A Opiniao Publica - Machado de Assis
A Opiniao Publica - Machado de Assis
A Opiniao Publica - Machado de Assis
Sobre a obra:
Sobre ns:
Tambm por muito tempo se duvidou da existncia de Mr. Hume, aquele clebre
mgico que transformava os ovos em carvo, mas, se bem me lembro, apareceu um dia o
dito mgico, e da em diante ningum mais duvidou dele. O mesmo h de acontecer com
o judeu errante, de quem falam todos, e que eu creio que existe, sem ser a cholera-morbos,
e que h de aparecer mais dia menos dia, tenho essa esperana.
a maioria da gente que tem razo, e quando falo em maioria suponho ter produzido
um desses argumentos invulnerveis, at mesmo no calcanhar, apesar de quanto possa ter
dito o visconde de Albuquerque.
Assentado isto, receba V. Ex. esta carta que a primeira da srie com que eu pretendo
estrear na imprensa. costume entre a gente trocar os bilhetes de visita a primeira vez
que se encontra. Na Europa, ao menos, to necessrio trazer um mao de bilhetes,
como trazer um leno. V. Ex. ter desejo de saber quem sou. Di-lo-ei em poucas
palavras.
Se a velhice quer dizer cabelos brancos, se a mocidade quer dizer iluses fracas, no sou
moo nem velho. Realizo literalmente a expresso francesa: un homme entre deux ges.
Estou to longe da infncia como da decrepitude; no anseio pelo futuro, mas tambm
no choro pelo passado. Nisto sou exceo dos outros homens que, de ordinrio, diz
um romancista, passam a primeira metade da vida a desejar a segunda, e a segunda a ter
saudades da primeira.
No sou alto nem baixo; estou entre Thiers e Dumas, entre o finado marqus de
Abrantes e o visconde de Camaragibe. Cito os dois para dar cor local comparao, e
ficar logo s boas com a crtica literria. Alm disso, h um ponto de contato entre o
orador francs e o orador brasileiro; ambos obtiveram um apelido quase idntico pela
semelhana da eloqncia parlamentar. Onde no h nenhum ponto de contato entre os
outros dois: nem o Sr. Camaragibe faz romances, nem Alexandre Dumas faz poltica, e
creio que ambos se do bem com esta absteno.
No privo com as musas, mas gosto delas. Leio por instruir-me; s vezes por consolar-
me. Creio nos livros e adoro-os. Ao domingo leio as Santas Escrituras; os outros dias
so divididos por meia dzia de poetas e prosadores da minha predileo; consagro a
sexta-feira Constituio do Brasil e o sbado aos manuscritos que me do para ler.
Quer tudo isto dizer que sexta-feira admiro os nossos maiores, e ao sbado durmo a
sono solto. No tempo das cmaras leio com freqncia o padre Vieira e o padre
Bernardes, dois grandes mestres.
Quanto s minhas opinies pblicas, tenho duas, uma impossvel, outra realizada. A
impossvel a republica de Plato. A realizada o sistema representativo. sobretudo
como brasileiro que me agrada esta ltima opinio, e eu peo aos deuses (tambm creio
nos deuses) que afastem do Brasil o sistema republicano, porque esse dia seria o do
nascimento da mais insolente aristocracia que o sol jamais iluminou.
Aqui esto os principais traos da minha pessoa. No direi a V. Ex. se tomo sorvetes
nem se fumo charutos de Havana; so ridiculezas que no devem entrar no esprito da
opinio pblica.
Agora que me conhece, perguntar V. Ex. por que motivo esta primeira carta dirigida
sua pessoa, e que lhe quero dizer com esta dedicatria. Nada mais simples. Entrando
numa sala, cumprimenta-se logo a dona de casa; entrando na imprensa, dirijo-me a V.
Ex. que a dona dela, segundo dizem as gazetas, e eu creio no que as gazetas dizem.
Consinta V. Ex. que eu no lhe faa corte. De todas as pessoas deste mundo V. Ex. a
mais cortejada desde que um italiano escreveu estas celebres palavras: de l'opinione, regina
del mondo, talvez para contrabalanar o ttulo que as ladainhas da Igreja do Virgem
Maria, regina angelorum. No ser V. Ex. igual Virgem Maria, mas creio poder
compar-la a Santa Brbara, e realmente uma Santa Brbara, que a maior parte da gente
invoca na hora do temporal e esquece na hora da bonana. Eu serei o mesmo em todas as
fases do tempo, e se vier a cortej-la algum dia, ser em silncio, silentium loquens, como
dizia S. Jernimo, outro advogado contra as borrascas.
Ter V. Ex. a indiscrio de pedir-me um programa? Acho que este uso parlamentar
no pode ter aceitao nos domnios da musa epistolar, que toda incerta, caprichosa,
fugitiva. Demais, sei eu acaso o que h de acontecer amanh? Posso criar uma norma aos
acontecimentos? Deixe que os dias passem, e o sucessor com ele, os sucessos
imprevistos, as coisas inesperadas, e a respeito de todos direi francamente a minha
opinio.
Ou, se quiser absolutamente um programa, dir-lhe-ei que prometo escrever com pena e
tinta todas as minhas cartas, imitando deste modo o programa daquele ministrio que
consistia em executar as leis e economizar os dinheiros pblicos. Profunda poltica que
toda a gente compreendeu de um lance. Perdoe-me V. Ex., creio que V. Ex. apoiou
esse ministrio; ao menos assim dizem os amigos dele; e creio que tambm lhe fez
oposio; ao menos, diziam-no os parlamentares oposicionistas. Coisas de V. Ex.
nisto que ningum pode venc-la. O dom de ubiqidade V. Ex. quem o tem de uma
maneira prodigiosa. Agora, por exemplo, no anda V. Ex. de um lado trajando sedas e
agitando guizos, alegre e descuidada, pulando uma valsa de Strauss, dando a mo tsica
dos pulmes e tsica das algibeiras, e de outro lado envergando uma casaca preta, e
distribuindo pelos candidatos polticos a palma eleitoral? Ajuizada e louca, grave e
risonha, entre uma urna e um clice de champanhe, na esquerda o tirso da bacante, na
direita o estilo do escritor, olhar de Ccero, calva de Anacreonte, eis a V. Ex., a quem
todos adoram, os velhos e os mancebos, os bomios e os candidatos.
A verdade que V. Ex. tem s vezes caprichos singulares; gosta da cor vermelha, e a
pretexto de eleio, inspira no sei que maus mpetos ao leo popular, que a tudo investe
e tudo desfaz. Nessas ocasies V. Ex. no tem cetro, como rainha que , tem um cacete,
que um teorema infalvel. Mas nem assim perde o carter de opinio: esse o parecer
dos seus escolhidos.
Mas eu que falo assim obscuro e rude, quem sou eu para dar conselhos opinio, regina
del mondo? Perdoe-me V. Ex. natural nos homens, e eu sou homem, homo sum. Ao
menos veja nisto a minha boa vontade e o grande amor que lhe tenho.
Creio que esta carta vai longa; tenho-lhe roubado demasiado tempo. Vou pr aqui o
ponto final, e recolher-me ao silncio, a fim de pensar nos diversos assuntos com que me
hei de ocupar, se Deus me der vida e sade.
Devia ir v-la hoje divertindo-se e pulando, mas no posso. Consagro o dia de hoje a S.
Francisco de Salles, apropriado estao de penitncia que comea amanh. Preparo
assim o meu esprito meditao. Alm de que, o bom do Santo um dos melhores
amigos que a gente pode ter: no fala mal nem d conselhos inteis. Se V. Ex. cuida que
um homem de carne e osso, engana-se; um mao de folhas de papel metidos numa
capa de couro; mas dentro do couro e do papel fulge e palpita uma bela alma.
OPINIO PBLICA
MACHADO DE ASSIS
DESIGN E DESENVOLVIMENTO
Mrula Editorial