.18h).
15
PIMENTEL, Alberto Do portal claraboia. 2 ed. Lisboa: Guimares & C Editores, 1913, pp. 18-19.
16
PIMENTEL, Alberto Fitas de Animatgrapho. Lisboa: Parceria Antonio Maria Pereira, 1909, p. 191.
17
PIMENTEL, Alberto O Porto h trinta anos. 2 ed. Porto: UCE-Porto, 2011, p. 42.
18
PIMENTEL, Alberto Fitas de Animatgrapho. Lisboa: Parceria Antonio Maria Pereira, 1909, p. 191; PIMENTEL, Alberto
O Porto h trinta anos. 2 ed. Porto: UCE-Porto, 2011, p. 42; Grande Enciclopdia Portuguesa e Brasileira. Lisboa: Pgina Editora,
D.L.1998, vol. 5, p. 139; FERREIRA, Damio Vellozo; SOUSA, Gonalo de Vasconcelos e Os fundadores do Club Portuense
e sua descendncia. Porto: [s. n.], 1995, p. 123; BRANCO, Camilo Castelo Bohemia do espirito. Porto: Livraria Civilizao,
1886, p. 10; CORREIA, Lvio O vapor Porto. In SOUSA, Gonalo de Vasconcelos e (coord.) Actas do I Congresso O Porto
Romntico. Porto: UCE-Porto, 2012, vol. II, p. 425; PIMENTEL, Alberto Do portal claraboia. 2 ed. Lisboa: Guimares &
C Editores, 1913, pp. 18-19.
19
O Tripeiro. 5 Srie, Ano V, n 6. Porto: Outubro de 1949, p. 126 (IL-SANHUDO).
20
IDEM, Ibidem, p. 126.
21
O Tripeiro. 5 Srie, Ano VIII, n 6. Porto: Outubro de 1952, p. 165 (IL).
22
O Tripeiro. 5 Srie, Ano V, n 6. Porto: Outubro de 1949, p. 127.
23
O Tripeiro. 5 Srie, Ano II, n 9. Porto: Janeiro de 1947, p. 202; O Tripeiro. 5 Srie, Ano V, n 6. Porto: Outubro de 1949, p. 126
(IL-SANHUDO); O Tripeiro. 5 Srie, Ano V, n 8. Porto: Dezembro de 1949, p. 184 (IL); O Tripeiro. 5 Srie, Ano VIII, n 4.
Porto: Agosto de 1952, p. 106; O Tripeiro. 5 Srie, Ano VIII, n 6. Porto: Outubro de 1952, p. 165 < (IL, F<) -168; O Tripeiro.
6 Srie, Ano III, n 2. Porto: Fevereiro de 1963, p. 59; O Tripeiro. 6 Srie, Ano IV, n 5. Porto: Maio de 1964, (p. 145-F);
O Tripeiro. 6 Srie, Ano VII, n 3. Porto: Maro de 1967, p. 84; LEITE, Arnaldo O Porto 1900: crnicas. Porto: Livraria
Figueirinhas, 1952, pp. 77-78.
24
Charivari. N 14 (n 639), 14 Ano. Porto: 28 de Janeiro de 1899 (centrais, fim) (pelo seu passamento); SANHUDO, Sebastio
Almanack do Sorvete Procisso das Celebridades Portuenses, desenhos de Sebastio Sanhudo. Porto: Litografia Portugueza,
[1884], [pp. 89-92].
25
O Sorvete. N 161, 4 Ano. Porto: 12 de Junho de1881 (Galeria dO Sorvete biografia e caricatura).
26
O Tripeiro. vol. VI, 3 Srie, 2 Ano, n 26 (146). Porto: 15 de Janeiro de 1927, p. 22, col 1.
27
Ibidem, p. 22, col 1.
28
Grande Enciclopdia Portuguesa e Brasileira. Lisboa: Editorial Enciclopdia, Limitada, [s. d.], vol. 7, p. 763, col 1.
29
O Tripeiro. vol. VI, 3 Srie, 2 Ano, n 26 (146). Porto: 15 de Janeiro de 1927, p. 22, col 1; LEMOS, Antnio No meu tempo
de estudante (recordando o passado). O Tripeiro. vol. VII, 4 Srie, n 6 (176). Porto: Abril de 1931, pp. 91-92; O Tripeiro. 5
hortalia) (tumultos estes que resultaram em dois mortos); O Sorvete. N 362, 8 Ano. Porto: 12 de Abril de 1885 (centrais)
(de novo em Hespanha, por tal e como medida sanitria o Porto escultura, com o Corra de Barros a segredar-lhe ao
ouvido informa os sunos de nova expulso temporria); O Sorvete. N 365, 8 Ano. Porto: 3 de Maio de 1885 (p. 138
centrais) (sobre a entrada de Oliveira Martins nos progressistas presentes Corra de Barros, Delfim Maia, conde de
Samodes, Adriano Machado); O Sorvete. N 376, 8 Ano. Porto: 19 de Julho de 1885 (fim) (Manoel Vieira Borges um dos
mais acalorados oradores do meeting dos recreios, contra Correia de Barros); O Sorvete. N 381, 8 Ano. Porto: 23 de Agosto
de 1885 (centrais) (visto politicamente luz dos partidos para uns um monumento para outros um sicrio); O Sorvete.
N 382, 8 Ano. Porto: 30 de Agosto de 1885 (centrais) (sete alfaiates para matar uma aranha grupo de oposicionistas
candidatos cmara, que tentam derrubar a aranha, que Correia de Barros); O Sorvete. N 386, 8 Ano. Porto: 27 de
Setembro de 1885 (capa) (como trapezista do arame, a oposio aguarda a queda); O Sorvete. N 387, 8 Ano. Porto: 4 de
Outubro de 1885 (capa) (vinda de dois embaixadores do rgulo Gungunhana ao Porto); O Sorvete. N 390, 8 Ano. Porto:
25 de Outubro de 1885 (centrais) (o alvo poltico do Porto contra o qual todos investem), (p. 346) (sobre quem votou e
porque); O Sorvete. N 391, 8 Ano. Porto: 31 de Outubro de 1885 (centrais) (o tribunal da poltica, o julgamento este
sentado no banco dos rus com a oposio em peso como testemunhas de acusao); O Sorvete. N 394, 8 Ano. Porto: 29
de Novembro de 1885 (fim) (o que o mundo! Foi dum syndicato e espera agora o resultado de uma syndicancia!
[refere-se sindicncia ao recenseamento eleitoral] Correia de Barros caminha num mundo cheio de espinhos onde se
inscreve a legenda: poltica); O Sorvete. N 435, 9 Ano. Porto: 26 de Setembro de 1886 (centrais) (a poltica de c enquanto
o apstolo [Luciano de Castro] anda catequizando os ovos de Trs-os-Montes os polticos da monarquia [conde de
Samodes, Correia de Barros] dormem o sono dos justos); O Sorvete. N 442, 9 Ano. Porto: 14 de Novembro de 1886 (na
balana da poltica ou a poltica na balana); O Sorvete. N 443, 9 Ano. Porto: 21 de Novembro de 1886 (capa, centrais,
fim) (sobre mais uma esmagadora vitria deste, para a Cmara); O Sorvete. N 444, 9 Ano. Porto: 28 de Novembro de
1886 (centrais) (ao hrcules da poltica O Sorvete. na legenda querer poder, 1886 v-se o Correia de Barros num
pedestal qual neandertalide de moca na mo mas de cartola como manda o figurino); O Sorvete. N 9, 11 Ano, 2 Srie.
Porto: 26 de Fevereiro de 1888 (capa, fim) (recebe carta de Conselheiro); O Sorvete. N 41, 11 Ano, 2 Srie. Porto: 4 de
Novembro de 1888 (o novo governador civil do Porto. A ascenso da escada do poder); O Sorvete. N 207, 16 Ano. Porto:
22 de Abril de 1894 (capa, p. 2) (retrato e biografia de Charles de Pezarat); Piparotes. N 2, 1 Ano. Porto: 13 de Janeiro de
1889, p. 2 (IL); A Mosca. N 32, 2 Ano. Porto: 7 de Setembro de 1884 (capa) biografia e ilustrao de Pastor, segundo uma
fotografia da casa Fotografia Moderna, Dirio de Notcias. Lisboa: 19 de Agosto de 1907, capa; Grande Enciclopdia Por-
tuguesa e Brasileira. Lisboa: Editorial Enciclopdia, Limitada, [s. d.], vol. 7, pp. 762-763 e PEREIRA, Antnio Manuel
Governantes de Portugal desde 1820 at ao Dr. Salazar. Porto: Manuel Barreira, Editor Livraria Simes Lopes, 1959, p. 100.
30
PIMENTEL, Alberto A Praa Nova. Porto: Renascena Portuguesa, 1916, p. 232.
Guilherme Gomes Fernandes (fig. 8). (Baa, 6/2/1850-Lisboa, Hospital de S. Jos, 31/10/1902). Veio
para o Porto com trs anos de idade e aos treze parte para Inglaterra, onde estudou nos colgios de
Saint Edward em Everton e Saint Marys em Ascott, prximo de Birmingham. Com 19 anos estabelece
residncia no Porto. Fundou em 1874 a Real Associao Humanitria dos Bombeiros Voluntrios do
Porto. Quase todo o material desta foi pago sua custa. Mais tarde saiu dessa associao e fundou e foi
31
PIMENTEL, Alberto O Porto h trinta anos. 2 ed. Porto: UCE-Porto, 2011, p. 22.
32
O Tripeiro. 5 Srie, Ano VI, n 2. Porto: Junho de 1950, p. 32 (IL); ARAJO, Paulo Jos Duarte de Oliveira Jnior, redator
do Jornal de Horticultura Prtica, in http://dias-com-arvores.blogspot.com/2005/05/jos-duarte-de-oliveira-jnior-redator.
html (2013/05/17; 22.53h); LEITE, Arnaldo O Porto 1900: crnicas. Porto: Livraria Figueirinhas, 1952, p. 142 (IL).
33
O Sorvete. N 86, 2 Ano. Porto: 18 de Janeiro de 1880 (p. 305); O Sorvete. N 400, 9 Ano, Porto: 10 de Janeiro de 1886
(desdobrvel) (novo Inspetor-Geral dos Incndios); Os Pontos. N 35, 5 Ano. Porto: 26 de Agosto de 1900 (centrais),
O Tripeiro. 5 Srie, Ano XI, n 3. Porto: Julho de 1955, pp. 84-85; MOREIRA, Alberto A Sociedade de Geografia Comercial
do Porto. O Tripeiro. 6 Srie, Ano II, n 5. Porto: Maio de 1962, p. 146 e Enquadramento Urbano do Edifcio da Reitoria da
U. Porto Praa de Guilherme Gomes Fernandes. Nota Biogrfica de Guilherme Gomes Fernandes (1850-1902), in http://
sigarra.up.pt/up/pt/web_base.gera_pagina?P_pagina=1006568 (2014/08/01; 18.59h).
Domingos Ciraco de Cardoso Coriacy (fig. 10). (Porto, Largo da Batalha, 8/8/1846-Lisboa, 11h,
sexta-feira, 16/11/1900, vitima da tuberculose, teve funerais, com vasto cortejo, no dia seguinte
a partir das 3 horas da tarde e foi sepultado no Cemitrio dos Prazeres, na Rua n 9, no jazigo de
Torquato Librio Torres. Nesse cortejo integraram-se, entre tantos outros, os escritores Guedes de
Oliveira, Alberto Pimentel, Eduardo Schwalbach, Heliodoro Salgado, Eduardo Fernandes dito Esculpio,
Urbano de Castro, Alberto Bessa, Dr. Manuel Penteado, Ferreira da Costa e Carlos Borges; os maestros e
compositores Alfredo Keil, Augusto Machado, Alberto Sarti, Carlos Adolfo Sauvinet e Antnio Taborda;
os artistas grficos/plsticos Rafael Bordalo Pinheiro, seu filho Manuel Gustavo e Augusto Pina; os
atores Joo e Augusto Rosa, Ferreira da Silva, Carlos Posser, Augusto de Melo, Carlos Santos e Ernesto
do Vale; e as atrizes ngela Pinto, Crmen Cardoso e Rentini; e o empresrio Ricardo Coves. Fizeram-
se representar os artistas de quase todos os teatros, a orquestra e
empresa do Teatro Avenida, de Lisboa, a empresa do Teatro Carlos
Alberto, do Porto, os jornais A Voz Pblica e Jornal de Notcias, do
Porto, e Dirio da Tarde, de Lisboa. No primeiro aniversrio do
seu passamento, os seus restos mortais foram trasladados para o
Cemitrio do Prado do Repouso, Porto, para o jazigo da famlia de
Afonso Taveira. Era diabtico). Cognome: COARICY. Filho de Joo
Cardoso, o Joo de Massarelos, e de Maria Teodoro Cardoso. Deveu
a seu pai os primeiros ensinamentos musicais. Aos quatorze anos
entrou como violinista no Real Teatro de S. Joo; tocava muito bem
violoncelo e viola.
34
O Tripeiro. vol. VII, 4 Srie, n 4 (174). Porto: Fevereiro de 1931, pp. 63-64; O Tripeiro. vol. VII, 4 Srie, n 5 (175). Porto:
Fevereiro de 1931, p. 79 e O Tripeiro. 5 Srie, Ano IX, n 7. Porto: Novembro de 1953, p. 217.
35
PIMENTEL, Alberto O Porto na berlinda: memorias duma familia portuense. Porto: Livraria Internacional de Ernesto
Chardron, 1894, pp. 96-97.
36
O Sorvete. N 159, [4 Ano. Porto: 29 de Maio de 1881] (Galeria dO Sorvete litografia e biografia).
37
GUIMARES, Cludio Corra dOliveira Um dos mais portugueses dos nossos compositores musicais II. O Tripeiro. 5 Srie,
Ano XIV, n 7. Porto: Novembro de 1958, pp. 197-198 (IL-SANHUDO).
38
IDEM, Ibidem, p. 198.
39
O Tripeiro. vol. II, 1 Srie, 2 Ano, n 50. Porto: 10 de Novembro de 1909, p. 217; O Tripeiro. vol. VI, 3 Srie, 2 Ano, n 36
(156). Porto: 15 de Junho de 1927, p. 177 (F ltimo retrato) a p. 192 (IL-SANHUDO); O Tripeiro. vol. VII, 4 Srie, n 2
(172). Porto: Dezembro de 1930, p. 18; O Tripeiro. 5 Srie, Ano II, n 4. Porto: Agosto de 1946, p. 73 (IL- SANHUDO), 84;
O Tripeiro. 5 Srie, Ano II, n 6. Porto: Outubro de 1946, p. 143; O Tripeiro. 5 Srie, Ano II, n 9. Porto: Janeiro de 1947,
p. 202; O Tripeiro. 5 Srie, Ano V, n 6. Porto: Outubro de 1949, p. 127; O Tripeiro. 5 Srie, Ano V, n 8. Porto: Dezembro
de 1949, p. 183 (IL), 185; O Tripeiro. 5 Srie, Ano XII, n 5. Porto: Setembro de 1956, (p. 152-IL); GUIMARES, Cludio
Corra dOliveira Um dos mais portugueses dos nossos compositores musicais I. O Tripeiro. 5 Srie, Ano XIV, n 6. Porto:
Outubro de 1958, pp. 167-169 (F, IL-SANHUDO); GUIMARES, Cludio Corra dOliveira Um dos mais portugueses dos
nossos compositores musicais II. O Tripeiro. 5 Srie, Ano XIV, n 7. Porto: Novembro de 1958, pp. 197-198 (IL-SANHUDO);
O Tripeiro. 5 Srie, Ano XIV, n 8. Porto: Dezembro de 1958, p. 255; O Tripeiro. 6 Srie, Ano II, n 2. Porto: Fevereiro de
1962, p. 39 (F); O Tripeiro. 6 Srie, Ano IV, n 3. Porto: Maro de 1964, p. 82; O Tripeiro. 6 Srie, Ano IV, n 6. Porto: Junho
de 1964, p. 187 (F cortejo cvico de homenagem sua memria); O Tripeiro. 6 Srie, Ano V, n 12. Porto: Dezembro de
1965, p. 369 (IL-SANHUDO); O Tripeiro. 6 Srie, Ano X, n 3, Maro de 1970, p. 69; O Tripeiro. Srie Nova, vol. III, Ano III,
n 3. Porto: Maro de 1984, p. 70; O Sorvete. N 134, 3 Ano. Porto: 12 de Dezembro de 1880 (p. 589); O Sorvete. N 139, 3
Ano. Porto: 9 de Janeiro de 1881 (capa); O Sorvete. N 158, 4 Ano, 1881 (benefcio), O Sorvete. N 159, [4 Ano. Porto: 29
de Maio de 1881] (Galeria dO Sorvete litografia e biografia); O Sorvete. N 160, 4 Ano. Porto: 1881 (benefcio); O Sorvete.
N 191, 5 Ano. Porto: 8 de Janeiro de 1882 (centrais) (benefcio com O Processo do Rasga); O Sorvete. N 260, 6 Ano.
Porto: 6 de Maio de 1883 (p. 567) (participa no sarau Clube Gymnastico Portuense); O Sorvete. N 126, 14 Ano. Porto:
25 de Setembro de 1892 (capa) (apresenta no Prncipe Real a opereta O Burro do Senhor Alcaide); O Sorvete. N 24, 19
Ano, 2 Srie. Porto: 30 de Maio de 1897 ( noite no Teatro do Prncipe Real); O Sorvete. N 166, 23 Ano, 2 Srie. Porto:
18 de Novembro de 1900 (p. 2) (morte) e Grande Enciclopdia Portuguesa e Brasileira. Lisboa: Editorial Enciclopdia,
Limitada, [s. d.], vol. 5, p. 904, col.as 1 e 2. Vd. PORTELA, Severo A cidade do Porto. Porto: Companhia Portuguesa Editora,
[s. d.] [1938], pp. 37-41 e RIGAUD, Joo-Heitor O compositor Nicolau Ribas, in http://www.meloteca.com/pdfartigos/
joao-heitor-rigaud_o-compositor-nicolau-ribas.pdf pp. 54-65 (2012/03/08; 16.46h).
Jos Maria da Graa Strech Desgraa ou Jos das Desgraas (fig. 12). (Porto, Rua Direita, hoje
Rua de St Ildefonso, 1793/1794 - Porto, /5/1859). Cremos que ningum, por esses tempos, o conhecia
pelo seu nome, Desgraa era o apodo com que o rapazio o apupava a toda a hora. Era neto dum
alemo, capito de navios e mais tarde comerciante em Cima do Muro, e filho do capito do exrcito
Graa Strech e da filha da morgada da Quinta das Chs. Uma figura que o povo reputava de manaco
mas que, de facto, foi uma criatura atormentada pela amargura do destino. Era visto pela cidade, j
pelos seus sessenta e tantos anos, a coxear arrimado ao seu bordo, enformado numa sobrecasaca
completamente abotoada e com um chapu alto todo amassado, na boca um enorme cigarro que
manipulava com pontas de charuto dadas ou apanhadas do cho, num dedo da mo esquerda um
anel de oiro liso com uma s pedra, a medalha de prata da Guerra Peninsular na sobrecasaca e a sua
inseparvel guitarra e seu fiel co, vivendo na mendicidade. Mas tem uma longa, e dolorosa, histria
de vida por detrs. Valente combatente com o pai na Bateria do Bonfim, aquando da invaso francesa
em 1809, e onde pereceu seu pai. Foi ferido quase mortalmente pelos soldados de Soult, mas conseguiu
recobrar e ver sua querida irm morta. Travou muitos outros combates, sendo ferido com gravidade em
muitos deles. Quando Portugal se preparou para a terceira invaso de Massena, Jos Maria alistou-se
neste regimento de infantaria 18, e nas diversas batalhas que travou foi de novo ferido em Salamanca
e em Vitria. Tinha nessa altura o posto de Tenente e foi agraciado com a Torre e Espada e com a
40
PIMENTEL, Alberto A Praa Nova. Porto: Renascena Portuguesa, 1916, p. 249.
41
LEITE, Arnaldo O Porto 1900: crnicas. Porto: Livraria Figueirinhas, 1952, pp. 11-12 (IL).
42
Os Pontos, n 35, 4 Ano. Porto: 27 de Agosto de 1899, (centrais); O Charivari. N 1, 1 Ano. Porto: 13 de Novembro de 1886
(capa).
43
PIMENTEL, Alberto O annel mysterioso: scenas da guerra peninsular. Lisboa: Lucas & Filho, 1873.
44
PIMENTEL, Alberto Fitas de Animatgrapho. Lisboa: Parceria Antonio Maria Pereira, 1909, pp. 176-190 (175 IL quadro,
Outros Tempos, de Antnio Jos da Costa).
45
Galeria de homens e mulheres celebres do Porto, (desde 1830 at 1875) contendo as biographias do Vinte e um e do Rolhas,
da Dona Maria 2, do Faustino, do Negro Melro, do Cartolas, do Bispo, do Nanaia, do Corcunda, do Manoel Z, do Desgraa,
do Urbano, da Henriqueta e do Martinho. Porto: Typ. da Imprensa Litterario-Commercial, 1875, pp. 39-48; PIMENTEL,
Alberto Fitas de Animatgrapho. Lisboa: Parceria Antonio Maria Pereira, 1909, pp. 176-190.
46
PIMENTEL, Alberto O Porto h trinta anos. 2 ed. Porto: UCE-Porto, 2011, p. 98.
47
PIMENTEL, Alberto O romance do romancista Vida de Camillo Castello Branco. Lisboa: Empresa Editora de F. Pastor,
1890, pp. 150-156.
48
BRANCO, Camilo Castelo A Senhora Rattazzi. Porto: Livraria Internacional de Ernesto Chardron, 1880, pp. VII-VIII, 5.
49
VILHENA, Joo Jardim de Uma carta de Camilo. O Tripeiro. 6 Srie, Ano II, n 1. Porto: Janeiro de 1962, p. 9, col 2.
50
PIMENTEL, Alberto O Porto h trinta anos. 2 ed. Porto: UCE-Porto, 2011, pp. 96-97.
51
O Primeiro de Janeiro. Porto: 3 de Junho de 1890; PIMENTEL, Alberto O Porto h trinta anos. 2 ed. Porto: UCE-Porto,
2011, p. 98; PEREIRA, Gaspar Martins No Porto romntico, com Camilo: (e itinerrio camiliano na Foz do Douro de hoje).
Porto: Casa Comum; O Progresso da Foz, 1997, pp. 60-61; PIMENTEL, Alberto O romance do romancista Vida de Camillo
Castello Branco. Lisboa: Empresa Editora de F. Pastor, 1890, pp. 150-156; BRANCO, Camilo Castelo A Senhora Rattazzi.
Porto: Livraria Internacional de Ernesto Chardron, 1880, pp. VII-VIII, 5; BASTO, A. de Magalhes Madame Rattazzi no
Porto. O Tripeiro. 5 Srie, Ano IX, n 6. Porto: Outubro de 1953, p. 163, col 2; VILHENA, Joo Jardim de Uma carta de
Camilo. O Tripeiro. 6 Srie, Ano II, n 1. Porto: Janeiro de 1962, p. 9, col 2; ALVIM, Lusa A Senhora Rattazzi, in http://
camilo20.wordpress.com/2011/09/30/a-senhora-rattazzi/ (2011/03/03; 4.30h); Revista Contemporanea de Portugal e Brazil.
Tomo III. Lisboa: Abril de 1861, pp. 273 a 312.
52
PIMENTEL, Alberto Fitas de Animatgrapho. Lisboa: Parceria Antonio Maria Pereira, 1909, p. 190.
53
SANHUDO, Sebastio Almanach de caricaturas Pae Paulino, Porto, 1 ano, 1878. Porto: Typ. Occidental. Edio: Livraria
Civilizao. Litografia Portugueza a Vapor de Mendona & Sanhudo, 1877, pp. 31-32.
Os botequins/cafs
O sculo XIX viu dilatar-se na quantidade e na sua importncia, a todos os nveis, um estabelecimento
comercial que podemos considerar como uma verdadeira instituio social, poltica e econmica: o
Caf (ou Botequim, como era designado primevamente)3. Foi-o no somente no plano nacional, como,
identicamente, no plano internacional. Vamo-nos ater ao que ao Porto concerne, no deixando, porm,
de enunciar que o que referirmos em relao a esta cidade podemos, sem dificuldade, encontrar
replicado em qualquer outra, variao feita apenas nas escalas das cidades e proporcionalmente no
seu impacto nos aspetos expressos acima.
Quem, por esta poca, queria colher informaes de qualquer ndole mas da maior impor-
tncia para a sociedade, a poltica ou os negcios dirigia-se Praa Nova, fulcro central e placa
giratria dos eixos de grande relevncia viria, centro por excelncia da localizao da maior
parte do comrcio e dos negcios e local de residncia dos mais influentes agentes da cidade. E
at ao aparecimento do peridico Dirio da Tarde (1871-74), de Urbano Loureiro, Borges de Avelar
e Agostinho Albano, as notcias eram publicadas de manh, o que fazia com que o locutrio
preferencial4, para colher informaes, fosse esta rea central do burgo. Aqui chegavam, alm
1
A alocuo proferida no II Congresso O Porto Romntico e este artigo foram extrados dum mais vasto estudo que
deu origem ao terceiro captulo da nossa Dissertao de doutoramento com o ttulo O Porto da segunda metade do
sculo XIX. No que alocuo e artigo concerne, a matria foi extrada, sobretudo, dum subcaptulo inserto nesse
captulo e com a titulatura: Os cafs, as farmcias, os restaurantes, as agremiaes sociais, desportivas e comerciais.
2
Aluno de doutoramento em Estudos do Patrimnio da Universidade Catlica do Porto.
3
Recordemo-nos da imprecao do poeta e Abade de Jazente (Paulino Antnio Cabral de Vasconcelos Amarante, Lomba,
Casa do Reguengo, 6/5/1720 Amarante, So Gonalo, 20/11/1789) que j pelos idos de 1786 invocava: Ide, Damas do
Prto, ide ao paffeio,// ao Thetro, ao Caf, ao Jgo, Dana cf. CUNHA, Rui Porto, de Agostinho Rebelo da Costa
aos nossos dias: Divertimentos dos portuenses XXII, in http://portoarc.blogspot.pt/search/label/Caf%C3%A9%20Brasil
(2014/02/24; 23.52h). O que faz crer que j pelos finais do Setecentos existiriam aqui botequins e se tinha instalado o costume
de degustar essa bebida. No custa a acreditar, pois os mais antigos botequins na cidade datam como veremos das
primeiras dcadas do Oitocentos, se bem que, e no despiciendo diz-lo, no eram, de todo, recomendveis frequncia
de damas. Estamos certos que se a houve algum do sexo feminino, seria tudo menos aquilo que se pode convencionar,
strictu senso, de dama ou senhora. Os primeiros botequins, e durante algum tempo, como documentaremos, at para
os homens constituam um desafio de vontade. Podemos talvez ver, isso sim, nestas palavras do abade, uma stira aos
costumes, desde sempre considerados mais ousados e de vanguarda nas cidades do que no interior.
4
Pela dcada de 40 do sculo XIX, eram os seguintes os considerados pasmatrios no burgo portuense e suas localizaes:
Calada dos Clrigos; nos Loios; na Praa; nas Hortas; junto Casa Pia; na Batalha; em S. Domingos; ou na Rua Nova
dos Ingleses. O mais afamado era o que ficava em frente ao Palcio das Cardosas (hoje Hotel Intercontinental do
Porto), onde no raramente se podiam ver dezenas de pipis, com seu coco ou cartola, arrimados bengala, espera
de verem passar as suas prediletas no real club dos encostados, pasmatrio dos Loios ou aqurio dos imbecis,
como era designado, pelos portuenses, tal era conhecido o lugar e a tipologia dos circunstantes; e usufrua do
privilegio das novidades, em tal e tanta maneira que at o noticirio do Braz Tisana se intitulava, caracteristicamente,
Boletim do pasmatrio dos Loyos cf. BRUNO, Sampaio O Porto culto. Porto: Magalhes & Moniz, L. da Editores,
1912, Tomo I, p. 5 e PIMENTEL, Alberto A Praa Nova. Porto: Renascena Portuguesa, 1916, pp. 172-173.
5
To importantes foram estes estabelecimentos na histria dos povos, que lembramos que sobre eles afirmava
Garrett: O caf uma das feies mais caractersticas de uma terra. O viajante experimentado e fino chega a qualquer
parte, entra no caf, observa-o, examina-o, estuda-o e tem conhecido o pas em que est, o seu governo, as suas leis,
os seus costumes, a sua religio. // Levem-me de olhos tapados onde quiserem, no me desvendem seno no caf;
e protesto-lhes que em menos de dez minutos, lhes digo a terra em que estou se for pas sublunar cf. GARRETT,
Almeida Viagens na minha terra. 2 ed. Porto: Porto Editora, [s. d.] [1977], pp. 48-49. Mas podemos avocar outros
autores de nomeada: Goethe escreveu que neste tipo de estabelecimento se pode ficar sentado durante horas, a
discutir, escrever, jogar s cartas, receber correio e, sobretudo, folhear um nmero ilimitado de jornais e de revistas;
j Balzac chamava aos cafs o parlamento do povo cf. DIAS, Marina Tavares Os Cafs de Lisboa. Lisboa: Quimera
Editores, D.L. 1999, p. 8.
6
Para alm das de carter desportivo, que reuniam, obrigatoriamente, apenas pessoas com gostos afins, a exemplo: o Real Clube
Fluvial Portuense (4/11/1876; MARAL, Horcio Botequins do Porto. O Tripeiro. Srie Nova, vol. VI, Ano VI, n 5-6. Porto: Maio-
junho de 1987, p. 150); o Oporto Cricket & Lawn Tennis Club (1893; PONTE, Lus Nunes da Recordando o velho Porto. Arcozelo:
Enep, 2002, vol. 1, pp. 205-216); o Clube Ginstico de Mafamude (Clube Recreativo de Mafamude, depois conhecido por Clube
da Rasa, dos Cunhas da Rasa Alfredo, Antnio e Eduardo da Silva Cunha, chamados Cunha da Rasa; pertenceu tambm a
este clube Ildio de Faria Guimares) ou o Clube Velocipedista Portuense (9/3/1880-1883; com sede na Rotunda da Boavista.
Deveu-se aos esforos de Alberto dAndrade; Aurlio Vieira; Carlos Soares; John Minchin Jnior e Guilherme Minchin. Acabou
ao fim de 3 anos. Foi refundado com o nome de Club Velocipedista do Porto mas desaparecia, de novo, em poucos anos. Foi
reorganizado a 1/10/1892, pelos incessantes esforos de Frederico Braga). Sobre o Club Velocipedista ver: DELGADO, Antnio
Martins A velocipedia: hygiene e therapeutica. Porto: Typographia Gandra, 1893, pp. 64-65; O Sorvete. N 130, 3 Ano. Porto:
14 de Novembro de 1880, (pp. 559-560) (corridas na Boavista); O Sorvete. N 292, 6 Ano. Porto: 16 de dezembro de 1883, (capa)
(corridas no Palcio); O Sorvete. N 170, 15 Ano. Porto: 6 de Agosto 1893, (centrais) (a velocipedemania); O Sorvete. N 175,
15 Ano. Porto: 10 de Setembro de 1893, (capa) (polmica com o jornal Velocipedista).
7
Caso, igualmente, da Associao Comercial do Porto (1834), grande centro de decises e de poder institucional e de
negcios; da Associao Industrial Portuense (3/5/1849); das associaes mutualistas; das instituies de providncia;
da Misericrdia; das instituies bancrias Centros decisores sociopolticos, mas de acesso restrito.
8
(31/5/1834 - c. 1905) Na Praa do Laranjal (antigo Terreiro ou Praa da Erva), em casa de Antnio Bernardo Ferreira, marido
de D. Antnia Adelaide Ferreira (a Ferreirinha). O palheiro, assim lhe chamava Camilo: Ora o Palheiro era na Assembleia
Portuense uma sala [Sala de Companhia] em que se reuniam por costume sujeitos vesados a falar das vidas alheias, a descobrir
ou inventar escandalos, nela predominavam o elemento brasileiro de torna-viagem e ganhou o nome de Palheiro, segundo o
sarcasta Camilo, pois que palha era o alimento natural dos seus frequentadores. Claro que a origem do nome advinha, segundo
relatos coevos, do facto de a sala ter no cho uma esteira a cobrir o soalho. PIMENTEL, Alberto O Torturado de Seide. Lisboa:
Livraria de Manoel dos Santos, 1922, p. 92; PIMENTEL, Alberto O Porto h trinta anos. 2 ed. Porto: Universidade Catlica
Editora, 2011, pp. 162-163 e PONTE, Lus Nunes da Recordando o velho Porto. Arcozelo: Enep, 2002, vol. 1, pp. 9-16 (F).
9
Fundado a 24/5/1857. A dissenso com a Assembleia Portuense deu-se por motivos financeiros que levaram, esta
agremiao, a suspender uma das tradies desta casa, que era a oferta diria (variando o horrio consoante as estaes)
de ch e bolos. Os scios mais antigos (designados chsistas) protestaram e acabaram por sair e fundar outra Assembleia
(do lado de l da Praa do Laranjal, num edifcio que em parte onde, hoje, est o Clube Fenianos). Com o Clube Portuense
se fundiu, em 8/8/1880, a Sociedade Filarmnica Portuense [foi fundada em 13/3/1840 por Francisco Eduardo da Costa
(Lamego, 15/3/1818-Porto, 27/8/1855, morreu tuberculoso, Prado do Repouso). Pianista, nomeado organista da S do
Porto pelo bispo D. Jernimo Rebelo. Fundador da Sociedade Filarmnica Portuense, 13/3/1840. Sociedade dos Quartetos
Clssicos do Porto] e tinha a sua sede por cima do Botequim das Hortas, na Rua das Hortas atual Rua do Almada onde,
hoje, se encontra o Hotel Intercontinental. Com a fuso destas duas associaes surgiu o Grmio Portuense. Tem a sua
sede, desde 1924, na Rua Cndido dos Reis. cf. O Tripeiro. vol. III, 1 Srie, 3 Ano, n 73. Porto: 1 de Julho de 1910, (p. 5);
PEREZ, Gustavo Dvila O Tripeiro Camiliano. O Tripeiro. 6 Srie, Ano II, n 8. Porto: Agosto 1962, pp. 248-249; O Tripeiro.
6 Srie, Ano VI, n 3. Porto: Maro 1966, (p. 82 planta); MARAL, Horcio O antigo stio do Laranjal. O Tripeiro. 6 Srie,
Ano VI, n 4. Porto: Abril 1966, (p. 107 F., Assembleia Portuense) pp. 109-110. O Sorvete. N 2, 12 Ano. Porto: 26 de Janeiro
de 1890, (centrais) (posio algo inglesada dos membros do Club Portuense). PIMENTEL, Alberto O Porto por fra e por
dentro. Porto Braga: Livraria Internacional de Ernesto e Eugenio Chardron, 1878, p. 171; PIMENTEL, Alberto O Porto h
trinta anos. 2 ed. Porto: Universidade Catlica Editora, 2011, pp. 102, 162, 188-189. Vd., para a histria do Club Portuense,
PONTE, Lus Nunes da Recordando o velho Porto. Arcozelo: Enep, 2002, vol. 1, pp. 9-27 (F), 38-44, 58-70 e vol. 2, pp. 83-96;
BASTO, Artur de Magalhes O Club Portuense: breve monografia histrica. Porto: Club Portuense, 2004; FERREIRA, Damio
Veloso Os 140 anos do Club Portuense, 1857-1997. Porto: Club Portuense, 1998; TORRES, Manuel Augusto Pereira e Cunha
Pinheiro O sesquicentenrio do Club Portuense, 1857-2007. [S. l.] [Porto]: Club Portuense, 2008 e SOUSA, Gonalo de
Vasconcelos e Histria do Club Portuense (1857-2007). Porto: Club Portuense, 2008.
10
Sociedade Terpscore, com sede no Largo do Corpo da Guarda (antes chamado Largo da Relao ou Largo da Chancelaria).
Serviu de cenrio a um sarcstico trecho da obra de Camilo, Aventuras de Baslio Fernandes Enxertado, publicado em
1863. Vd. PEREIRA, Gaspar Martins (coord.) lbum de memrias do Ateneu Comercial do Porto: 1869-1994. Porto:
Ateneu Comercial do Porto, 1995.
11
Sociedade Nova Euterpe ou Sociedade Comercial Nova Euterpe (29/8/1869), com sede na Rua da Porta do Sol, fundiu em
si diversos clubes recreativos anteriores. O Sorvete. N 101, 3 Ano. Porto: 2 de Maio de 1880, (pp. 323, 324, sesso solene
na Nova Euterpe em honra de Brito Capelo e de Roberto Ivens, com a presena de Joaquim de Vasconcelos, 325); O Sorvete.
N 248, 6 Ano. Porto: 11 de Fevereiro de 1883, (p. 471); O Sorvete. N 299, 7Anno, Porto 3 de Fevereiro de 1884 (p. 35) (baile,
e uma histria de saias); O Sorvete. N 300, 7 Ano. Porto: 10 de Fevereiro de 1884, (p. 47) (sarau ginstico na Euterpe) e
O Sorvete. N 312, 7 Ano. Porto: 4 de Maio de 1884, (p. 143) (sarau ginstico na Euterpe); O Sorvete. N 214, 16 Ano. Porto:
10 de Junho de 1894, (capa, p. 2, centrais) (sobre a presena no Porto de Luciano de Castro, para uma soire progressista na
Euterpe, com a presena do Dr. Costa e Almeida, Antnio Cndido, Alves Matheus, o jornalista Jos dAlpoim, e Pinheiro
de Mello, da ex-associao dos lojistas de Lisboa. Doutrinas polticas enquanto esto no poder exercem presso sobre o
povo, quando na oposio gritam constantemente contra o governo, e pedem o bota abaixo). Vd. PEREIRA, Gaspar Martins
(coord.) lbum de memrias do Ateneu Comercial do Porto: 1869-1994. Porto: Ateneu Comercial do Porto, 1995.
12
Fundado a 29 de Agosto de 1869 (reunindo outras associaes anteriores, caso da Terpscore e da Nova Euterpe), com
sede prpria na Rua de Passos Manuel (desde Maio de 1885). Tem um riqussimo esplio artstico com representao
dos mais consagrados nomes da arte portuguesa (em ncleos de pintura, escultura, faiana e porcelana, numismtica e
medalhstica) e, sobretudo, possui uma das melhores bibliotecas de fundo de livro antigo privadas da Pennsula Ibrica
(destacamos a primeira edio dos Lusadas a camoniana das melhores do pas; a camiliana, garrettiana), uma
bblia de 1500, escritos de Ferno Lopes, Nobilirio do Conde D. Pedro 1527). Vd., para a histria do Club, BASTO, Artur de
Magalhes Os setenta e cinco anos do Ateneu. Porto: Ateneu Comercial do Porto, 1945. (Conferncia pronunciada pelo
autor em a noite de 11 de dezembro de 1944, no salo nobre do Ateneu Comercial do Porto) e PEREIRA, Gaspar Martins
(coord.) lbum de memrias do Ateneu Comercial do Porto: 1869-1994. Porto: Ateneu Comercial do Porto, 1995. O Sor-
vete. N 369, 8 Ano. Porto: 31 de Maio de 1885, (p. 171, centrais) (sobre a inaugurao da nova sede em Passos Manuel);
O Sorvete. N 390, 8 Ano. Porto: 25 de Outubro de 1885, (p. 347) (pagou as contas do Hotel do Porto e da Companhia
Viao, relativas presena dos exploradores africanos no Porto); O Sorvete. N 4, 11 Ano, 2 Srie. Porto: 22 de Janeiro
de 1888, (capa) (Bordalo Pinheiro expe as suas louas das Caldas no Salo do Ateneu); O Sorvete. N 5, 11 Ano, 2 Srie.
Porto: 29 de Janeiro de 1888, (capa) (a abertura da Exposio de Faianas das Caldas no Ateneu), (fim) (agradece a Bordalo
o convite para a exposio); O Sorvete. N 211, 16 Ano. Porto: 20 de Maio de 1894, (centrais) (uma exposio de flores);
O Sorvete. N 82, 22 Ano, 2 Srie. Porto: 8 de Janeiro de 1899, (p. 2) (sobre a iniciativa do Ateneu para as comemoraes
do centenrio de Almeida Garrett); O Sorvete. N 85, 22 Ano, 2 Srie. Porto: 22 de Janeiro de 1899, (fim) (sobre centenrio
de Garrett); O Sorvete. N 87, 22 Ano, 2 Srie. Porto: 5 de Fevereiro de 1899, (capa, p. 2) (a nica iniciativa de monta no
Centenrio de Garrett foi promovida por esta instituio [Ateneu], tudo o mais foi meramente oprobizante memria
de to grande vulto) e O Sorvete. N 142, 23 Ano, 2 Srie. Porto: 6 de Maio de 1900, (capa, p. 2, centrais) (a imagem de
Pedro Alvares Cabral, o descobridor do Brasil, refere ainda que o ator lvaro Cabral o mais chegado descendente deste
navegador [chau, olha a lorota]; as parcas comemoraes pela passagem do 4 centenrio do descobrimento do Brasil
limitaram-se iluminao do edifcio dos Paos do Concelho, uma sesso solene no Ateneu Comercial do Porto, uma
irrisria iluminao das ruas de S da Bandeira, Passos Manuel e Santa Catarina, e uma agendada sesso solene na
Associao Comercial, ainda sem data certa de realizao). BRUNO, [Jos Pereira de Sampaio] Portuenses illustres. Porto:
Magalhes & Moniz, 1908, tomo III, pp. 66-77 (sobre a biblioteca da instituio).
13
Clube Carnavalesco Fenianos Portuenses (o seu primeiro nome), fundado na Praa da Batalha em 1904 e depois em 1935 na
sua sede atual Rua dos Fenianos, n 29 (topo da Avenida dos Aliados). Vd., sobre esta instituio, BRITO, Sandra Cristina
Pereira de Clube Fenianos Portuenses: um projeto de civilizao, uma busca de projeo. Porto: [s. n.], 2003. Dissertao
de mestrado em Histria Contempornea apresentada na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
14
Como tambm no Crculo Catlico de Operrios do Porto (fundado em 9/6/1898) (Rua Duque de Loul) ou na Associao
Catlica do Porto (aprovada pelo Governo Civil em 20/1/1872 e pelo Cardeal D. Amrico a 9/2/1872) (depois de ter sede
nas ruas do Almada, da Fbrica e Cimo de Vila, inaugurou em 22 de junho de 1884 a atual, na Rua de Passos Manuel).
15
Vd., sobre sociabilidade em agremiaes coletivas ou em casas particulares, o estudo CASCO, Rui Vida quotidiana e
sociabilidade. In MATTOSO, Jos (dir.) Histria de Portugal. Lisboa: Crculo de Leitores, 1993, 5 vol., p. 528.
16
Os nicos, e insuspeitos, fruns de tertlia e convvio relativamente francos de que nos recordamos (que, ademais, ainda
hoje, de alguma maneira, se conservam assim), eram algumas das boticas ou farmcias, onde se reuniam pelo fim da tarde
muitas e diferenciadas personalidades em amena conversao e troca de ideias. Enunciaremos trs casos emblemticos
mais adiante.
17
Para lista de cafs, restaurantes e hotis, na segunda metade do sculo XIX: Almanak do Porto e seu districto para 1884.
Porto: Livraria Archivo Juridico de A. G. Vieira Paiva Editor, 1883, pp. 385-387; Almanak do Porto e seu districto para
1892. Porto: Livraria Archivo Juridico de A. G. Vieira Paiva Editor, 1891, pp. 193, 303-304, adenda; Almanak do Porto e
seu districto para 1896. Porto: Livraria Archivo Juridico de J. J. Vieira da Silva Editor, 1895, pp. 395-396; Almanak do Porto
e seu districto para 1899. Porto: Livraria e Typographia Archivo Juridico de J. J. Vieira da Silva Editor, 1898, pp. 296-298,
349-350; Almanak do Porto e seu districto para 1900. Porto: Livraria e Typographia Arquivo Jurdico, de J. J. Vieira da Silva
- Editor, 1899, pp. 14, 210, 233-234, 251-252; Almanak do Porto e seu districto para 1901. Porto: Livraria e Typographia
Arquivo Jurdico, de J. J. Vieira da Silva Editor, 1900, pp. 229-230, 254-255, 275 e O Tripeiro. vol. I, 1 Srie, Ano I, n 1.
Porto: 1 de Julho de 1908, p. 11, col.as 1 e 2 (Hotis em 1865, 1908); O Tripeiro. 5 Srie, Ano VI, n 10. Porto: Fevereiro 1951,
p. 235, col 2 (Hotis em 1879). Os hotis eram [c. de 1863], j o disse, detestveis, faltos de comodidades e confortos. O do
Louvre, organizado moderna, foi o nico que o cnsul do Brasil no Porto achou digno de hospedar o Sr. D. Pedro II. [e sua
mulher D. Teresa Cristina Maria, entre 1 a 9 de Maro de 1872] [p. 80] [] Afinal o Hotel do Louvre acabou, talvez falta de
imperadores, que pudessem sustentar-lhe o esplendor, pois que nessa poca apenas o senhor D. Pedro II parecia ter gosto em
via Europa visitar o Porto. // S decorridos anos, graas ao evolutiva do progresso, que se fundaram os amplos hotis
de Entre-Paredes e o Grande Hotel do Porto [a 27/3/1880]. [p. 81] [] Antes de se fundar o Hotel do Louvre, no havia um
que fosse bom, que tivesse as comodidades indispensveis aos hspedes menos exigentes. Mas manda a verdade dizer que,
naquele tempo, quem chegava a um hotel, no pensava seno em tratar de seus negcios, e safar-se. No se viajava por
gosto. E se os hotis eram maus, poucas pessoas tinham melhor em sua casa [p. 154] cf. PIMENTEL, Alberto O Porto h
trinta anos. 2 ed. Porto: Universidade Catlica Editora, 2011, pp. 80, 81, 154.
18
Sobre msica nos cafs (e alguns deles tinham orquestra), ver: O Sorvete. N 13, 1 Ano, 2 Srie. Porto: 1 de Setembro
de 1878 (p. 104) (a propsito da msica no caf e a fuga das assistncias quando o artista vai solicitar uma recompensa
monetria pela sua, at a muito cativante, atuao).
Quadro I
Botequins/cafs do Porto do sculo XIX
Nome do botequim/caf Datas e lugares onde se situou
Caf Guichard (c. 1833-5/2/1857) (ficava nos baixos do Convento dos Congregados de S.
Filipe Nri, Praa Nova)21
Caf guia dOuro (e Restaurante) (27/1/1839 - seg. met. do sc. XX) (Largo de Santo Ildefonso, atual Praa da
Batalha) 22
Caf Camanho (e Restaurante) (1870-1946) (Praa D. Pedro, do lado da Igreja dos Congregados) 23
Caf Lisbonense (3 quartel XIX - c. 1920) (Rua do Bonjardim (onde esteve o Banco Borges &
Irmo) com as traseiras para a Rua de Santo Antnio) 24
Grande Caf Suisso (e Restaurante) (remodelado em 1896) (fecha c. 1958) (esquina da antiga Rua de S da
Bandeira, depois dos arranjos urbansticos a Rua Sampaio Bruno, e na Praa
de D. Pedro 25) 26
As boticas/farmcias
Alm dos botequins, os outros fruns de tertlia e convvio, relativamente francos (que ademais
ainda hoje, de alguma maneira, se conservam assim), eram algumas das boticas, ou farmcias, onde
se reuniam, pelo fim da tarde, muitas e diferenciadas personalidades em amena conversao, jogatina
diletante e troca de ideias. Damos, no quadro seguinte, nota de trs dos mais notrios e clebres casos
no Porto oitocentista:
Quadro II
Boticas/farmcias do Porto nos finais do sc. XIX e incio do sc. XX
Nome da botica/farmcia Datas e sua localizao
Farmcia Lemos (1875-), Praa de Carlos Alberto27
Farmcia Amorim / Clube Rigollot (finais do sculo XIX - sc. XX). Esplanada do Castelo, Foz do Douro, n.os 34-3528
Farmcia do Padro (Finais do sc. XIX-). Largo do Padro29
E pelos idos de Oitocento s estes foram alguns dos parlatrios preferenciais, escolhidos pelas
gentes do Porto, e no s, para desfastio de algumas horas de cio; para se deleitarem a acompanhar
algumas evolues tcnicas que iam surgindo (como o foi o caso das imagens em movimento/cinema),
ou para troca de algumas ideias, com importncia, nas mais vastas reas do pensamento. Nalguns
casos, igualmente, para congeminar algumas aes de reao e revoluo contra um status quo que
no era de feio com os novos movimentos literrios, ideolgicos e polticos que se iam gerando, por
esses tempos, quer internamente quer por fora dos novos iderios que sopravam vindos de outras
partes do mundo.
19
LEITE, Arnaldo O Porto 1900: crnicas. Porto: Livraria Figueirinhas, 1952, pp. 17-21.
20
Seguimos a apresentao no por nomenclatura alfabtica, mas por ordem cronolgica de existncia.