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Doutrina Política - Social-Democracia

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Doutrina Poltica: Social-Democracia

Mdulo I: Doutrina Poltica: Social-Democracia

Introduo

Estamos no incio de um curso sobre Doutrinas Polticas Contemporneas:


Social-Democracia. Convm, assim, esclarecer alguns pontos sobre o
significado do ttulo e a forma do curso.

O que so doutrinas polticas contemporneas?

Na perspectiva que aqui adotamos, so aquelas correntes de pensamento que


inspiram e orientam os partidos polticos importantes em termos de influncia,
voto e acesso ao poder no mundo de hoje. Dito de outra maneira, aquelas
correntes que definem os objetivos de partidos atuais e, em alguns casos, os
meios recomendados para alcanar esses objetivos.

O critrio, portanto, prtico. No vamos discutir correntes de pensamento que


alimentaram partidos fortes no passado, mas insignificantes no presente. No
vamos discutir, por exemplo, uma corrente conservadora, uma vez que hoje
nenhum partido de peso defende o retorno ordem econmica, social e poltica
pr-moderna. Pela mesma razo, no discutiremos a corrente anarquista, uma
vez que os partidos dessa tendncia perderam peso, nos pases onde ainda
eram importantes, no perodo entre as duas guerras mundiais.

Um esclarecimento final necessrio. Grandes correntes de pensamento


poltico no so objetos que possam ser estudados a partir de uma definio
clara, unvoca, aceita por todos. Adversrios e partidrios tm interpretaes
diferentes de cada corrente, e mesmo no interior de cada uma delas
encontramos divises importantes. A seleo de assuntos e autores feita no
curso , portanto, necessariamente parcial. Escolhemos obras de autores
consagrados que tratam de temas que a maior parte dos novos esquerdistas
considera fundamentais. No entanto, outros temas e autores, talvez to
importantes quanto esses, ficaram de fora. Vamos discutir, para dizer de forma
mais precisa, uma seleo de temas e autores importantes para esta corrente.
Assim, para que o aluno possa melhor absorver o contedo desse curso e
atender aos objetivos a que se prope, encontra-se disponibilizado em PDF o
livro Partidos polticos brasileiros. Programas e diretrizes doutrinrias,
organizado por Nerione Nunes Cardoso Jnior, editado pelas Edies Tcnicas
do Senado Federal.

Mdulo I - Social-Democracia

Ao final desta leitura esperamos que voc possa:


distinguir as caractersticas principais da social-democracia;
indicar suas diferenas em relao ao socialismo;

Unidade 1 - Histrico e Caractersticas Principais

Para a anlise da social-democracia, nesta unidade, tomaremos como texto


base o conjunto de ensaios, j clssicos, de Adam Przeworski, reunidos, em
1985, sob o ttulo Capitalismo e Social-Democracia. Veremos, em sequncia,
nesta unidade:
Origem da social-democracia;
Estado de bem-estar social.

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A construo da social-democracia
Qual a relevncia do fenmeno social-democrata? Em primeiro lugar,
independentemente de suas limitaes e falhas, a social-democracia parece
ser a forma predominante de organizao poltica dos trabalhadores em
condies de capitalismo democrtico. Se o caminho da insurreio excludo,
seja por invivel, seja por no conduzir ao socialismo, a via social-democrata
surge como alternativa natural aos que perseguem os objetivos socialistas.
Crticas so necessrias, nessa perspectiva, basicamente como meio de
correo e ajuste de rumos e polticas especficas, dado que o caminho geral,
por excluso, estaria afirmado. Apenas "corrigindo" a experincia social-
democrata poderamos chegar ao socialismo.
A prpria ideia de analisar erros cometidos para aperfeioar as decises
posteriores implica uma concepo de histria e poltica ausente em outras
manifestaes do pensamento socialista. Supe a existncia de condies
objetivas que delimitam uma gama de opes possveis, assim como a vontade
livre, no interior dessa gama, de um operador poltico. Aceitar apenas a
objetividade implica recusar a possibilidade de erros: a histria leva
necessariamente ao socialismo. Aceitar apenas a vontade, atitude comum nas
diferentes correntes polticas que afirmam o "amadurecimento" completo das
condies objetivas, implica dizer que a mudana no se realiza pela ausncia
de inteno de lderes e partidos polticos; no se realiza pela "traio",
portanto. Traio , segundo o autor, a forma consequente de ver a estratgia
social-democrata em um mundo livre de restries objetivas.

Pg. 3
Na verdade, a social-democracia consiste num conjunto de escolhas polticas
feitas em momentos cruciais. Outras opes eram possveis e foram seguidas
pelos "insurrecionalistas" de todos os matizes. Essas escolhas foram:
Primeira promover o avano do socialismo no interior do quadro das
instituies polticas e sociais capitalistas;
Segunda dirigir-se a um conjunto de classes sociais e no s aos operrios
como agentes da mudana; e
Terceira dedicar-se luta pelas reformas parciais do sistema, de interesse
imediato das classes trabalhadoras.
Esse leque de escolhas exclui, evidentemente, a chamada "ao direta", como
forma nica ou preferencial de luta, recusa o monoplio dos operrios da
condio de agentes da mudana e nega o caminho que se resume a preparar
um momento singular de ruptura do sistema, como a insurreio ou a "greve
geral revolucionria".

Pg. 4
A deciso mais importante que precede historicamente s demais a
participao. No se tratava de uma deciso bvia, at porque o direito de voto
permaneceu limitado, por muito tempo, segundo critrios de renda e
propriedade. No quadro das democracias liberais de ento, os operrios no
votavam, e toda sua manifestao poltica, at aquelas que reivindicavam o
direito de voto, extravasava as instituies estabelecidas e constitua forma de
ao direta.
A questo se pe com nfase para o movimento no instante em que se
dissipam as iluses de uma mudana feita por fora da poltica, maneira dos
socialistas utpicos, a partir de colnias ou quistos socialistas que por simples
efeito-demonstrao se difundiriam, acabando por tomar conta do corpo
capitalista. Desde esse momento, necessrio optar: ou se recusa a
participao e se combatem as instituies, ou o voto aceito como mais uma
arma do arsenal dos trabalhadores.unid1pag4
A questo subjacente, de forma alguma trivial, se a burguesia respeitaria o
resultado de um processo democrtico que contrariasse seus interesses vitais.
vitria eleitoral socialista seguir-se-ia o golpe da reao? A dvida perdurou
por dcadas, uma vez que em 1926, aps seis dcadas de debate, os social-
democratas austracos ainda se sentiam no dever de alertar que respeitariam a
ordem constitucional, mas que a reao golpista da direita, caso ocorresse,
seria reprimida de forma ditatorial.
Clique aqui, e leia sobre a importncia do voto.

Pg. 5
De qualquer maneira, no que respeita a essa questo, os anarquistas
posicionaram-se de imediato contra sua participao. A seu ver, a miragem das
eleies domesticaria o movimento dos trabalhadores, levando-o a abandonar
seu propsito revolucionrio.
A linhagem alternativa, que deu origem a socialistas e comunistas, optou pela
participao. No incio, sem muita expectativa: eleies eram vistas como
terreno propcio propaganda e ao recrutamento de novos militantes; ou, no
mximo, como indicador do nimo dos trabalhadores para encarar a
insurreio.
No entanto, a participao mecanismo dotado de lgica prpria, que no
permite meio termo. No incio, os socialistas participavam apenas das eleies;
no faziam acordos relativos ao segundo turno ou partilha de cargos das
mesas dos parlamentos. Participar em governos de coalizo sequer era
cogitado. Aos poucos, a conscincia de que as regras do jogo constitucional
deveriam ser aceitas ou recusadas na ntegra levou-os a fechar acordos,
participar das mesas e, em 1924, a assumir o governo na Gr-Bretanha.
Mesmo ento, esse passo foi polmico e teve que ser justificado com o
argumento da experincia a se ganhar, necessria a um futuro governo
suficientemente majoritrio, capaz de implementar o programa de mudanas.
Clique aqui, e saiba mais sobre os anarquistas.

Pg. 6
Na verdade, medida que a pura absteno poltica e a participao restrita se
revelavam inviveis, os trabalhadores comearam a valer-se da estrutura
partidria social-democrata para atender a seus interesses particulares de
classe. Afinal, no capitalismo, os capitalistas participam diretamente das
decises relativas economia, particularmente no que se refere alocao
produtiva do lucro e distribuio do excedente entre salrios e lucros. Nessas
questes, "votam" todos os dias, produzindo tendncias que revelam os efeitos
combinados do conjunto das decises individuais.
J os trabalhadores, impossibilitados de atingir seus objetivos de forma direta
no mercado, devem recorrer a instituies como sindicatos e partidos. Sendo
assim, a democracia poltica e o sufrgio universal passam a ser tratados pelo
movimento operrio como corretores das disparidades distributivas que o
mercado propicia.
Durante alguns anos conviveram ambas as tticas, a institucional e a ao
considerada direta. Sem dvida, contribuiu para a predominncia da primeira
opo o fato de as greves gerais deflagradas para a obteno dos direitos
polticos, o sufrgio universal masculino, haverem sido vitoriosas onde
ocorreram, como na Blgica e na Sucia. Ao mesmo tempo, todas as greves
gerais desencadeadas com objetivos econmicos, com potencial para evoluir
para uma situao de "greve geral revolucionria", entre o final do sculo XIX e
as primeiras dcadas do sculo XX, foram derrotadas, com perdas duradouras
para o movimento operrio.

Pg. 7
Nas palavras de Kautsky, terico e dirigente da social-democracia alem, a
prpria luta econmica requer direitos polticos e estes no caem do cu. Ou
seja, a participao era necessria. Tornava-se necessrio ao partido organizar
os trabalhadores como classe, ou seja, organiz-los para votar como
trabalhadores.
A opo pela participao envolvia riscos. O consentimento dos trabalhadores
s instituies polticas do capitalismo poderia levar a seu fim ou apenas
contribuiria para refor-lo? Um claro antagonismo era percebido entre os
objetivos estratgicos e tticos do movimento: a superao do capitalismo
exigia um forte movimento de massas, mas um movimento de massas, por sua
vez, exigia ateno e prioridade para reivindicaes menores e mais prosaicas,
ligadas ao cotidiano do trabalhador.
Outros complicadores apresentavam-se ao movimento social-democrata,
segundo o autor. O voto coloca o eleitor na sua condio de indivduo, sendo
uma prtica poltica que tende, portanto, a obscurecer o carter de classe da
ao poltica. O prprio instituto da representao constitua problema na
tradio do movimento, problema que a democracia de conselhos ou comunas
tendia a controlar com a eventual demisso de representantes e com o
mandato imperativo. Mesmo o surgimento espontneo desse tipo de
democracia nas insurreies operrias conhecidas comprova a relao tensa
entre o movimento e o instituto da representao.
Por outro lado, participar regularmente em eleies implicava, como ainda
implica, construir uma mquina partidria eficiente, com uma burocracia forte
que inevitavelmente passa a preponderar nas decises partidrias, levando o
movimento a uma tendncia de aburguesamento. Alm disso, a opo eleitoral
tem como consequncia lgica o abandono dos instrumentos caractersticos da
ao direta. A continuidade do seu uso provoca a desconfiana e rejeio do
eleitor, alm de fazer pesar a suspeita de oportunismo: voto quando somos
maioria, insurreio quando somos minoria.
Finalmente, o recurso continuado aos instrumentos da democracia fortaleceu a
tendncia no movimento a considerar o socialismo a sequncia lgica da
democracia, sua simples extenso para os planos econmico e social. A
democracia passa ento do status de instrumento de luta, de meio, para a
consecuo de um determinado fim, o socialismo, para o de um valor a ser
preservado e ampliado na nova sociedade. A revoluo operria no eliminaria
a obra da Revoluo Francesa, mas a terminaria.
preciso assinalar a presena de um elemento de clculo estratgico na
adeso do movimento operrio s regras do jogo eleitorais. Conforme a
ortodoxia marxista, os operrios viriam a constituir a maioria da populao, em
todos os pases capitalistas. Afinal, para expandir-se, obedecendo a sua lgica
imanente, o capitalismo precisava de um nmero crescente de operrios. O
sistema criava seus prprios coveiros, na conhecida expresso de Marx.
Assim, cedo ou tarde chegaria o momento em que os partidos operrios
representariam a maioria da populao e contariam com a grande maioria dos
votos.

Pg. 8
Nessa perspectiva, a questo da insurreio perde sentido, dado que o
movimento encontrava-se fadado a tomar o poder pelo voto, em condies de
sufrgio universal. Essa interpretao encontra fundamento at em algumas
passagens de Engels, que afirmam a repblica democrtica como a forma por
excelncia da ditadura do proletariado.
Os dados pareceram indicar durante muito tempo o acerto dessas previses.
Retirados da ilegalidade e conseguido o sufrgio universal, todos os partidos
socialistas europeus viram sua votao crescer exponencialmente, entre o fim
do sculo XIX e a segunda dcada do sculo XX. Entre 1905 e 1925, uma boa
parte deles alcanou seu auge eleitoral, uma maioria relativa situada em torno
dos 40% dos votos.
At esse momento, convm lembrar, esses partidos dirigiam-se prioritria ou
mesmo exclusivamente classe operria. No Partido Trabalhista Britnico, at
mesmo a filiao individual de um membro de outra classe foi vetada pelos
sindicatos at 1918.
Havia razes de ordem terica para essa opo. Para Marx, a centralidade dos
operrios, na condio de atores polticos da mudana, devia-se a duas
razes: sua condio de classe explorada no regime, diretamente interessada
em sua superao; e sua capacidade, nica fora da burguesia, de organizar a
produo.
No entanto, havia tambm razes de ordem prtica ao menos to importantes
quanto as tericas.
Em primeiro lugar, a competio econmica campeava entre os operrios,
assim como entre os capitalistas, e sua superao era condio indispensvel
ao aumento da eficincia do conflito contra a classe capitalista. Da a
necessidade de organizar um partido poltico identificado com a classe que
demandasse o voto do trabalhador na condio de trabalhador.
Em segundo lugar, a ausncia de um partido desse tipo facilitaria, na
sociedade burguesa, a integrao dos operrios como indivduos, votando
conforme demandas de outra ordem regionais, religiosas, ou outra qualquer.
Por isso era importante demarcar a classe operria da massa reacionria
constituda pelas demais classes.
Finalmente, o partido voltado para a classe era necessrio para superar o vis
imediatista e antipoltico dos trabalhadores, sempre interessados no confronto
direto com o seu empregador, mas desconfiados do mundo da poltica.

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No entanto, essa concentrao classista dos partidos operrios teve que ser
alterada por imposio do processo eleitoral. Com efeito, a classe operria,
contrariamente s previses de Marx, jamais chegou a constituir a maioria
estvel da populao em qualquer pas capitalista. Aps seu momento de
auge, quando, como vimos, se aproxima da metade da populao total, perto
da passagem do sculo, a participao dos operrios, no sentido clssico do
termo, na populao cai constantemente. Em 1968 representavam 25% da
populao francesa; em 1971, 20% da populao belga, para ficar apenas em
dois exemplos expressivos.
A economia havia mudado. O crescimento, no antecipado pela teoria, do setor
de servios demandava cada vez mais trabalhadores. A nova legislao,
resultado do empenho dos socialistas, fazia aumentar tambm a importncia
de estudantes e aposentados na populao total. Em suma, a previso de Marx
de uma sociedade no rumo da simplificao da estrutura de classes, com uma
burguesia cada vez menor e mais rica, confrontada com uma massa operria
majoritria e empobrecida, no se verificara.
A nova situao deixou aos partidos social-democratas uma alternativa difcil.
De um lado, era possvel preservar a homogeneidade social, a pureza de
classe, o que implicava resignar-se condio de minoria eleitoral. De outro
lado, tambm era possvel ultrapassar os limites da classe operria e dirigir o
apelo poltico e eleitoral do partido a outras classes e camadas da populao,
percebidas como aliadas conjunturais dos operrios. A soma dos votos
tradicionais dos socialistas com os dos aliados de classe permitia pensar na
maioria nas eleies.
preciso assinalar que esta ltima alternativa no implica necessariamente, ao
menos na percepo de dirigentes e militantes da poca, o abandono dos
objetivos finais do movimento. Significava apenas reconhecer que, ao contrrio
da assertiva de Marx, a emancipao dos trabalhadores no seria obra
exclusiva dos prprios trabalhadores.
De fato, medida que a progresso eleitoral dos partidos social-democratas
estagnava, a opo pelo pluriclassismo se imps. Os partidos passaram a
dirigir-se ao povo, s classes populares, focalizando sua crtica num pequeno
nmero de grandes capitalistas e especuladores. Os limites da categoria povo
eram amplos o suficiente para abarcar perto de 90% da populao desses
pases.
A social-democracia nunca chegou a percentuais similares de votos. Sua
estratgia atraiu parte dos membros das classes populares, mas no todos.
Paralelamente, parece haver-se estabelecido um crculo vicioso entre o apelo
classe e o apelo ao povo. Quanto mais os partidos modificavam seus discursos
para atrair o voto de camponeses, trabalhadores de colarinho branco,
funcionrios pblicos, intelectuais, maior a perda de seus votos operrios
tradicionais. No que parece ter sido um dos pontos culminantes do processo, a
eleio britnica de 1979, 50% dos operrios votaram nos conservadores.

Pg. 10
A busca da maioria encontrava-se, aparentemente, bloqueada nas duas
alternativas eleitorais. A opo classista estava condenada maioria, dado que
a classe operria tendia a perder participao na populao total. A opo
popular, por sua vez, produzia uma perda de votos antigos que
contrabalanava a conquista dos novos.
Mas quais as razes desse fenmeno?
A primeira e mais evidente razo a concentrao em objetivos comuns aos
operrios e outros integrantes da coalizo. A poltica popular dirige-se aos
interesses da maioria do povo: operrios so contemplados, no na sua
especificidade de classe, mas como cidados de baixa renda, usurios dos
servios pblicos, consumidores e contribuintes, por exemplo. Os interesses
prprios dos trabalhadores passam a um segundo plano.
H uma segunda razo, de carter menos imediato. O discurso da opo
popular interpela os eleitores como indivduos, solicita sua escolha numa arena
poltica neutra, voltada para o bem comum. Esse tipo de apelo enfraquece a
identidade de classe e libera os operrios a votar conforme as exigncias de
outros princpios, como regio, religio e outros.

Pg. 11
Essas questes, no entanto, no foram antecipadas pelas lideranas que
encaminharam os partidos social-democratas ao rumo do bloco de classes.
Para eles, permanecia a validade do objetivo final do movimento: a abolio da
propriedade privada, fonte da irracionalidade e da injustia presentes na
sociedade capitalista. Para eles, a luta por objetivos especficos, de interesse
das classes populares, no constitua desvio em relao a essa meta, mas a
construo do caminho que levaria a ela. O socialismo como etapa seguinte ao
capitalismo era visto como inevitvel, e os ganhos do movimento, de fundo
popular ou operrio, eram irreversveis e acumulativos. Na expresso de
Jaurs, lder do socialismo francs, a transio para a nova sociedade poderia
ser comparada passagem de um navio pela linha do Equador: lenta,
inexorvel e imperceptvel.
A seguir, examinaremos a feio que a social democracia adotou a partir da
dcada de 1930.

Unidade 2 - O Estado do bem-estar social

preciso ressaltar ainda que, naquele momento, a social-democracia carecia


de uma poltica econmica prpria. Partilhava com os partidos burgueses da
crena no padro-ouro, na necessidade do equilbrio oramentrio. Mesmo as
iniciativas de aumento salarial eram ponderadas com a necessidade de manter
o lucro em patamares que garantissem o investimento futuro e a gerao de
novos empregos. O trao diferencial dos partidos social-democratas estava
numa parcialidade distributiva em favor dos operrios, seja diretamente, seja
pela via popular. As medidas distintivas tpicas eram a luta por um salrio
mnimo, polticas habitacionais, seguro-desemprego, tributao progressiva
sobre a renda e a herana. Todas tiveram como resultado final a melhoria das
condies de vida dos trabalhadores.
Do marxismo o movimento herdara basicamente os argumentos da crtica ao
capitalismo. Propostas efetivas de como proceder para sua superao
resumiam-se transferncia da propriedade dos meios de produo para a
coletividade: a nacionalizao. No entanto, embora o perodo entre as duas
guerras mundiais tenha testemunhado a ascenso de diversos partidos
socialistas ao poder, nada se fez, praticamente, no sentido dessa grande
diretriz.

Pg. 2
Duas razes estariam na origem dessa omisso.
A primeira razo, uma ambiguidade conceitual quanto ao que fazer.
Nacionalizar, ou seja, passar o controle para o Estado, ou socializar,
entregando a empresa gesto dos trabalhadores que operam aquela unidade
particular de produo? Os partidos dividiram-se nessa questo, alguns
enfatizando mais o aspecto planificador da propriedade estatal e outros o
componente autogestionrio. Aos olhos dos socialistas, contudo, essa ltima
alternativa no poderia ser vista como definitiva, pois solucionava apenas a
contradio interna empresa, entre capitalistas e operrios, mas no o
conflito entre aquela unidade e o conjunto dos consumidores.
A segunda razo encontra-se no fato de os socialistas haverem assumido o
governo na condio de minoria ou na liderana de uma coalizo com outros
partidos, contrrios poltica de nacionalizao. Nessa situao, impe-se a
escolha entre dois caminhos. O primeiro perseguir a nacionalizao, o
objetivo final, apesar da condio de minoria. A derrota subsequente teria
utilidade pedaggica, ensinando s massas a identidade de seus aliados e de
seus inimigos, preparando o advento de um governo socialista majoritrio.
Essa posio foi implementada apenas uma vez, em 1928, na Noruega, por um
governo socialista que durou trs dias. O segundo caminho o das reformas, o
da mudana do capitalismo a prestaes, at o dia em que a maioria se volte
para os partidos socialistas e as nacionalizaes possam ser efetuadas.
Essa situao de carncia de uma teoria econmica especfica perdura at a
dcada de 1930. Aps a crise de 1929, uma srie de polticas anticclicas
implementada em diversos pases. Seu fundamento terico foi formulado por
Keynes, e o caso mais conhecido o New Deal americano. No entanto, na
mesma poca, os governos socialistas da Noruega, Sucia e Frana iniciavam
polticas de estmulo a demandas similares.
Clique aqui, e saiba mais sobre o New Deal Americano.

Pg. 3
Criou-se um novo paradigma, no qual cabia ao Estado gerenciar o nvel de
demanda, seja mediante uma poltica de pleno emprego, seja pelo gasto
pblico direto em obras de qualquer espcie. Aceitava-se um certo montante
de dficit pblico, a economia assim aquecida saa da crise e iniciava-se um
novo ciclo expansionista. No momento posterior, de prosperidade, procurava-
se o equilbrio das contas pblicas.
A afinidade entre keynesianismo e social-democracia foi imediata e duradoura.
Essa perspectiva permitia pensar a congruncia entre os interesses
particulares dos trabalhadores e os interesses gerais da sociedade. Aumentar a
renda dos trabalhadores era a receita para fazer a economia crescer e
beneficiar a todos. Os interesses populares, de todas as classes e grupos
aliados, aparentavam uma afinidade, at ento oculta, com os interesses da
classe operria.
Clique aqui e saiba mais sobre o mundo ps-primeira guerra

Pg. 4
Para aperfeioar ainda mais os seus conhecimentos sobre a Primeira Guerra
Mundial, assista ao vdeo abaixo.

Pg. 5
KeynesA assimilao do enfoque keynesiano poltica econmica dos
socialistas no poder marca o incio do que se convencionou chamar Estado do
bem-estar social. No se trata mais de implementar reformas pontuais
enquanto se aguarda o momento propcio nacionalizao massiva. Criou-se,
na verdade, um novo modelo, com a ambio de domesticar o capitalismo, em
benefcio de trabalhadores e consumidores. O papel ativo que o Estado passou
a ter permitiria evitar a crise econmica e compensar os danos sociais do
sistema, sem necessidade da nacionalizao completa da atividade
econmica.
O modelo, de grande aplicao na Europa, aps a segunda guerra, apoiava-se
em trs pilares.At esse momento, convm lembrar, esses partidos dirigiam-se
prioritria ou mesmo exclusivamente classe operria. No Partido Trabalhista
Britnico, at mesmo a filiao individual de um membro de outra classe foi
vetada pelos sindicatos at 1918.
Em primeiro lugar, a presena do Estado como agente econmico, como
provedor dos insumos fundamentais economia, a preos mdicos. Tornou-se
comum o monoplio pblico em setores como crdito, ao, carvo, energia,
transportes e comunicaes. Todos eles estratgicos e de baixa rentabilidade
para o capital privado. Entre os poucos casos de presena estatal em
indstrias de bens de consumo, cabe citar, por sua relevncia, a produo de
automveis.
Em segundo lugar, a promoo de polticas anticclicas de preveno e
regulao de crises econmicas. Aqui o Estado age como controlador da
demanda, normalmente suprindo-a, mediante gerao direta ou indireta de
postos de trabalho.
Clique aqui, e saiba mais sobre Keynes.

Pg. 6
O terceiro pilar a construo de uma rede de proteo que pretendia nada
menos que a segurana absoluta para todo cidado, do bero ao tmulo.
Integram essa rede as polticas de sade, previdncia, assistncia social,
habitao, transporte, educao, assim como todas as demais que o Estado
utilize para o incremento da segurana e do bem-estar de sua populao.
A rede de segurana tem o objetivo de sanar as sequelas sociais do
capitalismo. A presena do Estado na produo e na regulao do mercado
imprimiria racionalidade a esse espao, evitando a crise, ao menos a crise
prolongada. Os capitalistas seriam induzidos a investir os seus lucros nos
setores considerados pelo Estado como importantes para a eficincia do
sistema. No limite, operariam como funcionrios da coletividade.
O modelo supe a possibilidade de os trabalhadores fazerem uso do Estado,
em que cada pessoa representa um voto, para corrigir as distores do
mercado, esfera na qual o peso nas decises proporcional ao montante de
recursos que cada um possui. A poltica prevaleceria, garantindo a justia e a
eficincia que o mercado seria incapaz de prover por perodos continuados.
A experincia da social-democracia na aplicao desse modelo trouxe tona
suas limitaes estruturais. Na verdade, equidade e eficincia no so
objetivos sempre compatveis, mas muitas vezes at antagnicos. Em casos de
tenses e conflitos aparece a principal barreira limitadora: a dependncia da
disposio do capitalista para o investimento.

Pg. 7
O modelo depende do crescimento econmico, este do investimento e este
ltimo, por sua vez, do lucro e da expectativa de sua continuidade. Na hiptese
de resistncia ou desconfiana dos capitalistas, estes, a rigor, no precisariam
sequer conspirar contra o governo: bastar-lhes-ia deixar de investir, para
provocar em pouco tempo uma crise desestabilizadora, de consequncias
fatais para o governo.
Esse o dilema que atormenta os governos socialistas empenhados numa
transio sistmica, na superao do capitalismo por uma nova ordem
econmica e social. Qualquer passo no sentido da nacionalizao, da restrio
dos mercados, retira os capitalistas da base de apoio ao governo e gera um
momento de desorganizao da produo. Essa crise tem seu nus, em
empregos e salrios, e a classe trabalhadora no se mostrou historicamente
disposta a suport-los, mesmo com o aceno de benefcios futuros at mais
substanciais.
A crise inevitvel nessa situao. Um governo eleito com promessas de
mudanas deve satisfazer as demandas dos diversos grupos de apoio a que
deve a vitria. Esse leque de demandas pode ser atendido por um nmero
limitado de meios: distribuio direta de renda, uso da capacidade produtiva
ociosa, gasto das reservas internacionais e reduo da taxa de lucros.
Segundo Przeworski, os trs primeiros sempre se mostraro insuficientes, de
maneira que a presso no sentido da reduo da taxa de lucros inevitvel.
Nesse momento ocorre a reao empresarial. Obrigados pela instncia poltica
a manter salrios e empregos em montante maior que o necessrio, aumentam
seus preos, gerando inflao. Caso se imponham controles diretos sobre os
preos, cessa a produo e surge uma situao de escassez. Processos com
esse roteiro aproximado observaram-se na Frana, em 1936; em Portugal, na
Revoluo dos Cravos; e no Chile de Allende.
A concluso do autor da impossibilidade da mudana de sistema por meios
democrticos. A perda inicial que os trabalhadores experimentam determina a
retirada de seu apoio ao governo partidrio da mudana, deixando-o debilitado
para enfrentar com sucesso a reao conservadora. A melhor soluo para os
trabalhadores seria persistir no compromisso social-democrata, assegurar os
ganhos possveis em troca da renncia revoluo social. Afinal, somente
esse modelo assegurou, historicamente, a convivncia entre capitalismo e
democracia.
Ao estudar o histrico e as caractersticas principais da social-democracia,
detivemo-nos nas opes fundamentais que levaram, com o tempo, a sua
distino em relao corrente socialista tradicional. Em seguida, discutimos
as caractersticas principais do produto de engenharia poltica que se associou
social-democracia a partir da dcada de 1930 e, principalmente, no ps-
guerra: o conjunto de polticas econmicas e sociais que veio a ser conhecido
como Estado do bem-estar social.
No prximo mdulo vamos abordar as bases que tornaram possvel o
compromisso que esse tipo de estado: o Estado do bem-estar social.
Doutrina Poltica: Social-Democracia

Mdulo II: Bases materiais do compromisso social-democrata

Unidade 1 - Capitalismo e Democracia

Como vimos, uma das idias correntes nos primrdios do movimento socialista
era a crena na incompatibilidade, no mdio e longo prazo, entre capitalismo e
democracia. A existncia simultnea desses dois elementos era considerada
intrinsecamente instvel. Numa situao como essa, a classe dominada
procuraria de imediato estender sua emancipao poltica para o campo social,
o que implicaria a eliminao do capitalismo. A burguesia, por sua vez, trataria
de restabelecer a congruncia ampliando a sujeio social dos operrios para a
esfera da poltica, limitando, sempre que possvel, o sufrgio aos ricos e
proprietrios, e eliminando, assim, a democracia.

Na base dessa anlise se encontra a constatao de que o conflito de


interesses que ope operrios e patres insanvel. Afinal, a relao entre
ambos de explorao, em que salrio e lucro so resultados de um jogo de
soma zero, e uma mudana qualitativa da situao de vida dos operrios
somente possvel por meio da superao revolucionria do sistema
capitalista, numa ordem de novo tipo, de carter socialista.

No entanto, a experincia mostrou que capitalismo e democracia conseguiram


conviver, por perodos de tempo bastante extensos, sob determinadas
condies.

Onde se encontraria a falha na argumentao de Marx e dos primeiros


socialistas?

Conforme Przeworski, encontra-se nas concluses equivocadas que foram


retiradas dessa anlise, em linhas gerais correta, a saber:

Primeira: embates em torno de interesses materiais levam a conflitos sobre a


forma de organizar a sociedade;

Segunda: o sufrgio universal tem o dom de incrementar a luta de classes e o


capitalismo s consegue se manter pela fora; e

Terceira: o caminho para o socialismo passa pelas crises do capitalismo.

Pois bem, evidente que a longa convivncia do capitalismo com o sufrgio


universal no quer dizer que a explorao de uma classe sobre outra, no
sentido preciso da apropriao do trabalho excedente, tenha terminado.
Apenas, essa explorao conta com o consentimento daqueles que a sofrem.
Quais as razes desse consentimento? Essa a pergunta que Przeworski tenta
responder nos ensaios discutidos nesta unidade.

Unidade 2 - Razes da hegemonia da classe capitalista

1. Razes da hegemonia da classe capitalista

A pergunta sobre as razes da persistncia do capitalismo j havia norteado as


reflexes de Gramsci. Para esse autor, a operao de diversos mecanismos no
plano ideolgico garantia a produo do consentimento ativo dos explorados.
No se trata, no entanto, de uma questo de iluso coletiva, que o trabalho
pedaggico dos militantes, informado pela cincia, pode por si s dissipar.
Qualquer ideologia subsiste apenas quando dispe de bases materiais para
tanto.

A questo pode ser formulada, portanto, da seguinte maneira: quais as bases


materiais, as condies objetivas, da hegemonia da classe dos capitalistas?

De pronto, preciso reconhecer que os interesses dos explorados devem ser,


de alguma forma, contemplados. Em outras palavras, a determinao da taxa
de lucro situa-se entre dois limites: o montante do lucro no pode ser pequeno
a ponto de inviabilizar o investimento e o crescimento econmico futuro; mas
tampouco pode ser grande a ponto de deixar o salrio do trabalhador no nvel
da subsistncia, sem contemplar algo do seu interesse material.

Para tornar a argumentao mais precisa necessrio deixar explcitos alguns


dos conceitos utilizados. Duas so as caractersticas bsicas do capitalismo,
para fins da anlise. Em primeiro lugar, a produo dirige-se a terceiros, ao
mercado, o que significa dizer que os produtores diretos no so auto-
suficientes, mas dependentes. Em segundo lugar, os capitalistas so
proprietrios do lucro e monopolizam as decises sobre o seu destino, ou seja,
sobre a alocao de recursos na economia, a cada momento.

De acordo com essas definies, a explorao dos trabalhadores a mesma


coisa que a lucratividade e produtividade do sistema. O ponto importante que
o lucro, ou seja, o interesse particular do capitalista, condio da realizao
do interesse de todas as demais classes da sociedade. Todas dependem do
crescimento, este depende do investimento, que, por sua vez, provm do lucro.
Da que os capitalistas possam aparecer como portadores do interesse
universal daquela sociedade.

Esse ponto de particular significao, pois implica reconhecer, conforme o


autor, que a oposio entre interesse presente e futuro dos operrios
inevitvel. A perseguio dos interesses de longo prazo dos trabalhadores, ou
seja, a mudana do sistema, no pode ser empreendida sem contrariar de
imediato os interesses presentes do capitalista. Estes, numa situao de
incerteza quanto continuidade do lucro, suspendem o investimento, impondo
perdas pesadas sociedade, em particular aos trabalhadores, que vem
diminuir, de imediato, os salrios e o montante de empregos.

Para evitar essa perda imediata, trabalhadores acedem ao compromisso com o


sistema, renunciam a sua subverso, em troca de determinadas condies. Em
primeiro lugar, os capitalistas em seu conjunto devem ser alocadores eficientes
do lucro. Em outras palavras, devem dirigi-lo ao investimento produtivo, de
maneira a gerar empregos. Devem, portanto, evitar aplicaes improdutivas, o
consumo conspcuo, alm de, evidentemente, sua transferncia a outro pas.

Pg. 2

Aplicado o lucro da maneira mais eficiente possvel, encontra-se montado o


cenrio para um conflito distributivo de resultado incerto. Aqui se produz a
segunda condio necessria ao consentimento: a expectativa de uma
progresso salarial dos trabalhadores.

Em sntese, o argumento do autor postula que enquanto perdurar a alocao


eficiente do lucro, de forma a gerar novos empregos, e a expectativa de
aumento continuado nos salrios for razovel, racional para os trabalhadores
optar pela manuteno do sistema, uma vez que o caminho da mudana impe
perdas certas no curto prazo.

Alcanado esse compromisso, os salrios no se manteriam no nvel da


subsistncia, como pensava Marx, mas no patamar necessrio preservao
do consentimento ativo dos trabalhadores com a explorao. A ausncia de um
compromisso desse tipo ou sua ruptura teria como consequncia o impasse
poltico e, no limite, o recurso exclusivo coero na esfera da poltica.
Historicamente o que parece haver-se verificado naqueles pases europeus
que enfrentaram greves gerais por motivos econmicos nas primeiras dcadas
do sculo. Em casos como esse, passa a valer a relao, afirmada por Marx,
de incompatibilidade, no mdio prazo, entre capitalismo e democracia.

Clique aqui, e saiba mais sobre Marx e o capitalismo.

Pg. 3

Ou seja, quando o capitalista desvia o lucro do investimento e fecha qualquer


possibilidade de melhora da renda do trabalhador, a opo racional a ruptura,
no rumo do socialismo. Essa escolha no seria racional, nesse caso, apenas
se o socialismo se revelasse, no futuro, menos eficiente que o capitalismo ou
se as perdas que o caminho da mudana impe levassem os trabalhadores a
uma situao material ainda pior que aquela provocada pelas condies
capitalistas menos favorveis.

Vimos, nesta unidade, as bases materiais do compromisso social-democrata.


Necessitam estas atender a duas expectativas dos trabalhadores. A primeira
a alocao eficiente do lucro, de maneira a gerar mais empregos. A segunda
a progresso salarial de maneira a que a remunerao do trabalho supere o
nvel de subsistncia e apresente tendncia crescente. Dadas essas
condies, seria racional para os trabalhadores abdicar de seu interesse de
longo prazo, a substituio da organizao capitalista pelo socialismo. Na
prxima unidade vamos examinar as razes da crise do Estado do bem-estar
social, iniciada na dcada de 1970.
Doutrina Poltica: Social-Democracia

Mdulo III: Razes da Crise da Social-Democracia

Nas quatro unidades seguintes estudaremos:

crise da social-democracia;
caractersticas da social-democracia clssica e do neoliberalismo e sua
confrontao;
razes do sucesso social-democrata at os anos 70;
mudanas necessrias ao modelo.

Unidade 1 - A crise da social-democracia

Discutimos na ltima unidade a anlise adiantada por Przeworski a respeito


das bases materiais do compromisso social-democrata, anlise praticamente
contempornea a seu objeto. Debateremos agora uma abordagem da crise que
se abateu sobre o paradigma social-democrata, desenvolvida por Giddens em
1999, com o benefcio, portanto, de uma distncia temporal maior dos
acontecimentos sob exame.

Para Giddens, a onda de governos liberais que se seguiu ao final da dcada de


1970 demonstrou cabalmente o esgotamento das polticas implementadas at
ento pela social-democracia. O mundo mudara e a esquerda demorou a dar-
se conta da mudana. Talvez somente a queda do muro de Berlim tenha
despertado a esquerda do seu torpor, apenas para mergulh-la na incerteza e
na perplexidade.

O fato que o socialismo, na condio de portador de um programa econmico


especfico, teve fim. A questo passa a ser quais os meios, quais as polticas a
propor para alcanar os valores tradicionais da esquerda? Como assegurar a
igualdade num contexto de prosperidade? Reconhecida a impossibilidade de
eliminar o mercado e a dificuldade de domestic-lo no velho estilo, como
conviver com ele? Como utilizar sua capacidade de emitir constante e
automaticamente informaes necessrias s decises na esfera econmica e
evitar as sequelas sociais de seu funcionamento? Essas as questes
fundamentais postas, no entendimento do autor, a uma esquerda de novo tipo,
que se disponha a administrar as mudanas em curso no mundo a partir de sua
perspectiva de valores.

A nova direita, os partidrios irrestritos do mercado, tambm enfrenta


contradies e dificuldades. Em primeiro lugar, a crena, no verificada at o
momento e pouco plausvel no futuro, de que o mercado solucionar, sempre,
no mdio prazo, os desequilbrios sociais que gera no curto prazo. Em segundo
lugar, a contradio latente entre o liberalismo econmico e o conservadorismo
no plano dos costumes, da vida pessoal. Qual a razo de postular, como fazem
os conservadores britnicos e os republicanos americanos, indivduos
autnomos na esfera econmica, mas sujeitos autoridade da tradio nas
esferas da famlia, da nao, da arte e da cincia?

Giddens expe seu entendimento acerca da crise do modelo social-democrata


em dois momentos. No primeiro, apresenta elementos fundamentais que
caracterizam, a seu ver, as posies da velha esquerda social-democrata e da
nova direita neoliberal. No segundo, analisa as premissas do sucesso social-
democrata e indaga de sua continuidade ou no no presente.

Unidade 2 - Caractersticas da social-democracia clssica

a) Envolvimento difuso do Estado na vida social e econmica

Decorre diretamente da afirmao das duas principais funes do Estado que


operam no sentido de manter o compromisso: prevenir a crise econmica e
remediar as mazelas sociais.

b) Domnio da sociedade civil pelo Estado

A social-democracia clssica manifestava desconfiana aguda em relao s


organizaes da sociedade civil. A ao do Estado dispensava as iniciativas de
quaisquer grupos de cidados organizados, por ser a princpio mais eficiente,
uma vez que era sempre melhor informada e mais representativa, fazendo
prevalecer os interesses da coletividade sobre qualquer tipo de particularismo.

c) Coletivismo

A satisfao das necessidades humanas de maneira igualitria leva nfase


em solues coletivas. A discusso feita pelo socilogo Marshall a respeito da
progresso dos direitos sociais enfatiza particularmente esse ponto.

d) Administrao keynesiana da demanda

Abordamos esse tpico algumas vezes em mdulos anteriores. Resta assinalar


que, para Giddens, encontra-se associado a outro trao: o corporativismo. O
processo decisrio passou a girar, cada vez mais, em torno do trip Estado,
empresrios e trabalhadores, estes ltimos representados por suas entidades
de classe.

e) Mercado restrito

Trata-se do tema da domesticao do mercado, seja pela via da propriedade


pblica sobre setores relevantes da economia, seja pelo direcionamento das
decises dos capitalistas, via polticas de estmulo positivo ou negativo, a
rumos compatveis com o interesse da coletividade.

f) Pleno emprego

a meta permanente no horizonte social-democrata. Tem um peso significativo


na agenda do pacto, pois, como vimos, contribui para a igualdade e condio
do financiamento do Estado do bem-estar social, pois implicaria,
simultaneamente, o nmero timo de cidados contribuintes e o nmero
mnimo de cidados beneficirios.

Para saber mais sobre Thomas Humphrey Marshall, leia o artigo de Paula
Julieta Jorge de Oliveira, publicado pela OAB. Clique aqui

Pg. 2

Em contraste, a alternativa liberal que comeou a confrontar a social-


democracia com sucesso, a partir dos anos 1970, pode ser caracterizada por
suas posies contrastantes em relao aos mesmos pontos anteriormente
arrolados.

2. Caractersticas do neoliberalismo

a) Governo mnimo

O eixo da plataforma liberal, que considera o Estado fonte de ineficincia,


corrupo e autoritarismo. Preconiza-se sua substituio, sempre que possvel,
pela livre iniciativa dos cidados.

b) Sociedade civil autnoma

o corolrio do ponto anterior. Indivduos devem assumir a iniciativa nas


esferas social e econmica de maneira isolada ou na forma de associaes
voluntrias. Empresas so veculos da livre iniciativa, mas tambm o so todas
as associaes que renem os indivduos para fins outros que no o lucro.

c) Fundamentalismo de mercado

O mercado, campo de interao das iniciativas individuais na esfera


econmica, tem a capacidade de sempre produzir a melhor soluo possvel,
se no de imediato, no mdio prazo. A interveno premeditada do Estado
distorce o funcionamento dos mecanismos de mercado, de forma que, embora
os efeitos desejados sejam atingidos no curto prazo, suas consequncias
deletrias devem fazer-se sentir posteriormente. Em todo caso, o balano geral
acusaria sempre uma situao inferior tima.

d) Individualismo econmico com autoritarismo moral


As propostas neoliberais articulam, normalmente, a aprovao da autonomia
individual no plano econmico com o respeito tradio no plano moral. Como
j assinalado, h um antagonismo latente entre ambas as posies.

e) O mercado de trabalho como um mercado a mais

O fato de o mercado de trabalho colocar em jogo a sobrevivncia de indivduos


e famlias no deve ser motivo para um tratamento excepcional, com uma
margem maior de interveno do Estado sobre ele. Em outros termos, o Estado
no deve obstar a perda de renda de determinados grupos, desfavorecidos por
uma mudana na conjuntura. Todo emprego ou salrio artificialmente
preservado pesa sobre a sociedade como um todo e se reflete em perda de
sua competitividade.

Pg. 3

f) O elogio da desigualdade

A desigualdade considerada inevitvel afinal cada indivduo singular em


suas aptides e falhas, e benfica. De maneira geral, o elogio da diversidade
, como vimos, um tema clssico do repertrio liberal. A desigualdade de bens
e renda vista como o resultado, justo, de decises de responsabilidade
individual.

g) Nacionalismo tradicional

Um dos valores que faz a ponte entre os neoliberais e os antigos


conservadores. A nao valorizada e os alvos dessa atitude so, de costume,
os imigrantes, a integrao regional e as posturas abertas ao cosmopolitismo
cultural. Da a pretenso, comum, de limitar a globalizao a seu aspecto
econmico e, nele, livre circulao de capitais, retendo o trabalho e a cultura
s fronteiras nacionais.

h) Estado e bem-estar social como rede de segurana

A ideia limitar a proviso de segurana por parte do Estado queles que


"efetivamente dela necessitam". Recusa-se o princpio de um sistema
universal, uma vez que, sempre que possvel, os indivduos devem responder
pela sua segurana nos planos da sade, educao, previdncia social,
desemprego e outros. O fantasma liberal que a assistncia pblica passe a
ocupar todo o horizonte de vida dos assistidos, mutilando sua iniciativa.

i) Baixa conscincia ecolgica

Tal como no caso da social-democracia, a sensibilidade dos liberais para com o


meio-ambiente escassa. Predomina a crena de que boa parte dos
problemas ecolgicos solucionvel por mecanismos de mercado, uma vez
que a escassez se traduziria de imediato em elevao de preos e
desenvolvimento de alternativas mais baratas.

j) Realismo internacional

No plano internacional, a diretriz o realismo: a mobilizao dos meios mais


eficientes para o atendimento de interesses nacionais predefinidos.

k) Mundo bipolar

O neoliberalismo partilha com a social-democracia o ambiente internacional de


seu pensamento: um mundo regido pela lgica da competio entre dois
grandes blocos.

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Em resumo, temos:

Social-Democracia Clssica
Neoliberalismo

Envolvimento difuso do Estado na vida social e econmica


Governo mnimo
Domnio da sociedade civil pelo Estado
Sociedade civil autnoma
Coletivismo
Individualismo econmico com autoritarismo moral
Administrao keynesiana da demanda
Fundamentalismo de mercado
Mercado restrito
Pleno emprego
O mercado de trabalho como um mercado a mais
Igualitarismo
O elogio da desigualdade
Estado do bem-estar social abrangente
Estado de bem-estar social como rede de segurana
Baixa conscincia ecolgica
Baixa conscincia ecolgica
Internacionalismo
Nacionalismo tradicional
Realismo internacional
Mundo bipolar

Pg. 5

Em sntese, a social-democracia postula a ascendncia do Estado sobre o


mercado. Ascendncia legtima, uma vez que expressaria sempre o desejo da
maioria. Na prtica, as decises so tomadas no dilogo entre o Estado, rbitro
maior, e as classes empresariais e trabalhadoras.

No plano social, d-se como certo que o indivduo no capaz de defesa


prpria em um leque importante de situaes, nas quais legtima e
necessria a interveno reparadora do Estado. O envolvimento da burocracia
na vida das famlias assistidas percebido como nus inevitvel do modelo.

As associaes voluntrias so vistas com desconfiana em razo da


deficincia em termos de profissionalismo e, principalmente, por no disporem
de uma noo de conjunto do problema a que se dedicam, viso esta facultada
apenas ao Estado.

O neoliberalismo, por sua vez, postula o menor Estado possvel, sob controle
do mercado e da sociedade civil. Esta disporia da energia suficiente para gerar
a solidariedade de que a sociedade precisa.

O princpio mesmo do Estado do bem-estar social posto em questo. A


segurana dos cidados deve ser obra dos prprios cidados. Nas palavras de
um de seus expoentes, no futuro o Estado do bem-estar social ser visto com o
mesmo desprezo que aquele hoje dedicado escravido.

No fundo, a segurana dos indivduos s pode ser consequncia do


crescimento econmico, que distribuir seus frutos de maneira desigual,
recompensando as decises acertadas e punindo todos os equvocos.

Unidade 3 - Premissas do sucesso do modelo social-democrata

Conforme Giddens, o sucesso do modelo social-democrata apoiava-se em


cinco premissas. Na sua opinio, a confrontao que lhe moveu o
neoliberalismo s passou a conseguir sucesso eleitoral no momento em que
essas premissas foram ultrapassadas na sociedade. O modelo viu-se face aos
novos desafios, para os quais as antigas polticas no constituam mais
resposta. Relacionamos, a seguir, as premissas apresentadas.

Primeira: Famlia tradicional

O Estado do Bem-Estar Social fundamentava-se no modelo de famlia


tradicional: marido empregado, provedor do salrio, e esposa fora do mercado,
dedicada aos trabalhos domsticos. Nesse modelo, a equao do pleno
emprego de soluo relativamente simples, uma vez que tem como alvo
apenas a metade da populao adulta. No momento em que a mulher ingressa
no mercado de trabalho, o objetivo torna-se mais pesado, de alcance mais
difcil.

Pg. 2

Segunda: Homogeneidade do mercado de trabalho

Terceira: Produo em massa

Tambm a produo em massa torna mais fcil o processo de tomada de


decises em favor do pleno ou mximo emprego. O planejamento da oferta de
postos de trabalho consideravelmente mais simples nessa circunstncia.
Hoje as empresas de pequeno e mdio porte tendem a ganhar mais peso,
dando maior complexidade ao mercado de trabalho.

Pg. 3

Quarta: Burocracia especializada

O modelo dependia, tambm, da existncia de uma camada burocrtica


especializada, capaz de tomar as decises "tcnicas" acertadas, ou seja,
compatveis com os pressupostos do modelo, bem como de monitorar as
polticas decorrentes. A transparncia e a participao popular no processo
eram caractersticas menos valorizadas que sua eficincia. Talvez essa seja a
nica premissa que continua realizvel no presente.

Quinta: Economias nacionais no interior de fronteiras soberanas

Em outras palavras, um elevado grau de controle, por parte do governo, sobre


as variveis econmicas de maior relevncia. Uma das condies das polticas
inspiradas no keynesianismo a preponderncia da economia domstica sobre
os setores dependentes do exterior. Essa condio desaparece, a olhos vistos,
nas condies de globalizao em que vivemos. O Estado controla cada vez
menos as variveis econmicas mais importantes, e a interdependncia,
evidentemente assimtrica, torna-se a regra.

Unidade 4 - As mudanas necessrias

O recuo eleitoral dos partidos socialistas, a onda liberal que invadiu a Europa a
partir de fins dos anos 1970, obedece, conforme esta perspectiva, a causas
mais profundas que a simples volubilidade dos cidados ou a alternncia entre
oposio e situao. A eroso progressiva de cada uma dessas premissas teria
posto, aos governos de esquerda, problemas cada vez mais difceis de serem
resolvidos nos seus parmetros clssicos. O Estado do bem-estar social
tornava-se, ao mesmo tempo, mais caro e mais ineficiente. A acumulao de
insucessos parciais teria conferido credibilidade alternativa neoliberal,
provocando a sucesso de vitrias eleitorais.

As mudanas necessrias

A reao da esquerda s poderia se dar mediante a abertura de sua agenda s


novas questes postas pelas mudanas em curso no mundo.

Em primeiro lugar, a mudana mais evidente foi a das estruturas de apoio


poltico para o projeto da esquerda. Tradicionalmente, a base de apoio da
esquerda foi a classe trabalhadora. Com o tempo, como vimos, esfumou-se a
esperana de atingir a maioria eleitoral apenas com base nessa classe, e a
social-democracia operou uma guinada, ampliando o alvo de seu discurso para
o povo ou para as classes populares. Mesmo assim, a centralidade do apelo
classe operria foi mantida, e a conquista da maioria eleitoral no foi uma
tarefa fcil, precisando superar o trade-off apontado por Przeworski.

Pg. 2

Pois bem, nas novas condies, as bases classistas da esquerda socialista e


social-democrata manifestam uma fragilidade ainda maior. Na verdade, a
prpria determinao de classe sobre o comportamento poltico e eleitoral
encontra-se abalada. Segundo dados citados por Giddens, na Sucia, pas
com forte e tradicional influncia classista sobre o voto, a classe respondia, em
1967, por 54% das definies de voto. Em 1985, esse percentual havia cado
para 34%.

Em outras palavras, no s os trabalhadores diminuem em nmero, como


tendem cada vez mais a votar de acordo com outros valores que no aqueles
vinculados identidade de classe.

Esse movimento congruente com as observaes de Inglehart sobre a


mudana de valores em curso no mundo contemporneo. Haveria hoje uma
tendncia nos pases afluentes, provocada pela prosperidade material e pelo
sucesso do Estado do bem-estar social, no sentido da importncia maior de
valores no ligados subsistncia, valores ps-materialistas, portanto, em
detrimento dos valores articulados segurana material. Ganham peso como
definidores de votos outras identidades, fundadas na etnia, religio, idade,
gnero, cultura, entre outros, e, por outro lado, classe social, renda e consumo,
por exemplo, perdem significao.

Esse fato no implica o abandono dos trabalhadores como grupo interlocutor


importante dos partidos socialistas, mas impe a considerao de outros
grupos, como mulheres, jovens e aqueles organizados em torno de questes
que cortam o eixo direita-esquerda, como os verdes.
Atentos necessidade de mudana, de interlocutores e de propostas, os
diversos partidos socialistas europeus iniciaram um processo de transio. A
partir da dcada de 1980 passaram a incluir em sua agenda temas como a
produtividade econmica, a participao dos cidados, o desenvolvimento de
estruturas comunitrias, a ecologia e a pluralidade de estilos de vida, todos
antes subestimados.

A incorporao de temas como esses e sua articulao com a agenda antiga


da social-democracia, ou seja, a tentativa de construo de um novo
paradigma para a esquerda, o tema do curso Doutrinas Polticas
Contemporneas: Novas Esquerdas.

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